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A Construção da Paisagem de Fundos de Vale em Bauru Profa. Dra. Norma Regina Truppel Constantino E-mail: nconst@faac.unesp.br Resumo O presente artigo é baseado na tese de doutoramento apresentada à FAUUSP em 2005, em que se buscou responder às seguintes questões: Como era a paisagem original? Como a legislação veio a influenciar na construção da paisagem? Quais os impactos provocados pela urbanização na paisagem? É possível planejar com a paisagem? A intenção da revalorização da paisagem natural é um tema presente nas discussões atuais sobre as cidades, onde se busca incorporar os elementos naturais com o fim de imprimir uma dimensão qualitativa, entendendo a paisagem como um sistema e como forma construída pelas ações da sociedade. A região de Bauru, até o final do século XIX era o “sertão desconhecido”, com limites imprecisos e intensa ocupação por posseiros. A matriz da paisagem original era formada por uma vasta área florestada com vegetação de cerrado e os corredores verdes – as matas de galeria ao longo dos córregos. Através de levantamentos, constatou-se que os espigões que conformavam as bacias hidrográficas dos córregos que cortam o atual perímetro urbano coincidiam com os limites das primeiras fazendas formadas. Os proprietários das fazendas foram os responsáveis pela doação da área para o patrimônio religioso – núcleo inicial da cidade. O parcelamento das fazendas em glebas - onde o processo de delimitação adotado era o da “aguada” - e seu posterior loteamento, seguindo um traçado em quadriculado contínuo, desconsiderou a topografia natural resultando na forma urbana atual. A legislação consultada reforça a quadrícula urbana, tornando-a formal e legalmente instituída. Ao longo do século, a cidade vai se estendendo para além dos fundos de vale, que permanecem como um vazio entre lugares. 1. Introdução A cidade de Bauru é marcada pela presença do Rio Bauru e de seus afluentes. Entretanto, o quadriculado contínuo da malha urbana se detém ao encontrar os fundos de vale dos córregos que cortam a cidade, os trilhos da ferrovia ou as rodovias, independentemente da topografia existente. Ao longo deste trabalho procura-se analisar a questão da paisagem natural e sua relação com a forma da cidade. A pesquisa sobre as origens do parcelamento urbano em Bauru, e o reconhecimento dos limites e da extensão das grandes fazendas dos pioneiros da região foi fundamental para a compreensão da paisagem urbana atual como totalidade, buscando apontar e discutir a dicotomia entre o natural e o construído. Para esta compreensão, é necessário analisar que Bauru faz parte de uma rede de cidades surgidas no Oeste paulista no final do século XIX e início do século XX. A relação com a paisagem é mailto:nconst@faac.unesp.br fundamental para Pierre Deffontaines que, ao analisar, em 1938, "como se constituiu no Brasil a rede de cidades", observou que no Estado de São Paulo as estradas de ferro seguiam em geral as cristas entre as bacias fluviais - os espigões - e se afastavam dos fundos de vale.1 Para Pierre Monbeig, as mesmas características geográficas são encontradas no Oeste do Estado de São Paulo e no Norte do Paraná, ao longo do Trópico de Capricórnio, onde os espigões são propícios à instalação de estradas de rodagem e ferrovias.2 Para o autor, "os vales revelaram-se impraticáveis à penetração moderna." O Governo do Estado de São Paulo, no final do século XIX e início do século XX, buscando o melhor conhecimento do sertão, confiou à Comissão Geográfica e Geológica o encargo de explorar os rios, uma lembrança das antigas vias de penetração. Entretanto, os rios do planalto ocidental paulista apresentavam muitos trechos com cachoeiras, saltos e quedas, com passagens impossíveis para a navegação, ou então, trechos com pouca correnteza e margens pantanosas. A conquista do Oeste Paulista e do Norte do Paraná, visando novas terras para o plantio do café, fez com que surgissem muitas povoações, que mais tarde vieram a tornar-se importantes cidades. A cultura cafeeira e a implantação das ferrovias estimularam o povoamento da região, possibilitando que se consolidassem as atividades produtivas essenciais a uma economia de base agrário- exportadora. Uma série de cidades, umas após as outras, foram fundadas ao longo das ferrovias. Três companhias ferroviárias dividiram a região em áreas de sua influência: a Noroeste, a Sorocabana e a Alta Paulista, que se estabeleceram ao longo dos espigões. Primeiramente, pode-se considerar que muitas cidades cafeeiras, particularmente as paulistas, foram constituídas a partir de um patrimônio religioso - o caso de Bauru - formado por terras doadas pelos proprietários das grandes fazendas da região. Os patrimônios constituíam porções de terras cedidas por um senhor, ou por vários vizinhos, para servir de moradia e de meio de subsistência a quem desejasse morar de forma gregária, conforme Murilo Marx. De maneira geral, era escolhido o sítio de melhor situação topográfica para edificar a capela, sendo deixado um espaço à frente, para o largo. "À geografia, ao quadro natural encontrado, superpôs-se uma outra realidade humana, precisamente fundiária." 3 A formação de Bauru irá influenciar também as cidades constituídas ao longo das linhas da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Bauru, elevada a Comarca em 1910, irá abranger em sua jurisdição todas as cidades da Noroeste. O traçado desprezava a topografia original, chegando até às margens dos córregos existentes, onde ficavam os terrenos menos valorizados. Como uma segunda forma de constituição das cidades no Oeste Paulista, considera-se as cidades surgidas a partir da chegada da ferrovia, sobre solos laicos, desenhadas, pelo arruador, a partir da implantação da estação ferroviária, como é o caso das cidades formadas ao longo da Estrada de 1 DEFFONTAINES, 1944, p.147 2 MONBEIG, 1984, p. 33 e p.44. Segundo Pierre Monbeig, a palavra "espigão" entrou na linguagem corrente. "Diz-se espigão da Paulista para designar as elevações em que correm os trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, espigão da Sorocabana, etc." 3 MARX, 1991, p.47. Ferro Noroeste do Brasil, que teve seu ponto de partida em Bauru. Os trilhos da Noroeste seguiam o divisor de águas do Tietê e Aguapeí/Feio. O engenheiro Sylvio Saint-Martin, em seu relatório de 1906, diz que o caminhamento geral da linha seria "naturalmente conduzido pela disposição dos cursos d´água, aproveitando os afluentes do Rio Tietê, bordeando-os à meia encosta, como forma de buscar rampas suaves". Os povoados da zona Noroeste formaram-se juntamente com a implantação da ferrovia, visando a viabilização do parcelamento rural e da conseqüente produção agrícola. A comercialização de terras urbanas veio a tornar-se uma estratégia de venda de terras agrícolas, o que também irá ocorrer no Norte do Paraná no final dos anos 20. Portanto, a origem destes povoados não esteve atrelada apenas à produção cafeeira, como os demais núcleos criados no século XIX, mas também em decorrência da implantação de uma ferrovia de penetração, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Para Pierre Monbeig, aqui, como na maior parte das regiões tropicais, o cultivo do solo ocasionou rapidamente o seu esgotamento. A marcha para o Oeste, considerada nas suas relações com os solos, não aparece como uma conquista valiosa, mas como uma devastação sem freio. O trópico paulista não foge à regra, pois “os solos frágeis são um capital rapidamente dissipado pelos pioneiros. Eles estavam mais apressados em fazer fortuna do que desejosos de se fixarem e menos satisfeitos com a posse de uma terra sua, do que fascinados pelos vastos espaços verdes”.4 Ao reconstruir a paisagem de Bauru anterior à urbanização, observa-se que os fundos de vale podem ser considerados um fator de permanência, pois coincidiam com oslimites das antigas fazendas dos pioneiros da região. O próprio nome da cidade está relacionado à presença do rio Bauru. A ação do homem, ao longo do processo de ocupação do território, vai alterando a paisagem, mas o rio permanece.5 Entretanto na pesquisa realizada em jornais veiculados na cidade, verifica-se que os rios somente estão relacionados aos fatores de degradação do ambiente, como enchentes, erosões, dificuldades de acesso ou poluição, sendo raramente utilizados para a recreação. A intenção de revalorização da paisagem natural é um tema presente nas discussões atuais sobre as cidades, onde se busca incorporar os elementos naturais a fim de imprimir uma dimensão qualitativa, entendendo a paisagem como um sistema e como forma construída pelas ações da sociedade. 2. Como era a paisagem original ? Para a compreensão da construção da paisagem urbana de Bauru, marcada pela presença do rio Bauru e de seus afluentes, foi necessário realizar inicialmente um levantamento de dados nos Cartórios de Registro Imobiliário. Desta maneira foi possível resgatar o desenho das grandes glebas 4 MONBEIG, 1984, p.75 5 Para Heráclito de Éfeso, na natureza tudo fluía, nada persistia, nem permanecia o mesmo, tornando impossível entrar duas vezes na mesma corrente de um rio, pois aquela água já não seria a mesma; a história jamais se repetiria. Ver mais em REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia, vol.1. São Paulo: Paullus, 1990, p 35-38. – as fazendas – que circundavam a área do patrimônio religioso e que interferiram no traçado da cidade. Conforme Vittorio Gregotti, “nós sabemos perfeitamente que a paisagem, não só a antropogeográfica, é sempre construída historicamente enquanto decisão de destinação ou de resíduo, porque a história da atividade humana sobre aquele suporte geográfico a construiu paciente e coerentemente como paisagem”.6 Da paisagem original às grandes fazendas, cujos limites coincidiam com àqueles que conformavam as microbacias hidrográficas, encontramos uma paisagem modificada pelo homem – uma segunda natureza.7 Figura 1: Sobrepondo-se ao mapa atual de Bauru, o desenho das antigas fazendas do século XIX: (1) Fazenda Barreirinho, (2) Fazenda Grande, (3) Fazenda das Flores, (4) Fazenda São João, (5) Fazenda Vargem Limpa, (6) Fazenda Campo Redondo. Fonte: CONSTANTINO, 2005. Na Figura 1 observa-se os limites das fazendas demarcados sobre o mapa atual do perímetro urbano de Bauru, conformados pelos espigões: os lados alongados são geralmente as linhas do divisor de águas entre as duas bacias hidrográficas secundárias. Este traçado permitiu atender às necessidades de todos os fazendeiros de ter acesso à água e aos altos dos espigões: os espigões da bacia do Córrego Barreirinho conformam a Fazenda Barreirinho; os espigões da bacia do Córrego das Flores conformam a Fazenda das Flores, confrontando com a Fazenda Grande ou Água Parada e Bauru – Batalha; os espigões da bacia do Córrego Água Comprida conformam a Fazenda Campo Redondo; e os espigões da bacia do Córrego Vargem Limpa delimitam a Fazenda Vargem Limpa. As fazendas acima citadas ocupavam a região conformada pelo atual perímetro urbano. 6 GREGOTTI, 1975, p.67 7 Em “De Natura deorum”, Cícero descreve como a segunda natureza, aquilo que o geógrafo moderno chamaria de paisagem cultural: estradas, canais, arvoredos, plantações, etc. Ver mais sobre as três naturezas em HUNT, J.D. In the concept of the 3 Nature. In: Casabella: 1993, pp 98-101. Os fazendeiros mais ricos encontraram na forma das fazendas, uma possibilidade para associar a cultura cafeeira, localizada junto ao espigão, com a criação de gado, esta nas pastagens que se formam nos fundos de vale e nas partes inferiores das encostas. 8 Outros desembaraçavam-se das partes impróprias para o café, vendendo-as a sitiantes e conservando somente as partes altas das fazendas. No traçado dos sítios continuava-se aplicando o sistema utilizado com o fim de assegurar o acesso, ao mesmo tempo, à água e ao espigão, utilizados como fronteiras naturais. Cortavam-se as vertentes dos pequenos vales em faixas perpendiculares aos córregos. Estas marcas continuam presentes, assim como os antigos caminhos. O caminho para Iacanga permanece marcado no tecido urbano - a atual Rua Floresta - destacando-se na malha em xadrez contínuo. Também observa-se o caminho para Duartina, atual Rua Salvador Fillardi, onde foi respeitado o traçado, sem interromper sua continuidade. Ou ainda, o caminho para a Fazenda Val de Palmas, interrompido pela malha urbana, mas que continua na extremidade do perímetro urbano, a Avenida Elias Miguel Maluf, uma permanência na paisagem urbana. No processo de construção da paisagem, uma crítica sempre presente é a de que o poder público apoia-se freqüentemente numa visão de planejamento urbano baseada em uma operação padrão, comandável a partir de coordenadas espaciais externas ao lugar, tratando o espaço como um vazio no qual se pode estender uma retícula infinita, indiferenciada e monofuncional.9 No caso de Bauru, o processo de parcelamento do solo aconteceu a partir do interesse da iniciativa privada em lotear as glebas das antigas fazendas principalmente para fins residenciais, na proximidade de caminhos, acessos importantes para o núcleo urbano original. Os loteamentos deveriam obedecer às exigências da legislação quanto ao traçado em malha regular de 88 por 88 metros, inclusive as praças, presente desde o Código de Posturas de 1897 10 e confirmado pelas leis municipais número 1 de 1906, número 56 de 1913,11 pelo Código de Posturas de 1929 12 e pelo Decreto Municipal 25 de 1947. 13 O Código de Posturas de Bauru - o de 1906 e, posteriormente, o de 1913 - se tornou a base legal para 8 MONBEIG: 1984, pp.216-221. 9 LEITE: 1998, pp 65-75 10 BAURU, Leis e Decretos. Lei n.8 de 20 de dezembro de 1897. Código de Posturas. “Capítulo I, Das ruas, praças e construções. Artigo n.1: As ruas que forem abertas nesta villa e povoações do município, terão 16 metros de largura e as avenidas 25 metros, menos se a topographia local não o permitir”. Artigo n. 2: “Os quarteirões que forem demarcados serão em quadro com 88 metros em cada face, salvo algum obstáculo invencível na topographia local”. Artigo n. 3: “As praças ou largos terão o tamanho igual a um ou dois quarteirões”. 11 BAURU, Leis e Decretos. Lei n.56 de 24 de janeiro de 1913. Código de Posturas. “Capítulo 1: Do alinhamento, nivelamento e calçamento das ruas e praças. Art. 1: As avenidas, ruas e travessas que forem abertas na cidade e povoações do município, sempre que o permittir a topographia local, serão rectas e terão 20 metros de largura as primeiras e 17,60 as segundas, medindo os quarteirões 88 metros em quadro”. 12 BAURU, Leis e Decretos. Código de Posturas de 21 de janeiro de 1928.”Artigo 1: Todas as ruas que forem abertas na cidade serão rectas e terão, no mínimo 17,60 metros de largura, medindo os quarteirões 88 metros em quadro; as avenidas terão 20 metros de largura. As ruas atuais conservarão em seus prolongamentos a mesma largura que têem. As praças e largos deverão ser, sempre que o terreno o permittir, quadrados retangulares perfeitos, ou outras figuras regulares e symetricas”. 13 BAURU, Leis e Decretos. Decreto n.25 de 3 de junho de 1947. Regulamenta os artigos 1, 2, 3, e 4 do Código de Posturas Municipais – Arruamentos e Loteamentos. “Artigo 3: Os proprietários de terrenos urbanos, suburbanos ou rurais que pretenderem arruá-los ou dividí-los em lotes para a formação ou ampliação de núcleos ou centros urbanos, deverão requerer ao prefeito satisfazendo as seguintes condições…” o arruamento dos povoados que foram sendo implantados ao longo da Noroeste, seguindo o modelo de traçado reticulado e as quadras regulares.A vinda para Bauru das três estradas de ferro, entre os anos de 1905 e 1910, ao mesmo tempo que acelerou o crescimento da cidade, também valorizou rapidamente os terrenos urbanos, estes sob o aforamento da Fábrica da Matriz do Divino Espírito Santo. A valorização impedia a ocupação dos terrenos por parte daqueles que não dispunham de posses. Como reflexo imediato, surgiram os bairros operários, além das linhas férreas, loteados por antigos proprietários rurais. A ocupação territorial foi ocorrendo através de sucessivos fracionamentos da terra e pela forma de transmissão de suas parcelas. “A paisagem urbana como que se desenha e redesenha continuamente a partir do chão; espelha primeiro a forma de ocupação do solo”. 14 A gleba a ser transformada em solo urbano, geralmente tinha como um de seus limites, um curso d´água, e os demais confrontavam-se com uma ou mais propriedades rurais. O agrimensor, agora arruador, submetendo-se ao Código de Posturas do município, tomava por base um dos limites rurais retilíneos, dando preferência àquele que acompanhasse os pontos cardeais. A retícula era lançada preliminarmente no papel e depois era transportada para o terreno, com as adaptações necessárias. 3. A reconstituição dos limites das fazendas A reconstituição dos limites das fazendas foi possível através da pesquisa em processos de registro dos loteamentos que apresentavam na relação cronológica de seus títulos como sendo glebas originárias de cada uma das Fazendas. A principal dificuldade encontrada na pesquisa dos primeiros loteamentos foi a de que estes passaram a ser inscritos nos Cartórios de Registro Imobiliário somente a partir do Decreto Lei Federal 58 de 1937.15 No memorial destes loteamentos consta a relação dos lotes já compromissados, comprovando sua ocupação anterior, fato confirmado na pesquisa em jornais da época. A Fazenda das Flores, lindeira à área do patrimônio religioso, tinha como principal limite o espigão da bacia hidrográfica secundária do Córrego das Flores. O primeiro parcelamento da fazenda em glebas ocorreu entre 1906 e 1908, aparecendo linhas divisórias marcantes: os caminhos radiais que ligavam o núcleo urbano de Bauru a outras vilas e sedes de grandes fazendas. Uma segunda etapa de parcelamento ocorreu na década de 40, com maior intensidade. As glebas resultantes apresentavam formas e dimensões regulares pois, na sua maioria, eram resultantes de formal de partilha entre herdeiros. Na terceira etapa procedeu-se o parcelamento do solo em loteamentos urbanos, comercializados pelos próprios proprietários ou por empresas imobiliárias. A principal característica observada é a de que cada fragmento da gleba maior, teve seu desenho em malha de xadrez 14 MARX, 1991, p.31 15 BRASIL. Leis e Decretos. Decreto Lei 58 de 10 de dezembro de 1937. Dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações. justaposto ao existente, havendo um acerto entre ângulos e traçados, tendo engenheiros ou agrimensores como responsáveis técnicos. Figura 2: Reconstituição dos limites da Fazenda Barreirinho. Fonte: CONSTANTINO, 2005. A Fazenda Barreirinho teve como principal limite o espigão da bacia do Córrego Barreirinho. Historicamente a Fazenda consta pertencer a João Batista Oliveira Gomes. O primeiro parcelamento ocorreu entre 1920 e 1930, aparecendo linhas divisórias marcantes. As glebas resultantes apresentam formas e dimensões regulares, pois, na sua maioria, são resultantes de formal de partilha entre herdeiros. O parcelamento do solo em lotes urbanos, comercializados pelos próprios proprietários, por empresas imobiliárias ou pela Companhia Habitacional de Bauru – COHAB, que se dá à partir de 1938. Os bairros do entorno, predominantemente residenciais, têm lotes de 250 metros quadrados em média, reforçando a idéia de horizontalidade do conjunto. Na década de 80, a implantação de um núcleo habitacional de interesse social trouxe a necessidade da travessia entre as margens do córrego, para o acesso de seus moradores aos equipamentos de serviços, comércio, educação e saúde. A Fazenda Grande, “também conhecida pela denominação de Fazenda Bauru-Batalha e Água Parada”, segundo seu Memorial Descritivo, foi registrada em 17 de dezembro de 1898 no Cartório de Lençóis, de cuja jurisdição Bauru fazia parte. A mesma abrangia uma área de “vinte e quatro mil, seiscentos e quarenta e sete hectares, 7 ares e 62 centiares ou dez mil, cento e oitenta e quatro alqueires e meio”. No Histórico apresentado nesse Memorial consta que “pelos annos de 1854-55 o mineiro Felicissimo de Souza Pereira comprou de Antonio Teixeira do Espírito Santo, Philippe Antonio Moreira e Marianno José Costa suas posses no Rio Batalha e Ribeirão do Bauru, fazendo registrá-las em maio de 1856”. Na leitura do Memorial observa-se que todos os pontos de referência são os acidentes geográficos, principalmente os rios e ribeirões, suas vertentes e espigões divisores de águas, como no trecho seguinte: “... segue pelo espigão entre estas duas correntes até o espigão mestre e daí desce ao ribeirão da Água Parada na barra de um lacrimal do Cap. Simplício. Daí desce pelo ribeirão da Água Parada até frontear o espigão de um lacrimal abaixo do córrego da Cachoeirinha, sobe por este espigão até encontrar o córrego das Flores, confrontando com a Foz do Água Parada do José Fangino. Daí segue pelo espigão à direita até frontear o ponto de partida e daí até este ponto, confrontando com o córrego das Flores”. Os acidentes geográficos são utilizados para demarcar divisas e confrontações, bastante vagos e imprecisos quando comparamos com as coordenadas geográficas utilizadas atualmente. Ao descrever a qualidade das terras, salienta que “são extremamente férteis parte das terras da fazenda ... e parte das terras é árida coberta por especial vegetação: cerrado ou faxinal.” As terras abrangiam grande área do perímetro urbano, onde hoje se localizam as Vilas Falcão e Independência. Felicíssimo construiu nas imediações da atual vila Independência, um grande sobrado de madeira.16 A Fazenda Grande compreende, dentro do atual perímetro urbano, a Bacia do Córrego da Grama, a Bacia do Córrego Água do Sobrado e parte da Bacia do Córrego Água da Forquilha. Fora do perímetro urbano, a Fazenda se estende até encontrar o Rio Batalha, limite entre os municípios de Bauru e Piratininga. O primeiro parcelamento de terras na área da Bacia do Água do Sobrado foi a Vila Falcão, sob a responsabilidade do agrimensor Ismael Maria Falcão. Nas Atas da Câmara de 18 de julho de 1918 é registrada a aprovação do projeto anexando “o Bauru da Villa Falcão” ao perímetro urbano, o primeiro bairro de Bauru. O jornal Diário da Noroeste, de 12 de agosto de 1925 noticiava a venda de “Terrenos a prestações em Villa Bella, próxima às oficinas da Noroeste”. E no jornal Diário da Noroeste de 14 de junho de 1936 foi publicado o anúncio da “Villa Souto, a melhor de Bauru”. Somente a partir de 1937 é que haverá a obrigatoriedade de registrar os loteamentos em Cartório. No jornal Diário de Bauru de 01 de outubro de 1947 é anunciado o lançamento da Vila Bechelli “no prolongamento do Jardim Bela Vista ... alta, plana, próxima à Estação Central” e da “Villa Industrial, o Brasil-fabril de amanhã”. Os novos bairros eram abertos e comercializados sem infraestrutura básica.17 16 PAIVA, 1977, p.20. “Dada a existência do luxuoso sobrado, os caminhantes e moradores da época denominavam Água do Sobrado ao riacho e às terras vizinhas ao casarão”. O jornal “O Bauru”, de 4 de maio de 1913, traz o Edital de Divisão da Fazenda Água Parada, Bauru e Batalha ou Fazenda Grande. 17 O jornal “Diário de Bauru”, de 5 de julho de 1954 comenta sobre a necessidade de benfeitorias na Vila Nova Quaggio. “Conta este bairro com 120 prédios habitadosna sua totalidade por operários e suas famílias... A Nova Quaggio reclama em primeiro plano, luz domiciliar e pública, cuja caracterização depende de entendimento entre a Prefeitura e a CPFL... Também de um serviço de arruamento perfeito está reclamando... as ruas estão tomadas pela vegetação. O problema de acesso é outra preocupação bem como o serviço de esgoto”. A área da Fazenda Campo Redondo coincide com os limites da bacia hidrográfica do córrego Água Comprida e parte da bacia do córrego Água da Ressaca. Suas glebas começaram a serem loteadas a partir da década de 50. Nos jornais de março de 1957 são anunciadas as vendas de terrenos no Jardim Cruzeiro do Sul e no Jardim Marambá. Na época, esta região era considerada o “final da cidade”, não havendo comércio ou serviços na proximidade. O Jardim Marambá, “situado na área do asfalto, a quatro quarteirões da futura Rodovia São Paulo - Mato Grosso, em execução”, seria “dotado de água, luz, iluminação pública e arborização de avenidas”.18 O projeto, de autoria do engenheiro Olavo Alves Oliveira Filho, com área total de 358.581 metros quadrados, era bastante inovador comparado a outros loteamentos de Bauru. As ruas, acompanhando a declividade natural, com desenho em “pata de ganso”, encontravam-se em rotatórias com 30 metros de diâmetro. O acesso ao Marambá era perigoso, pois cruzava a rodovia em nível. Somente na década de 80 será implantado o rebaixamento da rodovia e a construção do viaduto. No final da década de 80, a construção do Parque Residencial Camélias, com 720 apartamentos e do Parque Flamboyants, com 640 apartamentos, vai incrementar o bairro, com a implantação de serviços e comércio. Próximo ao córrego Água Comprida, são lançados novos condomínios verticais no final da década de 90: Campo Belo, Campo Limpo, Villa Verde e Villa Grená. A proximidade do córrego, a importância da preservação de seu fundo de vale e da mata ciliar para o microclima urbano e as possibilidades recreacionais e de lazer contemplativo desta área não são citadas nas propagandas de lançamento dos condomínios. O loteamento fechado “Chácaras Odete”, lançado em 2003, situa-se em área da nascente do córrego Água Comprida. A partir da década de 90, algumas glebas originárias da Fazenda Campo Redondo são muradas e os loteamentos fechados constituem uma presença dominante na paisagem urbana da região “nobre” da cidade, como os Residenciais Paineiras, Samambaia, Tívoli e Villaggio, apresentando grande sucesso comercial, mas com as costas voltadas ao restante da cidade. A fazenda Vargem Limpa compreendia as áreas da bacia do córrego Vargem Limpa. O jornal “O Bauru” em 10 de abril de 1913, traz um anúncio sobre a Ação de Divisão da Fazenda Vargem Limpa, em que conclama “todos os interessados da divisão da fazenda Vargem Limpa em obediência ao artigo 16 do Regulamento n.720 de 5/set/1890, que já foi recolhido em cartório o mandato para a citação de Carlos Rosa e outros condôminos do mesmo imóvel, a requerimento de João Silvério Mathias”. O início da ocupação urbana nas glebas originárias da Fazenda Vargem Limpa se dá à partir da década de 50. Algumas áreas apresentam manchas de vegetação remanescente de cerrado. A maior mancha de cerrado em área urbana compreende a área do Parque Ecológico, com 321,71 ha e a área vizinha, conveniada, pertencente ao Instituto Lauro de Souza Lima, com 217,42 hectares. 18 Diário de Bauru, 03 de março de 1957. Tabela 01 Fazendas originais – área parcelada por décadas (hectares) Fazenda Flores Fazenda Grande FazendaBarreirinho F. Campo Redondo Faz. Vargem Limpa Patrimônio Década 00-20 Década 20-40 Década 50-80 Década 90-00 57,25 12,50 275,53 424,21 131,29 134,80 - 640,29 1083,66 338,89 - - 134,47 281,24 155,94 - - 93,42 659,92 205,99 - - - 1103,81 258,93 Área parcelada Área remanescente 1033,58 335,62 2197,64 1602,16 571,65 325,03 959,33 1796,87 1362,74 2300,36 Área total 1369,2 3799,80 896,68 2756,20 3663,10 Fonte: CONSTANTINO, 2005. Na Tabela 01 e na Figura 4 abaixo, analisa-se comparativamente os resultados dos levantamentos efetuados nos Registros dos loteamentos nos Cartórios, e verifica-se a porcentagem de área parcelada dentro do perímetro urbano atual, referente às áreas das fazendas originais. Na área originalmente pertencente à Fazenda das Flores, 75,5 % se encontra parcelada e é onde acontecem os maiores problemas ambientais decorrentes do processo de urbanização que não levou em conta as características naturais da paisagem. Figura 3: Fazendas originais – Porcentagem de área parcelada por décadas. Fonte: CONSTANTINO, 2005. 4. Quais os impactos da urbanização na paisagem? No relevo suave da paisagem original, os espigões divisores de água serviam para delimitar as fazendas. Das antigas fazendas de café pouco restou gravado no solo, mesmo porque sua presença foi relativamente menor do que em outras regiões do Estado de São Paulo e pouco significado teve para a urbanização. Entretanto, as conseqüentes subdivisões em glebas e posterior parcelamento, como peças justapostas de um quebra-cabeças, são permanências quase imperceptíveis. O parcelamento das glebas das fazendas originais – terra mercadoria – tornou-se a característica básica da intervenção humana sobre a paisagem. Por outro lado, a ferrovia apresentou um papel considerável na urbanização, tanto como atrativo de pessoas e atividades terciárias, quanto como elemento que veio a reforçar a segmentação da cidade, ao acompanhar o fundo de vale do Rio Bauru, cortando o perímetro urbano. Inicialmente símbolo da modernidade, um ponto de referência importante, a estação era a porta da cidade. Hoje, a linha férrea apresenta uma paisagem degradada, quase os fundos da cidade, um espaço onde evita-se pousar o olhar. Os trilhos da ferrovia, apesar de ainda serem utilizados para o transporte de carga, não têm uma ligação direta com a área urbana – um espaço utilitário, uma lembrança de outros tempos e de outros valores. Assim como o Rio Bauru, por onde correm as águas servidas, um canal de esgoto a céu aberto, onde a intervenção humana modificou a paisagem, levando à perda dos valores ambientais. Os processos naturais que agem na cidade impõem um limite para a ocupação do solo devendo, portanto, estarem inseridos nas propostas urbanísticas. Quando não são observados, as conseqüências são conhecidas: enchentes, erosão, poluição. Os estudos das formas de ocupação necessitam compatibilizar tanto os aspectos técnicos, como os de drenagem urbana e sistema viário, levando em conta as condições topográficas e do solo suscetível à erosão, com as necessidades culturais e recreacionais da população. Propostas essencialmente técnicas não são mais aceitáveis, apesar de serem importantes para se conseguir a aprovação nos poderes legislativos e executivo municipais, possibilitando obter financiamentos nos órgãos federais. A questão é: até que ponto esses instrumentos afetam a compreensão da paisagem da cidade como totalidade? A partir dessa compreensão, ao valorizar as características próprias e as suas potencialidades, é que as intervenções urbanísticas e paisagísticas poderão superar a dicotomia entre o natural e o construído. Como diz Maria Angela Faggin Pereira Leite, os projetos que acompanham o ritmo natural e cultural de um lugar contribuem para o enraizamento social no tempo e no espaço, marcando a diferença entre a paisagem socialmente produzida e a paisagem tecnicamente produzida.19 Mais do que o sistema viário e a legislação de uso e ocupação do solo, é o sistema de espaços públicos que deve ser considerado como elemento estruturador da cidade, pois apresenta funções sociais e ecológicas. O que não acontece quando são realizados apenas projetos pontuais.20 5. Considerações Finais Os planos para ocupaçãoe uso dos fundos de vale como áreas de parques lineares, ou mesmo grandes áreas de conservação e proteção dos rios e córregos, as APAs (Áreas de Proteção Ambiental) ou os SECs (Setores Especiais de Conservação), não têm força suficiente para serem viabilizados. Entretanto, são tentativas para garantir as paisagens que, conforme Emmanuel Santos, 19 LEITE, 1994, p.10. 20 Ver mais sobre o tema em CONSTANTINO, 1995. são paisagens que apesar de possíveis, habitam outro plano, “o plano do desejado e não realizado.” 21 Apesar da obrigatoriedade de manutenção das matas ciliares e da fixação de faixas de proteção ao longo dos rios, presentes nas legislações federais, estaduais e municipais, está historicamente comprovado que a manutenção e fiscalização dessas áreas não acontecem de maneira satisfatória, principalmente em função da escassez de recursos humanos, materiais e financeiros. A ausência de vontade política contribui para o descaso. Todos os fatores convergem para a falta de uso desses espaços, o que faz com que os fundos de vale se tornem vazios entre lugares. As tentativas ocorridas como o intuito de organizar, zonear, circular, acessar, não consideraram que o contato com a natureza, é motivo de bem estar e satisfação dos moradores, qualificando o espaço da cidade. Para a paisagem urbana não existem receitas, fórmulas ou modelos a serem importados. Está para ser construída através da experiência das pessoas que trabalham, conhecem e vivem a cidade, mas com respeito aos processos naturais e à história do lugar, valorizando os elementos lineares dos fundos de vale e das linhas férreas e principalmente, levando em conta as necessidades estéticas, culturais e ambientais. Referências Bibliográficas CONSTANTINO, Norma R.T. Sistema de áreas Verdes para a cidade de Bauru. 1995. Dissertação (Mestrado em Projeto, Arte e Sociedade) – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP, Bauru, 1995. CONSTANTINO, Norma R.T. A Construção da Paisagem de Fundos de Vale: o caso de Bauru. São Paulo: 2005. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. CONSTANTINO, Norma R.T.; RIGITANO, Maria Helena C. Contribuição ao estudo da paisagem urbana de Bauru. Texto apresentado no V Seminário de História da Cidade e do Urbanismo. Campinas: PUCCAMP, 1998. DEFFONTAINES, Pierre. Como se constituiu no Brasil a rede de cidades. In: Boletim Geográfico (São Paulo), v.14, p.141-8, 1944; v.15, p.229-308, 1944. GREGOTTI, Vittorio. O Território da Arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1975. LEITE, Maria Angela Faggin P. Projeto e uso dos espaços públicos, o código e a interpretação. In: OLIVEIRA,A.C.; FETRINE,Y. Visualidades, Urbanidade, Intertextualidade. São Paulo: Hacker, 1998. pp. 65-75. MARX, Murilo. Cidade brasileira. São Paulo: Melhoramentos/EDUSP, 1980. MARX, Murilo. Cidades no Brasil: terra de quem? São Paulo: Nobel, 1991. MONBEIG, Pierre. Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Hucitec/Polis, 1984. PAIVA, Carlos Fernandes de. Narrativas Sintéticas dos Fatos que Motivaram a Fundação de Bauru. Bauru: Conselho Municipal de Educação de Bauru, 1975. SANTOS, Emmanuel Antonio dos. A Paisagem do Plano e os Planos da Paisagem: da paisagem no planejamento ao planejamento com a paisagem. Tese (Doutorado) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. SILVA, Alcides. Roteiro Histórico de uma Cidade e uma Instituição. Bauru: Tipografia Comercial, 1957. Como citar esse artigo: CONSTANTINO, N.R.T. A construção da paisagem de fundos de vale em Bauru. In: FONTES, M.S.G.C.; GHIRARDELLO, N. Olhares sobre Bauru. Bauru: Canal 6, 2008. p.21-32. 21 SANTOS, 2002, p.120.
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