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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo MIKIO KAWAI JUNIOR GESTÃO DE RISCO DE PREÇOS E RISCO DE LIQUIDEZ NO MERCADO DE ENERGIA ELÉTRICA: UMA METODOLOGIA ADAPTADA AO BRASIL CAMPINAS 2015 2 3 4 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE ENGENHARIA CIVIL, ARQUITETURA E URBANISMO GESTÃO DE RISCO DE PREÇOS E RISCO DE LIQUIDEZ NO MERCADO DE ENERGIA ELÉTRICA: UMA METODOLOGIA ADAPTADA AO BRASIL Mikio Kawai Junior Tese de Doutorado aprovada pela Banca Examinadora, constituída por: Prof. Dr. Paulo Sérgio Franco Barbosa Presidente e Orientador/FEC-Unicamp Prof. Dr. Alberto Luiz Francato FEC-Unicamp Prof. Dr. Sérgio Valdir Bajay FEM-Unicamp Prof. Dr. José Wanderley Marangon de Lima UNIFEI Profa. Dra. Virgínia Parente IEE-USP A Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno. Campinas, 30 de novembro de 2015 5 Dedicatória À minha amada esposa, aos meus tão sonhados filhos, à minha superlativa mãe e aos meus queridos irmãos. A família é harmoniosa. A harmonia libera o caminho para a prosperidade… À memória de meu pai. 6 Agradecimentos Meus sinceros agradecimentos ao Marcelo, Fábio e todos os integrantes da equipe da Safira. Temos vivido momentos desafiadores neste setor elétrico brasileiro. Mas a confiança, amizade e empenho fazem com que as intempéries se tornem menos perturbadoras e as soluções acabem podendo ser sintetizadas num trabalho árduo como o aqui apresentado. Ao professor Paulo Barbosa, que dentro da sua longa experiência, iluminou alguns caminhos e ideias sobre este trabalho. Aos professores Alberto Luiz Francato, Virgínia Parente, Sérgio V. Bajay e J. Wanderley Marangon Lima pela pronta aceitação para participação da banca da minha defesa de tese. 7 Resumo Neste trabalho procurou desenvolver-se uma metodologia alternativa para a gestão de risco de mercado adicionando-se a gestão de risco de liquidez para o mercado brasileiro de energia elétrica. A hipótese do estudo é a de que os atuais modelos e métodos utilizados pelas empresas de energia no Brasil são insuficientes para assegurar a sua autossustentação financeira. A análise recaiu, desde os padrões de financiamento da expansão do setor elétrico nacional, até o advento da criação do mercado livre. Não bastasse a permissão regulatória para a existência da livre competição, a sobra de energia originada no período pós-racionamento, garantiu o suprimento necessário para que os esforços iniciais das empresas buscassem economia de custos neste novo mercado. No entanto, se há custos evitados relevantes, há riscos inerentes. E as métricas e métodos propostos não parecem dar segurança aos agentes envolvidos. Para tanto foram colocadas novas rotinas e metodologias adaptadas das boas práticas dos mercados financeiros, e, uma nova ótica sobre o risco de liquidez foi introduzida: a mensuração dos elevados custos de transação que um mercado com baixa liquidez possui. Por meio de uma gestão individual integrada e proativa de riscos, as empresas minimizam potenciais crises de insolvência no mercado como um todo. Palavras Chave: Risco, Energia, Mercado, Liquidez, Insolvência, Gestão. 8 Abstract On this analysis, we had developed an alternative market risk management methodology joining a liquidity risk management for the Brazilian Power Market. Actually, the risk management methods are not enough to measure the real risk and move the company into a financial fragility. The investigations goes thru the way that Brazilian Power Sector came from the early 70´s until free market arisen. Rationing had created an excess of energy and it assured competition among the power suppliers. Free customers has gotten cheaper energy. However, if there was economy, it brought risks together. To deal with it, the thesis proposed another way of thinking about risk methodologies and proceedings. The benchmarks came from financial markets. A brand new approach about liquidity market has come: the measurement of transaction costs, which an illiquid market has. As an integrated and proactive risk management, the companies could reduce the probability of a potential liquidity crisis as a whole. Key Words: risk, energy, market, liquidity, risk management, bankruptcy. 9 Lista de Ilustrações Figura 1 Crescimento de Agentes na CCEE ............................................................................. 24 Figura 2: Carga em MW médios ............................................................................................. 25 Figura 3: Valor PLD em R$/MWh ........................................................................................... 31 Figura 4: Inadimplência na CCEE ............................................................................................ 38 Figura 5: Câmbio – Preço à vista.............................................................................................. 40 Figura 6: Inadimplência na CCEE entre jan/12 e jan/15 .......................................................... 55 Figura 7: Simulação dos Procedimentos de MtM e Stop Loss ................................................. 73 Figura 8: Perdas totais no MRE entre janeiro/14 e janeiro/15 ................................................. 75 Figura 9: Perdas acumuladas em 2014 ..................................................................................... 76 Figura 10: Contratação de proteção ao MRE ........................................................................... 77 Figura 11: As Três Dimensões da Liquidez de Mercado ......................................................... 81 Figura 12: Preços a termo da energia incentivada 50% (R$/MWh) ......................................... 90 Figura 13: Preços a Termo da Energia Convencional (R$/MWh) .......................................... 90 Figura 14: MtM A @ Preços Mercado ..................................................................................... 93 Figura 15: MtM A @ CMO ...................................................................................................... 94 Figura 16: MtM B @ Preços Mercado ..................................................................................... 94 Figura 17: MtM B @ CMO ...................................................................................................... 95 10 Figura 18: Carteira A ................................................................................................................ 97 Figura 19: Carteira B ................................................................................................................ 97 11 Lista de Tabelas Tabela 1:Status das fontes de financiamento ao longo dos anos (valores em %) .................... 28 Tabela 2: Investimento na área de energia, a partir dos anos 70 .............................................. 29 Tabela 3:Síntese sobre principais eventos históricos, padrão de financiamento e impactos na liquidez e risco .......................................................................................................................... 34 Tabela 4:Cenários comparativos com e sem gestão de risco.................................................... 77 Tablea 5:Var A ......................................................................................................................... 91 Tabela 6:VarB.......................................................................................................................... 92 Tabela 7:VaR A (ajustado pela Liquidez) Normal ................................................................. 100 Tabela 8:VaR B (ajustado pela Liquidez) Normal ................................................................. 101 Tabela 9:VaR A (ajustado pela Liquidez) Histórico .............................................................. 102 Tabela 10:VaR B (ajustado pela Liquidez) Histórico ............................................................ 103 12 Lista de Equações (01) ........................................................................................................................................... 63 (02) ......................................................................................................................................... 63 (03) ........................................................................................................................................... 63 (04) ........................................................................................................................................... 66 (05) ......................................................................................................................................... 66 (06) .......................................................................................................................................... 67 (07) ........................................................................................................................................... 67 (08) ........................................................................................................................................... 67 (09) ........................................................................................................................................... 75 (10) ........................................................................................................................................... 83 (11) ........................................................................................................................................... 84 13 Lista de Abreviaturas e Siglas Abreviações ACL - Ambiente de Contratação Livre ACR - Ambiente de Contratação Regulada CCD - Contrato de Conexão ao Sistema de Distribuição CCEAR - Contrato de Compra e Venda de Energia Elétrica no Ambiente Regulado CCT - Contrato de Conexão ao Sistema de Transmissão CLIQCCEE – Novo Sistema de Contabilização e Entrega de Energia da CCEE CPST - Contrato de Prestação de Serviços de Transmissão CRC - Conta de Resultados a Compensar CUSD - Contrato de Uso do Sistema de Distribuição CUST - Contrato de Uso do Sistema de Transmissão EPE - Empresa de Pesquisa Energética ESS - Encargos de Serviços do Sistema MAE - Mercado Atacadista de Energia Elétrica MCP – Mercado de Curto Prazo MRE - Mecanismo de Realocação de Energia MtM – “Mark to Market” ou Marcação a Mercado MWm – Megawatt Médio ONS - Operador Nacional do Sistema Elétrico OTC - Over the Counter PCH - Pequena Central Hidrelétrica PDE - Programação Dinâmica Estocástica 14 PIE - Produtor Independente de Energia Elétrica PLD - Preço de Liquidação das Diferenças PPA - Power Purchase Agreement SCL - Sistema de Contabilização e Liquidação da CCEE TUSD – Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição TE – Tarifa de Energia VaR – Valor em Risco Siglas ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica BCB – Banco Central do Brasil CMSE – Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico CCEE - Câmara de Comercialização de Energia Elétrica MME - Ministério de Minas e Energia 15 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 19 1.1 Estrutura do Trabalho ......................................................................................................... 20 2 MERCADO LIVRE DE ENERGIA E OS PRIMÓRDIOS DAS OSCILAÇÕES DE PREÇOS .................................................................................................................................................. 23 2.1 Origens ............................................................................................................................... 23 2.2 Avanço com a Separação dos Ambientes de Comercialização .......................................... 27 2.3. Padrão de Financiamento Estatal no Setor Elétrico Brasileiro .......................................... 27 2.3.1. Anos 70 ....................................................................................................................... 27 2.3.2. Anos 80 ....................................................................................................................... 28 2.3.3 Padrão de Financiamento Privado no Setor Elétrico Brasileiro .................................. 28 2.3.4 Desequilíbrio “Forçado” de Mercado e Preços em Queda Livre ................................ 29 2.3.5 Último ciclo ................................................................................................................. 32 3 ERROS E CASOS CLÁSSICOS NA GESTÃO DE RISCO ................................................ 35 3.1 Casos Clássicos .................................................................................................................. 37 3.1.1 Casos no Mercado de Energia Brasileiro .................................................................... 37 3.1.2 Casos no Mercado Financeiro Nacional ...................................................................... 39 3.1.3 Casos Clássicos do Mercado Internacional ................................................................. 41 3.1.4 Analogia com o Mercado Brasileiro de Energia Elétrica ............................................ 44 3.1.5 Conclusão Parcial ........................................................................................................ 46 4 RISCO DE MERCADO ........................................................................................................ 47 16 4.1. Atual Estágio do Mercado Brasileiro ................................................................................ 47 4.2. O que é Risco? ................................................................................................................... 48 4.2.1 Tipificação dos Riscos no Setor Elétrico ..................................................................... 48 4.2.2 Riscos Extrínsecos ....................................................................................................... 49 4.2.2.1 Risco Operacional .................................................................................................... 49 4.2.2.2 Risco Legal ............................................................................................................... 49 4.2.2.3 Risco de Crédito ....................................................................................................... 50 4.2.2.4 Risco de Mercado ..................................................................................................... 51 4.2.2.5 Risco de Liquidez ..................................................................................................... 51 4.2.2.6 Risco de Entrega ....................................................................................................... 51 4.2.3 Riscos Intrínsecos ao Setor Elétrico ............................................................................ 52 4.2.3.1 Risco Hidrológico ..................................................................................................... 52 4.2.3.2 Risco de Submercado ...............................................................................................52 4.3 Foco no risco de mercado ................................................................................................... 52 4.4. Status Atual no Brasil ........................................................................................................ 54 4.5. Hipóteses ........................................................................................................................... 55 4.5.1 Hipótese Central .......................................................................................................... 55 4.5.2 Hipótese secundária ..................................................................................................... 55 4.6 Risco de mercado................................................................................................................ 56 4.7 Revisão bibliográfica .......................................................................................................... 56 4.8. Experiência Nacional ......................................................................................................... 57 4.9. Mensuração de Risco ......................................................................................................... 58 4.10. Políticas de Riscos x Métricas ......................................................................................... 60 17 4.11. Que risco medir? .............................................................................................................. 62 4.11.1 Os preços e suas oscilações ....................................................................................... 62 4.12. Conceito de VaR .............................................................................................................. 64 4.12.1 Volatilidade ............................................................................................................... 64 4.12.2 Cálculo do VaR ......................................................................................................... 65 4.12.2.1 Cálculo da volatilidade ........................................................................................... 67 4.12.3.1 Modelos paramétricos............................................................................................. 67 4.12.3.2 Modelos não paramétricos ...................................................................................... 68 4.12.4 Preços de mercado à termo ........................................................................................ 69 4.13. Como Funciona o “Teste de Estresse” ............................................................................ 70 4.14. Caso prático: a crise do GSF ........................................................................................... 74 4.15. Conclusão Parcial ............................................................................................................ 78 5 O IMPACTO DO RISCO DE LIQUIDEZ ............................................................................ 79 5.1 Risco de Liquidez ............................................................................................................... 79 5.2 Significado de Liquidez ...................................................................................................... 79 5.3 Tipos de Risco de Liquidez ................................................................................................ 80 5.4 Liquidez de Mercado .......................................................................................................... 80 5.4.1 Dimensões da Liquidez de Mercado ........................................................................... 80 5.5 Importância da Liquidez no Mercado de Energia .............................................................. 82 5.6 Mensuração do Risco de Liquidez ..................................................................................... 82 5.7 Proposta de Mensuração de Liquidez de Mercado de Energia através da utilização do VaR .................................................................................................................................................. 83 18 5.8 Conceito de VaR de Liquidez de Mercado ......................................................................... 83 5.9 Proposta de Ajuste do Risco de Liquidez ao VaR de Risco de Mercado ........................... 84 5.10 Caso aplicado do VaR de risco de mercado e do VaR ajustado pelo risco de liquidez ... 88 5.11 Avaliação de risco de mercado em carteiras de prazo maior ........................................... 88 5.12 Alavancagem e Acordo da Basileia III ............................................................................. 95 5.13 VaR ajustado pelo risco de liquidez ................................................................................. 98 5.14 Conclusão Parcial ........................................................................................................... 104 6 CONCLUSÕES FINAIS ..................................................................................................... 105 6.1 Limitações do trabalho ..................................................................................................... 109 6.2 Perspectivas para trabalhos futuros .................................................................................. 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 111 1 INTRODUÇÃO A tese aqui desenvolvida versou sobre um tema que tem gerado inúmeros trabalhos e artigo acadêmicos nos mercados financeiros, internacionais e nacionais, desde meados dos anos 90, quando houve o boom com a criação da metodologia VaR (Valor em Risco) pela JPMorgan e Riskmetrics: a gestão de risco. Trata-se, portanto, de um tema relativamente novo, embora as oscilações de preços existam desde a criação do primeiro mercado, independentemente, dos produtos que fossem transacionados. Se pudermos considerar o assunto recente para o mercado financeiro, a consideração é especial nos mercados de energia. O tema ainda é aberto à pesquisa no meio acadêmico que foca os mercados, porém, já há uma série de consensos entre os métodos a serem propagados e seguidos. O assunto sempre ganha nova ênfase quando as crises tratam de dilapidar o capital das empresas, fundos de participações, bancos comerciais e bancos de investimentos. No setor elétrico brasileiro, onde o mercado livre ainda é de criação bastante recente, com as figuras de PIE (Produtor Independente de Energia) e consumidor livre nascendo em 1995, o tema gerenciamento de riscos apresenta um grau de incipiência bastante elevado dando origem a práticas arcaicas tanto nas empresas de energia de capital privado quanto de capital público. Ao levarmos em consideração o grau de alavancagem que se permite dentro deste mercado, os riscos atrelados às más práticas são, necessariamente, maiores que aqueles observados no mercado financeiro. Há uma disseminação grande de métodos importados de outros mercados de energia mundo afora, ou importados do mercado financeiro nacional. Esta prática não parece ser adequada. A hipótese central trabalhada, nesta tese, é a de que os modelos de gestão de risco de mercado presentes no setor elétrico brasileiro são insuficientes para a sustentação das empresas, pois, distorcem o real risco envolvido nas operações. Cria-se, então, a necessidade de se desenvolver uma metodologia alternativa, adaptada às peculiaridades do Brasil. Com uma metodologia mais acurada na apuração dos riscos evitam-se elevações bruscas de riscos, de mercado e de liquidez, nos diversos portfólios de indústrias que são consumidores livres, comercializadores e PIEs. Assim, auxiliam-se os agentes que podem potencializar inadimplências tanto dentro quanto fora do ambiente de liquidação financeira da CCEE(Câmara de Comercialização de Energia Elétrica). 19 20 Busca-se a geração de uma hipótese alternativa que é a negação de simples métodos ou métricas, que têm um fim em si mesmo. E sim, de alcançar uma coleção de procedimentos, métricas e ações que tornem o cálculo do VaR (Valor em Risco) mais verossímil. O tratamento do risco de liquidez impacta diretamente o risco de mercado. Isto faz com que um VaR calculado seja ajustado por este risco. Parece, enfim, um reflexo mais realista do que se pode perder ao final de um efeito “dominó”. O setor elétrico brasileiro pede uma análise exaustiva de seus processos de gestão de risco de mercado e liquidez, baseando-se, efetivamente, em cotações que são reais e apregoadas. Mesmo em cenários de baixa liquidez, muito ao contrário do que correntemente se vê: métricas que se utilizam de números ou valores que são abstrações, como o CME (Custo Marginal de Expansão) ou tarifas das distribuidoras de energia elétrica que não serão o real custo de oportunidade a que os membros do ACL (Ambiente de Contratação Livre) concorrem. Afinal, a condição de retorno ao ACR (Ambiente de Contratação Regulada) pelos consumidores livres e especiais em prazos, de aceite obrigatório pelas distribuidoras, não são inferiores a 5 (cinco) anos. 1.1 Estrutura do Trabalho O estudo ora apresentado tem seis capítulos onde a ordem lógica dos capítulos busca seguir da teoria geral relacionada à gestão de risco até aos casos aplicados para as simulações que ilustram as conclusões finais. O presente capítulo descreve, brevemente, a linha de condução da investigação e raciocínio que permeia a tese inteira. O capítulo 2 versa sobre como funcionava o setor elétrico antes do mercado livre: como foram os padrões de financiamento e expansão ao longo dos anos, chegando aos meados dos anos 90, que foi a data da pedra fundamental do mercado de energia no Brasil. São explorados quais foram os caminhos que a Agência Reguladora e o Poder Concedente buscaram para fazer com que o mercado livre se configurasse, chegando até o estágio atual. O marco do racionamento foi crucial para a sua expansão substancial. O capítulo descreve como era o mercado livre no período antes do racionamento de 2001 e 2002, e de que forma seguiram-se os anos posteriores. Esta contextualização histórica cria a base para sabermos o passo a passo. 21 Depois da localização no tempo e no espaço, as conjunções que criaram o arcabouço do mercado livre, para onde migraram os players, buscando uma economia maior ou um retorno maior para suas atividades, vieram, logicamente, os riscos atrelados. Pois, se há retornos extraordinários, também há riscos extraordinários. Os agentes sabiam como lidar com os exitosos retornos. Entretanto, como explicar as oscilações de preços para o comando das empresas? Assim, vieram as crises. No capítulo 3, citamos uma vasta gama de crises, que se deram no Brasil e no mundo, originadas por más políticas de gestão de riscos ou comportamentos negligentes de gestores e empresas que internalizaram riscos que não sabiam como tratar. Revelar casos clássicos de fracassos é necessário para que as áreas de gestão de risco saibam como e o que não devem fazer, seja em tempos calmos, seja em tempos de crises que, normalmente, trazem volatilidade aos mercados. No capítulo 4, discutimos o conceito de risco, no seu sentido estrito e no seu sentido lato. Descrevemos quais os riscos mais presentes no setor elétrico e se são exclusivos da energia elétrica no Brasil ou são parte de todos os mercados que são livres e se permite que a volatilidade nos preços. A conceituação é vital para que construamos a hipótese central da tese de que a forma como se tratam os riscos no mercado de energia do Brasil distorce, subestimando, geralmente, ou superestimando, os reais riscos incorridos, propagando bancarrotas e insolvência devido à não sustentação de suas condutas pelo patrimônio da própria corporação. A parte principal da tese que aqui é formulada. A hipótese da má condução e dos métodos ultrapassados de gestão de risco no mercado de energia do Brasil foi examinada. Veremos que métricas, tecnologias ou metodologias não estão adequadas ao setor elétrico. Uma reestruturação da política de risco e do comitê de risco das empresas é requerida. É imprescindível para a adequação da boa gestão ao nosso mercado a utilização de uma sequência de rotinas que permitirá entender a compatibilidade dos prejuízos potenciais frente ao balanço da empresa. Não apenas a capacidade técnica valerá, mas, igualmente, o bom senso dos gestores para interpretar os resultados em perspectiva. Foi elaborada uma hipótese alternativa que revela uma série definida de variáveis e uma metodologia a ser seguida pelas áreas de gestão de risco, mas nunca as dissociando do que se chama de “cultura de gerenciamento de riscos”, a ser disseminada dentro da cadeia produtiva. 22 No capítulo 5, temos a explanação sobre o conceito do risco de liquidez e como a literatura o trata. Uma ponderação sobre a subestimação deste risco nos mercados internacionais e nacional é feita. Algumas medidas para apreçá-lo são colocadas para que uma comparação seja permitida. A partir destas mensurações, apresentamos os resultados de simulações realizadas com dados reais de mercado e os impactos causados pelas distorções das métricas ou metodologias que são utilizadas correntemente, com alta proliferação, pelas empresas que compõem o setor elétrico dentro do Brasil. A falta de cultura de “gestão de riscos” somada a maus entendimentos sobre as metodologias que devem ser aplicadas acaba por culminar em falhas das empresas, em termos individuais. A somatória destes eventos impacta a coletividade. Pode chegar a atingir elevado grau de inadimplência, como os que chegaram a ocorrer na CCEE, comumente, ultrapassando os 50% do montante financeiro liquidado. Finalmente, as conclusões finais estão no capítulo 6, onde buscamos fazer uma conexão entre o surgimento do mercado livre de energia elétrica no Brasil, a origem dos riscos, e como, se geridos de modo proativo e atento, levarão os agentes de mercado para um comportamento desejável, em termos de gestão; e se, geridos de forma reativa, displicente ou não geridos, levarão a totalidade do mercado para uma posição menos exitosa. 23 2 MERCADO LIVRE DE ENERGIA E OS PRIMÓRDIOS DAS OSCILAÇÕES DE PREÇOS 2.1 Origens O setor elétrico brasileiro experimentou uma abertura e liberalização na data de 8 de julho de 1995, com a lei 9074. Esta lei criou a figura do consumidor livre, e do produtor independente de energia e deu início a uma desverticalização do setor elétrico nacional, fazendo com que as atividades de geração, distribuição e transmissão fossem fragmentadas, não podendo permanecer sob a tutela de, apenas, uma empresa. A partir da desverticalização, fez-se com que concessões de distribuição e transmissão fossem admitidas, regulatoriamente, como monopólio natural, tornando-se, por isto, monopólios legais. Portanto, faria jus, para exercício das suas atividades, a concessão de suas atividades pela União Federal. Desta forma, apenas uma empresa poderia exercer tal atividade, a partir de concessão feita pelo governo federal, em uma área territorial. Com o advento do “monopólio legal”, a competição não foi permitida nesta parte da cadeia da indústria da energia elétrica, de forma similar ao que ocorreu na grande maioria das reformas dos setores elétricos mundo afora. Por outro lado, para as figuras do PIE ou consumidor livre, a competição passou a ser permitida, e posteriormente, estimulada. Os agentes ligados às atividades de geração de energia elétrica, fossem PIEs ou geradores de energia de origem de capital estatal da esfera municipal, estadual ou federal, mediante processos de licitação,poderiam participar de concorrência para disputarem contratos de venda de energia para os consumidores livres ou, também, consumidores especiais. Os últimos tinham o limite inferior para sua ida ao mercado livre, que permanece até hoje, da demanda contratada de 500 kW. No início, até o ano de 2002, não houve uma disseminação da figura do consumidor livre no mercado de energia, tendo ocorrido um número pequeno de adesões. 24 Figura 1 Crescimento de Agentes na CCEE Fonte: CCEE (2013) Em termos de carga no segmento “mercado livre”, a expansão maior foi ocorrer entre 2003 e 2005, devido à queda dos preços que houve o contexto de sobra conjuntural de energia após a mudança dos hábitos de consumo provocada pelo racionamento, decretado pelo MME (Ministério de Minas e Energia), em junho de 2001, que se estendeu até fevereiro de 2002. A carga total do SIN (Sistema Interligado Nacional) despencou, fazendo com que houvesse sobra, momentânea, de energia elétrica que deveria buscar uma alocação mais eficiente sob pena de perdê-la. Os reservatórios das hidrelétricas estavam repletos e poder-se- ia verter água por tempo indeterminado dentro de estações do ano onde vertimentos eram incomuns. 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 jun/1 3 Comercializador 5 18 31 35 41 47 44 48 55 70 93 113 144 150 Produtor Independente 2 15 26 37 45 65 83 88 130 169 262 313 445 473 Gerador 15 19 19 20 20 22 27 30 29 28 28 31 32 36 Consumidor Especial 0 0 0 0 0 0 0 0 194 221 455 587 985 1123 Consumidor Livre 0 0 0 0 34 470 613 684 459 445 485 514 592 613 Autoprodutor 0 3 8 11 11 14 15 21 24 28 34 41 41 44 Distribuidor 35 39 41 42 42 43 43 43 43 45 45 46 47 45 Total 57 94 125 145 193 661 825 914 934 1006 1402 1645 2286 2484 0 500 1000 1500 2000 2500 3000 N ú m er o d e A g en te s 25 Figura 2: Carga em MW médios Fonte: ONS (2015) Desta forma, o principal incentivo à migração de empresas para o mercado livre foi dado pela queda dos preços. Houve empresas que economizaram 80% da quantia gasta com a conta de energia comparativamente ao mercado cativo. A primeira grande explosão de migrações para o mercado livre aconteceu nos anos pós-racionamento. Sendo que, via de regra, as empresas que buscaram estas economias foram as maiores, normalmente, com demanda contratada acima de 3 MW. E como previa a lei 9074/1995, qualquer possibilidade de retorno com obrigatoriedade da distribuidora local aceitar o consumidor livre, novamente, debaixo de sua carga como consumidor cativo, atingiu o prazo de 5 anos, caso dos que tinham demanda igual ou superior a 3 MW (para os que tinham demanda entre 0,5 a 3 MW, ligados em tensão igual ou inferior a 69 kV, o prazo era de 180 dias para retorno). A figura do consumidor livre vem ganhando força a cada ano desde a publicação da lei citada no parágrafo anterior. No entanto, de 1998 a 2001, não houve tanto interesse porque, segundo Kelman et alii (2001), os Contratos Iniciais cobriam quase 100% da energia necessária às distribuidoras, não havendo sobras nas geradoras. Este excesso se configurou em 2002, no período pós-racionamento. Com a presença de sobras de energia no sistema, já em MW médios 26 2002 e a descontratação compulsória dos Contratos Iniciais, a partir de 2003, os preços da energia no mercado livre despencaram. A potencialidade em reduzir custos com energia atraiu empresas dos mais diversos ramos da economia. O consumidor se habituou a economizar energia, inclusive, através da compra de lâmpadas energeticamente mais eficientes. O preço da energia no mercado livre encontrava-se em níveis muito baixos, muito aquém dos preços dos Contratos Iniciais. Consequente e aparentemente, tratava-se de um excelente negócio “arriscar-se” em prol de significativas economias de custo. Porém, o grande causador do excesso “artificial” de oferta de energia elétrica foi o racionamento, que teve sua origem na retração dos investimentos na expansão da geração no sistema energético brasileiro a partir da troca do padrão de financiamento, como veremos adiante. Desde os meados do século XX, e mais, significativamente, nos anos 70 e início dos 80, o Estado foi o grande empreendedor de recursos destinados à expansão do sistema elétrico brasileiro, especialmente, no setor de geração. No final dos anos 80 e durante os anos 90, o financiamento estatal se esvaiu, sendo que o Estado se colocou numa postura de mero fiscalizador do setor elétrico. Tratou-se de criar um ambiente atrativo aos investidores privados para que promovessem as inversões necessárias ao setor. Para a estratégia do capital privado, o ambiente criado não foi exatamente propício às exigências. Desta forma, houve insuficiência de financiamento privado, principalmente, no que tange à geração de energia. A inibição de investimentos foi tão decisiva, que houve a decretação do racionamento em junho de 2001. O equilíbrio de mercado foi buscado através de uma depressão de demanda por energia, daí, buscarmos a cognominação de método “artificial”. Apesar do avanço, várias lacunas regulatórias não haviam sido preenchidas. Os geradores federais agiam de uma determinada forma ao vender energia para o mercado livre, os geradores estaduais agiam de outras formas. Não havia uma normatização que obtivesse transparência suficiente para que as empresas públicas, maiores detentoras dos parques de geração de energia no país, disponibilizassem parte de sua garantia física para o mercado livre, auxiliando no processo de incremento de competitividade para o parque industrial brasileiro. Para que se vislumbre o tamanho da importância do parque gerador estatal em relação ao restante do parque privado brasileiro, ANEEL (2015), entre as 10 maiores geradoras de energia 27 do país, aproximadamente 73% da potência instalada está nas mãos da união, ou de governos estaduais, tais como as empresas CESP, CEMIG e COPEL. 2.2 Avanço com a Separação dos Ambientes de Comercialização A partir da lei 10.848 de 15 de março de 2004, e sua regulamentação com o decreto 5.163 de 15 de julho de 2004, vieram os marcos que livraram os graves entraves regulatórios que atrapalhavam a evolução do mercado livre. Antes, muitos participantes estatais não tinham seu papel claramente definido em termos de regulação. Pairavam dúvidas de como deveriam praticar as vendas para o potencial consumidor livre e, se, o podiam fazer. Foram criados o ACR, o ACL e os papéis das distribuidoras, PIEs, geradores, comercializadores, transmissores foram, devidamente, esclarecidos. A expansão da oferta de energia ganhou uma regra através dos Leilões de Energia Nova (A-3, A-5) que permitiram investidores conseguissem enxergar regras estáveis e taxas de retorno aceitáveis para os investimentos de longo prazo que pretendiam fazer na geração de energia no país, independentemente, da fonte que idealizavam adentrar. 2.3. Padrão de Financiamento Estatal no Setor Elétrico Brasileiro 2.3.1. Anos 70 O modelo estatal de gestão dos ativos de energia elétrica no Brasil foi um modelo bastante eficiente do ponto de vista da expansão da oferta. Este modelo vigorou, principalmente, nos anos 70, onde o país crescia a taxas anuais de 10% e houve a opção do governo militar de empreender a geração de energia, principalmente, proveniente de fonte hídrica. No período que antecedeu ao ano de 1973, data do primeiro choque do petróleo, o desenvolvimento brasileiro, seguiu o padrão mundial da “Petro-Prosperidade”. Apesar de não corrigir a rota no que tange ao consumo intensivo de petróleo, o governo brasileiro optou pela hidroeletricidade como sustentáculo para o crescimento econômico das décadas seguintes. De acordo com Bielschowsky (1997), o modelo funcionou como “uma máquina autônoma de acumulação de capital”. Houve investimentos estatais de grandeporte que não vislumbravam período de retorno de capital ou riscos atrelados. As fontes para este padrão de financiamento foram, essencialmente, quatro: 1. Autofinanciamento 2. Aportes fiscais 28 3. Poupança privada 4. Empréstimos Externos 2.3.2. Anos 80 A partir de 1983, houve uma crise de liquidez internacional. O Brasil encilhou-se com uma moratória e houve uma redução, em termos reais, significativa das tarifas de energia elétrica. A expansão da oferta de energia iniciou seu arrefecimento. O financiamento internacional tornou-se negativo. O único expediente restante que viabilizou alguma expansão foram os investimentos feitos com capital de inadimplência junto a fornecedores, prestadores de serviço e empreiteiros. Tabela 1: Status das fontes de financiamento ao longo dos anos (valores em %) Fonte: BNDES (2014) Anos Poupança Setorial Própria Poupança Pública Poupança Privada Poupança Externa Capital de Giro Investimento 1970-82 30 32 24 27 -13 100 1983-89 -21 88 14 -3 22 100 Em suma, o padrão de financiamento estatal já havia se esgotado, mas não dava mostras de exaustão devido à rolagem da dívida estatal e as inadimplências generalizadas no setor. No entanto, dado o cenário, a insustentabilidade estava instaurada. 2.3.3 Padrão de Financiamento Privado no Setor Elétrico Brasileiro Houve um grande encontro de contas no início dos anos 90 para iniciar-se um financiamento que tivesse participação prioritária do capital privado, dada a impossibilidade de financiamento público. A tarifa “universal”, única para todos os estados, foi extinta. E as novas tarifas passaram a obedecer à lógica econômica com valores para cada região. O índice de inadimplência no setor foi forçosamente colocado abaixo. Havia que se demonstrar transparência e credibilidade para contar com o aporte de capital privado. A sustentação do plano de expansão da oferta foi seriamente comprometida, pois, mesmo com o saneamento das contas do setor, o capital privado viu-se receoso em fazer qualquer tipo de empréstimo ou inversão. Sem financiamento privado ou continuidade da 29 expansão via governo, uma crise de abastecimento passou a ser questão de tempo. A tabela 2 demonstra, claramente, o comprometimento do investimento na área de energia, a partir dos anos 70. Tabela 2: Investimento na área de energia, a partir dos anos 70 Fonte: Eletrobrás(2014) 1971-80 1981-90 1991-93 1994-96 1997 Investimento em R$ de 1996 (bilhões) – médias anuais 10,7 12,6 8,3 5,0 5,0 Investimento como % do PIB – médias anuais 2,1 1,5 0,9 0,6 0,6 Adição média anual de capacidade (GW) 2,0 2,5 1,1 1,8 2,0 2.3.4 Desequilíbrio “Forçado” de Mercado e Preços em Queda Livre Dado ser de ordem estatal todo o histórico de formação de capital no setor elétrico e que, no momento, em que se propõe ao capital privado a sua inserção para esta prática, a partir de meados dos anos 90, não havia regras claras para vendas no longo prazo ou, para poder oferecer recebíveis de boa qualidade para os bancos fomentadores, como o BNDES. Mesmo com uma série de concessões que foram feitas para sua entrada na área de geração, a participação foi restrita aos leilões de privatizações que houve nos meados dos anos 90. E foram as distribuidoras os focos centrais deste capital. Apenas algumas geradoras saíram das mãos do governo (seja estadual ou federal): a CESP vendeu para a CESP Tietê para o grupo americano AES, vendeu a CESP Paranapanema para o grupo americano Duke Energy e o grupo Tractebel arrematou, em um dos leilões, o parque gerador da Gerasul. O racionamento de 2001 poderia ter ocorrido muito antes, pois, o padrão de financiamento já havia esgotado suas possibilidades e a expansão da geração não foi o suficiente para atender a demanda por energia do país. A transmissão e a geração de energia foram os 30 segmentos mais fragilizados neste período de transição. Assim, ficou-se à mercê de uma estação de baixa hidrologia, que foi a que ocorreu entre os anos de 2000 e 2001. Com a redução forçada da demanda por energia, buscava-se um equilíbrio de mercado perdido. O racionamento mudou hábitos dos consumidores e criou uma preocupação maior com a questão da eficiência energética. Obviamente, o impacto não se deteve aquele momento e provocou uma redução no consumo que transcendeu o período de racionamento (entre junho de 2001 e fevereiro de 2002). O contexto de sobra conjuntural de energia foi inevitável, principalmente, levando- se em conta o cenário de recessão econômica que se assolava o país, que colhia os frutos da falta de liquidez do sistema financeiro internacional proveniente das crises da dívida argentina e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. O Brasil não teve o crescimento esperado e o descolamento positivo entre oferta e demanda de energia provocaram uma queda acintosa dos custos marginais de operação do sistema. O custo marginal de operação do sistema é o principal indicador para os preços de energia no mercado de curto prazo. O preço MAE (Mercado Atacadista de Energia), à época, hoje PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), que é calculado a partir deste custo, variou de R$ 684 / MWh no início do período de racionamento até o seu valor mínimo (pagamento de O&M das usinas) de R$ 4,00 / MWh em questão de semanas, após fevereiro de 2002. Sendo assim, toda a perspectiva de preços para os anos subsequentes foi revisada pelos players de mercado, para baixo. Este foi o momento ideal para que os compradores agissem e efetuassem suas compras de blocos de energia, via contratos bilaterais, para o suprimento até onde as expectativas delineavam que as curvas de oferta e demanda de energia voltariam a se encontrar. 31 Figura 3: Valor PLD em R$/MWh Fonte: CCEE (2013) A data representativa para a certeza de que os preços estavam definitivamente muito abaixo do esperado foi o dia 19 de setembro de 2002, quando foi realizado o primeiro leilão de venda de energia das geradoras federais. Apenas comercializadores, distribuidoras e consumidores livres poderiam participar, na ponta de compra. Certamente, poder-se-ia pensar que os todos os consumidores iriam aproveitar aquele momento de energia barata, fossem cativos ou livres. Definitivamente, não foi o caso. Era permitido às distribuidoras (as únicas que poderiam ter consumidores cativos) que repassassem às tarifas exatamente o valor de compra desta energia. Portanto, não havia incentivo econômico nenhum para que tal fosse feito, além do que, o efeito do racionamento fez com que suas respectivas cargas agregadas fossem rebaixadas, criando um contexto onde a energia consumida era menor que a energia contratada frente aos geradores. O contrário ocorreu com os comercializadores e consumidores livres, a compra poderia ser direta e caso houvesse interesse em revenda, o preço seria livremente acordado entre as partes. O resultado final do leilão foi que a conjuntura de sobra de energia era tão contundente que apenas 30% dos lotes foram vendidos e, principalmente, para os vencimentos de suprimento mais próximos (no caso, dezembro de 2004 e dezembro de 2006). Os preços, em termos correntes, de aproximadamente R$ 58 / MWh para o período de suprimento quatro anos, 0 100 200 300 400 500 600 700 n o v /1 2 ju n /1 2 ja n /1 2 a g o /1 1 m a r/ 1 1 o u t/ 1 0 m a i/ 1 0 d e z /0 9 ju l/ 0 9 fe v /0 9 s e t/ 0 8 a b r/ 0 8 n o v /0 7 ju n /0 7 ja n /0 7 a g o /0 6 m a r/ 0 6 o u t/ 0 5 m a i/ 0 5 d e z /0 4 ju l/ 0 4 fe v /0 4 s e t/ 0 3 a b r/ 0 3 n o v /0 2 ju n /0 2 ja n /0 2 a g o /0 1 m a r/ 0 1 o u t/ 0 0 m a i/ 0 0 d e z /9 9 ju l/ 9 9 SE/CO 32 foram aquém dos preços reajustados dos Contratos Iniciais, que estavam por voltade R$ 66 / MWh. Isto reforçou as expectativas de preços mais baixos para anos vindouros. Estimava-se, à época, que 70% do parque gerador brasileiro estavam nas mãos do Estado, consequentemente, a energia associada a esta capacidade seria majoritariamente estatal e, oriunda do padrão de financiamento originário dos anos 70 (caso do sistema Eletrobrás). Dada à característica da matriz energética brasileira, naquele ano, de 92% de fonte hidráulica e sem a possibilidade de estocar energia, os preços, se já estavam despencando, tinham a previsão de cair ainda mais. Como se fora numa bolsa mercantil, o “comportamento de manada”1, era esperado. Só demorou a ocorrer porque o Estado, como próprio gestor das geradoras, tropeçou nas previsões e no planejamento, teve a percepção de venda tardiamente. Num contexto em que a cada mês os compradores se propunham a pagar menos pela energia e acabou por comprometer, severamente, o fluxo de caixa futuro das empresas. Isto ocorreu porque, ao sabor da “manada”, se o preço de mercado está caindo, o interessante é que se minimizem prejuízos e que sejamos um dos primeiros a vender. Não foi o que aconteceu. Se houve uma postergação do problema, com as empresas estatais buscando auxílios como no passado, a lógica que passou a reger o financiamento do setor é a econômica e não beneficia a inação. Desde então, depois que os consumidores livres tiveram a permissão legal (Lei 10.848 de 15 de março de 2004) de realizarem seus próprios leilões e obter a participação das geradoras federais e estaduais, os preços foram mais baixos. Por exemplo, para o ano de 2005, o preço praticado foi por volta de R$ 45 / MWh, sendo que, comparativamente, o preço dos Contratos Iniciais era de R$ 66 / MWh. 2.3.5 Último ciclo Nos últimos dez anos do ciclo tem havido um grande distanciamento entre os ambientes do ACL e ACR. O poder concedente entendeu que a expansão dar-se-ia, fundamentalmente, através do ACR, por intermédio dos leilões de energia nova (A-3, A-5, por exemplo). A carga 1 Jargão dos mercados financeiros onde um agente participante passa a adotar a estratégia de copiar as ações da maioria dos agentes no mercado. 33 estimada do ACL no SIN está em torno de 27% da carga, sendo que o ACR ainda responde ao valor de cerca de 73%. Desde 2008 para cá, as cargas de migração maiores são oriundas de consumidores especiais, cuja demanda contratada situa-se na faixa de 0,5 a 3 MW. Trata-se de consumidores que tinham uma carga menor e esperaram o movimento inicial das empresas de grande porte para que, mimeticamente, fizessem o mesmo. Conforme Birnbaum et al (2002), a ideia da evolução do mercado livre, tanto no Brasil quanto internacionalmente, deve partir da comparação com o sistema anterior regulado, em que as autoridades passavam os custos das danosas reservas de capacidade para os consumidores de modo arbitrário e forcado. O resultado sempre era um excesso de capacidade, gerado pela ineficiência, bem como, muitas vezes, preços altos. Em muitos mercados, a retirada do excesso de reserva e a melhor gestão induziram a preços mais baixos. 34 Tabela 3: Síntese sobre principais eventos históricos, padrão de financiamento e impactos na liquidez e risco Evento Padrão de Financiamento Vigente Flexibilidade de Preços da Energia Elétrica no Atacado Impactos na Liquidez do Mercado e Riscos Década de 70: Expansão do parque hidrelétrico com grandes projetos (Itaipu, Tucuruí). Empresas estatais nacionais, com amplo crédito de bancos internacionais. Forte controle estatal, tarifas como instrumento de controle inflacionário. Mercado totalmente regulado com oferta de crédito no início do período e deterioração ao final. Grande engessamento do mercado, falta de liquidez e contratos fixos de longo prazo. Primeira Reforma do SEB (1995-1997) Privatização de boa parte do setor: maioria das distribuidoras e algumas geradoras hidrelétricas com aporte de investidores e financiamento via BNDES Preços livres após liberação dos contratos iniciais. Início da introdução da liquidez no mercado de energia elétrica, porém, sujeita à transição institucional, muitos riscos associados à evolução regulatória. Pós-crise de 2001 Flexíveis e baixos, refletindo sobra conjuntural de energia, induziram o movimento dos grandes consumidores ao ACL. Alta liquidez, com migração constante de consumidores eletrointensivos ao ACL. Pouca oscilação. Risco mais baixo. Período Inicial do Novo Modelo (2004- 2007) Investimento de empresas privadas de capital nacional, com financiamento do BNDES, inclusive com participação acionária. Bastante flexíveis. Os preços do atacado incentivaram uma migração dos consumidores ao ACL Continuidade de alta liquidez. Permanência de migrações e negociações de grande montante no ACL. Preços baixos com volatilidade não tão alta. Último ciclo (2008 até hoje) Capital estrangeiro investindo, principalmente, fundos de private equity, com financiamento do BNDES. No início do ciclo, investimentos maciços; ao final do ciclo, investimentos escassos. Nem tão flexíveis com recorrentes intervenções governamentais como redução do teto do PLD em 2014, ou redução artificial de tarifas (MP 579). Diminuição da liquidez, principalmente, com elevação da volatilidade com o PLD atingindo patamares elevados como em janeiro de 2008 e ano de 2014. 35 3 ERROS E CASOS CLÁSSICOS NA GESTÃO DE RISCO Mais do que em outras áreas do conhecimento, o aprendizado com os erros do passado deve ser recorrentemente revisitado e alinhado com todas as áreas dos bancos e empresas que se envolvam com os mercados no mundo. Como citam Deng e Oren (2006): “Uma exposição incontrolada aos riscos de preços de mercado pode levar a consequências devastadoras para os participantes do mercado nesta indústria reestruturada ligada à eletricidade”. Se há constantes ondas de quebras com ativos que têm volatilidade em torno de 15% ao ano, como o câmbio, há que se importar com os contratos ligados à eletricidade, que, como afirmam os autores acima, sofrem o efeito dos atributos físicos únicos ligados à produção deste tipo de energia. Para ilustrar o grau da dimensão da volatilidade do ativo eletricidade, Birnbaum et al (2002) destacam que não apenas a incapacidade de estocagem, mas também, a impossibilidade de substituição da energia elétrica, no curto prazo, gera o cenário de risco elevado. Lembram, ainda, que mesmo com apenas 80 a 85% da capacidade tomada, ou seja, com algum grau de ociosidade, os preços podem ser levados a subir repentinamente. Mercados com alta volatilidade podem fazer proliferar eventos de baixa probabilidade e de alto impacto, comentados na publicação de “The Black Swan” ([Taleb (2007)]. No “Cisne Negro”, Taleb (2007) conta que os cientistas não faziam ideia da existência de cisnes negros no mundo. Apenas os descobriram no ano de 1697, na Austrália, e a descoberta, hoje em dia, nos parece óbvia. O fenômeno “cisne negro” é apenas uma ilustração de eventos que eram, absolutamente, estatiscamente improváveis, e, de uma hora para outra, tornaram-se realidade. Ressaltamos alguns pontos que Taleb (2007) ilustra para que não caiamos, sistematicamente, nos graves erros que empresas e corporações fizeram. Há que se evitar: a. Se previr as situações extremas, administraremos o risco Trata-se de um erro vital. Porque se vimos apenas “cisnes brancos” durante toda a vida, não conseguiremos prever a existência de “cisnes negros”. E eles existem. Então a nossa capacidade de prevê-los é péssima. O melhor, neste item, é vislumbrar as eventuais consequências e inferir seconseguisse suportá-las em termos de orçamento ou, até mesmo, da perpetuidade da empresa. Uma oscilação muito grande de mercado, seja na oferta ou demanda por energia, num cenário de exposição de carteira, afeta em que proporção o patrimônio líquido 36 da empresa? Encaixa-se na política de perdas suportáveis pelos acionistas? Eles sabem disto? São algumas das indagações que devem ser respondidas prontamente. b. O passado explica o futuro A gestão de risco da empresa não pode ficar olhando para eventos, já ocorridos, o tempo inteiro. Não havíamos tido um racionamento de energia por muito tempo até os anos de 2001 e 2002. Após este período, nunca o PLD tinha alcançado valores superiores a R$ 500 por MWh antes de janeiro de 2008. Ao olharmos a série histórica do PLD, o valor médio num período de 12 meses jamais tinha superado os R$ 150 por MWh. De agosto de 2012 a julho de 2013, o PLD médio foi de R$ 254,63 para o submercado sudeste e centro oeste. Até o final da década de 80, o pior cenário vivido pela bolsa americana, foi de uma queda de 10% no dia. Numa tarde negra de outubro de 1987, a bolsa despencou 23%. Observar os desvios-padrões ou medidas estatísticas de posição, como as médias, ou medidas de dispersão como os tais desvios-padrões, não levam a grandes proteções ao patrimônio da empresa exceto em tempos de negociações típicas. No entanto, é exatamente em tempos atípicos que a insolvência se propaga com uma velocidade enorme. No caso específico do mercado de energia elétrica brasileiro, dado ao alto poder de alavancagem de empresas menores, e por se tratar de um mercado onde a liquidação é bilateral, a capacidade de contágio de uma eventual insolvência pode causar uma parada generalizada da liquidação. Como ocorreu no adiamento da liquidação financeira de janeiro de 2013, na CCEE, que até decisão da ANEEL, 45 dias depois, restou sem data definida. Efetivamente, só foi ocorrer em maio de 2013, fazendo com que as empresas buscassem, à época, preços inferiores ao valor do PLD daquele mês. Isto é, os agentes aceitavam ágio no preço final da energia em troca da certeza do recebimento. Eventos que estão nos extremos das caudas de distribuição de probabilidade são responsáveis por mudanças no status. De todos os riscos que corremos, menos de 1% causará prejuízos exorbitantes. Os eventos ligados à sociedade e à economia, diversas vezes são aleatórios: podemos falar de tipicidade de peso ou altura, mas não de tragédias ou sucessos típicos. c. Atenção aos contraexemplos 37 Aconselhar alguém a não fumar, a título de exemplo, é mais fácil e traz mais impacto que qualquer outro conselho sobre saúde. A gestão de risco funciona da mesma forma. Apesar de que, nas Ciências Econômicas, o que não é perdido, é, efetivamente, ganho; não é assim que os gestores de risco costumam se comportar. Eles ficam mais exultantes ao anunciar lucros do que divulgar que evitaram perdas bilionárias. Em geral, as empresas de energia, principalmente, tratam as áreas de risco ou os gestores de risco como seres que estão alijados dos centros de resultados ou de lucros. Comumente, são vistos como peças que existem apenas como justificativas de políticas de governança não implantadas com rigor ou fora da cultura extemporânea da empresa. Este tipo de visão e cultura corporativa são os principais alimentadores de sintomas que levarão ao desprezo das potenciais perdas que a empresa, e com elas, os acionistas, terão pelo futuro. 3.1 Casos Clássicos 3.1.1 Casos no Mercado de Energia Brasileiro No Brasil, ainda não há, nos mercados de energia, casos que são divulgados pela mídia não especializada, ou na literatura, senão nos tribunais de justiça, que tem acarretado ao longo destes últimos 10 anos, um número elevado de ações contra a CCEE e a ANEEL, como partes requeridas. Como na liquidação financeira da CCEE, os agentes credores do mês liquidado serão responsáveis pelos respectivos débitos dos agentes desligados, haverá uma diversidade de créditos com vários agentes que buscarão seus direitos, através de cobranças judiciais. Todavia, boa parte dos devedores decretou falência. Os processos têm se arrastado ao longo dos últimos anos. Não bastasse o setor elétrico se emaranhar numa série de regras e jargões que são desconhecidos pela grande maioria da população, os eventos de inadimplência, dada a característica de loss sharing do mercado e a cobrança bilateral, faz com que não haja transparência nos casos de quebra e insolvência. Estes advêm, principalmente, da gestão de risco de mercado e de risco de liquidez com má condução. Para entendermos melhor como se procede ao mecanismo de liquidação financeira da CCEE, vamos recorrer às Regras de Comercialização da CCEE, versão zero do ano de 2013: 38 “A liquidação trata da apuração dos valores monetários que constarão do mapa de liquidação financeira do mercado de curto prazo, e do rateio da eventual inadimplência observada nessa liquidação2”. Como se pode observar, a cada mês contabilizado e liquidado resta a possibilidade de que algum agente, que tenha ficado inadimplente por aporte de garantias, insolvência na compra de lastro no MCP (Mercado de Curto Prazo) ou, até mesmo contribuição associativa vir a ser desligado por decisão exclusiva do Conselho Administrativo da CCEE. Caso haja este desligamento, o agente insolvente torna-se devedor, em termos de direito e de fato, dos agentes que ficaram positivos. Ou seja, agentes credores que ficaram com energia excedente naquele determinado mês, valorada ao respectivo PLD buscarão seus direitos na justiça. Sob esta luz, temos que as ações de cobrança judicial, comuns nestes eventos de inadimplência, são coordenadas pela CCEE, porém, movidas como partes afetadas os agentes credores daquele mês. Figura 4: Inadimplência na CCEE Fonte: CCEE (2013b) 2 Grifo meu. 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% ja n /0 9 m a r/ 0 9 m a i/ 0 9 ju l/ 0 9 s e t/ 0 9 n o v /0 9 ja n /1 0 m a r/ 1 0 m a i/ 1 0 ju l/ 1 0 s e t/ 1 0 n o v /1 0 ja n /1 1 m a r/ 1 1 m a i/ 1 1 ju l/ 1 1 s e t/ 1 1 n o v /1 1 ja n /1 2 m a r/ 1 2 m a i/ 1 2 ju l/ 1 2 s e t/ 1 2 n o v /1 2 ja n /1 3 39 Como não poderemos nos utilizar de fatos acontecidos neste mercado, objeto da presente tese, migraremos para outros mercados; uma vez que não se pode analisar a evolução da gestão de risco, no Brasil e no mundo, sem prescindir da enumeração dos contraexemplos que possuímos. Para ilustrar a dimensão dos prejuízos que uma gestão de risco com má condução, buscaremos espelho em alguns eventos clássicos, que estão documentados, no mercado financeiro nacional e internacional. 3.1.2 Casos no Mercado Financeiro Nacional Um caso clássico de má conduta na gestão de risco de mercado ocorreu recentemente, na crise financeira de 2008. Velhas e novas lições puderam ser aprendidas. A crise de inadimplência que houve, principalmente no segundo semestre de 2008, adveio, em grandes linhas, de uma negligência que vários bancos e empresas tiveram com vários tipos de derivativos, que embora, os entendessem, não se fixaram, atentamente sobre o risco que eles embutiam nos seus respectivos portfólios. Estes derivativos foram considerados “tóxicos” e associados, diretamente, a ocorrência das catástrofes financeiras, segundo Lowenkron (2009). No Brasil, houve a presença dos CDOs (collateralized debt obligations) lastreados em derivativos de câmbio. Várias empresas, não financeiras, de cunho exportador, se envolveram. Dentre estas estavam Aracruz e Sadia. Reconhecidas, nacionalmente, como empresas abertas de grande responsabilidade gerencial e financeira. No entanto, concordaram num padrão de financiamento da sua produção para exportação que se comportavam dentroda seguinte operação: captavam a taxas efetivas de juros em preços abaixo do mercado, sempre que a cotação do dólar estivesse abaixo de um valor determinado. Caso contrário, o valor devido crescia proporcionalmente a cotação do dólar vigente. 40 Figura 5: Câmbio – Preço à vista Fonte: BCB (2012) Este tipo de negócio, claramente, embute o que se chama de venda de opção de compra de câmbio. Onde, as empresas não financeiras, se alavancavam com as taxas de juros menores que as do mercado, num contexto de estabilidade cambial. Mas, sempre há uma contrapartida: os juros menores eram descontados como um prêmio por uma opção de compra de câmbio, ou seja, o banco financiador comprava uma opção da empresa não financeira, cujo preço de exercício era o tal valor determinado da taxa de câmbio à vista e o prêmio era recebido pela empresa através dos juros reduzidos. Mesmo que as empresas envolvidas fossem, naturalmente, grandes receptoras de dólar, por seu caráter exportador, alavancaram as suas posições muito além do que seria um simples hedge. Segundo Lowenkran (2009), a perda financeira para Aracruz, foi de aproximadamente, US$ 2,1 bilhões frente a um fluxo de caixa operacional de R$ 1,4 bilhões antes da crise. Já para a Sadia, as perdas beiraram os US$ 2,5 bilhões frente a um fluxo de caixa semelhante ao da Aracruz. Fica claro que as empresas abandonaram uma posição de hedge para adotar uma posição especulativa. A tarefa do gestor de risco da empresa seria alardear o diretor financeiro, que, consecutivamente, faria o mesmo para o conselho de administrativo das empresas. Todavia, a questão do “resultado a qualquer custo” que parece negligenciar a gestão ponderada de risco fez com que o descasamento entre as quantias envolvidas nas operações financeiras e o fluxo operacional fosse ignorado. O desfecho da história foi a compra da Aracruz pela VCP (Votorantim Celulose e Papel) para que honrasse seus compromissos e evitasse uma falência quase imediata. E a Sadia foi comprada pela Perdigão, formando a Brasil Foods, pelo mesmo motivo. 0,50 0,70 0,90 1,10 1,30 1,50 1,70 1,90 2,10 2,30 2,50 2 /5 /2 0 0 8 1 3 /5 /2 0 0 8 2 3 /5 /2 0 0 8 3 /6 /2 0 0 8 1 2 /6 /2 0 0 8 2 3 /6 /2 0 0 8 2 /7 /2 0 0 8 1 1 /7 /2 0 0 8 2 2 /7 /2 0 0 8 3 1 /7 /2 0 0 8 1 1 /8 /2 0 0 8 2 0 /8 /2 0 0 8 2 9 /8 /2 0 0 8 9 /9 /2 0 0 8 1 8 /9 /2 0 0 8 2 9 /9 /2 0 0 8 8 /1 0 /2 0 0 8 1 7 /1 0 /2 0 0 8 2 8 /1 0 /2 0 0 8 6 /1 1 /2 0 0 8 1 7 /1 1 /2 0 0 8 2 6 /1 1 /2 0 0 8 5 /1 2 /2 0 0 8 1 6 /1 2 /2 0 0 8 2 6 /1 2 /2 0 0 8 7 /1 /2 0 0 9 1 6 /1 /2 0 0 9 2 7 /1 /2 0 0 9 5 /2 /2 0 0 9 1 6 /2 /2 0 0 9 2 7 /2 /2 0 0 9 1 0 /3 /2 0 0 9 1 9 /3 /2 0 0 9 3 0 /3 /2 0 0 9 C o ta çã o R ea l/ U S $ 41 De antemão, a exposição cambial desequilibrada das empresas seria capturada por um teste de estresse com cenários bem fundamentados. Supondo que isto foi feito, quais foram os erros cruciais da gestão de risco das empresas: a. O teste de estresse teve os cenários muito otimistas para um real “teste de estresse”? b. A presença de derivativos “tóxicos” não foi devidamente precificada pelos gestores de risco, e desta forma, assumiram comportamentos inesperados pela direção da empresa? c. Tudo foi corretamente executado, mas, o conselho da empresa desprezou a situação? Ao se deparar com um grau de complexidade muito elevado de determinadas operações, que, inclusive, não tiveram seus resultados e fatores de riscos decompostos de uma maneira correta, o efeito torna-se catastrófico para as carteiras no geral. No mercado de energia do Brasil, há um tipo de operação bastante comum, que é a venda de energia elétrica a um preço fixo, em reais por MWh. No entanto, neste derivativo de energia mais sofisticado, prevê-se que, caso o PLD fique acima de um determinado patamar, o preço deixa de ser fixo em reais por MWh e passa a ter um multiplicador de PLD, acima da unidade. Por exemplo, 120% do PLD. Trata-se de uma venda de contrato a termo com um gatilho para uma opção de venda de energia do gerador contra um consumidor livre ou comercializador. Comporta-se de uma maneira muito próxima aos casos de “derivativos tóxicos” que acabamos de contextualizar nos casos da Sadia e Aracruz. Se com uma cultura de gestão de riscos mais desenvolvida, exigidas por empresas de capital aberto, o prejuízo foi bastante significativo. Faz-se ideia do que mensurar sobre o mercado de energia no Brasil, no qual, tanto a metodologia de tratamento dos riscos, quanto a política de risco que é superveniente à metodologia, são precárias nas empresas. 3.1.3 Casos Clássicos do Mercado Internacional No que tange às crises nos mercados internacionais de energia, Deng e Oren (2006) fazem menção aos preços de energia que, no verão de 1998, chegaram no Meio Oeste dos EUA a US$ 7.000 / MWh fora das cotações normais que variavam entre US$ 30 – 60 causado pela quebra de dois grandes comercializadores da costa leste. Citam que em 2004, no Texas, houve 42 uma elevação súbita de preços por uma nevasca que levou um comercializador varejista à falência depois de ficar exposto aos preços spot. Escribano et al (2002) afirmam que os preços desregulamentados oriundos dos modelos liberalizados dos países que implantaram mercados de energia no mundo, através de competição na geração e suprimento de energia, são caracterizados pela extrema volatilidade dos preços. De fato, os países que apresentam mercados futuros, mercados de opções, tais como Austrália (Sidney Futures Exchange), Nova Zelândia (New Zealand Futures and Options Exchange), Escandinávia (Eltermin) e EUA (NYMEX), apresentaram este efeito. Pelo lado dos mercados financeiros internacionais, os Collateralized Debt Obligations (CDOs) também causaram um estardalhaço na crise financeira nos EUA em 2008. As perdas incorridas vieram com os derivativos de crédito. Além do aumento no grau de complexidade destes produtos, a excessiva alavancagem foi decisiva para que chegássemos a uma quebra quase generalizada de bancos e empresas na maior economia do mundo. O excesso poderia ter sido capturado e alardeado pelos gestores de risco. No entanto, não o fizeram, marcadamente em função da busca pelo “resultado a qualquer custo”. Toca-se no ponto em que as empresas ou bancos não podem submeter ou vincular uma área que pretende preservar o patrimônio líquido observando os mais diversos cenários que poderiam dilapidá-lo à outra área, cuja preocupação reside, exclusivamente, em alavancagem de operações e ingresso crescente de receitas. Há conflitos de interesses e não podem restar debaixo da mesma custódia. O mercado de crédito dos EUA é reconhecido pela dinâmica e complexidade. Nas últimas inovações, antes da crise, consumidores com um risco de crédito bastante elevado por causa de sua baixa capacidade de pagamento ou risco moral de inadimplência elevado, caracterizados como subprime, tiveram acesso a mecanismos de crédito interessante para as suas demandas imobiliárias, mas, nem tanto para o seu bolso. Sendo assim, os agentes financiadores securitizavam as quantias destinadas a compra das casas em ativos de crédito chamados de ABS (Asset-Backed Securities) lastreados nos recebíveis primários. O risco de crédito era examinado e se dividia as operações em várias subdivisões. Obviamente, as melhores, denominadas de seniores, tinham o risco mais baixo. Mas a busca pela liquidez era enorme. Assim, não se bastasse que apenas os melhores riscos de créditos fossem premiados pela expansão do crédito imobiliário, os riscos piores começaram a ter vazão. Assim, segundo Lowenkran (2009): 43 “No entanto, o processo de engenharia financeira não terminava aí. Tranches arriscadas (mezzaninas ou juniores) das carteiras de ABSseram reempacotadas em novas carteiras nela lastreadas. Novamente, eram divididas em N tranches com diferentes ordens de prioridade nos recebimentos de créditos. Criava-se, assim, um derivativo de crédito que ficou conhecido como CDO (Collateralized Debt Obligation), que era como um novo ABS agora estruturado em cima de cotas intermediárias do ABS original. O processo poderia continuar com as tranches mais arriscadas de uma carteira de CDOs sendo reempacotados como novo CDO. As cotas destes produtos com prioridade no recebimento de créditos e com muita estrutura de proteção ficaram conhecidas como super seniors tranches dos CDOs”. “Muita proteção”, junto com a existência do lastro das casas, parecia ser a garantia para a sustentação do boom imobiliário que ocorreu desde o ano 2000 até às vésperas da crise. As tranches seniores e super-seniores foram consideradas de baixo risco. Várias agências de rating atribuíram classificação AAA para estes produtos e várias seguradoras os asseguravam os CDOs através de CDS (Credit Default Swaps). E foram os CDOs e CDSs os principais atores das perdas bilionárias durante a crise. Em relatório do banco suíço UBS relatou que 66% das perdas teve origem nos CDOs. Para Lowenkran (2009): “As operações estavam no pipeline para serem securitizadas posteriormente, e, principalmente, operações proprietárias de carregamento de tranches super-seniores dos CDOs [...] o documento deixa claro que, na metodologia de cálculo de VaR, era fundamental a informação de que o ativo era considerado AAA. Como a volatilidade de ativos de crédito AAA era muito baixa, tais posições acabavam por contribuir muito pouco para o VaR e para o estresse. Portanto, vê-se que as métricas tradicionais para controle de risco acabavam não dando a devida atenção ao que verdadeiramente determinava o risco financeiro daquelas posições: o risco de crédito dos consumidores norte- americanos (subprime) e o preço das suas casas”. Desta forma, o erro em questão de um erro de modelagem e interpretação dos fatores de risco que colocavam todas as operações e suas precificações de um modo subestimado. O ponto inicial para que o efeito dominó se arrastasse foi a classificação AAA para os derivativos de créditos lançados sendo que o ativo-objeto tinha um risco elevado. O cenário se agravou quando os preços das casas começaram a desabar, provocando, uma elevada volatilidade. O lastro das operações perdeu valor e necessitava de mais casas para suportar o mesmo derivativo. Houve uma crescente venda de casas, com um efeito “manada”, para que 44 honrassem os contratos de financiamento fechados. Desta forma, com a renda se esvaindo, não havia compradores para as casas, destruindo a alavancagem que o mercado financeiro tinha dado ao setor imobiliário. O círculo virtuoso se rompeu, dando origem a uma liquidação de ativos. É um fato sintomático de todas as crises financeiras. 3.1.4 Analogia com o Mercado Brasileiro de Energia Elétrica Conforme abordado no início do capítulo, embora tenhamos presenciado vários eventos de falência e insolvência dentro do mercado de energia elétrica, os mesmos não foram divulgados de forma incontroversa para domínio público, sendo assim buscamos na literatura atrelada ao mercado financeiro os casos clássicos de negligência na gestão de risco. O mais comum são várias coleções de ações judiciais ou arbitragens que transitam e transitaram, mas, que não nos permite a transparência suficiente para que se tornem referência para o meio acadêmico. Apesar de haver indícios de gestão negligente de risco de mercado e risco de liquidez traduzidos por pessoas com muita experiência e vivência neste mercado além da revelação através de uma sequência de fatos estilizados que um gestor experiente de riscos, normalmente, consegue captar. As crises clássicas mais famosas no mercado financeiro têm como evento originador o comportamento humano. Nos mercados comuns, não lidamos com fenômenos naturais ou algo do gênero. Segundo Lowenkran (2009): “O comportamento dos agentes é endógeno e depende das condições vigentes no momento da tomada de decisão. Reconhecer isso é fundamental. Em condições anormais, como em face de grandes perdas, as circunstâncias mudam e consequentemente também mudam as ações e reações dos agentes envolvidos [...] a cauda da distribuição torna-se mais espessa e, assim, a hipótese da normalidade deixa de ser adequada, principalmente, quando se busca medir quantis muito elevados de uma distribuição”. O mercado de energia elétrica no Brasil tem uma particularidade: os preços não são gerados através da intersecção das curvas de oferta e demanda da energia elétrica e, sim, por um sistema de otimização, do ONS, que calcula qual será o CMO (Custo Marginal de Operação). Este processo cria uma instabilidade psicológica ainda maior aos participantes do mercado. Em mercados cuja geração dos preços se dá, normalmente, pela interseção entre a oferta e demanda, quando o agente tem perdas recorrentes, a tendência é que se zere a posição, 45 rapidamente, mesmo com perdas elevadas. Reforça-se esta ação ao se perceber que não há uma expectativa clara, com fundamentos, de uma reversão do quadro. Este cenário, de ausência de expectativas fundamentadas, para reversão de tendência é muito comum neste mercado brasileiro. Ilustra-se com a elevada inadimplência havida na CCEE desde meados do ano de 2012 até o momento da redação deste trabalho. A permissividade com a posição negativa de marcação a mercado é superior à dos outros mercados. Porque, como o sistema de despacho hidrotérmico calcula o CMO que formará o preço do mercado de curto prazo tem como variável explicativa crucial a previsão de vazão afluente nas bacias hidrográficas, faz com que os gestores das operações ou diretores das empresas esperem reverter a situação com a vinda de uma série abundante de chuvas, caso estejam vendidos nos contratos com vencimento mais à frente. Ou uma seca severa, caso estejam comprados. Esta postura menos austera na gestão implica em que a volatilidade elevada deste mercado impacte as carteiras e, num horizonte próximo haja uma insolvência grande. A grande lição que resta dos eventos das crises, em quaisquer mercados que sejam, é a de que se deve pensar quais são as efetivas consequências de permanecer nas posições perdedoras dentro da carteira. O dilema sempre é: “espero para tentar evitar o pior e reverter a posição ou realizo o enorme prejuízo agora? ”. Como no mercado de energia esta questão é mais presente porque, realmente, a vinda de eventos climatológicos diversos, geralmente, é suficiente para salvar posições perdedoras e torná-las, até mesmo vencedoras, a prática se torna ainda mais corriqueira. Por outro lado, em caso de agravamento do fenômeno em que houve a aposta, a probabilidade da inexistência de patrimônio líquido da empresa para honrar as perdas é alta. Enfim, a boa governança, que exige que os limites sejam respeitados e que modelos de gestão de risco e métricas sejam debatidos pelos analistas, é um grande início para uma gestão prudente de risco e distante das falhas que podem implicar numa liquidação. O papel humano do gestor para a tomada de decisão em zerar ou diminuir uma posição perdedora é o fundamento do acerto. Certamente, os mecanismos de monitoramento de risco, através de métricas e modelos, ajudam muito na extração de sinais úteis de mercado. Voltando aos exemplos do mercado financeiro, a Goldman Sachs detectou os movimentos absurdos diários de 25 desvios-padrão em alguns ativos da carteira durante a crise de 2008. Depois do alarme, foi o momento em que os executivos da empresa discutiram e decidiram reduzir, drasticamente, 46 as posições que tinham com os tais derivativos “tóxicos”. Esta cautela, mesmo que tardia, fez com que a Goldman Sachs permanecesse
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