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Diretora de Conteúdo e Operações Editoriais JULIANA MAYUMI ONO Gerente de Conteúdo MILISA CRISTINE ROMERA Editorial: Aline Marchesi da Silva, Diego Garcia Mendonça, Karolina de Albuquerque Araújo e Quenia Becker Gerente de Conteúdo Tax: Vanessa Miranda de M. Pereira Direitos Autorais: Viviane M. C. Carmezim Assistente de Conteúdo Editorial: Juliana Menezes Drumond Analista de Projetos: Camilla Dantara Ventura Estagiários: Alan H. S. Moreira, Ana Amalia Strojnowski, Bárbara Baraldi e Bruna Mestriner Produção Editorial Coordenação ANDRÉIA R. SCHNEIDER NUNES CARVALHAES Especialistas Editoriais: Gabriele Lais Sant’Anna dos Santos e Maria Angélica Leite Analista de Projetos: Larissa Gonçalves de Moura Analistas de Operações Editoriais: Alana Fagundes Valério, Caroline Vieira, Damares Regina Felício, Danielle Castro de Morais, Mariana Plastino Andrade, Mayara Macioni Pinto e Patrícia Melhado Navarra Analistas de Qualidade Editorial: Ana Paula Cavalcanti, Fernanda Lessa, Thaís Pereira e Victória Menezes Pereira Designer Editorial: Lucas Kfouri Estagiárias: Maria Carolina Ferreira, Sofia Mattos e Tainá Luz Carvalho Capa: BE/ON Comunicação Adaptação da Capa: Linotec Equipe de Conteúdo Digital Coordenação MARCELLO ANTONIO MASTROROSA PEDRO Analistas: Gabriel George Martins, Jonatan Souza, Maria Cristina Lopes Araujo e Rodrigo Araujo Gerente de Operações e Produção Gráfica MAURICIO ALVES MONTE Analistas de Produção Gráfica: Aline Ferrarezi Regis e Jéssica Maria Ferreira Bueno Estagiária de Produção Gráfica: Ana Paula Evangelista Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ganacin, João Cánovas Bottazzo Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil / João Cánovas Bottazzo Ganacin ; Arruda Alvim, coordenador científico. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020. -- (Coleção Liebman / Teresa Arruda Alvim e Eduardo Talamini, coordenadores) 6 Mb ; ePub Bibliografia. ISBN 978-65-5065-415-3 1. Desconsideração da personalidade jurídica - Brasil 2. Processo civil - Brasil 3. Processo civil - Leis e legislação - Brasil I. Arruda Alvim. II. Arruda Alvim, Teresa. III. Talamini, Eduardo. IV. Título. V. Série. 20-35359 CDU-347.9(81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Processo civil 347.9(81) Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO PROCESSO CIVIL JOÃO CÁNOVAS BOTTAZZO GANACIN COLEÇÃO LIEBMAN TERESA ARRUDA ALVIM E EDUARDO TALAMINI Coordenadores ARRUDA ALVIM Coordenador científico Diagramação eletrônica: Linotec Fotocomposição e Fotolito Ltda., CNPJ 60.442.175/0001-80 © desta edição [2020] THOMSON REUTERS BRASIL CONTEÚDO E TECNOLOGIA LTDA. Juliana Mayumi Ono Diretora Responsável Av. Dr. Cardoso de Melo, 1855 – 13º andar - Vila Olímpia CEP 04548-005, São Paulo, SP, Brasil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). O autor goza da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhe a responsabilidade das ideias e dos conceitos emitidos em seu trabalho. CENTRAL DE RELACIONAMENTO THOMSON REUTERS SELO REVISTA DOS TRIBUNAIS (atendimento, em dias úteis, das 09h às 18h) Tel. 0800-702-2433 e-mail de atendimento ao consumidor: sacrt@thomsonreuters.com e-mail para submissão dos originais: aval.livro@thomsonreuters.com Conheça mais sobre Thomson Reuters: www.thomsonreuters.com.br Acesse o nosso eComm www.livrariart.com.br Profissional Fechamento desta edição [17.03.2020] ISBN 978-65-5065-415-3 http://www.thomsonreuters.com.br http://www.livrariart.com.br Aos meus pais, com gratidão. PREFÁCIO Há cerca de quatro décadas venho me interessando pelo tema da desconsideração da personalidade jurídica, introduzido na doutrina brasileira por obra dos comercialistas paranaenses RUBENS REQUIÃO e JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA na década dos anos setenta.1 Até então vigia soberana e absoluta a regra da rigorosa distinção entre a personalidade jurídica da sociedade e a de seus sócios, expressa no art. 20 do Código Civil de 1916 ao estabelecer que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros” − disposição da qual se inferia pacificamente que também eram rigorosamente separados e independentes os direitos, as obrigações, os patrimônios e as responsabilidades de uma e de outro. Foi então que REQUIÃO apresentou aos brasileiros a disregard doctrine, exposta inicialmente pelo alemão ROLF SERICK e desenvolvida de início em plagas norte-americanas, ao informar que “a doutrina desenvolvida pelos tribunais norte- americanos visa a impedir a fraude ou algum abuso através do uso da personalidade jurídica”. Foi então que, aderindo a essa doutrina, produzi um ensaio a respeito, denominado “Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório”, depois incluído em uma coletânea de minha autoria.2 Rebelava-me eu, no entanto, contra uma arbitrária jurisprudência que levava longe demais a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ao redirecionar as execuções fiscais, passando desse modo a invadir o patrimônio dos sócios quando o da sociedade executada não fosse bastante para satisfazer o direito da entidade exequente. Sugeria eu então que antes de proceder a esse redirecionamento e à penhora de bens do sócio, fosse concedida a este uma oportunidade para se defender, mediante a implantação de um incidente inicial do processo de execução. E dizia: “não basta a citação, porque sem um mínimo de oportunidade de defesa antes da captação de bens do sujeito essa citação não valeria mais que um convite a assistir ao próprio velório”. Mais tarde veio o Código Civil de 2002 a consagrar legislativamente a teoria da desconsideração da personalidade, ao dispor em seu art. 50 que em caso de abuso da personalidade jurídica “os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Mas prosseguia a arbitrariedade de proceder a essa extensão, agredindo o patrimônio do sócio por obrigações da sociedade sem se lhe conceder uma prévia oportunidade de defesa. Esse mal foi vigorosamente combatido quando o Código de Processo Civil de 2015 instituiu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 ss.), impondo que “para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código” (art. 795, § 4º). Essa sucessão de dispositivos legais fechou o ciclo da consagração da desconsideração em si mesma e de sua compatibilização com a ordem constitucional e especificamente com a garantias do contraditório e do due process of law − embora ainda haja quem, contrariamente ao que dispõe o Código de Processo Civil, continue a sustentar aquela inconstitucional imposição de constrições executivas sobre o patrimônio do sócio para só depois lhe possibilitar uma defesa. Foi nesse clima que JOÃO CÁNOVAS BOTTAZZO GANACIN se animou a produzir esta obra aqui prefaciada, que antes fora uma dissertação apresentada em nível de mestrado no curso de pós- graduação do Largo de São Francisco e ali muito bem-sucedida, com a aprovação e louvores de todos os integrantes da Comissão Examinadora, figurando eu como seu orientador. Daí o meu orgulho ao ser convidado a apresentar o presente prefácio, no qual externo minhagrande admiração pelo Autor e aderência total às ideias ali desenvolvidas. Já a partir de seu título (Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil) percebe-se o intuito de desenvolver o tema sobre duas vertentes autônomas mas intimamente ligadas, a saber, (a) a vertente da desconsideração em si mesma, de forte inserção no sistema do direito substancial, e (b) a do trato processual desse instituto, com remissão às sadias técnicas processuais da atualidade e atenção àquelas garantias oferecidas pela Constituição Federal. Com essa estrutura, o livro de JOÃO apresenta-se como uma obra interdisciplinar, portadora de um elevado grau de consistência e realismo na medida em que define de um lado o conceito, a finalidade, os requisitos e os limites da desconsideração da personalidade jurídica e, de outro, os modos legítimos para se chegar a esse resultado. Em sua primeira parte o livro principia por discorrer sobre a personalidade jurídica, seu conceito, sua natureza e sua função na dinâmica dos direitos e obrigações, para em seguida lançar-se sobre o tema dos abusos a que pode dar ensejo (fraudes, desvio de finalidade). E só então, sobre esse lastro muito sólido, passa a examinar a própria desconsideração, expondo o seu conceito, requisitos para sua efetivação e limites para sua imposição. Na segunda parte do livro, de conteúdo processual, JOÃO trata do incidente processual instituído pelo Código de Processo Civil de 2015 para a imposição da desconsideração da personalidade jurídica. Os conceitos, as análises e as propostas ali lançados estão solidamente assentados sobre as garantias constitucionais do processo e desenvolvidos sobre o pano de fundo dos institutos e técnicas do direito processual civil. É ali que critica enfaticamente a orientação dos que sustentam a dispensa do incidente de desconsideração da personalidade jurídica antes da realização de atos de constrição sobre o patrimônio do sócio, contentando-se com a oferta de meios de defesa após consumada essa construção. Como já ressaltei, essa foi uma orientação seguida pelo Superior Tribunal de Justiça antes da edição do Código de Processo Civil de 2015, contra a qual eu também me insurgi, e que a meu ver constitui um escárnio às garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório. Depois, no desenvolvimento dos temas de técnica processual, examina o incidente em si mesmo, requisitos e momentos de sua implementação, legitimidade para suscitá-lo, prova e ônus da prova etc. Culmina com o exame da imposição ou não imposição da autoridade da coisa julgada material sobre a decisão proferida no incidente de desconsideração da personalidade jurídica e consequente admissibilidade ou inadmissibilidade da ação rescisória contra essa decisão. Nesse ponto, acentuando que “a desconsideração da personalidade jurídica não constitui o petitum do demandante, mas um fundamento para a condenação do sócio ao adimplemento de obrigação contraída a princípio pela sociedade (verdadeiro meritum causae)”, propõe a aceitação com ressalvas dessa coisa julgada e dessa ação rescisória. Com toda essa solidez, posso antever que a obra de JOÃO será de muito agrado do público leitor e de utilidade para todos nós, praticantes do direito. A oferta de soluções coerentes não só para as questões conceituais ali examinadas, mas também para os problemas práticos que surgem em nosso dia a dia, é o núcleo de um trabalho predestinado a integrar as bibliotecas de todos estudiosos do direito e de todos os profissionais seriamente interessados em aprimorar seus trabalhos. CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO Professor titular de direito processual civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 1. Cfr. respectivamente “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, in Revista dos Tribunais n. 410/1969; A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. 2. Cfr. Fundamentos do processo civil moderno. São Paulo: Malheiros, 2010, t. I. NOTA DO AUTOR Esta é a versão comercial da dissertação que apresentei à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para obtenção do título de mestre. No trabalho, exponho minha visão a respeito da desconsideração da personalidade jurídica e sobre como a aplicação desse instituto está disciplinada no Código de Processo Civil. As ideias defendidas ao longo do texto são diversas, mas giram todas em torno de quatro premissas fundamentais: (I) o conceito de desconsideração da personalidade jurídica; (II) a distinção entre a responsabilidade extraordinária e primária decorrente da desconsideração e a responsabilidade ordinária e secundária dos sócios; (III) a concepção de que há, no pedido de instauração do incidente de desconsideração, o ajuizamento de demanda; e (IV) a compreensão da desconsideração da personalidade jurídica como meio, e não fim. Em tudo que pensei e escrevi, tentei ser coerente especialmente com essas premissas. Além de buscar coerência, procurei demonstrar a relevância prática de cada ponto abordado. Desejo, acima de tudo, que este trabalho seja útil. Quem se dedica ao estudo do direito processual, acredito, não deve se deter em meditações puramente acadêmicas – menos ainda quando trata de expedientes contra fraudes. Em que medida consegui atingir esses meus dois objetivos principais, não tenho como avaliar. De todo modo, espero que o texto suscite reflexões, como provocaram em mim os livros e artigos já publicados sobre o tema. Agradeço: a Júlia Prado Mascarenhas, que acompanhou e incentivou como ninguém a produção deste trabalho, o companheirismo e o carinho; aos amigos Antonio Bender Mammi, Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes e Oswaldo Daguano Jr., a gentileza de revisar o texto; aos Professores Flávio Luiz Yarshell, Claudio Luiz Bueno de Godoy, Antonio Carlos Marcato, Ricardo de Carvalho Aprigliano e André Pagani de Souza, as construtivas críticas. Ao Prof. Cândido Rangel Dinamarco, responsável pela existência deste trabalho, nem sei bem o que agradecer numa breve nota. A amizade, as lições, as conversas, as oportunidades… Embora me falte espaço para escrever, jamais me faltará memória para lembrar. Obrigado, Mestre. SUMÁRIO ANTERROSTO PÁGINA DE DIREITOS AUTORAIS FOLHA DE ROSTO DEDICATÓRIA PREFÁCIO NOTA DO AUTOR SUMÁRIO INTRODUÇÃO PRIMEIRA PARTE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E PROCESSO 1. PERSONALIDADE JURÍDICA 1.1. Considerações preliminares 1.2. Função 1.3. Autonomia patrimonial 2. A CHAMADA LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE 2.1. Incentivo ao empreendedorismo mediante transposição de risco 2.2. Critérios para a limitação de responsabilidade 3. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Origem e desenvolvimento 4. A DESCONSIDERAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO – PRINCIPAIS HIPÓTESES 4.1. Abuso da personalidade jurídica (Código Civil, art. 50) 4.1.1. Desvio de finalidade 4.1.2. Confusão patrimonial 4.1.3. Desconsideração inversa e outras modalidades 4.2. A mera insolvência como falsa hipótese de desconsideração 5. O CONCEITO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 6. O SUJEITO ATINGIDO POR DESCONSIDERAÇÃO: RESPONSÁVEL PATRIMONIAL PRIMÁRIO 7. OBJETO DO PROCESSO, MÉRITO E QUESTÕES DE MÉRITO – NOÇÕES ELEMENTARES SEGUNDA PARTE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA 8. UMA APRESENTAÇÃO 8.1. A disciplina do incidente no Código de Processo Civil 8.2. O incidente de desconsideração e outras causas de responsabilidade dos sócios 9. O INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO COMO DEMANDA 9.1. Ponto de partida: desconsideração da personalidade jurídica na petição inicial 9.2. Segue: desconsideração da personalidade jurídica no incidente 10. DEFESA DO SUJEITO ACIONADO POR MEIO DO INCIDENTE 11. INTERESSE PROCESSUAL NA DESCONSIDERAÇÃO – A INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR ORIGINÁRIO COMO SUPOSTA CONDIÇÃO PARA A DISREGARD 12. LEGITIMIDADE PARA INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE 12.1. Instauração por iniciativa do juiz? 12.2. Instauração por iniciativa do Ministério Público? 12.3. Instauração por iniciativa do assistente? 13. PROVA 13.1.Necessidade e ônus da prova 13.2. Dificuldades probatórias 14. FRAUDE DE EXECUÇÃO 15. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS 16. COISA JULGADA E AÇÃO RESCISÓRIA CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA INTRODUÇÃO Uma das mais festejadas novidades introduzidas pelo Código de Processo Civil de 2015 em nosso ordenamento jurídico encontra-se no título dedicado às intervenções de terceiros. Trata-se do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, disciplinado nos artigos 133 e seguintes do estatuto processual. CÂNDIDO DINAMARCO referiu-se à inovação como um “valioso culto à garantia do contraditório”, cujo principal mérito seria afastar a insegurança que pairava sobre a forma processual de se proceder à desconsideração da personalidade jurídica.1 Na mesma linha, ARRUDA ALVIM observou que o modo de aplicação do instituto vinha sendo “objeto de preocupação” e elogiou a iniciativa de se estabelecer um incidente específico para a utilização da disregard doctrine.2 A novidade também foi louvada por DANIEL NEVES,3 ALEXANDRE FREITAS CÂMARA,4 entre outros que a comentaram.5-6 A generalizada reação positiva diante da criação de um regramento processual próprio para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica é compreensível. A despeito da importância do instituto e de sua frequente aplicação nos tribunais brasileiros, existia séria divergência sobre como empregá-lo na vigência do Código de 1973.7 Na doutrina, formaram-se basicamente três correntes: de um lado, havia quem defendesse a desconsideração como medida passível de ser obtida somente por meio de processo próprio, com inclusão do sujeito visado na posição de réu;8 de outro, quem considerasse válida sua aplicação no curso de execução movida em face da pessoa jurídica, independentemente de prévia citação do indivíduo cujos bens se quisesse alcançar;9 e havia ainda posição intermediária, que dispensava a instauração de novo processo mas não a garantia de prévio contraditório àquele que pudesse ter seu patrimônio atingido por aplicação da disregard doctrine.10 No Superior Tribunal de Justiça, prevalecia o entendimento de que a desconsideração da personalidade jurídica poderia ocorrer incidentalmente e sem prévia oportunidade de defesa a quem pudesse suportar seus efeitos,11 mas acórdãos da própria corte apontavam a ilegitimidade desse modo de proceder,12 dada a sua incompatibilidade com as garantias constitucionais do contraditório e do devido processo legal.13 Diante da dissensão, surgiram reclamações por uma regulamentação processual específica para o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. PEDRO BIANQUI, v.g., propunha a criação de um incidente que garantisse prévio contraditório e permitisse constatar, mediante instrução, a existência ou não de fatos para a desconsideração. Assim, com um procedimento incidental preestabelecido e legalmente formatado, haveria maior segurança tanto nas relações jurídicas quanto nas decisões judiciais relativas ao tema.14 Manifestações dessa ordem alcançaram o Poder Legislativo, resultando em projetos de lei que pretenderam fixar uma disciplina processual para a desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, nenhum chegou a se concretizar. O primeiro deles, apresentado pelo deputado federal RICARDO FIUZA,15 veio logo após o Código Civil de 2002 entrar em vigor e buscava instituir um incidente no qual a decisão sobre a desconsideração da personalidade jurídica fosse precedida de oportunidade de defesa a quem pudesse ter seu patrimônio atingido pela aplicação da disregard doctrine. Acabou arquivado. Posteriormente, em 2008, o parlamentar BRUNO ARAÚJO apresentou projeto essencialmente similar e que tampouco prosperou.16 Esse histórico de debates, sugestões e propostas legislativas sinaliza o antigo anseio da comunidade jurídica por um regramento que definisse a forma de se manejar processualmente a desconsideração da personalidade jurídica. Surgiu, então, ocasião mais que propícia para o suprimento dessa lacuna: a elaboração de um novo Código de Processo Civil. Pode-se dizer que o objetivo deste estudo é examinar como essa especial oportunidade foi aproveitada pelo legislador. O trabalho ora introduzido consiste numa análise do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, isto é, do meio que o Código de Processo Civil de 2015 estabelece para a integração de sujeitos a processos já pendentes com fundamento na disregard doctrine. Seu objetivo é abordar criticamente os principais aspectos dessa nova modalidade de intervenção de terceiros e enfrentar relevantes dúvidas que o contato com o incidente suscita. Que pretensão é deduzida por meio dele? Qual seu impacto sobre o objeto do processo? Em que medida pode se defender o sujeito que intervém por meio do incidente de desconsideração da personalidade jurídica? Essas e outras questões de fundamental importância prática serão objeto da segunda parte do estudo. A primeira metade do trabalho abriga os pilares da análise que se pretende fazer. Nela são estabelecidos conceitos indispensáveis ao estudo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e abordados institutos com os quais essa nova modalidade de intervenção de terceiros se relaciona. Ademais, a própria definição do que se deve entender por “desconsideração da personalidade jurídica” – expressão metafórica e enganosa – é apresentada na parte inicial do livro. Não é difícil perceber a importância do tema. A invocação da disregard doctrine foi frequente na vigência do Código de 1973, e os poucos anos em vigor do estatuto de 2015 indicam que a utilização do incidente de desconsideração como meio de intervenção de terceiros será constante, o que torna imprescindível o seu estudo. A fim de escapar ao tratamento de questões que não se mostram indispensáveis ao desenvolvimento do trabalho (e às tantas digressões que isso implicaria), optou--se por realizá-lo à luz do processo estatal de natureza individual, considerando-se o trâmite do procedimento comum e o do cumprimento de sentença. Tal recorte, entretanto, decorre de escolha puramente metodológica: havendo compatibilidade, as conclusões apresentadas ao longo do texto poderão ser aproveitadas no processo coletivo, no processo de execução, em procedimentos especiais ou ainda no campo da arbitragem.17 Para finalizar esta introdução, esclarece-se que o trabalho não se aprofunda em demasia em aspectos puramente materiais da desconsideração da personalidade jurídica, e nem é esse o seu propósito. O tema é de grande complexidade, com questões e dificuldades cujo exame a fundo daria ensejo a outros livros. Mas é evidentemente indispensável enfrentá-lo, sem o que não seria possível bem compreender sua projeção no campo do direito processual.18 Vale aqui, como sempre, a lição de DINAMARCO: “jamais alguém compreenderá bem o processo civil enquanto só o processo civil estudar”.19 1. “O novo Código de Processo Civil brasileiro e a ordem processual civil vigente”, n. 16. Noutro trabalho, em coautoria com Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes, o jurista classificou o incidente como “uma das grandes novidades do novo Código de Processo Civil” (Teoria geral do novo processo civil, p. 164). 2. Manual de direito processual civil, pp. 530-532. 3. “O Novo Código de Processo Civil prevê um incidente processual para a desconsideração da personalidade jurídica, finalmente regulamentando seu procedimento. Tendo seus requisitos previstos no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 50 do Código Civil, faltava uma previsão processual a respeito do fenômeno jurídico, devendo ser saudada tal inciativa” (Novo Código de Processo Civil – inovações, alterações e supressões comentadas, p. 141). 4. “Este incidente – que não estava previsto expressamente na legislação processual anterior – vem assegurar o pleno respeito ao contraditório e ao devido processo legal no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica” (Breves comentários ao novo Código de Processo Civil, p. 425). 5. “É positiva a iniciativa do legislador,ao prever um procedimento específico para regrar a aplicação de tão importante instituto jurídico, restando aqui a séria esperança de que, uma vez em vigor o novo Código de Processo Civil, algumas das históricas polêmicas jurisprudenciais e doutrinárias possam restar superadas; tudo de modo a homenagear-se a segurança jurídica” (MEDEIROS NETO, “O princípio da proporcionalidade, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica e o projeto de um novo Código de Processo Civil”, n. 4). 6. “A inovação é de extrema importância e representa verdadeira dobra histórica no percurso que vem sendo trilhado pela desconsideração da personalidade jurídica no âmbito interno. Com essa atitude o legislador processual preenche sensível lacuna que vinha acompanhando as discussões sobre a maneira adequada de se tratar processualmente a prática de atos de abuso da personalidade jurídica, bem como sobre a fixação de suas consequências no âmbito da tutela jurisdicional” (XAVIER, “A processualização da desconsideração da personalidade jurídica”, n. 4). 7. Cf. GAMA, “Incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, n. 2. 8. “A desconsideração da personalidade jurídica, providência cujo acerto e eficácia devem atentar para sua excepcionalidade e para a presença de seus pressupostos (fraude e abuso, a desvirtuar a finalidade social da pessoa jurídica), não pode, não ao menos como regra, ser feita por simples despacho no processo de execução. A cognição para detectar a presença dos citados pressupostos é indispensável e, nessa medida, ao menos como regra, impõe-se a instauração do regular contraditório em processo de conhecimento. […] Trata-se de ‘ação própria’ no sentido de que aquele cujo patrimônio poderá ser atingido, via desconsideração, deve figurar no processo de conhecimento condenatório para que, também em relação a ele, se forme o título executivo” (GRINOVER, “Da desconsideração da pessoa jurídica – aspectos de direito material e processual”, pp. 184-185). Também nesse sentido, cf. COELHO, Curso de direito comercial, vol. II, pp. 57-59; SILVA, Desconsideração da personalidade jurídica – aspectos processuais, pp. 203-205. 9. “Mera decisão interlocutória proferida em meio à própria execução, após cognição sumária, aplicando-se a desconsideração, na forma de incidente processual, tendo em vista a prática de atos com o intuito de fraudar as obrigações pactuadas, sem que seja necessária a prévia manifestação do prejudicado, não viola os princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa, pois esses terceiros poderão utilizar-se de todos os meios de defesa previstos, como, por exemplo, os embargos de terceiro e o recurso de agravo de instrumento, por se tratar de terceiro prejudicado” (BRUSCHI, Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica, p. 152). 10. “Positivando-se que a sociedade não disponha de suficiente patrimônio responsável, a pedido do exequente citar-se-á o sócio, ou sócios, abrindo-se logo em seguida uma instrução destinada a apurar sua responsabilidade patrimonial. As disposições legais referentes aos procedimentos executivos não oferecem abertamente dilações dessa ordem, mas é imperioso instituir um incidente inicial na execução, ainda que sem lei expressa a respeito, porque do contrário não se poderia chegar legitimamente à responsabilidade daquele cujo patrimônio o exequente pretende captar pela penhora” (DINAMARCO, “Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório”, pp. 547-548). No mesmo sentido, cf. THEODORO JR., “A desconsideração da personalidade jurídica no direito processual civil brasileiro”, p. 330. 11. “Nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte, sendo a desconsideração da personalidade jurídica um incidente processual o qual pode ser deferido nos próprios autos, faz-se desnecessária a prévia citação dos sócios da pessoa jurídica cuja personalidade foi superada” (STJ, 4ª T., AgInt no AREsp 918.295-SP, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 18.8.2016). 12. V.g., cf. STJ, 4ª T., RMS 29.697-RS, rel. Min. Raul Araújo, j. 23.4.2013. 13. Na doutrina, Fredie Didier Jr. foi um dos que apontaram a ilegitimidade do entendimento que prevalecia no Superior Tribunal de Justiça: “seja pelo litisconsórcio eventual, seja pela instauração de um incidente cognitivo no processo de execução, o que importa é dar oportunidade ao debate, não sendo lícita a aplicação da sanção sem o prévio contraditório. Não se pode, na ânsia por uma efetividade do processo, atropelar garantias processuais alcançadas após séculos de estudos e conquistas. Imaginar a aplicação de uma teoria eminentemente excepcional, que inquina de fraudulenta a conduta deste ou daquele sócio, sem que se lhe dê a oportunidade de defesa – ou somente se lhe permita o contraditório eventual dos embargos à execução, com necessidade da prévia penhora, dos embargos de terceiro ou do recurso de terceiro –, é afrontar princípios processuais básicos” (Regras processuais no Código Civil, pp. 13-14). 14. Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil, p. 124. Cf. ainda BRUSCHI, Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica, pp. 110-114. 15. “O PL 2.426/2003 é importante porque se trata da primeira tentativa de disciplinar a aplicação a aplicação de disciplinar a aplicação da teoria da personalidade jurídica no processo civil por meio de lei federal, criando um incidente cognitivo de desconsideração da personalidade jurídica” (SOUZA, Desconsideração da personalidade jurídica – aspectos processuais, p. 192). 16. Projeto de Lei 3.401/2008. 17. Registre-se que a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em processo arbitral é controversa. Contra, cf. DIDIER JR.- ARAGÃO, “A desconsideração da personalidade jurídica no processo arbitral”, pp. 266-267; CARMONA, Arbitragem e processo – um comentário à Lei nº 9.307/96, pp. 83-84. A favor, cf. WALD, “A desconsideração na arbitragem societária”, n. 1. 18. “Ignorar a realidade jurídico-material impede a correta compreensão dos institutos processuais, muito dos quais concebidos a partir de situações verificadas fora do processo. Constrói-se a técnica processual a partir de características da crise de direito material a ser solucionada pelo juiz. O modo de ser do método de trabalho destinado à solução das controvérsias é influenciado pela natureza da relação de direito material”. BEDAQUE, Direito e processo – influência do direito material sobre o processo, pp. 25-26. 19. Apresentação do livro Desconsideração da personalidade jurídica no processo civil, de Pedro Henrique Torres Bianqui. PRIMEIRA PARTE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E PROCESSO 1 PERSONALIDADE JURÍDICA 1.1. Considerações preliminares A expressão desconsideração da personalidade jurídica remete à ideia de transposição de uma barreira. A relação parece intuitiva: se a personalidade jurídica por vezes tem de ser desconsiderada (ou superada, como prefere a doutrina italiana),1 decerto é porque sua existência pode constituir óbice à obtenção de algum resultado juridicamente relevante. Em razão dessa percepção, é inevitável que o estudo da desconsideração desperte indagações sobre a figura da personalidade jurídica.2 Em que ela consiste? Afinal de contas, por que é preciso desconsiderá-la em determinadas ocasiões? A primeira dessas questões formou o eixo do debate a respeito da natureza da personalidade jurídica, que durante anos teve destaque no cenário jurídico europeu.3 Além da célebre teoria ficcionista de SAVIGNY, que definiu as pessoas jurídicas como seres fictícios (“des êtres fictifs”) concebidos para atuar como sujeitos de direito em relações de cunho econômico,4 várias outras procuraram explicar a “essência” da personalidade jurídica, apresentando as mais distintas proposições. Em sua obra, VICENTE RÁO enumera nada menos do que dez diferentes pensamentos acerca do assunto, e diz referir-se somente aos “de maior relevo”.5 Apesar da atenção que o tema atraiu e das polêmicas em tornodele criadas, MENEZES CORDEIRO diz ser insatisfatório o resultado alcançado a seu respeito. O jurista entende que “a Ciência do Direito não conseguiu explicar a essência da personalidade colectiva”6 e enxerga na doutrina recente pouco interesse em alterar esse panorama: “multiplicam-se os manuais que, de pessoa colectiva,7 dão breves definições técnicas, ou abandonam, pura e simplesmente, a tarefa da sua definição”.8 FÁBIO ULHOA COELHO relatou fenômeno semelhante: na sua visão, os autores que se depararam com a questão pareceram menos animados a enfrentá-la do que a “ver-se livre dela”.9 Além daqueles que ignoram o debate, há quem abertamente o desqualifique, pondo em xeque o proveito das teorias que se desenvolveram sobre a personalidade jurídica e a importância de se apurar sua natureza. RUBENS REQUIÃO tacha de “fatigantes” as controvérsias sobre o tema,10 e CUNHA GONÇALVES afirma que os produtos das “laboriosas dissertações” que o abordaram são “tão contraditórios como inúteis para a vida prática”.11 Menos incisivo, COUTINHO DE ABREU não chega a considerar bizantinos os estudos sobre a essência da pessoa jurídica, mas mesmo assim lhes relativiza a importância. Segundo o comercialista português, mais relevante do que teorizar sobre a pessoa jurídica e sua natureza é “indagar o sentido-função, o porquê-e-para quê” de sua existência.12 Independentemente do valor das teorias concernentes à “essência” da personalidade jurídica, o ponto de vista de COUTINHO DE ABREU revela-se adequado ao menos para o propósito deste trabalho. Conforme se verá ao longo da leitura, o instituto da desconsideração não é fruto de especulações acadêmicas; trata-se de expediente pragmático, pensado a partir de casos concretos como remédio contra o uso abusivo de pessoas jurídicas (infra, n. 3). Dessa forma, muito pouco aproveitaria ao seu estudo uma análise ontológica da personalidade jurídica, adotando-se uma ou outra teoria a respeito de sua natureza.13 Aqui, mais interessa analisar a pessoa jurídica como existência teleológica,14 com o olhar voltado para o seu papel dentro do ordenamento, pois só conhecendo a função desempenhada pela pessoa jurídica será possível constatar eventual anormalidade no seu manejo. Em sua favola della persona giuridica, GALGANO oferece uma versão pitoresca para a gênese da pessoa jurídica: soberbo, o ser humano não a teria concebido para exercer função alguma, mas tão somente para satisfazer seu anseio de passar da condição de mera criatura ao posto de criador.15 Obviamente, a verdade é outra: são de ordem prática as razões que justificam o instituto da pessoa jurídica, não havendo sentido em sua existência a não ser como instrumento a serviço do homem.16 Assim, deve-se perquirir a que se presta tal ferramenta. 1.2. Função Para propiciar o desenvolvimento de atividades direcionadas à obtenção de lucro e a outros propósitos lícitos, a legislação autoriza que particulares criem e mantenham organizações juridicamente distintas de sua própria existência. A independência jurídica de tais organizações manifesta-se na aptidão para a prática de atos e o estabelecimento de relações em nome próprio, com capacidade para a titularidade de direitos e deveres que não se confundem com direitos e deveres dos sujeitos que as integram. Ao contrair uma dívida, por exemplo, a organização formada não estará obrigando conjuntamente seus participantes, como codevedores, senão obrigando a si mesma, como parte individualizada. Assim, a principal marca da existência jurídica dessas entidades está na sua condição de sujeito de direito com autonomia patrimonial: uma vez criadas, originam centros de imputação de relações ativas e passivas economicamente estimáveis, ou seja, novos patrimônios aos quais poderão ser vinculados direitos e deveres.17 A personalidade jurídica é o meio que o ordenamento disponibiliza para a produção do fenômeno anteriormente descrito. Com o estabelecimento de organizações personificadas, denominadas pessoas jurídicas, persegue-se o efeito da constituição de patrimônio autônomo, para que nele se possa vincular direitos e obrigações relacionados a um propósito específico. Sem autonomia patrimonial, a pessoa jurídica estaria por certo fadada à esterilidade, pois sua utilidade se extrai justamente de sua capacidade para a titularidade de direitos e deveres (infra, n. 1.3). Por isso, diz FERRER CORREIA, não é possível conceber personalidade jurídica sem autonomia patrimonial;18 seria como imaginar uma faca sem gume. A função da personalidade jurídica revela-se, portanto, bem mais nítida do que sua natureza ou essência, e isso reflete de forma muito clara na doutrina. Em vez de teorias dissonantes e discussões inconcludentes, o que se verifica é um consenso em torno da pessoa jurídica como meio para a formação de patrimônio autônomo.19 É essencialmente essa a compreensão de FÁBIO KONDER COMPARATO,20 da qual não têm divergido autores nacionais21 ou estrangeiros.22-23-24-25 Sobre ela, porém, convém fazer breves esclarecimentos. Não se deve confundir o papel desempenhado pela personalidade jurídica com o escopo de cada pessoa jurídica particularmente considerada. Embora a razão funcional para a criação de toda pessoa jurídica esteja na constituição de patrimônio autônomo, sempre haverá por trás disso a intenção de desenvolver uma atividade específica – a comercialização de um produto, a prestação de um serviço, a prática de uma modalidade esportiva etc. Assim, não obstante se verifique na fundação de qualquer pessoa jurídica a mesma finalidade imediata (obtenção de autonomia patrimonial), irá variar a finalidade mediata de cada uma delas, correspondendo ao objetivo que almejam atingir aqueles que a conceberam.26 Em suma, cria-se a pessoa jurídica para se formar um sujeito de direito com autonomia patrimonial, que por seu turno servirá à realização de escopo predeterminado por seus integrantes. Outro ponto em que se deve atentar é o de que a autonomia patrimonial, apanágio da pessoa jurídica, não constitui seu único atributo. Junto à capacidade para direitos e deveres no plano substancial, a personalidade jurídica confere à organização personificada capacidade de ser parte,27-28 habilitando-a a integrar relações processuais e a defender em nome próprio seus interesses em juízo. No dizer da doutrina norte-americana, toda pessoa jurídica deve ser “capable of suing and being sued in its own name”.29 1.3. Autonomia patrimonial Já foi dito que a autonomia patrimonial não é somente atributo essencial da personalidade jurídica, mas também o que lhe imprime caráter instrumental (supra, n. 1.2). Para se compreender o fundamento da assertiva, é preciso entender de que maneira a constituição de patrimônio autônomo revela-se útil àqueles que se valem de uma pessoa jurídica para o desenvolvimento de suas atividades. Do ponto de vista interno – ou seja, no que se refere à relação entre aqueles que integram a pessoa jurídica–, a autonomia patrimonial cumpre relevante função organizacional.30 Ter à disposição um patrimônio autônomo significa poder isolar, em centro de imputação distinto, os interesses institucionais da pessoa jurídica, divisando-os dos interesses individuais de cada um de seus participantes, o que naturalmente propicia maior facilidade na gestão e no controle de recursos. Em empreendimentos de pequena monta, é até factível empregar esforços e recursos em prol de um objetivo sem se valer desse expediente, mas é inegável a conveniência de se destacar as relações jurídicas pertinentes ao exercício de uma atividade, concentrando-as em sujeito de direito criado para tal função.31 Em empreendimentos de maior porte, mais do que conveniente, a organização proporcionada pela autonomia patrimonial mostra-se praticamente imprescindível. É na relação da pessoa jurídica com terceiros, porém, que essa distinção patrimonial revela sua maior importância.32 Possuindo a pessoa jurídica patrimônio autônomo, e sendo ela autêntica titular dos direitos e obrigações concernentes ao seu funcionamento,seus próprios bens responderão pelas dívidas que contrair – e apenas pelas dívidas que contrair. Não deve a pessoa jurídica ser acionada por obrigações pessoais de seus integrantes. Se vier a sê-lo, sua autonomia patrimonial funcionará como legítimo anteparo contra as investidas dos credores de seus membros.33 Dessa forma, o patrimônio da pessoa jurídica e a atividade por ela desempenhada permanecerão resguardados de eventual infortúnio econômico de qualquer de seus participantes. Ao contrário do que poderia sugerir a lógica, o inverso não é necessariamente verdadeiro. Entre as entidades coletivas voltadas ao lucro, encontram-se organizações cujas dívidas são suportadas por seus integrantes a despeito de haver separação entre seus patrimônios. Fala-se de espécies societárias que, não obstante personificadas (dotadas de patrimônio autônomo, portanto), comprometem os bens pessoais de seus integrantes por obrigações sociais. Caso bastante ilustrativo é o da sociedade em nome coletivo. Nesse tipo societário, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 1.039). Diz-se que a responsabilidade é solidária porque de cada um dos integrantes da sociedade, independentemente do vulto de sua participação, poderá ser exigida a integralidade da dívida contraída pela pessoa jurídica; e ilimitada porque não haverá um valor máximo até o qual os sócios poderão ser chamados a responder. Assim, e.g., na hipótese de sociedade em nome coletivo composta por cinco sócios que tenham aplicado dez mil reais cada um, caso ela venha a contrair uma dívida de um milhão de reais, o credor da pessoa jurídica poderá demandar de quaisquer deles – isolada ou conjuntamente – o pagamento total do valor devido, e não importará o fato de a dívida superar em muito o quantum investido na sociedade. Em todo caso, porém, a responsabilidade desses sócios será apenas subsidiária: seus bens particulares não deverão responder pelas obrigações sociais enquanto o patrimônio da pessoa jurídica não houver esgotado (CC, art. 1.024).34 Nesses tipos societários, o fato de os sócios responderem subsidiariamente por obrigações sociais não desmente a existência de separação entre seus patrimônios particulares e o patrimônio da pessoa jurídica. Ao contrário: se bem se observar, o escalonamento sucessivo da responsabilidade pressupõe a existência de patrimônios distintos postos em ordem de prioridade.35 De todo modo, sobressai nesse regime a situação de vulnerabilidade em que se inserem os participantes da sociedade, pois, em caso de insolvência da pessoa jurídica, sua autonomia patrimonial não impedirá que se consumam bens particulares dos sócios até a satisfação das obrigações sociais. Parte da doutrina adjetiva de imperfeita a autonomia patrimonial das sociedades com tal regime de responsabilidade.36 Para essa corrente, somente se pode considerar perfeita a autonomia patrimonial de sociedades cujos integrantes não respondem por dívidas sociais mesmo na hipótese de insolvência da pessoa jurídica, pois só assim os patrimônios seriam verdadeiramente independentes. Precisa ou não, a adjetivação pauta-se por um fundamental ponto de distinção entre dois possíveis regimes societários: quando os sócios gozam da chamada limitação de responsabilidade e quando não dispõem de tal benefício, sobre o qual se falará no próximo item. 1. Cf. VERRUCOLI, Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella common law e nella civil law; MANES, Il superamento della personalità giuridica – l’esperienza inglese. 2. Neste livro, a locução personalidade jurídica é utilizada para designar a personalidade da pessoa jurídica ou a própria pessoa jurídica. Tal emprego, embora possa ser considerado impreciso, convém à exposição e não à toa é frequente em obras sobre o instituto da desconsideração – ainda que de forma não anunciada. 3. Alguns, com boa dose de exagero, apontaram-no como “o problema do século XIX”. (MENEZES CORDEIRO, O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial, p. 66). 4. “On les appelle personnes juridiques, c’est-à-dire, personnes qui n’existent que pour des fins juridiques, et ces personnes nous apparaissent à côté de l’individu, comes sujets des rapports de droit. […] Voici donc les rapports de droit que soutiennent les personnes juridiques: la propriété et les jura in re, les obligations, les successions comme moyen d’acquérir, le pouvoir sur les esclaves, le patronage et, dans les temps plus modernes du droit romain, le colonat. D’un autre côté, le marriage, la puissance paternelle, la parenté, la manus, la mancipii causa et la tutelle ne peuvent appartenir aux personnes juridiques. Cela nous conduit à définir avec plus de precision la personne juridique, comme un sujet du droit des biens créé artificiellement” (Traité de droit romain, t. II, pp. 234-237). 5. O direito e a vida dos direitos, vol. II, p. 668. Sobre as teorias desenvolvidas a respeito da natureza da personalidade jurídica, além do mencionado trabalho de Vicente Ráo (pp. 668 ss.), cf.: COMPARATO- SALOMÃO FILHO, O poder de controle na sociedade anônima, pp. 319 ss.; SACRAMONE, Administradores de sociedades anônimas – relação jurídica entre o administrador e a sociedade, pp. 48-58. SZTAJN, “Sobre a desconsideração da personalidade jurídica”. 6. O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial, p. 67. 7. O uso de “pessoa coletiva” em vez de “pessoa jurídica” decorre de mera variação terminológica. Mas vale ponderar que o adjetivo “coletivo” carece de precisão, porque sugere a subjacência de uma pluralidade de sujeitos, o que nem sempre é verdade (lembre-se da empresa individual de responsabilidade limitada, v.g.). Assim, é preferível o uso da expressão “personalidade jurídica”, até porque consagrada na doutrina, na jurisprudência e na legislação brasileiras. 8. O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial, p. 66. 9. Desconsideração da personalidade jurídica, p. 74. 10. “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, n. 4. 11. Tratado de direito civil, t. II, vol. I, p. 904. 12. Curso de direito comercial, p. 167. Para o português, “as ‘teorias’ não se têm revelado ‘essenciais’ para a descoberta da ‘essência’ da personalidade colectiva… Em grande medida descomprometida com a luta das ‘teorias’, domina hoje na doutrina a compreensão ‘técnico- jurídica’ da pessoa colectiva. Produto da técnica jurídica, abstraindo- se em grande medida de considerações ético-jurídicas e político- gerais, não baseando nos substratos metajurídicos o seu específico modo de ser, a personalidade colectiva aparece como expediente utilizável por muitas e diferenciadas organizações” (Curso de direito comercial, p. 164). 13. Rolf Serick defende linha de trabalho semelhante: “podría sostenerse el criterio de que sólo cabe esperar soluciones satisfactorias después de haber tratado de poner en claro la esencia de la persona jurídica. […] Por otra parte, no debe perderse de vista que al práctico apenas le serviría para nada una solución que se fundara en determinada concepción sobre la esencia de la persona jurídica” (Apariencia y realidade en las sociedades mercantiles – el abuso de derecho por medio de la persona jurídica, p. 27). No mesmo sentido, cf. DUARTE, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio – contributo para a determinação do regime da empresa plurisocietária, p. 31; WORMSER, “Piercing the veil of corporate entity”, p. 496; VERRUCOLI, Il superamento della personalità giuridica delle società di capitali nella common law e nella civil law, p. 6. 14. A expressão é de Miguel Reale: “a pessoa jurídica é uma existência, mas uma existência teleológica, ou seja, finalística” (Lições preliminares de direito, p. 232). 15. “Iddio creò l’uomo a propria imagine e somiglianza, ma l’uomo non volle essergli da meno: creò, a imagine e somiglianza propria, la persona giuridica. Le dette un’assemblea ed un consigliodi amministrazione e le disse: questi sono i tuoi organi; l’assemblea è il tuo cervello; vedrai, ascolterai, parlerai con gli occhi, con le orecchie, con la boca dei tuoi amministratori. […] Ma l’uomo volle fare di più e di meglio: alla persona giuridica, che è sua criatura, permise ciò che a lu stesso, criatura di Dio, non è consentito. L’uomo è mortale, la persona giuridica può essere immortale”. (“La favola della persona giuridica”), pp. 23-24. 16. “Pessoa jurídica não é uma ‘imitação’ do ser humano’ […] As sociedades e demais agrupamentos personificados não se apresentam como realidades físicas, viventes por si mesmas, mas só se justificam como instrumentalidade; existem para e em função do homem” (Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro, p. 33). 17. Entre outros, cf. CARVALHO SANTOS, Código Civil brasileiro interpretado, vol. I, pp. 338-339; 389-391; SILVIO RODRIGUES. Direito civil, vol. I, pp. 85-87; KELSEN, Teoria pura do direito, pp. 194-195. 18. “A personalidade jurídica das sociedades depende de uma condição prévia: a autonomia patrimonial. Pode haver autonomia patrimonial sem personalidade, mas não esta sem aquela. […] Ora se a sociedade não tiver bens que respondam com autonomia pelas dívidas relacionadas ao seu comércio, […] decerto a não poderemos conceber como dotada de capacidade para a si mesma se vincular”. (“A autonomia patrimonial como pressuposto da personalidade jurídica”), pp. 547-548. No mesmo sentido, cf. RIBEIRO, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a ‘desconsideração da personalidade jurídica’, p. 146, n.r. 130. Na doutrina brasileira, Dinamarco afirma a autonomia patrimonial como “um dos fundamentos basilares da personalidade jurídica dos entes coletivos, sem cuja observância sequer haveria como pensar nessa personalidade” (“Desconsideração da personalidade jurídica, fraude, ônus da prova e contraditório”, pp. 531-532). 19. Ou patrimônio separado. Mas é preciso observar que esta última expressão não é unívoca, podendo também designar a porção de um patrimônio que se sujeita a regime diferenciado – os bens dos cônjuges sujeitos a comunhão, por exemplo. Cf. HILDEBRAND, “Patrimônio, patrimônio separado ou especial, patrimônio autônomo”, pp. 273-275; SALOMÃO FILHO, A sociedade unipessoal, p. 27. 20. O poder de controle na sociedade anônima, p. 268; p. 270. 21. Entre outros: ARAKEN DE ASSIS. Processo civil brasileiro, vol. II, t. I, p. 135; CORRÊA DE OLIVEIRA, A dupla crise da pessoa jurídica, pp. 259-262; BULGARELLI, Manual das sociedades anônimas, p. 71; REQUIÃO, Curso de direito comercial, vol. I, pp. 355-356; LOTUFO, Código Civil comentado, vol. I, p. 143. COELHO, Curso de direito comercial, vol. II, p. 14; SOUZA, Desconsideração da personalidade jurídica – aspectos processuais, pp. 73-75. 22. “The core element of legal personality (as we use the term here) is what the civil law refers to as ‘separate patrimony’. This is the ability of the firm to own assets that are distinct from the property of other persons, such as the firm’s investors”. HANSMANN--KRAAKMAN, “What is corporate law?”, 2007, p. 7. 23. “Il privilegio consiste essenzialmente nell’assegnare all’ente riconosciuto, cioè alla persona giuridica, un patrimonio separato da quello dei singoli membri, e capacità di agire separata rispetto a quella dei singoli membri”. TRABUCCHI, Istituzioni di diritto civile, p. 153. 24. “Le premier intérêt de la personnalité morale est d’obtenir une autonomie patrimoniale certaine”. BAILLY-MASSON, “L’intérêt de la personnalité morale”, p. 99. 25. “Na determinação do regime que corresponde à expressão personalidade colectiva, a primeira nota vai para a questão da autonomia patrimonial, que existe sempre nos casos de personalização. Ferrer Correia a ela se refere como um pressuposto da personalidade jurídica, na perspectiva que é um elemento pré- normativo em função do qual ela surge”. DUARTE, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio, p. 47. 26. No mesmo sentido, falando em “causa genérica” e “causa específica” para a constituição de pessoas jurídicas: COMPARATO, O poder de controle na sociedade anônima, p. 270. 27. “Todas elas [pessoas jurídicas], tendo personalidade jurídica plena em face do direito material, também são dotadas da personalidade de direito processual, que se resolve na capacidade de ser parte” (DINAMARCO, Instituições de direito processual civil, vol. II, p. 335). 28. Assim prescreve expressamente o Código de Processo Civil português: “quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária” (art. 11, n. 2). 29. “Starting from the premise that the company is itself a person, in the eyes of the law, it is straightforward to deduce that it should be capable of entering into contracts and owning its own property; capable of delegating to agents; and capable of suing and being sued in its own name. For expository convenience, we use the term ‘legal personality’ to refer to organizational forms – such as the corporation – that share these three atributes” (ARMOUR, John et al., “What is corporate law?”, 2017, p. 8). 30. “Patrimônio separado e pessoa jurídica são, afinal, instrumentos jurídicos para disciplinar a responsabilidade das partes pelos atos que praticarem como sócios e para distinguir, assim, os interesses sociais e os interesses individuais dos sócios” (ASCARELLI, “O contrato plurilateral, p. 282). 31. GAGGINI, A responsabilidade dos sócios nas sociedades empresárias, p. 102. 32. Cf. ASCARELLI, “O contrato plurilateral”, p. 313. 33. SZTAJN, “Terá a personificação das sociedades função econômica?”, p. 66; FERRER CORREIA, “A autonomia patrimonial como pressuposto da personalidade jurídica”, p. 561. 34. Cf. GAGGINI, A responsabilidade dos sócios nas sociedades empresárias, pp. 69-70; SZTAJN, Contrato de sociedade e formas societárias, pp. 67-68; ABREU, Responsabilidade patrimonial dos sócios nas sociedades comerciais de pessoas, pp. 36-37. 35. É o que observam Rachel Sztajn e Priscila Corrêa da Fonseca em comentário ao art. 1.024 do Código Civil: “determinado que os sócios respondem pelo pagamento de todas as obrigações, são responsáveis pelo saldo não coberto se os bens da sociedade forem para tanto insuficientes, segue-se a regra de que a apreensão dos bens particulares dos sócios é subsidiária. Portanto, a responsabilidade patrimonial pessoal dos sócios só e-merge depois de esgotados os bens da sociedade. A norma parte da separação patrimonial decorrente da personificação da sociedade” (Código Civil comentado, vol. XI, pp. 386-387). 36. V.g. PINTO, Do contrato de suprimento – o financiamento da sociedade entre capital próprio e capital alheio, p. 307. 2 A CHAMADA LIMITAÇÃO DE RESPONSABILIDADE 2.1. Incentivo ao empreendedorismo mediante transposição de risco Viu-se no item precedente que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica não necessariamente resguarda seus integrantes de arcar com suas obrigações. Em parte dos tipos societários personificados (entidades coletivas que têm por fim proporcionar lucro aos seus participantes), sócios respondem de forma subsidiária pelas dívidas da pessoa jurídica. Nesses casos, caindo a sociedade em insolvência, os prejuízos sociais serão suportados por seus integrantes, com consequências possivelmente devastadoras sobre seus patrimônios pessoais. Não é difícil perceber quão desencorajador tal regime de responsabilidade pode apresentar-se a quem cogite exercer uma atividade econômica. Independentemente da aptidão dos sujeitos envolvidos, ingressar no mercado implica submissão a um sem- número de riscos, muitos dos quais escapam a qualquer tentativa de controle. Para ficar apenas em exemplos triviais, basta mencionar a possibilidade de inflação, variação cambial, escassez de crédito e inadimplência de devedores – fatores que podem influir decisivamente no destino de uma iniciativa empresarial.37 São tantos os azares que podem acometer uma atividade econômica, que mesmo o mais preparadoe previdente empreendedor ficaria temeroso de tomar parte em uma pessoa jurídica quando pudesse ser responsabilizado por suas obrigações na hipótese de sua insolvência. Em razão de um insucesso empresarial, bens pessoais conquistados ao longo de anos de trabalho poderiam perder-se.38 O receio do empreendedorismo (rectius: dos riscos que lhe são inerentes) é sem dúvida nocivo para o desenvolvimento de um país. Primeiro, porque inibe a realização de atividades econômicas legítimas e desejáveis, que gerariam empregos, incrementariam o recolhimento de tributos e proporcionariam maior número de bens e serviços à disposição da população. Por consequência, constitui entrave à concorrência, uma vez que o ingresso de novos agentes econômicos no mercado depende em grande medida de iniciativas empreendedoras, que se reduzem em cenários de maior risco.39 Ademais, acaba colaborando para o fenômeno da concentração de renda, pois propicia que empreendimentos sejam tentados somente por quem dispõe de capital suficiente para suportar eventuais prejuízos econômicos no âmbito pessoal. Não é só. A responsabilidade subsidiária dos sócios por obrigações sociais também dificulta a atuação dos chamados agentes passivos – sujeitos que desejam aplicar parcela de seu capital no financiamento de sociedades empresárias, mas não estão dispostos ou habilitados a participar de sua administração ou mesmo a acompanhar de perto a sua gestão.40 Como a tais pessoas não seria viável exercer qualquer tipo de controle sobre os prejuízos que lhes poderiam ser imputados em caso de insucesso do negócio, elas certamente receariam participar de pessoas jurídicas na condição de sócio investidor se respondessem subsidiariamente pelas obrigações sociais. Então, salutares iniciativas empreendedoras careceriam de financiamento – ou enfrentariam enorme dificuldade para obtê- lo.41 Tendo tudo isso em vista, as normas em geral buscam oferecer mecanismos que mitiguem os riscos dos que se propõem ao desenvolvimento de atividades econômicas. Cuida- se de uma escolha política, que reconhece no empreendedorismo um motor de desenvolvimento econômico-social e visa a fomentá-lo. Entre tais mecanismos, destaca-se o regime de limitação de responsabilidade, que se verifica em certas espécies societárias personificadas42 do ordenamento jurídico brasileiro. O regime de limitação de responsabilidade deve ser bem compreendido. Diferentemente do que se pode imaginar, ele não estabelece nenhum tipo de restrição à responsabilidade da própria pessoa jurídica, cujo patrimônio responde sempre ilimitadamente por suas obrigações.43 Na realidade, restringe-se o risco patrimonial de seus integrantes: em caso de insolvência social, eles perderão os recursos que tiverem investido na formação do capital da pessoa jurídica, porém seus bens particulares não responderão subsidiariamente por obrigações sociais. Serão, portanto, irresponsáveis pelas dívidas contraídas pela pessoa jurídica.44 Tal regime naturalmente se mostra mais propício à atuação de empreendedores e dos mencionados investidores passivos, pois lhes proporciona meio para previsão e contenção de riscos.45 Ao ingressar em uma sociedade com limitação de responsabilidade, podem esses agentes dimensionar ex ante a extensão da perda patrimonial que estão dispostos a experimentar na hipótese de insucesso do negócio, a qual será ditada pela medida de seu investimento na formação do capital social.46 Dessa forma, a limitação de responsabilidade constitui verdadeiro subsídio ao empreendedorismo,47 e não à toa as pessoas jurídicas que funcionam sob tal regime são praticamente as únicas utilizadas para o desenvolvimento de atividades empresariais.48 Evidentemente, alguém há de bancar tal subsídio, suportando o ônus que o ordenamento jurídico retira daqueles que se dedicam a um empreendimento e dos sujeitos que se animam a financiá-lo. Ninguém imaginará que, por meio de política legislativa, seja possível desvanecer o risco da atividade empresarial ou parte dele.49 De fato, o que a limitação de responsabilidade promove não é a supressão, e sim a transposição desse risco, que é parcialmente extraído da esfera dos sócios e transferido aos credores sociais.50 Num regime sem limitação de responsabilidade, os prejuízos que o patrimônio social não é capaz de absorver são imputados aos sócios, que respondem subsidiariamente por eles com seus bens particulares. Já num regime de responsabilidade limitada, como inexiste responsabilidade subsidiária dos sócios, os prejuízos que excederem o patrimônio social são absorvidos pelos credores da pessoa jurídica, que não terão alternativa para buscar a satisfação de seus créditos e, assim, sofrerão baixas em seus próprios patrimônios. Daí a assertiva de MILLON de que limitação de responsabilidade é um subsídio ao empreendedorismo concedido aos sócios à custa dos credores sociais.51 2.2. Critérios para a limitação de responsabilidade A limitação ou não da responsabilidade dos sócios é em geral ditada pelo tipo societário, pois a legislação prescreve para cada espécie de sociedade o regime ao qual se submetem os seus participantes. Por conta disso, tornou-se corrente na doutrina uma divisão entre tipos societários de responsabilidade ilimitada, cujos integrantes respondem ordinária52 e subsidiariamente por obrigações sociais; e tipos societários de responsabilidade limitada, em que ordinariamente inexiste responsabilidade subsidiária dos sócios por dívidas da pessoa jurídica.53 No primeiro grupo dessa divisão encontra-se, v.g., a já referida sociedade em nome coletivo (CC, art. 1.039).54 Os mais representativos exemplos do segundo agrupamento são a sociedade anônima (ou companhia), cujos sócios têm sua responsabilidade limitada ao preço de emissão das ações que vierem a subscrever ou adquirir (CC, art. 1.088; Lei 6.604/1976); a sociedade limitada (também denominada sociedade por cotas de responsabilidade limitada), em que os integrantes têm responsabilidade restrita ao valor de suas cotas, embora respondam solidária e subsidiariamente55 pela integralização do capital social (CC, art. 1.052); e a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), composta por um único sujeito cuja responsabilidade restringe-se ao valor aplicado na integralização do capital empresarial (CC, art. 980- A).56 Nada há de equivocado nessa forma de classificação, pois o tipo societário efetivamente estabelece o regime de responsabilidade a que se submetem os integrantes da sociedade (limitada ou não). No entanto, é preciso atentar na possibilidade de a natureza da obrigação contraída pela pessoa jurídica também interferir na limitação ou não de responsabilidade dos sócios. Em outras palavras: é perfeitamente concebível que, nos tipos societários de responsabilidade limitada, o ordenamento jurídico determine que os sócios respondam automática e subsidiariamente por obrigações sociais de determinada espécie, conferindo proteção diferenciada a uma específica classe de credores da pessoa jurídica. Colhe-se exemplo interessante da doutrina norte-americana, que refere a uma possível distinção entre credores voluntários (voluntary creditors) e credores involuntários (involuntary creditors) das sociedades com limitação de responsabilidade.57 Credores voluntários seriam essencialmente os credores contratuais, ou seja, aqueles que têm a sociedade como devedora em razão de uma relação consensual, deliberada pelas partes. Seria o caso, e.g., de um mutuante. Já os credores involuntários consistiriam fundamentalmente nas vítimas da prática de atos ilícitos, isto é, pessoas que dispõem de um crédito com a sociedade não em razão de uma escolha, mas por força de uma inopinada circunstância da vida. Pense-se, por exemplo, em um sujeito atropelado por automóvel pertencente à pessoa jurídica. A partir dessa distinção, defendeu-se naquele país que a limitação de responsabilidade devesse ser oponível somente aos credores voluntários, pois estes contratariam com a sociedade cientes de que os patrimônios dos sóciosnão responderiam pela dívida em caso de insolvência social e, portanto, poderiam compensar essa desvantagem no próprio negócio entabulado com a pessoa jurídica (mediante exigência de garantias contratuais, por exemplo). Já aos credores involuntários não seria adequado dispensar idêntico tratamento. Como seu crédito não decorre de uma escolha em se relacionar com uma sociedade de responsabilidade limitada, e sim de um ato praticado unilateralmente pela pessoa jurídica, não seria legítimo colocar sobre seus ombros os riscos inerentes ao regime de limitação de responsabilidade dos sócios.58 Logo, em face desses credores, os integrantes de sociedades de responsabilidade limitada responderiam subsidiariamente com seus patrimônios particulares.59 A distinção entre os tratamentos dispensados a credores voluntários e involuntários é criticável60 e, diga-se desde já, não encontra abrigo no ordenamento brasileiro vigente.61 Todavia, convém mencioná-la para que se tenha consciência de que o legislador pode muito bem estabelecer que determinadas obrigações – ou determinados credores – não se submetam à limitação de responsabilidade de que desfrutam os integrantes de certas sociedades. Mais à frente (infra, n. 4.2), tal compreensão será fundamental para diferenciar autênticos casos de desconsideração da personalidade jurídica e hipóteses de mera responsabilidade subsidiária dos sócios por obrigações sociais – não raro confundidos pela doutrina. 37. “São salutares as explicações de Ischer: […] ‘Nos dias atuais, submeter-se ao ‘risco ilimitado de uma empresa’ significa estar em perigo de ser totalmente arruinado pelo efeito de circunstâncias independentes a sua vontade […] mencionemos as medidas imperativas do Estado, a instabilidade monetária, a variação de preços, a escassez de crédito, a nacionalização de bens no estrangeiro, a falência de clientes e de bancos, a voracidade fiscal, enfim, um conjunto de problemas que chamamos de crise econômica’”. WARDE JR., Responsabilidade dos sócios – a crise de limitação e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, p. 147. 38. COELHO, Curso de direito comercial, vol. II, p. 16. 39. WARDE JR., Responsabilidade dos sócios – a crise da limitação e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pp. 146-148. 40. Cf. GAGGINI, A responsabilidade dos sócios nas sociedades empresárias, pp. 115-116. 41. “Os financiamentos de negócios em bases relacionais tendem a ser impactados pelo regime de responsabilidade. Familiares, amigos e outros investidores que se envolvem em um negócio na base da confiança quase sempre desejam se tornar sócios para participarem do sucesso; de vez em quando o fazem para ajudar um empreendedor por quem têm apreço, amizade ou laços de família; mas quase nunca estão dispostos a simplesmente arriscar todo o seu patrimônio pessoal em um único investimento. É nesse ponto que o tipo de regime jurídico de responsabilidade de sócio passa a ser importante, porque sob responsabilidade ilimitada o investidor poderá perder todo o seu patrimônio se a empresa vier a naufragar. Repare que esse problema é particularmente verdadeiro no caso de novos negócios, porque estes têm, sabidamente, maiores chances de quebrar do que negócios já estabelecidos há muito tempo. É nesse sentido que afirmo que a ilimitação de responsabilidade do sócio pode ser considerada um entrave adicional ao empreendedorismo, isto é, à abertura de novos negócios”. SALAMA, O fim da responsabilidade limitada no Brasil – história, direito e economia, p. 276. 42. Em certos sistemas jurídicos, como o alemão, a limitação de responsabilidade verifica-se em todas as espécies societárias personificadas, pois tais ordenamentos não reconhecem personalidade jurídica a sociedades que não disponham desse regime (Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, A dupla crise da pessoa jurídica, pp. 39; 261; RIBEIRO, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a ‘desconsideração da personalidade jurídica’, pp. 138-140). Não é o que se constata no Brasil, onde se reconhece personalidade jurídica mesmo a sociedades que não funcionem sob regime de limitação de responsabilidade, a exemplo da sociedade em nome coletivo. Desta forma, vale entre nós entendimento de que “limitação de responsabilidade não é elemento constitutivo da personalidade jurídica” (DIDIER JR., Curso de direito processual civil, vol. I, p. 522). 43. Cf. SZTAJN, Contrato de sociedade e formas societárias, p. 99. 44. Cf. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. II, p. 84, n.r. 69; WARDE JR., Responsabilidade dos sócios – a crise da limitação e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pp. 10-11. 45. Cf. PARENTONI, Desconsideração contemporânea da personalidade jurídica, p. 45. 46. Conforme observa Fran Martins, “haverá sempre um ponto em que cessa a responsabilidade dos sócios, o que não se verifica nas sociedades de responsabilidade ilimitada e nas mistas” (Sociedades por quotas no direito estrangeiro e brasileiro, vol. I, p. 288). 47. “Limited liability is an important incentive because individuals will more willingly take on the risk of business failure if their exposure to loss is limited to their actual investment” (MILLON, “Piercing the corporate veil, financial responsibility, and the limits of limited liability”, p. 1.317). No mesmo sentido, Coutinho de Abreu assevera que, “para limitar a aversão ao risco e promover investimentos, a ordem jurídica atribui o benefício da ‘responsabilidade limitada’ aos sujeitos que queiram exercer actividade económica por intermédio da sociedade” (“Diálogos com a jurisprudência, II – responsabilidade dos administradores para com credores sociais e desconsideração da personalidade jurídica”, p. 57). 48. Sobre a absoluta predominância das sociedades com limitação de responsabilidade no Brasil, cf. GAGGINI, A responsabilidade dos sócios nas sociedades empresárias, p. 46; ARBACHE, “A justificação econômica da limitação de responsabilidade no direito societário, a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade civil do administrador”, n. 2. Sobre o mesmo fenômeno em Portugal, cf. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, vol. II, p. 84. 49. “Como é por demais evidente, o legislador ao conceber um esquema destes não subtraiu, como que por artes mágicas, a existência do risco; transferiu-o simplesmente para os credores”. DUARTE, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio, p. 85. 50. “Limited liability does not eliminate the risk of business failure but rather shifts some of the risk to creditors”. EASTERBOOK- FISCHEL, “Limited liability and the Corporation”, p. 91. 51. “Piercing the corporate veil, financial responsibility, and the limits of limited liability”, p. 1.307. De acordo com Marçal Justen Filho, “é o preço que se paga pela promoção do desenvolvimento” (Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro, p. 121) 52. Isto é, independentemente de abuso na condução da sociedade. 53. Entre outros, cf. BORBA, Direito societário, pp. 48-49; SILVA, A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro, pp. 158-159. Os autores referem ainda a sociedades com regime de responsabilidade misto, vale dizer, em que só parte dos sócios se beneficia da limitação – caso das sociedades em comandita (CC, art. 1.045). 54. Supra, n. 1.3. 55. Cf. FONSECA-SZTAJN, Código Civil comentado, vol. XI, pp 426- 427. 56. A bem da verdade, não consiste a EIRELI num tipo societário. A ideia de sociedade, conforme observa Ferrer Correia (Sociedades fictícias e unipessoais, p. 204), pressupõe pluralidade de sujeitos associados, enquanto a EIRELI constitui-se por uma só pessoa titular da totalidade do capital social (CC, art. 980-A) – Alfredo Gonçalves Neto define-a como “agente econômico personificado” (Direito de empresa – comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil, p. 125). De todo modo, cuida-se de pessoa jurídica voltada ao lucro e dotada de limitação de responsabilidade, sendoconveniente o tratamento em conjunto com as sociedades de responsabilidade limitada. 57. Cf., v. g., EASTERBOOK-FISCHEL, “Limited liability and the corporation”, pp. 104-107. 58. “A relevância da distinção está relacionada à possibilidade, existente apenas para o credor de obrigação negociável [credor voluntário], de se preservar economicamente contra os riscos da insolvabilidade da pessoa jurídica devedora”. COELHO, “A teoria maior e a teoria menor da desconsideração”, n. 4. 59. Cf. GAGGINI, A responsabilidade dos sócios nas sociedades empresariais, p. 119. 60. “A mera caracterização de um credor como ‘voluntário’ ou ‘involuntário’ esconde uma série de diferenças entre os integrantes de cada um desses dois grupos. Por exemplo, tanto os contratantes comerciais quanto os empregados podem, a rigor, ser considerados credores voluntários. Afinal, comerciantes contratam entre si, o mesmo ocorrendo entre empresas e empregados. […] Nem todo credor voluntário está em condições de se compensar ex ante facto, isto é, de embutir no preço e nas condições do contrato os riscos relativos à solvência da empresa devedora. A capacidade de precificar e embutir os riscos de perda no valor das obrigações voluntariamente assumidas depende de diversas considerações sobre o credor, duas das quais são particularmente importantes: (i) da sua capacidade de precificar riscos e (ii) do seu poder de barganha. A capacidade de precificar riscos depende principalmente de terem os credores voluntários acesso a informações da empresa e capacidade de processarem tais informações. As informações de que ora falamos são aquelas que permitem estimar (aproximadamente, pelo menos) as chances de quebra da empresa e a consequente redução da capacidade da empresa de honrar os compromissos acertados com os credores. Informações desse tipo são necessárias para estabelecer a compensação ex ante facto a ser embutida nas prestações da relação contratual. Já o poder de barganha depende principalmente da demanda da empresa pelo bem ou serviço ofertado pelo contratante. De nada adianta um credor ser capaz de precificar com alguma precisão o valor da compensação ex ante facto que lhe cabe pelo aumento do risco de solvência dos seus créditos se não dispõe, na prática, de força para exigir a correspondente elevação da prestação da empresa” (SALAMA, O fim da responsabilidade limitada no Brasil – história, direito e economia, pp. 415-422). 61. Cf. COELHO, Curso de direito comercial, vol. II, pp. 417-419; CEOLIN, Abusos na aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, pp. 105-106. 3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Origem e desenvolvimento Conforme exposto anteriormente, as pessoas jurídicas estão habilitadas a praticar atos e entabular relações em nome próprio, tendo em vista a autonomia patrimonial de que dispõem. Dessa forma, ações e obrigações da pessoa jurídica não podem ser confundidas com as de seus integrantes, como também não se confundem suas esferas de responsabilidade. Em regimes específicos (sociedades de responsabilidade ilimitada – supra, n. 2.2), os sujeitos que compõem a pessoa jurídica respondem subsidiariamente por suas dívidas, mas do inverso (responsabilidade subsidiária da pessoa jurídica por dívidas de seus integrantes) não se cogita. A legislação brasileira sintetizava tal realidade de modo singelo e elucidativo: constava do Código Civil de 1916 que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros” (art. 20). Embora o Código Civil de 2002 não reproduza essa prescrição legal, não há quem questione a plena vigência de seu conteúdo, que se extrai sistematicamente de outras disposições normativas62 e da própria compreensão de que a autonomia patrimonial é conatural à personalidade jurídica.63 Com sua existência distinta, viu-se que a pessoa jurídica cumpre papel importante na organização e no desenvolvimento de atividades, sobretudo quando se necessita da conjugação de esforços e recursos de variados sujeitos (supra, n. 1.3). Todavia, não é difícil supor o uso dessa ferramenta para finalidades pouco decorosas, que passam ao largo dos fins para os quais ela foi concebida. Imagine-se a hipótese de dois sujeitos que organizam sociedade limitada cujo escopo seja a produção de livros didáticos. Logo depois de ser constituída, a pessoa jurídica contrai empréstimo de cem mil reais na instituição financeira, mas, em vez de ser aplicado na atividade societária (compra de material gráfico, v.g.), o numerário emprestado é despendido na aquisição de imóveis, os quais são registrados em nome das pessoas físicas dos sócios. Chegado o momento de quitação do mútuo, a pessoa jurídica não realiza o pagamento e é judicialmente condenada a fazê-lo, porém não se encontram em seu patrimônio bens suficientes para a satisfação da obrigação. Como os imóveis foram incorporados aos patrimônios pessoais dos sócios (que não respondem pela dívida da sociedade), não se consegue expropriá-los no processo movido pela instituição credora. Imagine-se outro exemplo. Dois indivíduos constituem sociedade limitada que tem por objeto a instalação de redes de proteção em apartamentos, repartindo a participação societária em cotas de 99% e 1%. Propositalmente, os serviços são sempre contratados em nome da pessoa física do minoritário, que não mantém bens em seu patrimônio e transfere todo pagamento que recebe à pessoa jurídica. Certa instalação é mal realizada, ocasionando um acidente fatal. Pessoalmente responsável pela prestação do serviço, o sócio minoritário é condenado ao pagamento de alto valor indenizatório, mas em seu patrimônio só se encontra sua ínfima participação na sociedade, cuja expropriação64 satisfaz parte insignificante da obrigação. Já os recursos acumulados no patrimônio da pessoa jurídica não são alcançados pela execução, uma vez que os bens sociais não respondem por dívidas pessoais de seus integrantes. Nas duas hipóteses anteriores, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica poderia, em tese, justificar a inviabilidade de se atingir o patrimônio do sócio para a satisfação de obrigação da sociedade ou o contrário. Mas essa aparente correção técnica conduziria a soluções substancialmente incongruentes, que por certo chocariam o homem da rua65 e perturbariam a consciência do juiz comprometido com a realização de justiça. Por cego respeito à autonomia patrimonial da pessoa jurídica, seria correto proteger sujeitos que claramente a manipularam com o intuito de formar uma barreira contra a satisfação de pretensões legítimas? Nos Estados Unidos, questões éticas dessa natureza chamaram a atenção de magistrados. Em 1912, I. MAURICE WORMSER publicou artigo noticiando que, no início do século XIX, “it was perceived that in many cases the literal application of the notion that a corporation is only a legal entity, and nothing more, would work injustice”.66 À vista disso, relatou o jurista norte-americano, tribunais começaram a adotar soluções no sentido de “ignorar o conceito de pessoa jurídica” para evitar a consumação de iniquidades provenientes da utilização abusiva da personalidade jurídica.67 Em substância, tais soluções consistiam na responsabilização daqueles que atuavam por meio de sociedades, frustrando, assim, manobras maliciosas que visassem a prejudicar credores inocentes.68 O ensaio de MAURICE WORMSER é histórico e fundamental por uma série de razões. Além de ser o primeiro trabalho doutrinário acerca da repressão ao mau uso da pessoa jurídica,69 ele demonstra como isso foi fruto de um movimento jurisprudencial surgido na common law70 diante de casos em que o rígido respeito à autonomia patrimonial das sociedades levaria a desfechos irrazoáveis.71 Conforme destacaria MENEZES CORDEIRO quase um século depois, as medidas contra o uso abusivo de pessoas jurídicas não surgiram de “lucubrações teóricas”, senão “para resolver problemas reais postos pela personalidade colectiva”.72 Não é só. Em seu artigo, o jurista norte-americano também plantou ideia fundamental, que se perpetua até hoje:
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