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A CENTRALIDADE DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS: um olhar do assistente social sobre o trabalho com famílias na área da saúde Carmen Lúcia Nunes da Cunha1 Resumo Neste artigo pretendemos apresentar algumas reflexões sobre a forma como a família foi se constituindo ao longo dos tempos e as novas configurações familiares. Discutiremos a centralidade da família nas políticas sociais com ênfase na política de saúde. Partimos do pressuposto de que trabalhar com famílias exige do assistentes sociais competências ético- política, teórico-metodológica e técnico-operativa que possam disponibilizar recursos para uma intervenção capaz de oferecer respostas que superem a imediaticidade da situação apresentada. Palavras-chave: Famílias; Políticas Sociais; Serviço Social. Abstract In this article we intend to present some reflections about the way the family has been building up over time and the new family configurations. We will discuss the centrality of the family in social policies with an emphasis on health policy. We start from the assumption that working with families requires social workers to have ethical-political, theoretical-methodological and technical-operative skills that can provide resources for an intervention capable of offering answers that overcome the immediacy of the presented situation. Keywords: Families; Social Politics; Social Service. 1 Assistente Social, Especialista em Saúde da Família e Comunidade, Mestranda em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS, E-mail: carmenlncunha@gmail.com. mailto:carmenlncunha@gmail.com I. INTRODUÇÃO Sabemos que os assistentes sociais trabalham com famílias desde seus primórdios. Mas, conforme aponta Mioto (2010), nos anos 1990 este tema teve pouca visibilidade no Serviço Social se comparado à produção sobre política social e direitos sociais. Nos anos 2000 o tema volta a ser discutido categoria justamente quando a política social brasileira “no contexto da reforma do Estado brasileiro, induzida pelos ventos da ideologia neoliberal - passa a se estruturar dentro da proposta do pluralismo de bem-estar social, enfatizando amplamente a família” (MIOTO, 2010, p. 166). Na atualidade estamos acostumados a pensar na família como a responsável pelo cuidado de seus membros, mas ao olharmos pra trás veremos na história que não foi sempre assim, pois a instituição família e o cuidado de seus entres foi sendo construído ao longo dos séculos. No início aparecia como uma forma de manutenção das terras, das riquezas, dos bens adquiridos. Com o passar dos anos, com as transformações societárias e o estabelecimentos de novas necessidades passou-se a esperar da família que desse sustentação à sociedade capitalista transformando-se no principal responsável pelos seus membros, cobrindo desta forma as insuficiências das políticas públicas. II. POLÍTICAS PÚBLICAS, PROTEÇÃO SOCIAL E FAMÍLIAS O modo como a política pública incorpora a família vai se refletir na organização dos serviços de saúde e na organização do trabalho com as famílias no cotidiano dos serviços e programas. Teixeira (2012) destaca que a família ocupou um espaço secundário na conformação do Sistema de Proteção Social no Brasil no período de 1930 a 1980. Os serviços estavam dispostos a partir de “indivíduos-problemas” e “situações especificas”, como trabalho infantil, abandono, exploração sexual, delinquência, idade ou sexo, bem como para crianças e adolescentes, mulheres e idosos, dentre outros. Isso não contemplava a família como uma totalidade. Nesta lógica da assistência social estava a ideia de que as famílias pobres não tinham capacidade de criar, educar e proteger seus integrantes, “imperava o paradigma da incapacidade familiar e da institucionalização dos seus membros, como crianças, adolescentes, idosos e portadores de doenças mentais, dentre outros, considerados uma ameaça para a sociedade” (TEIXEIRA, 2012, p. 109). Como estas famílias “eram consideradas incapazes, por suas debilidades, desagregação conjugal e pobreza, dentre outros fatores, cabia ao Estado, nessas situações- limite, livrar seus membros dependentes dos riscos por via da institucionalização e do afastamento do ambiente familiar” (TEIXEIRA, 2012, p. 109). O que se observava naquela época, e ainda hoje, é que estas ações aprofundam o paradoxo entre a família idealizada e família real, vivida pelos pobres, chamadas de “desestruturadas”, pois não leva em conta os diferentes núcleos familiares. Histórica e culturalmente a família tem se colocado como um dos eixos de proteção social existente na sociedade, promovendo a sobrevivência de seus membros, fato que pode ser facilmente observado na literatura, onde (...) o grupo familiar aparece com dupla face, a de uma unidade econômica com dependentes e “chefes de família” que redistribuem renda e a de unidade “doadora de cuidados”, também a partir de redistribuição interna. Nele, da mulher-mãe se espera que seja a principal provedora de cuidados para seus membros, mantendo- se economicamente dependente de seu marido. Assim, supõe-se, por um lado, as responsabilidades do “chefe de família” com o sustento, e por outro lado, as da mulher com o cuidado. (MIOTO, 2003, p.169). Cuidado por parte da família que foi sendo construído ao longo dos séculos. Ao observamos os estudos de Ariès (2014), por exemplo, assistiremos ao nascimento e o desenvolvimento deste sentimento de família desde o século XV até o século XVIII. “Não que a família não existisse como realidade vivida: seria paradoxal contestá-la. Mas ela não existia como sentimento ou como valor” (ARIÈS, 2014, p. 191). O autor analisa em sua obra que o sentimento da família ligado a casa, ao governo da casa e a vida na casa não foi conhecido na Idade Média porque esse período possuía uma concepção particular de família: a linhagem. A linhagem era o único sentimento de caráter familiar conhecido na Idade Média, estendia-se aos laços de sangue, mas não levava em conta os valores nascidos da coabitação e da intimidade, pois a linhagem nunca se reunia em um espaço comum, em torno do mesmo pátio. Essa situação alterou-se a partir do século XVI quando a legislação real reforçou o papel paterno no que concerne ao casamento dos filhos. Enquanto se enfraqueciam os laços de linhagem, a autoridade do marido dentro de casa tornava-se maior e a mulher e os filhos se submetiam a ela mais estritamente. Esse movimento duplo, na medida em que foi o produto inconsciente e espontâneo do costume, manifesta sem dúvida uma mudança nos hábitos e nas condições sociais. Passara-se portanto à atribuir a família o valor que outrora se atribuía à linhagem. Ela torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico (ARIÈS, 2015, p. 146). O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos, uma nova afetividade que não era vivenciada séculos antes. “Os pais não se contentavam mais em pôr os filhos no mundo, em estabelecer apenas alguns deles, desinteressando-se dos outros” (ARIÈS, 2015, p. 195). “A família deixou de ser uma apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, e assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas” (ARIÈS, 2015, p. 195). A constituição de uma nova família, no século XV e XVI, devia-se a necessidade de manutenção da riqueza, das terras, dos bens; a esposa tinha a função de procriação e organizava e participava da vida social. As crianças não eram ligadas aos pais, como hoje, eram amamentadas por amas de leite e cresciam em torno da comunidade. A família burguesa no Brasil, conforme KEHL (2003) desenvolveu-se no início do século XIX, segundo escreve Maria Angela D’Incao na História das Mulheresno Brasil, na esteira da necessidade de civilizar nossa sociedade escravocrata, mestiça, luso-tropical. Ou seja, nasceu para fortalecer um núcleo de resistência contra as condições históricas formadoras da sociedade brasileira. Naquele período, o desenvolvimento das cidades e da vida burguesa influiu também na arquitetura das residências, procurando tornar o convívio familiar mais íntimo, mais aconchegante, o que significa: mais separado do tumulto das ruas e do burburinho da gente do povo. Esta tendência de fechamento da família sobre si mesma foi o início do que D’Incao chama de processo de privatização da família, marcado pela valorização da intimidade (KEHL, 2003, p. 2). A casa, segundo Rago (1985), era considerada um lugar privilegiado onde se formava o caráter das crianças e a “nova mãe” passou a desempenhar um papel fundamental no nascimento da família nuclear moderna. Ela era a responsável pela saúde das crianças e do marido, pela felicidade da família e pela higiene do lar, num momento em que crescia a obsessão contra tudo que possa facilitar a propagação de doenças (lixo, poeira, micróbios). (...) dois caminhos conduzirão a mulher ao território da vida doméstica: o instinto natural e o sentimento de sua responsabilidade na sociedade. Enquanto para o homem é designada a esfera pública do trabalho, para ela o espaço privilegiado para a realização de seus talentos será a esfera privada do lar. Tudo que ela tem a fazer é compreender a importância de sua missão de mãe, aceitar seu campo profissional: as tarefas domésticas, encarnado a esposas-dona-de-casa-mãe-de- família (RAGO, 1985, p. 74). Esta tendência de fechamento da família sobre si mesma foi o início do processo de privatização da família, segundo KEHL (2003), marcado pela valorização da intimidade, quando as famílias se retiravam do convívio caótico das ruas e cidades brasileiras, abriam suas casas para um público selecionado, um círculo restrito de parentes, amigos, alguns pretendentes, um ou outro político, capaz de atestar o sucesso de sua elitização e de seu branqueamento. Como explica Ariès (2014), a casa perdeu o caráter de lugar público que possuía em certos casos no século XVIII, em favor do clube e do café, que por sua vez se tornaram menos frequentados. A vida profissional e a vida familiar abafaram essa outra atividade, que outrora invadia a vida: a atividade das relações sociais. Nesta estrutura familiar a mulher cabia um papel bem definido, os cuidados domésticos e os cuidados com os membros da família; era a mantenedora da unidade familiar, aquela que cuida de todos. Na atualidade vivenciamos uma idealização da família “estruturada” com o objetivo de dar base e sustentação à sociedade capitalista. Esta nova concepção de família foi delineada na época de grande desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo econômico, quando entrou em cena a família nuclear burguesa. Esta é uma das concepções de família, a noção mais generalizada, e que se encontra ligada a ideia da família nuclear, onde a família é tratada “a partir de uma determinada estrutura tomada como ideal (casal com seus filhos) e com papéis bem definidos” (MIOTO, 2010, p. 168). Outra concepção é aquela onde a família é concebida apenas numa perspectiva relacional, ou seja, “onde as relações familiares estão circunscritas apenas às relações estabelecidas na família, seja no âmbito de seu domicílio, seja na sua rede social primária” (MIOTO, 2010, p. 168). Esta concepção, portanto, segue Mioto (2010), não incorpora como as relações estabelecidas com outras esferas da sociedade, o Estado, por exemplo, através de sua legislação, de suas políticas econômicas e sociais, interfere na história das famílias, na construção dos processos familiares que são expressos através das dinâmicas familiares. Consequentemente, “se contrapõe às concepções que tomam a família como a principal responsável pelo bem-estar de seus membros, desconsiderando em grande medida às mudanças ocorridas na sociedade” (MIOTO, 2010, p. 168) como as mudanças de caráter econômico, relacionadas ao mundo do trabalho e as de caráter tecnológico, além, sem dúvida, “das novas configurações demográficas, que incluem famílias menores, famílias com mais idosos e também das novas formas de sociabilidade desenhadas no interior da família” (MIOTO, 2010, p. 168). Entendemos que a família se constrói e reconstrói ao longo da história, assim como cotidianamente vem se construindo e reconstruindo através das relações que estabelece entre seus membros e entre seus entes e outras esferas da sociedade, como o Estado e o mercado, por exemplo. Portando, ela não é apenas uma construção privada, mas também publica e tem um papel importante na estruturação da sociedade em seus aspectos sociais, políticos e econômicos. E, nesse contexto, pode-se dizer que é a família que “cobre as insuficiências das políticas públicas, ou seja, longe de ser um “refúgio num mundo sem coração” é atravessada pela questão social (MIOTO, CAMPOS, LIMA, 2004, Apud MIOTO, 2010, p. 168)”. Observamos que o conceito de família foi sendo construído ao longo dos séculos e os laços familiares que foram socialmente reconhecidos criaram funções sociais, tais como a responsabilidade de apoiar e proteger todos os seus membros, expressas nas políticas sociais, como por exemplo, na Política Nacional de Assistência Social que identifica como função básica da família “prover a proteção e a socialização de seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado” (PNAS, 2004, p.29). Outro exemplo aparece no Estatuto do Idoso que determina a obrigação da família em assegurar ao idoso “a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária” (BRASIL, 2003, p. 1), e indica a “priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência” (BRASIL, 2003, p. 1). O trabalho dos assistentes sociais na saúde O assistente social na área da saúde atua na compreensão dos determinantes sociais, econômicos e culturais que interferem no processo saúde-doença e na busca de estratégias político-institucionais para o enfrentamento dessas questões, mediadas pelas competências ético-políticas, técnico-operativas e teórico-metodológicas. Neste contexto o profissional trabalha no atendimento direto aos usuários onde predominam as ações socioassistenciais, as ações de articulação interdisciplinar e as ações socioeducativas. Sabemos que estas ações não ocorrem de forma isolada, mas integram o processo coletivo do trabalho em saúde, sendo complementares e indissociáveis. No trabalho em equipe na saúde temos múltiplos saberes coordenados para a definição do melhor tratamento, qualificação da assistência, planejamento de alta e identificação dos recursos de saúde disponíveis no município de origem do usuário, buscando garantir uma assistência que “transcenda a prática curativa, contemplando o indivíduo em todos os níveis de atenção e considerando o sujeito inserido em um contexto social, familiar e cultural” (SOUZA Et al, 2012, p. 452). Neste trabalho, aponta Raichelis (2009), não se pressupõe abolir as especificidades dos profissionais, pois são estas diferenças que possibilitam a melhoria dos serviços prestados à medida que a especialidade permite o aprimoramento do conhecimento e do desempenho técnico em determinada área de atuação. Ao contrário do que muitas vezes se considera, o trabalho interdisciplinar demanda a capacidadede expor com clareza os ângulos particulares de análise e propostas de ações diante dos objetos comuns a diferentes profissões, cada uma delas buscando colaborar a partir dos conhecimentos e saberes desenvolvidos e acumulados pelas suas áreas (RAICHELIS, 2009, p. 15). Esta afirmação que vai ao encontro do que sustenta Iamamoto ao dizer que “tal perspectiva de atuação não leva à diluição das identidades e competências de cada profissão; ao contrário, exige maior explicitação das áreas disciplinares no sentido de convergirem para a consecução de projetos a serem assumidos coletivamente” (IAMAMOTO, 2002, p. 41). O exercício do trabalho em equipe nos remete a ideia de interdisciplinaridade, exigindo portanto, um reconhecimento e valorização de diferentes saberes e uma postura aberta ao diálogo de forma horizontal. Mas sabemos que o cuidado na saúde não se restringem apenas aos cuidados que se desenvolvem nos sistemas de saúde envolvendo ações e procedimentos técnicos dos profissionais que atuam em áreas bem específicas, ou são oferecidos por equipes interdisciplinares. O cuidado na saúde é produzido em dois contextos distintos, porém inter-relacionados: a rede de oficial de serviços e a rede informal, representada especialmente pela família. (...) a rede oficial, incorporando o saber biomédico-científico e as tecnologias terapêuticas modernas, conta com amplo reconhecimento como agência produtora de cuidados. Já a rede informal, que tem na família seu principal personagem, não conta com tanto prestígio. No entanto é na e pela família que se produzem cuidados essenciais à saúde. (GUTIERREZ & MINAYO, 2010, p.1498). Neste contexto em que o familiar acometido por uma doença necessita de cuidados, surge um personagem importante, “a figura do cuidador familiar, na maioria das vezes um membro da família que não possui preparo técnico que o permita cuidar do outro sem interferir no cuidado que deve ter consigo próprio” (MENDONÇA Et al, 2008, p. 144). São cuidadores informais, que não tiveram uma formação específica para cuidar, mas aprenderam na prática, cuidando de outros familiares por longos períodos. São pessoas que muitas vezes precisam se dedicar em tempo integral ao familiar adoecido, podendo chegar a sete dias na semana, sem folga nem férias, dependendo do grau de dependência do familiar adoecido para as atividades da vida diária. Segundo Polaro (2012), “pacientes”2 fragilizados, com limitações funcionais ou condições crônicas que exijam tratamentos prolongados e permanentes, quando não recebem o tratamento adequado por parte dos serviços de saúde, acabam sobrecarregando a família. “A falta de apoio dos serviços sociais e de saúde para o cuidado com seu familiar dependente acaba se tornando um ônus que ameaça o bem-estar e a qualidade de vida, culminando em desequilibrar a saúde (e as finanças) de toda uma família” (POLARO, 2012, p. 229). Entendemos ser imprescindível que os assistentes sociais compreendam o processo de constituição das famílias e suas novas configurações na atualidade para que possam intervir com qualidade, pautados num referencial teórico e postura crítica, alicerçados no projeto ético-político da profissão, revendo posturas e intervenções conservadoras. A centralidade das famílias nas políticas sociais Conforme discute Mioto (2003), a família sempre esteve relacionada com a política social, diferenciando-se em três tipos, “a família do provedor masculino”, o “familismo” e a “família no Estado de Bem-Estar Social de orientação social democrata”. Pode-se dizer, a “grosso modo”, que existem duas tendências em disputa nesse campo, denominadas de proposta familista e proposta protetiva. A ideia central da proposta familista, segundo ela, reside na afirmação de que existem dois canais tidos como naturais para a satisfação das necessidades dos indivíduos: a família e o mercado. A interferência pública só deverá acontecer, e de maneira transitória, quando estes dois canais falharem. Nesta concepção a incorporação da família na política social traz embutida e ideia de falência da família. Ou seja, a política pública acontece prioritariamente, de forma compensatória e temporária, em decorrência da sua falência no provimento de condições materiais e imateriais de sobrevivência, de suporte afetivo e de socialização de seus membros. Isso corresponde a uma menor provisão de bem-estar por parte do Estado. O 2 Expressão utilizada pelo autor. fracasso das famílias é entendido como resultado da incapacidade de gerirem e otimizarem seus recursos, de desenvolverem adequadas estratégias de sobrevivência e de convivência, de mudar comportamentos e estilos de vida, de se articularem em redes de solidariedade e também de serem incapazes de se capacitarem para cumprir com as obrigações familiares (MIOTO, 2010, p. 169-170). A perspectiva familista é entendida como a perspectiva em que a política pública deposita nas famílias a responsabilidade pelo bem-estar de seus membros, o que corresponde a uma menor provisão por parte do Estado e uma forte presença do mercado. Analisando as famílias na atualidade percebemos que houve uma mudança significativa no modelo familiar, este é um dado inegável, porém, se observarmos a instituição família desde seus primórdios até nossos dias, veremos que tanto sua função quanto sua composição foi sendo alterada ao logo dos séculos, mas a responsabilidade pelo cuidado de seus membros foi sendo intensificada ao longo dos anos, seja pelas políticas públicas, seja pelas legislações vigentes. Tal fato pode ser facilmente constatado ao analisarmos a Política de Saúde, Lei 8080 de 1990, no artigo 2º, onde a saúde aparece como um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, mas “o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade” (BRASIL, 2010, p.2). O Programa Saúde da Família (PSF), como o próprio nome já diz, tem o foco centrado na família. O objetivo do PSF, conforme descrito já no 1º Caderno de Atenção Básica, é “contribuir para a reorientação do modelo assistencial a partir da atenção básica, em conformidade com os princípios do Sistema Único de Saúde, imprimindo urna nova dinâmica de atuação nas unidades básicas de saúde, com definição de responsabilidades entre os serviços de saúde e a população" (BRASIL, 2000, p. 10). Essa discussão na fundamentação do Programa vai além, ao afirmar, em seus documentos básicos, que o setor saúde sempre privilegiou o indivíduo de forma isolada de seu contexto familiar e dos valores socioculturais, com tendência generalizante, fragmentando-o e compartimentando-o, descontextualizando-o de suas realidades familiar e comunitária. Mas, atualmente uma mudança vem ocorrendo, vem se estruturando, em nível internacional, uma nova visão da atuação da família e da comunidade, fundamental para o desenvolvimento de estratégias de políticas sociais, e sob esta perspectiva: (...) o papel do profissional de saúde é o de aliar-se a famí1ia no cumprimento de sua missão, fortalecendo-a e proporcionando o apoio necessário ao desempenho de suas responsabilidades, jamais tentando substituí-la. É preciso ajudá-la a descobrir e a desenvolver suas potencialidades individuais e coletivas (BRASIL, 2000, p.10). O Programa Saúde da Família surge como uma nova estratégia de atenção à saúde e de reorientação do modelo de assistência à saúde. Suas premissas exemplificam o processo de responsabilização das famílias, através das políticas sociais, que incorporam as famílias no texto da lei ou por meio de normativas e orientações que incidem diretamente na organização e na provisão dos serviços no campo da saúde. Outra proposta prevista na legislação, em que a família aparececomo colaboradora, diz respeito ao cuidado domiciliar. A assistência domiciliar é mencionada no Estatuto do Idoso que orienta o atendimento do idoso em casa, se necessário, garantindo-lhe ações e serviços para prevenção e manutenção de sua saúde na Atenção Primária à Saúde, porta de entrada do sistema. Seguindo essa linha de cuidado, em outubro de 2011, o Ministério da Saúde implanta o Programa Melhor em Casa, um serviço de atenção domiciliar no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) que vem substituir a modalidade de internação domiciliar. O Programa Melhor em Casa é voltado ao atendimento de pessoas com necessidades de reabilitação motora, idosos, pacientes crônicos sem agravamento ou em situação pós- cirúrgica que terão assistência multiprofissional gratuita em seus lares, com cuidados mais próximos da família. Também são enfatizadas, com a implantação do Programa Melhor em Casa, a redução na ocupação de leitos hospitalares, a economia de até 80% nos custos de um paciente, se comparado ao custo desse mesmo paciente quando internado na unidade hospitalar e a redução das filas de urgência e emergência já que a assistência, quando houver a indicação médica, passará a ser feita na própria residência do paciente, desde que haja o consentimento da família (MIOTO, 2010, p. 159). Cabe destacar que o Programa Melhor em Casa exige a indicação de um cuidador, por parte da família, em todas as situações atendidas, independentemente do grau de complexidade do cuidado, sendo que este pode ser, ou não, um membro da família, e que deverá ser capacitado pela equipe multiprofissional para o cuidado no domicílio. Aqui já fica claro que o Programa não leva em conta os novos arranjos familiares, pois elege um determinado tipo de família que atenda determinados critérios. A família, segundo Mioto (2010), vai sendo incluída tanto através de requisições nos domicílios, como através da participação nos serviços. Passa a ser invocada e evocada como sujeito fundamental no processo de cuidado tanto no sentido de sua responsabilidade do cuidado, como de ser objeto de cuidado. III. CONSIDERAÇÕES A centralidade da família nas políticas sociais apresenta como aspectos positivos a redução dos custos sociais, que seriam maiores se os serviços tivessem como foco os indivíduos, e a articulação de ações e políticas diferentes no enfrentamento das suas necessidades, possibilitando uma intervenção articulada e planejada. “Os paradoxos aparecem na medida em que a família ora é tomada como sujeito de direitos e merecedora de proteção social, ora como agente dessa proteção e provedora de assistência e cuidado aos seus membros, na principal estratégia das ações de prevenção” (TEIXEIRA, 2012, p. 116). Partimos do pressuposto de que a proteção social não está restrita às famílias e, portanto, a solução dos mesmos vai além de suas possibilidades individuais de resposta, por isso faz-se necessário uma análise aprofundada sobre os processos de enfrentamento das famílias frente ao adoecimento e o suporte do Estado, através das políticas públicas, no acompanhamento e atendimento destas famílias, mediadas pelas competências ético- politica, teórico-metodológica e técnico-operativa dos assistentes sociais na identificação das demandas e na garantia do acesso às políticas sociais de forma integrada e articulada em diferentes níveis de atenção, enquanto sujeitos de direitos. REFERÊNCIAS ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2015. BRASIL. Lei 8080, de 19 de setembro de 1990. Brasília: 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm. Acessado em 10/03/2015. _______ Política Nacional de Assistência Social. 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