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Novembro / 2020 Professor/autor: Dr. Marcos Orison Nunes de Almeida Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3| Teologia Sistemática III | FTSA | SUMÁRIO Teologia Sistemática III - Antropologia e Soteriologia Unidade I - A criação do cosmos e do ser humano 1.1. O Gênesis: a criação em dois relatos............................................................................05 1.2. A criação do ser humano................................................................................................11 1.3. A constituição do ser humano no Antigo Testamento.................................................20 1.4. A constituição do ser humano no Novo Testamento...................................................30 Unidade II - O drama humano 2.1. Mandato cultural.............................................................................................................43 2.2. Queda e pecado..............................................................................................................51 2.3. Tentação, fraqueza e responsabilidade humana..........................................................61 2.4. O problema do mal..........................................................................................................73 Unidade III - Fundamentação bíblica da salvação 3.1. A salvação no Antigo Testamento.................................................................................82 3.2. A salvação no Novo Testamento.................................................................................104 Unidade IV - Temas e estruturas da salvação 4.1. A cruz de cristo.............................................................................................................118 4.2. Sistemas soteriológicos...............................................................................................129 4.3. A amplitude da salvação..............................................................................................136 | Teologia Sistemática III | FTSA4 UNIDADE 1 – A criação do cosmos e do ser humano A disciplina de Teologia Sistemática III abrange o estudo de duas áreas clássicas da dogmática cristã que são a Antropologia Teológica e a Soteriologia. A Antropologia tem como assunto principal o ser humano, incluindo o tema de sua criação, inserida na perspectiva mais ampla d a criação do mundo como um todo. Ela também tratará o estudo dos temas da queda, do pecado e do mal. Já a Soteriologia é área responsável pelo estudo do tema da salvação. Estas duas áreas encontram-se unidas nesta disciplina visando construir uma ponte entre a queda e o pecado humano, e a salvação do estado em que ele se encontra após a queda. Iniciaremos nosso estudo com a temática da criação geral, ou seja, da criação do cosmos ou da natureza, para depois tratarmos do ser humano. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gênesis 1:1). Esta é a afi rmação que encontramos no primeiro versículo da Bíblia. De forma introdutória, utilizamos esta mesma afi rmação no estudo da Teontologia ou de Deus — na disciplina de Teologia Sistemática I. Também recorremos a ela, agora, para falar da criação, uma vez que esta primeira afi rmação estabelece um pressuposto teológico para toda a revelação que segue, conforme apresentada nas Escrituras. Importa, assim, refl etir sobre a profundidade desta máxima, observando os detalhes e efeitos que ela nos traz. Em alguns círculos evangélicos ainda encontramos a discussão, normalmente na forma de embate, entre criacionismo e evolucionismo. Ainda que alguns tentem dar um tratamento científi co à discussão, eles parecem perder de vista um pressuposto fundamental que é a impropriedade em tentar ler o discurso bíblico como se ele fosse científi co. Aqui é necessário retomarmos alguns conceitos elaborados nas aulas de Introdução à Teologia naquilo que se refere ao entendimento da revelação escriturística. O conteúdo, a mensagem, ou seja, o objetivo primário do texto bíblico não é revelar a mecânica do universo com suas leis físicas, químicas, biológicas, etc. A intenção da revelação bíblica é comunicar ao ser humano aspectos fundamentais sobre a sua existência, incluindo origem e destino, propósito e dignidade, problemas e soluções referentes ao seu drama. O uso de uma variedade de estilos e formas linguísticas nas 5| Teologia Sistemática III | FTSA | Escrituras se dá como meio de comunicação, próprio de cada contexto histórico e limitado a estes mesmos contextos. Sendo assim, ainda que não haja preocupação com a perspectiva científi ca, como a conhecemos hoje, os textos deixam transparecer algumas percepções de cosmovisão daqueles contextos antigos, considerando suas culturas e suas ciências, porém, sem a preocupação de explicá-las nem fazer destas referências o fundamento para o entendimento da mensagem. O que ocorre quando tentamos utilizar o texto bíblico, na forma como ele aparece nas Escrituras, como fundamento para uma discussão no campo da ciência, no mesmo patamar de argumentação, é, no mínimo, um equívoco metodológico. Me parece claro que a mensagem bíblica afi rma que todas as coisas vieram à existência por um ato intencional de Deus. No entanto, a narrativa utiliza uma linguagem simbólica que não deve, por questões hermenêuticas (de metodologia de interpretação), ser lida como um tratado científi co que busca a exatidão de suas expressões. Aliás, é curioso notar que a sequência do relato da criação se aproxima, de certa forma, da teoria evolucionista, mesmo o autor bíblico não tendo qualquer intenção de fazer essa comparação. Perceba que a ordem das coisas criadas, apresentada no primeiro capítulo do livro de Gênesis, inicia com a criação da fl ora, seguindo para os animais aquáticos, depois as aves, os animais terrestres, culminando com a criação do ser humano. No entanto, independentemente de qualquer aproximação entre as teorias, sou da opinião de que esta é uma discussão improdutiva. Nosso foco, portanto, estará naquilo que concerne aos aspectos teológicos, com seus desdobramentos existenciais, ministeriais e missiológicos. 1.1. O Gênesis: a criação em dois relatos Relembrando que a abordagem que temos utilizado para as disciplinas de Teologia Sistemática tem como aporte metodológico a Teologia Bíblica, gostaria de iniciar o estudo da criação ressaltando a presença de dois relatos distintos no texto de Gênesis. Seguindo a divisão proposta por Ernst Sellin e Georg Fohrer (1978), o primeiro relato é aquele compreendido entre os versículos 1:1 e 2:4a e o segundo entre os versículos 2:4b e 25. Exegeticamente falando, os relatos pertencem a | Teologia Sistemática III | FTSA6 duas fontes editoriais diferentes. O primeiro relato é atribuído à tradição sacerdotal (Sellin e Fohrer, 1978, p. 248) e o segundo à tradição javista (idem, 1978, p. 200). Sem nos aprofundarmos muito na questão literária das tradições, podemos observar que todo o primeiro relato se refere a Deus usando a palavra hebraica Elohim, enquanto o segundo relato refere-se a Deus usando a expressão Iahweh Elohim, traduzido como Senhor Deus. Ambos os relatos parecem completos em si, no sentido de desenvolverem a ideia da criação, com introdução e conclusão. Vejamos: • Relato 1 – “No princípio Elohim criou os céus e a terra [...]. Abençoou Elohim o sétimo dia e o santifi cou, porque nele descansou de toda a obra que realizara na criação. Esta é a história das origens dos céus e da terra, no tempo em que foram criados” (Gn 1:1-2:4a). • Relato 2 – “Quando o Iahweh Elohim fez a terra e os céus [...]. O homem e sua mulher viviam nus, e não sentiam vergonha” (Gn 2:4b-25). Saiba mais Para melhor entendimento da questão literária dos textos do Antigo Testamento, sobre autoria, datação e tradições, sugiro a consulta às referênciasbibliográfi cas indicadas nesta unidade ou a fontes semelhantes. Tratando especifi camente das expressões utilizadas para identifi car a Deus nos relatos de Gênesis, vale a pena atentar para o problema introduzido pela tradução da língua original para o português. Algumas versões da Bíblia traduzem a palavra Iahweh como “SENHOR”, com letras maiúsculas, enquanto a palavra adonai, que em hebraico se refere a uma forma de tratamento de alguém em posição de domínio, é traduzida como “Senhor”, com letras minúsculas. Isto causa uma natural confusão ou, no mínimo, a perda da informação sobre a carga teológica que a tradição do monoteísmo javista traz para o entendimento dos textos. Algo semelhante ocorre com a tradução de elohim que tanto pode designar o Deus do povo de Israel quanto qualquer outro deus. 7| Teologia Sistemática III | FTSA | No fundo, os relatos seguem a teologia própria de suas tradições. A tradição javista, mais antiga, pode ser datada no tempo da “realeza davídica” (Sellin e Fohrer, 1978, p. 207), e tem como características a “aprovação da sociedade de cultura agrária”, “a exaltação da fertilidade da terra” (idem, 1978, p. 203) e ricas “representações antropomórfi cas” indicando que “o Deus transcendente está perto do homem e fala com ele” (idem, 1978, p. 206). Já a tradição sacerdotal, entendida como tendo sua origem no tempo do pós-exílio babilônico (idem, 1978, p. 258), apresenta um Deus “absolutamente transcendental” (idem, 1978, p. 256) sem um “acesso imediato”, em que esse caminho de comunicação deve “passar pelo clero em sua função mediadora” (idem, 1978, p. 257). Não comentando ainda aspectos específi cos da criação do ser humano, que será tratada mais adiante, podemos ver que os relatos se equivalem em apontar para a formação da natureza como o habitat do ser humano. No primeiro, observamos a perspectiva da teologia sacerdotal mostrando um Deus distante de sua criação apenas comandando sua formação sem uma direta interação com a mesma. Vemos, portanto, uma abrangência maior com a referência aos elementos da criação, formação dos astros, da fl ora e das espécies de animais, em uma divisão temporal usando a palavra hebraica yom que pode signifi car dia, ano ou tempo. No segundo relato o autor procura delimitar uma região geográfi ca descrevendo o habitat humano como um jardim, com o uso da linguagem agrária. Deus aparece em maior proximidade tanto no trato com a criação quanto na forma do discurso e diálogo estabelecido na narrativa, que pode ser percebido de maneira ainda mais intensa na sequência do capítulo 3. Podemos pensar, então, que a presença dos dois relatos na editoração fi nal das Escrituras se deu porque eles oferecem uma complementação de ideias entre si. Ambos trazem perspectivas interessantes, principalmente no que se refere ao ser humano, mas também em relação à criação geral. Com o intuito de analisar melhor a primeira narrativa (Gn 1:1-2:4), assumo o pressuposto de que sua composição foi feita pela tradição sacerdotal no tempo do pós-exílio, destacando suas particularidades contextuais | Teologia Sistemática III | FTSA8 históricas. Jean Louis Ska (2005) nos ajuda nessa tarefa interpretativa defendendo a ideia de que o relato de Gênesis 1 faz um contraponto teológico à mitologia mesopotâmica de Babilônia. O ambiente de um caos aquático que é organizado criativamente por Deus faz sentido para uma região banhada pelos rios Tigre e Eufrates, fundamentais para a vida naquela região. No entanto, a primeira importante concepção que difere, e até mesmo confronta, a cultura mesopotâmica é a afi rmação da superioridade do Deus de Israel sobre aqueles que eram seus dominadores. Ao relatar que o sol e a lua eram “criaturas” de Deus (v. 16), a teologia judaica se autentica, pois, “as divindades mesopotâmicas eram identifi cadas com os astros — o deus Shamash era o sol, o deus Sin era a lua, a deusa Ishtar era o planeta Vênus etc. Também os monstros marinhos — que aparecem em alguns mitos mesopotâmicos sobre a criação — são criados por Deus no quinto dia (Gn 1:21)” (Ska, 2005, p. 29). Para Ska, esse fato é de suma relevância porque “a fé de Israel sobreviveu às provas do exílio graças a esse esforço de refl exão teológica” (ibidem). O autor ainda enxerga neste relato uma resposta ao contexto de desesperança surgido no exílio: Para combater o desespero e desânimo muito difundido entre os israelitas, o texto de Gênesis 1 torna a partir das origens do mundo para mostra que o “mal” não faz parte do plano divino. O mundo criado por Deus é de todo positivo. Por exemplo, o texto de Gênesis 1 não contém uma única negação. Por bem sete vezes (número sagrado), o texto repte que “Deus viu que [o que tinha feito] era bom” (1,4.10.12.18.21.25.31). Na última vez diz mais, que “Deus viu tudo o que tinha feito. Eis que era muito bom” (1,31). Signifi ca, portanto, que a raiz de todas as coisas e de todo ser neste mundo é sadia. Se existe corrupção, morte e mal, estes chegaram apenas em um segundo compasso (2005, pp. 29-30) 9| Teologia Sistemática III | FTSA | O primeiro relato, enfi m, representa um todo harmônico que aponta para a organização do caos, a promoção da vida e do equilíbrio na criação, principalmente na relação entre a natureza e o ser humano. É nele também que vemos o destaque dado ao sábado (shabbat), que, embora inclua o tema do descanso, a teologia sacerdotal passou a enfatizar a atenção especial dedicada ao sétimo dia da semana que deveria estar voltado para as práticas religiosas. Contudo, é de suma importância ressaltar o tema do descanso uma vez que a tradição javista, autora do segundo relato, indica o trabalho como um fardo inevitável da vida, como aquilo que é responsável pela produção do sustento de subsistência (Gn 3:19). No fundo, o conceito de descanso aparece teologicamente ampliado, ainda relacionado à criação, tratando de questões ecológicas e de justiça. Notamos isso na lei do “sábado de anos”, indicada no texto de Êxodo 23:10-11 e seu correlato em Levítico 25:1-1-7, e na lei do jubileu descrita em Levítico 25:8-34. Analisando agora o segundo relato (Gn 2:4-25), diferentemente do primeiro, ele tem como centro o ser humano. Enquanto o primeiro trata da criação de maneira mais ampla, o segundo concentra a sua narrativa em torno do ser humano e suas relações existenciais, no caso, “seu espaço vital (o jardim), os mantimentos (os frutos do jardim), o trabalho (2.15), a comunidade (2.18-24), e, em tudo isso, a relação com seu Criador” (Westermann, 2013, p. 36). Primeiro o ser humano é criado e depois todas as outras coisas são feitas em função de sua existência. Os detalhes descritos procuram situar geografi camente este ambiente inicial na Mesopotâmia, talvez o lugar mais antigo que se conhecia ou de onde vinham as histórias mais antigas. De maneira semelhante ao primeiro relato, o segundo também aponta para uma criação que expressa harmonia e equilíbrio, em que as árvores são “agradáveis aos olhos e boas para alimento” (Gn 2:9), a vida recebe um tratamento de centralidade — “no meio do jardim estavam a árvore da vida [...]” (Gn 2:9) —, e o ser humano se relaciona em plenitude (Gn 2:22-25). | Teologia Sistemática III | FTSA10 Exercício de fi xação - 01 Considerando o estudo apresentado sobre as narrativas da criação no livro de Gênesis é falso afi rmar que: a. Ambas as narrativas têm como base dois pontos de vistas de tradição editorial que se complementam; b. As narrativas pretendem refutar as propostas científi cas contrárias ao criacionismo; c. Elas têm por objetivo apontar para a origem do mundo a partir da vontade criadora divina; d. O foco principal das narrativas são as questões ontológicas, indicando o lugar do ser humano na criação; e. Nenhuma das narrativas trazem detalhes sobre o “como” do processo criador. Há, no entanto, no segundo relato, um objetivo que vai além da apresentação da teologia da criação, que é servir comoprólogo para o drama humano apresentado nos capítulos seguintes. Ainda no relato da criação é indicada a presença da “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2:9) e do mandamento para não comer do seu fruto (Gn 2:17). É em função dessa informação que o evento da queda se desenvolve no capítulo 3. Na verdade, poderíamos dizer que é em função dessa introdução que obtemos o que se chama na teologia clássica de História da Salvação (Heilsgeschichte), talvez o principal tema para a humanidade e em função do qual as próprias Escrituras são desenvolvidas. Sem dúvida os relatos da criação presentes no livro de Gênesis são os mais importantes e mais referenciados na teologia bíblica, mas há outros textos que afi rmam e confi rmam a perspectiva teológica produzida pelo povo de Israel ao longo da história. Entre os mais importantes podemos ressaltar os apresentados nos livros de Salmos, Isaías e Jó. 11| Teologia Sistemática III | FTSA | 1.2. A criação do ser humano Podemos dizer que a criação do ser humano, conforme apresentada nas Escrituras, é o ápice da construção teológica sobre a criação como um todo. Se entendemos os textos iniciais como um prólogo para o grande acontecimento que gira em torno da existência humana, vemos a elaboração de um pano de fundo que apresenta o habitat e as condições iniciais para que a vida humana ocorra. Mais adiante estudaremos outros aspectos da relação do ser humano com o seu habitat e com a sociedade, que ele estabelece para desenvolver a vida. Por hora, nos concentraremos nos conteúdos específi cos, referentes ao ser humano em si, naquilo que concerne à sua essência desde a perspectiva da teologia da criação. Mais uma vez, apoiaremos a maior parte de nossas refl exões nos dois relatos de Gênesis, seguindo o mesmo tipo de investigação já iniciado. 1.2.1. O ser humano como imagem e semelhança divina O primeiro relato trata a criação do ser humano indicando uma diferenciação em relação aos outros seres vivos. Enquanto as plantas e animais são criados segundo o seu “tipo” (mino) ou espécie, o ser humano é criado segundo a “imagem e semelhança” de Deus: “Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem (tsalemenu), conforme a nossa semelhança (demutenu)’” (Gn 1:26). Antes de discutirmos como podemos interpretar essa dupla expressão, vejamos como as palavras são tratadas no dicionário de hebraico: [Imagem] Basicamente, a palavra se refere a uma representação, uma semelhança. Cinco vezes diz respeito ao homem como criado à imagem de Deus. Duas vezes designa as cópias de ouro dos ratos e inchaços que afl igiam os fi listeus (1 Sm 6.5, 11; e veja- se ‘opel). Na maioria das vezes refere-se a um ídolo [...] tselem refere-se à imagem como uma representação da divindade. Nesse sentido, as imagens eram terminantemente proibidas. Observe-se que nem toda | Teologia Sistemática III | FTSA12 escultura era proibida (cf. querubins de ouro), mas apenas os ídolos (Hartley, 1998, p. 1288). [Semelhança] Embora este substantivo seja usado apenas 26 vezes no AT, é uma palavra bastante importante. Ela aparece na seção teofânica de Ezequiel (1.5, 10, 13, 16, 22, 26, 28; 10.1, 10, 21, 22), e com bastante frequência justaposta a kemarê, “como a aparência de” [...] Todas essas passagens em Ezequiel referem-se a semelhanças visuais, mas Isaías 13.4 mostra que demût também pode ser empregado para designar semelhanças sonoras e semelhanças estruturais, no sentido de ser um padrão ou modelo (2 Rs 16.10, onde a palavra é paralela a tabnît). Analisamos, por fi m, duas passagens importantes em que se afi rma que o homem foi criado “à [imagem e] semelhança de Deus” (Gn 1.26; 5.1) e uma passagem onde se diz que Adão gerou um fi lho, Sete, “à sua semelhança” (Gn 5.3) [...] Procuraremos verifi car especifi camente a relação, em Gênesis, entre tselem (imagem, q.v.) e demût (“semelhança”). Em nenhuma outra passagem do AT esses dois substantivos são paralelos ou relacionados um com o outro [...] Não se deve procurar estabelecer nenhuma distinção entre essas duas palavras. Elas são totalmente intercambiáveis (Hamilton, 1998, p. 316). Como visto, as duas palavras querem expressar uma ideia única, de alguma coisa que se parece com outra. Da mesma maneira como uma escultura se assemelha, pela imagem transferida ao material utilizado na sua confecção, àquilo que quer representar, o ser humano é dito como alguém parecido com Deus. Seguindo o raciocínio já iniciado anteriormente, considerando que a dupla expressão é utilizada como parte da criação geral, parece haver uma intenção do autor em afi rmar a particularidade do 13| Teologia Sistemática III | FTSA | ser humano e sua diferença em relação a todas as outras criaturas. O ser humano é, por assim dizer, único, porque parece com Deus. É certo que muito já foi escrito sobre o que se convencionou chamar de imago Dei na teologia, no entanto, sou da opinião de que este esforço é um exagero, considerando o pouco conteúdo bíblico que temos para nos debruçar sobre. Mais que isso, não me parece haver, da parte dos autores bíblicos, a mesma preocupação fi losófi ca que há da parte dos teólogos em tentar explorar o fenômeno da criação humana em função da pessoa de Deus. Há consenso de que a similitude entre o ser humano e Deus não trata de questões de aparência e sim de alguns dos seguintes aspectos: espírito, raciocínio, moral, liberdade, consciência, etc. Como indicação resumida daquilo que a ideia de imagem e semelhança possa signifi car, utilizo a refl exão de Emil Brunner: Aquele que cria através da Palavra, que, como Espírito cria em liberdade, quer ter um “refl exo”, que é mais do que um “refl exo”, que é uma resposta à Sua Palavra, um ato espiritual livre, uma correspondência de Seu falar. Só assim pode o seu amor realmente dar-se como amor. Porque o amor só pode dar-se onde é recebido em amor. Daí o coração da existência humana do homem é a liberdade, auto-existência, de ser um “Eu”, uma pessoa. Apenas um “Eu” pode responder a um “Tu”, apenas uma Auto que é auto-determinação pode livremente responder a Deus. Um autômato não responde; um animal, em contraposição a um autômato, pode de fato re-agir, mas não pode re-sponder. Não é capaz de falar, de livre auto-determinação, ele não pode fi car a uma distância de si mesmo, e, portanto, não é re-sponsável. O Ser livre, capaz de auto-determinação, pertence à constituição original do homem como criado por Deus. Mas desde o início, essa liberdade é limitada. Não é primária, mas secundária [...] Deus quer a minha | Teologia Sistemática III | FTSA14 liberdade, é verdade, porque Ele quer glorifi car a Si mesmo e dar-se a si mesmo. Ele quer a minha liberdade, a fi m de tornar esta resposta possível; minha liberdade é, portanto, desde o início, responsiva. Responsabilidade é liberdade restrita, que distingue os humanos da liberdade divina; e é uma restrição que também é livre — e isto distingue a nossa liberdade humana limitada daquela do resto da criação. Os animais, e Deus, não têm nenhuma responsabilidade —animais, porque estão abaixo do nível de responsabilidade, e Deus, porque está acima dela; os animais porque não têm liberdade, e Deus porque tem liberdade absoluta (1952, pp. 55-56). Reforçando a ideia de que a expressão quer, ao mesmo tempo, estabelecer semelhanças e diferenças, Brunner destaca que o ser humano se assemelha a Deus na consciência de existência autônoma e na liberdade. Essa condição difere o ser humano das outras criaturas, em especial, os animais, ao ponto de exercer domínio sobre eles, conforme a sequência do texto: “[...] Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão” (Gn 1:26b). Por outro lado, ao gerar fi lhos o ser humano transfere essa imagem e semelhança com algo que agora lhe é próprio: “Aos 130 anos, Adão gerou um fi lho à sua semelhança, conformea sua imagem; e deu-lhe o nome de Sete” (Gn 5:3). É também esta imagem e semelhança que lhe confere valor e dignidade únicos: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi o homem criado” (Gn 9:6). Para Brunner, o grande objetivo da formação do ser humano como imagem e semelhança divinos é lhe conferir a capacidade para vivenciar um relacionamento livre, e em amor, com Deus, seu criador. É importante ressaltar que a ideia de imagem e semelhança não está presente no segundo relato de Gênesis, em que o ser humano é descrito como sendo formado como um boneco de barro. Neste sentido, a aproximação do ser humano é maior com a terra da qual ele é feito, conforme veremos a seguir. 15| Teologia Sistemática III | FTSA | 1.2.2. O ser humano como homem e mulher A questão do gênero é muito clara nos dois relatos de Gênesis, embora ofereçam diferentes perspectivas na formação do ser humano. O primeiro relato é simples e sintético apontando para a formação dos gêneros masculino e feminino em um mesmo patamar: “Então disse Deus: ‘Façamos o homem (adam) à nossa imagem, conforme a nossa semelhança’ [...] Criou Deus o homem (adam) à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem (zakar) e mulher (neqevah) os criou” (Gn 1:26- 27). Observando o texto, ofereço a seguinte alternativa de tradução: Então disse Deus: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança’ [...] Criou Deus o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”. Parece claro que a palavra adam depois traduzida como Adão é uma indicação geral de humanidade, pois, diz o texto, que Deus cria o adam como macho (zakar) e fêmea (neqevah), ou seja, o adam é criado com dois gêneros distintos, sexuados, à semelhança dos animais, como macho e fêmea, o sexo masculino e feminino. O ser humano, portanto, macho e fêmea, são criados à imagem de Deus, ao mesmo tampo, no mesmo patamar de dignidade e valor. O segundo relato é um pouco mais complexo, trazendo outros termos para se referir ao ser humano, bem como detalhando a maneira como o autor propõe a teologia por trás das relações iniciais e posteriores à queda. Segue um apanhado de versículos focando nossa atenção na questão do gênero. 7Então o Senhor Deus formou o homem [adam] do pó [aphar] da terra [adamah] e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente [...] 18Então o Senhor Deus declarou: “Não é bom que o homem [adam] esteja só [bado]; farei para ele alguém que o auxilie [ezer] e lhe corresponda [negedo]” [...] 20Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens. Todavia não se encontrou para o homem | Teologia Sistemática III | FTSA16 alguém que o auxiliasse [ezer] e lhe correspondesse [negedo]. 21Então o Senhor Deus fez o homem [adam] cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou- lhe uma das costelas [tsela], fechando o lugar com carne [basar]. 22Com a costela que havia tirado do homem [adam], o Senhor Deus fez uma mulher [ishah] e a levou até ele. 23Disse então o homem [adam]: “Esta, sim, é osso [tsem] dos meus ossos e carne [basar] da minha carne! Ela será chamada mulher [ishah], porque do homem [ish] foi tirada”. 24Por essa razão, o homem [ish] deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher [ishah], e eles se tornarão uma só carne [basar]. 25O homem [adam] e sua mulher [ishah] viviam nus, e não sentiam vergonha (Gênesis 2:7, 18, 20-25). Esse relato, mais antigo que o primeiro, apresenta uma direta relação entre o termo adam e adamah. Ambos possuem a mesma raiz hebraica e Leonard Coppes sugere que “embora a etimologia de ’ādām não possa ser explicada com certeza [...] a palavra está provavelmente relacionada com a cor avermelhada da pele humana” (1998, p. 13). Daí a associação com a terra (adamah) da qual o ser humano é dito ser moldado. Como indica Coppes, “originalmente, a palavra tinha o sentido de solo vermelho arável” (1998, p. 14). Para o autor, A Bíblia estabelece um forte relacionamento entre o homem (’ădām) e a terra (’ădāmâ) [...] No princípio, Deus faz ’ădām da ’ădāmâ para lavrar a ’ădāmâ [...] Então veio o pecado. A unidade ’ădām (Adão e Eva; veja também Rm 5.12) violou a estrutura criada. A ’ădāmâ, daí em diante, produziu espinhos e cardos em vez de frutifi car livremente (Gn 3.17). Visto que ’ădām provocou o rompimento do estado paradisíaco de produção de vida, foi expulso da ’ădāmâ paradisíaca e recebeu a sentença de volta à ’ădāmâ (Gn 3.19) (Coppes, 1998, pp. 14-15). 17| Teologia Sistemática III | FTSA | Como vimos, a expressão adam tende a signifi car a ideia do ser humano, homem e mulher, como um ser formado dos elementos da terra, sem distinção. No entanto, o autor do texto bíblico aplica o termo adam tanto para se referir ao ser humano em geral, quanto para se referir apenas ao gênero masculino e também para dar nome ao primeiro homem, em contraposição à primeira mulher, na história do Éden. Este intercâmbio do uso da palavra adam, embora possa causar confusão, não deve nos impedir de tentar compreender as mensagens que o texto quer transmitir. No primeiro relato encontramos as expressões zakar (macho) e neqevah (fêmea), as mesmas usadas para os animais, para se referir aos gêneros humanos nas formas de um ser sexuado. No segundo relato encontramos os termos ish e ishah, reportando-se a outro tipo de ênfase. No pano de fundo construído pelo autor podemos perceber que o foco está no relacionamento humano: “Não é bom que o adam esteja só” (Gn 2:18). Saiba mais A ênfase sobre a ideia do ser humano como um ser social é uma máxima que vale para todos, independente do gênero, mesmo o relato do Gênesis tendo sido construído a partir do sexo masculino. Ela é reafi rmada pelas ciências humanas, desde Aristóteles, que dizia que o ser humano era um animal político, ou seja, entendido essencialmente em sociedade. O mesmo vale para as teorias da psicologia que avaliam a formação da personalidade desde as primeiras relações estabelecidas com a mãe, pai, família estendida, escola e tantos outros ambientes de convivência: “Os seres humanos são animais sociais, e o teor da vida social de alguém é uma das influências mais importantes em sua saúde mental e física. Sem relacionamentos positivos e duradouros, tanto a mente quanto o corpo podem desmoronar. | Teologia Sistemática III | FTSA18 Os indivíduos começam a vida dependendo para sobreviver da qualidade de seu relacionamento com seu cuidador principal, geralmente sua mãe. A sobrevivência da humanidade como espécie também depende da capacidade de viver em sociedade. A maior parte da história humana foi passada em pequenos grupos nos quais cada indivíduo dependia de outros para sobreviver; evidências sugerem que esta é a condição à qual os humanos estão mais bem adaptados”. Fonte: https://www.psychologytoday.com/us/ basics/social-life Em função, então, desta premissa constituinte da condição humana, o autor do segundo relato apresenta, como num romance, a história da formação da mulher. Não sendo bom a solidão humana, Deus faz passar diante do adam todos os animais criados para ver qual deles poderia “estar diante dele na mesma condição” (negedo) e tornar-se assim o seu “socorro” (ezer). Não havendo nenhum animal naquela condição, Deus forma a esposa, não mais do pó da terra, mas do mesmo osso (tsem, ou tsela — costela) — e da mesma carne (basar) — do esposo. A esposa é feita, portanto, da estrutura fundamental do organismo do marido e por ele é assim reconhecida. Entretanto, é interessante ressaltar que as expressões hebraicas usadas na história não são macho e fêmea, como nos animais, mas sim uma referência ao homem e à mulher remetendo-os à questão do relacionamento, como indica Thomas McComiskey ao dizer que “um dos usos mais comuns de ’îsh é no sentido de marido” (1998, p. 63) e que a “palavra [’ishshâ] é usada com frequência no sentido de ‘esposa’”(1998, p. 99). Concluindo a ideia das companhias que estão na mesma condição e servem de ajuda mútua, propõe-se a união dos dois gêneros numa misteriosa simbiose em que eles se tornam como um único ser ou uma só carne. Mais ainda, eles convivem sem o empecilho da vergonha ou do desapontamento mútuo, indicando um relacionamento pleno. 19| Teologia Sistemática III | FTSA | Esta breve introdução sobre a criação do ser humano mostra a complexidade da existência. A teologia da criação não se preocupa em discutir detalhadamente o fenômeno humano, mas é capaz de apresentar alguns conceitos fundamentais que estabelecem uma a perspectiva que deve nortear toda e qualquer aproximação que façamos em direção ao ser humano. Pelo menos duas grandes questões se impõem. A primeira é que o ser humano possui dignidade intrínseca e capacidade responsável para se relacionar com Deus. A segunda é que o ser humano é igualmente valoroso em sua representação nos gêneros masculino e feminino, sendo essencialmente formado para viver em busca de relacionamentos equânimes de companheirismo e complementariedade. Exercício de aplicação - 02 Tendo em vista os conceitos apresentados de Imagem e Semelhança de Deus, como podemos tornar estes conceitos efi cazes em nossa vida cotidiana: a) Ao saber que possuo um espírito, assim como Deus, sei também que nada nem ninguém pode ir contra o meu espírito, por isso, tudo na minha vida será como eu quero que seja; b) Ser imagem e semelhança de Deus, me torna exatamente como Deus, por isso tenho poder e controle sobre todas as situações ao meu redor. c) Sendo imagem e semelhança de Deus tenho permissão e dever de dominar sobre toda a criação, escolhendo qual será o futuro da criação, inclusive de outros seres humanos que estão sob meu domínio. d) Sendo imagem e semelhança de Deus, me pareço com ele na minha liberdade de decidir e agir, assim, tenho capacidade para escolher cumprir os planos de Deus e me manter em um relacionamento sadio com ele, comigo mesmo, com os outros e com o restante da criação. e) A imagem e semelhança de Deus me dá acesso ao mundo espiritual, permitindo que tenha acesso a ele em oração, experimente as coisas celestiais e lute contra as potestades demoníacas. | Teologia Sistemática III | FTSA20 1.3. A constituição do ser humano no Antigo Testamento Como visto até aqui, entendemos que o ser humano possui uma relação íntima com a natureza. Primeiro, por ser formado da mesma matéria ou dos mesmos elementos presentes em todo o resto da criação. Segundo, porque ela é o seu habitat, ou seja, a sobrevivência humana depende diretamente da natureza. Também vimos que o ser humano é eminentemente social, estabelecendo ligações que podem chegar a um alto nível de intimidade e cumplicidade, como no caso da relação entre os gêneros. Há muitas outras perspectivas que podemos tomar para falar do ser humano, o que faremos mais adiante, mas gostaria de tratar de uma questão que possui vários desdobramentos para a Antropologia Teológica, que é o tema da constituição humana. Já vimos que o ser humano é constituído dos elementos da terra (adamah), das mesmas substâncias que formam toda a matéria que conhecemos no universo. No entanto, este aspecto da constituição nos aponta, como consequência, para as dimensões físicas, químicas, biológicas, etc. sem indicar outros aspectos que fogem, a princípio, desta questão material. Como já mencionado antes, se entendemos que faz parte da constituição humana aquilo que é percebido como imagem e semelhança divina, e sendo Deus imaterial, necessitamos lidar com essa dissemelhança, que é o fato de o ser humano ser físico e Deus ser metafísico — além da matéria. Ao mesmo tempo, precisamos lidar com as dimensões da existência humana que são informadas pela imagem e semelhança com o ser divino. No fundo, estamos adentrando uma arena bastante complicada, exatamente por sermos limitados em nossa materialidade ou àquilo que é físico, imanente. A imaterialidade (metafísico, transcendente) é, em si, incompreensível e nos conduz, na maioria das vezes, ao campo da experiência pessoal e mística, o que reduz a possibilidade de elaboração de teologias — lembro que esta discussão já foi levantada na disciplina de Teologia Sistemática I. Permanecendo, portanto, no âmbito da Teologia Bíblica, investigando os relatos bíblicos da criação e outros textos referentes 21| Teologia Sistemática III | FTSA | ao ser humano no que se refere à sua constituição, nos concentramos no segundo relato Gênesis, uma vez que o primeiro relato não traz outra informação além da já discutida questão da imagem e semelhança. Assim, lemos no segundo relato a seguinte construção textual: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2:7). Historicamente a teologia cristã, desde os pais gregos, interpretam este e outros textos bíblicos como indicação de uma possível subdivisão do ser humano. Embora existindo como um ser único, a discussão gira em torno de três opções de entendimento. A primeira opção é entender o ser humano como uma unidade (monismo), a segunda, como sendo subdividido em duas partes constituintes (dicotomia) e a terceira, como subdividido em três partes (tricotomia). Acredito que a maioria das correntes teológicas evangélicas brasileiras atuais tem assumido a compreensão tricotômica do ser humano, entendendo que ele é formado de corpo, alma e espírito. As razões para este posicionamento podem ser explicadas como tendo sido causadas pela infl uência de algumas correntes teológicas norte- americanas, principalmente as de cunho pentecostal, e pela limitação à interpretação do texto de 1 Tessalonicenses 5:23. Contudo, historicamente, a compreensão teológica da constituição humana é diversa, apresentando ao longo da história defensores das três opções. Voltando ao texto de Gênesis 2:7, necessitamos olhar para a sua redação tentando entender a cosmovisão e intenção do autor e, de maneira geral, a teologia desenvolvida ao longo do Antigo Testamento. Para isso, recorremos à língua original e ao signifi cado dos termos ali presentes. O que lemos é: “Então o Senhor Deus formou o homem (adam) do pó (aphar) da terra (adamah) e soprou (naphach) em suas narinas (aph) o fôlego (neshamah) de vida (chayyim), e o homem (adam) se tornou um ser (nephesh) vivente (chayyim)”. Considerando o relato da criação como um todo, não enxergo aqui uma intenção do autor em desenvolver uma teologia profunda, detalhada, da constituição humana, nem mesmo a indicação de uma possível tricotomia. Pelo contrário, o que vejo é a transmissão de uma | Teologia Sistemática III | FTSA22 ideia, de maneira até simples, mostrando de modo fi gurado a formação do ser humano. A descrição fala da modelagem de um tipo de boneco feito do “pó da terra” que, como qualquer estátua, é inanimado, ou seja, não tem vida. Para que ele se torne um ser vivente, Deus sopra em suas narinas. Em nenhum momento vemos uma preocupação ou cuidado do autor em detalhar como o pó da terra se transformou em ossos, músculos e órgãos ou como se transformou naquilo que a língua hebraica denomina de carne (basar). Não aparece também no texto qualquer referência ao fôlego (neshamah) de vida como estando associado ao vento ou espírito (ruach), ainda que outros textos façam esta associação posteriormente. O que parece ocorrer é uma breve descrição do ser humano como alguém criado por Deus dos elementos da terra que vem à existência, ou seja, torna-se um ser (nephesh) vivente pela ação divina. Exercício de reflexão - 03 Certamente você já leu este relato de Gênesis 2, porém, pode ser que não tenha atentado para o tipo de interpretação que está sendo proposto aqui. Por isso, releia o relato de Gênesis 2, na versão bíblica de sua preferência, e escreva em 3 ou 4 linhas, a partir dos estudos feitos até aqui, suas percepções sobre a criação humana.Aprofundando um pouco mais nossa investigação, e utilizando o detalhado estudo de Hans Walter Wolff sobre a Antropologia do Antigo Testamento, encontramos o seguinte alerta: Ao traduzir, via de regra, os substantivos hebraicos mais frequentes com as palavras “coração”, “alma”, “carne” e “espírito”, ocorreram equívocos de graves consequências. Eles remontam já à antiga tradução da Septuaginta e acarretam uma antropologia dicotômica ou tricotômica, na qual o corpo, a alma e o espírito se encontram em oposição mútua. É necessário examinar 23| Teologia Sistemática III | FTSA | até que ponto, quando passou a usar a língua grega, a fi losofi a helênica deturpou e substituiu concepções semítico-bíblicas. Para isso, temos que esclarecer o uso veterotestamentário das palavras (2007, p. 29). Para Wolff, assumir o entendimento dicotômico ou tricotômico é um equívoco que surge pela infl uência de uma interpretação fi losófi ca grega que se sobrepõe à cultura original do texto bíblico que é semítica. O autor ainda comenta sobre duas características da literatura hebraica. A primeira é uma forma de paralelismo sinonímico em que há o uso de termos que se referem a partes ou funções humanas e que podem ser trocados uns pelos outros designando o ser humano todo, mostrando “diversos aspectos do sujeito único” (2007, p. 30). Como exemplo o autor cita o Salmo 84:2: “A minha alma anela, e até desfalece, pelos átrios do Senhor; o meu coração e o meu corpo cantam de alegria ao Deus vivo”. Alma, coração e corpo são referências ao ser humano, mas que funcionam como sinônimos indicando o todo do seu ser, porém, vistos por distintas perspectivas. A segunda característica da literatura hebraica Wolff chama de “‘pensamento sintético’ que, com a menção de uma parte do corpo, refere-se à sua função” (2007, p. 30). Desta forma, “com um vocabulário relativamente pequeno, por meio do qual designa as coisas e também justamente as partes do corpo humano, o hebreu pode e precisa expressar toda uma série de matizes sutis, fazendo com que o nexo sintático acentue as possibilidades, atividades, propriedades ou experiências do sujeito mencionado” (idem, p. 31). Um exemplo desta segunda característica aparece no texto de Isaías 52:7: “Como são belos nos montes os pés daqueles que anunciam boas-novas [...]”. Na interpretação de Wolff teríamos: “‘Como é belo que o mensageiro se aproxime com rapidez pelas montanhas!’ O hebreu diz ‘pés’, mas pensa no aproximar-se aos saltos” (ibidem). A palavra pés, embora sendo apenas uma parte do corpo, representa, metaforicamente, a qualidade de uma ação humana, realizada em sua integralidade. | Teologia Sistemática III | FTSA24 1.3.1. Os conceitos de carne, alma e espírito — basar, nephesh e ruach Fundamentado numa vasta apresentação de aplicações bíblicas de termos, Wolff procura explicar como a cultura hebraica entende o ser humano. Assim, ele apresenta o conceito de basar (ָּבָׂשר), que logo vemos na narrativa sobre a criação da mulher, quando ao tirar a costela do homem, Deus preenche aquele espaço com “carne” (Gn 2:21) e o homem reconhece que a mulher é “carne da sua carne” (Gn 2:23): ocorre ao todo 273 vezes e em 104 vezes se refere ָּבָׂשר a animais, isto é, em mais do que a terça parte dos casos. Isso já mostra que ָּבָׂשר (a seguir: b.) designa algo que, em grande escala é próprio tanto do ser humano como do animal [...] designar principalmente a parte visível do corpo, a seguir também pode significar todo o corpo humano [...] aparece no sentido daquilo que une os seres humanos entre si, podendo tornar- se praticamente um termo jurídico de parentesco [...] caracteriza a vida humana em geral como fraca e caduca em si mesma [...] À natureza caduca da criatura se acrescenta a fraqueza ética (2007, pp. 57-65). Embora seja fácil entendermos o conceito de basar como a dimensão física do ser humano — pele, músculos, órgãos, ossos, etc. —, representando um pedaço ou o todo, vemos que o termo acabou recebendo um signifi cado mais amplo e fi gurativo, para tratar da fraqueza moral, tipicamente humana, incluindo a questão ético comportamental. Essa é a ideia desenvolvida pelo apóstolo Paulo no capítulo 7 da carta aos Romanos — com destaque para o versículo 18. Isto signifi ca que aquilo que entendemos simplesmente como a “parte” física, numa ótica dicotômica ou tricotômica, também recebe teologicamente aspectos morais, identifi cados, normalmente, com outras áreas ou “partes” do ser humano que não a física. Em outras palavras, tratamos a questão dos valores éticos no âmbito interior, na esfera da consciência, vontade e 25| Teologia Sistemática III | FTSA | decisão, por isso, pensamos que isto ocorre na mente, na alma ou algo semelhante e não nos músculos, ossos, etc. Wolff também esclarece o conceito por trás da palavra nephesh (ֶפׁש ,(֫נֶ indicando que seu uso no texto de Gênesis 2:7 “certamente, não significa “alma’. N. deve ser vista aqui em conjunto com a figura total do ser humano e especialmente com sua respiração; por isso, o ser humano não tem n., mas é n., vive como n.” (2007, p. 34) — “n.” nesta citação é a abreviação de nephesh. O autor define a ideia de grega de psyche de maneira diferente de nephesh, que também é traduzida por alma em português. Para o grego a alma (psyche) aponta para o “lugar” dos sentimentos e estados de ânimo na interioridade humana. Já a nephesh é entendida como algo referente ao ser humano como um animal biológico. Aliás, os animais também são chamados de “seres viventes” (nephesh chayah) (Gn 2:19), no entanto, a teologia evangélica não atribui a eles uma alma — entendida mais como o conceito grego de psyche — como o faz com o ser humano. Aprofundando sua análise e recordando as duas características da literatura hebraica destacadas anteriormente — paralelismo sinonímico e pensamento sintético —, Wolff explica que Em nossa compreensão analítica talvez se abra um acesso à riqueza de signifi cação dada com o pensamento sintético, se perguntarmos com que parte do corpo humano podem ser identifi cados o ser e o agir humano designados por n. [...] Em geral, o pensamento estereométrico-sintético visualiza um membro do corpo juntamente com suas atividades e capacidades especiais, e estas, por sua vez, são concebidas como características de todo o ser humano (2007, pp. 34-35). Por isso, ele segue seu raciocínio apresentando as associações de nephesh com alguns órgãos humanos, indicando, assim, que tipo de compreensão obtemos do uso desse termo na Bíblia. Nephesh aparece associada à goela, boca e garganta, ou seja, aos órgãos de ingestão de alimentos e da saciação (Is 5:14; Hc 2:5; Sl 107:5,9; Pv 13:25; Ec 6:7). Há também uma associação com as funções da respiração (Êx 23:12; 2 Sm | Teologia Sistemática III | FTSA26 16:14; Sl 69:1-3; etc.). O que se conclui é que “para os semitas o ato de comer, de beber, e de respirar realizava-se na garganta; assim, ela era simplesmente a área das necessidades elementares da vida” (Wolff, 2007, p. 39). Por isso, Se laçarmos um olhar sobre o grande espectro em que se contempla a n. do ser humano e o ser humano como n., vemos ou o ser humano principalmente como o ser vivo individual que não alcançou a vida por si mesmo nem a pode conservar por si mesmo, mas que, em anseio vital, procura a vida, conforme dão a entender a garganta como órgão da ingestão de alimentos e da respiração e o pescoço como parte do corpo principalmente ameaçada. Se, assim, n. mostra o ser humano principalmente em sua carência e cobiça, isso inclui sua excitabilidade e vulnerabilidade emocional. A acepção vital, que também compete ao animal, contribui essencialmente para que n. possa signifi car a pessoa e o indivíduo destacável, seguindo-se daí, em um caso extremo, a signifi cação de “cadáver”. A n. nunca se torna sujeito de atividades especifi camente mentais (Wolff, 2007, p. 55). Resumindo, nephesh, na maioria das vezes, indica o serhumano como um todo, naquilo que representa os seus anseios, desejos, buscas, anelos, aspirações ou cobiças vitais. Ela se refere àquilo que está no interior, no “lugar” profundo do ser humano, comparando esta sensação à da fome, sede e respiração que estão no limiar da existência e que precisam ser satisfeitas; tudo isto desde uma perspectiva mais animal e intuitiva, sem o controle consciente da razão. Sendo assim, a nephesh não é uma coisa que se tem; não é uma parte humana localizável ou possível de ser separada de sua existência total. Ela funciona como uma referência a um aspecto da constituição humana assim como outros termos se referirão a outras características. Tratando agora do conceito de espírito ou vento — ruach (�ַרּו) —, que possui uma associação com o fôlego de vida, já mencionado, e ainda considerando o segundo relato da criação, Wolff comenta: 27| Teologia Sistemática III | FTSA | O “vento” (r.) [r. como abreviação para ruach] do ser humano é, antes de mais nada, sua respiração. Por isto, r. não poucas vezes está em paralelo com ְנָׁשָמה [neshamáh] (p. ex., em Is 42.5) [...] Também esse “vento”, como força vital do ser humano, é “dada” por Javé; ele “molda” (יצר) a r. no interior do ser humano (Zc 12.1). No interior dos ídolos de madeira ou pedra, não há r., isto é, respiração e, assim, nenhuma força vital, sem a qual não é possível despertar e levantar-se (Hc 2.19; cf. Jr 10.14 = 51.17). Apenas depois de Javé dar a r. como respiração às ossadas revestidas de músculos, carne e pele, os corpos se tornam vivos (Ez 37.6,8-10,14) (2007, pp. 68-69). Seguindo este raciocínio, o que chamamos de espírito humano está relacionado à vida e à sua manutenção. Por isso, quando cessa a vida o entendimento é que o vento que era soprado constantemente por Deus sobre o ser humano, para de ser soprado, ou seja, é “recolhido” ou “retorna” a Deus, enquanto o seu corpo retorna à terra da qual é formado. Essa é a compreensão apresentada pelo autor de Jó: “Se fosse intenção dele, e de fato retirasse o seu espírito e o seu sopro, a humanidade pereceria toda de uma vez, e o homem voltaria ao pó” (Jó 34:14-15). O que vemos é uma estreita relação de ruach com a sua origem, que é Deus, ainda que em poucas passagens se fale da r. como ente invisivelmente autônomo que não é concebido necessariamente como a r. de Javé, estando, contudo, inteiramente à sua disposição [...] R., como um ente enviado por Javé, opera no ser humano principalmente pela fala, é também aquela r. da mentira que engana os profetas de Acabe (1Rs 22.21-23). R. é como um conjunto de forças que podem ser distribuídas por muitas pessoas (Wolff, 2007, pp. 72-73). Neste ponto temos um óbvio encontro entre a Antropologia e a Pneumatologia em que o ruach é entendido como uma capacitação, por êxtase ou não, momentânea, ou seja, algo além daquele ruach que | Teologia Sistemática III | FTSA28 mantém a vida, sem que seja identifi cado como algo constituinte do ser humano. No mesmo sentido, encontramos o elo entre ruach e as reações humanas ligadas à respiração, próximo ao conceito de nephesh, e relativos aos estados de ânimo — agitação, irritação, paciência, pulsilanimidade, desânimo, orgulho, angústia, afl ição, amargura, mágoa, tristeza, etc. Concluindo, Wolff diz: Deve-se registrar que r. é empregado duas vezes mais no sentido de vento e força vital de Deus do que de respiração do ânimo e vontade do ser humano. A maioria dos textos que tratam da r. de Deus ou dos seres humanos mostra Deus e o ser humano em relação dinâmica. O fato de que um ser humano como r. é vivo, quer o bem e age com autoridade não vem dele (2007, p. 77). Com esta explicação de Wolff fi ca difícil entender a ideia do espírito como algo que constitua uma “parte” do ser humano, como algo que lhe seja pessoal e confi ra autonomia própria ou possibilidade de identifi cação de forma separada de seu ser como um todo. Também não conseguimos identifi cá-lo como responsável pela personalidade, consciência, mente ou outra dimensão daquilo que pretende descrever a complexidade da existência humana. 1.3.2. O conceito de coração — leb/lebab Para Wolff, “a palavra mais importante para a gramática da antropologia veterotestamentária geralmente se traduz por ‘coração’ [...] diferentemente dos outros conceitos principais, refere-se, quase unicamente, ao ser humano” (2007, p. 79). Noto que exatamente aquilo que é mais enfatizado na teologia do ser humano no Antigo Testamento, que é o leb, não é considerado pelas perspectivas dicotômica e tricotômica, que se restringem aos conceitos de corpo, alma e espírito, respectivamente, basar, nephesh e ruach. O que torna o termo leb (ֵלב) interessante é a vasta amplitude de seu significado, porém, tipicamente apontando para a interioridade humana. Ainda que a sua tradução imediata seja coração, “conhecido como um órgão inacessível, oculto no interior do corpo” e 29| Teologia Sistemática III | FTSA | que “se contrapõe à aparência externa” (idem, pp. 83-84), este sentido típico do pensamento sintético hebraico quer indicar exatamente este paralelismo de ideias, tornando o coração não um mero órgão, mas o centro da interioridade humana, incluindo aquilo que hoje entendemos como funções cerebrais ou de “natureza intelectual-psíquica” (idem, p. 84). Segue uma lista de exemplos de atos que são atribuídos ao leb humano, elaborada por Wolff: a) Sensibilidade, emocionalidade, estado de ânimo (1 Sm 2:1; Sl 25:17; Pv 15:13); b) Desejo, aspiração — próximo daquilo que foi apresentado referente à nephesh (Nm 15:39; Sl 21:2; Is 9:10-11); c) Entendimento, compreensão, consciência, memória (Dt 29:4; Pv 7:3; 18:15; Is 6:10); d) Decisão, vontade, planejamento (Gn 6:5; Sl 20:4; Pv 16:9). Resumindo, o ser humano, como nephesh, é visto a partir de seus desejos, anseios e cobiças, indicando um aspecto mais instintivo, animal, quase incontrolável. Como ruach, ele é enxergado como alguém cuja vida é dependente da fonte divina, quer em sua sustentação, quer em sua motivação e capacitação. Como leb, o ser humano é percebido como um ser consciente e responsável por seus sentimentos, pensamentos e ações. Mais uma vez, seguindo a compreensão hebraica da antropologia, o coração não é identifi cado como uma “parte” e sim como representante fi gurativo da integralidade humana. Essa breve discussão sobre a constituição humana na ótica do Antigo Testamento tem por objetivo esclarecer o entendimento do pensamento hebraico que, originalmente, forma a Antropologia bíblica e que informa, em grande parte, a compreensão dos escritores do Novo Testamento. Certamente, o contato com a cultura grega, principalmente com a fi losofi a, infl uenciou a argumentação dos autores neotestamentários, uma vez que sua mensagem foi escrita para alcançar a igreja primitiva que se tornou prioritariamente gentílica, ou seja, sem possuir a bagagem histórico- | Teologia Sistemática III | FTSA30 teológica do pensamento hebraico. Nosso próximo passo, portanto, será investigar como os autores do Novo Testamento apresentam o ser humano em sua constituição, visando formar uma perspectiva ampla da teologia bíblica. Exercício de fi xação - 04 Qual das opções abaixo representa a melhor interpretação do termo hebraico nephesh aplicado à constituição humana? a) A vida como um todo, com atenção para os desejos humanos mais básicos; b) O âmbito do ser humano onde se reconhece a personalidade; c) A área da vida que se relaciona com as outras pessoas; d) A área da vida que se relaciona com Deus pela expressão dos sentimentos; e) O âmbito do ser humano referente às coisas espirituais. 1.4. A constituição do ser humano no Novo Testamento Certamente a Antropologia Teológica adotada pela maior parte da igreja evangélica contemporânea é mais infl uenciada pelos escritos do Novo Testamento que do Antigo. Nem por isso podemos afi rmar que esta perspectiva componha uma antropologia neotestamentáriaporque mesmo utilizando os textos que ali se encontram, percebemos que muitas interpretações atuais são infl uenciadas por paradigmas que parecem fugir da intenção dos autores bíblicos. É por essa razão que faremos a investigação de alguns textos do Novo Testamento, tentando entendê-los à luz daquilo que estudamos sobre como Antigo Testamento apresenta a constituição do ser humano. Nosso objetivo fi nal é obtermos uma teologia bíblica abrangente e coerente. 31| Teologia Sistemática III | FTSA | Após analisarmos alguns termos gregos, focaremos a investigação em dois grupos de textos que acredito serem sufi cientes para a compreensão daquilo que estou propondo. O primeiro grupo de textos é referente aos evangelhos, tentando obter o tratamento dado por Jesus e seus discípulos ao tema durante aquele período. O segundo grupo terá os textos paulinos que, ao tentar traduzir sua teologia para o mundo greco-romano, acabou estabelecendo a principal referência utilizada pela igreja contemporânea, mesmo parecendo haver problemas atuais de interpretação daquilo que ele tinha a intenção de ensinar. Como vimos, a antropologia bíblica tem seu início com a teologia desenvolvida pelos autores do Antigo Testamento. Por esta razão, é ela que norteia aquilo que foi desenvolvido, mais tarde, pelos autores do Novo Testamento, considerando que a fé cristã é uma continuidade da fé hebraica. Mais que isso, a maioria dos autores neotestamentários eram judeus ou possuíam formação cultural e religiosa dentro do judaísmo. Dessa forma, quando os autores utilizaram palavras gregas para escreverem seus textos, no fundo, eles tinham um pressuposto teológico hebraico, conforme apresentado na unidade anterior. Saiba mais A Septuaginta Muito antes de escreverem seus textos, os autores do Novo Testamento já possuíam a referência da Septuaginta. São os textos da Septuaginta que aparecem sendo citados pelos autores do Novo Testamento em seus livros quando se referenciam às Escrituras, portanto, era natural que usassem os termos gregos adotados naquela versão que traduziam os termos hebraicos originais. “Septuaginta, abreviação LXX, a mais antiga | Teologia Sistemática III | FTSA32 tradução grega existente do Antigo Testamento do hebraico original. A Septuaginta foi provavelmente feita para a comunidade judaica no Egito, quando o grego era a língua comum em toda a região. A análise da linguagem estabeleceu que a Torá, ou Pentateuco (os primeiros cinco livros do Antigo Testamento), foi traduzido perto da metade do século III a.C. e que o restante do Antigo Testamento foi traduzido no século II a.C. O nome Septuaginta (do latim, “70”) foi derivado posteriormente da lenda de que havia 72 tradutores, 6 de cada uma das 12 tribos de Israel, que trabalharam independentemente para traduzir o todo e, por fi m, produziram versões idênticas. Outra lenda afi rma que os tradutores foram enviados a Alexandria por Eleazar, o sacerdote principal de Jerusalém, a pedido de Ptolomeu II Filadelfo (285–246 a.C.), embora sua fonte, a Carta de Aristeas, não seja confi ável. Apesar da tradição de que foi perfeitamente traduzido, há grandes diferenças de estilo e uso entre a tradução da Torá pela Septuaginta e suas traduções dos livros posteriores do Antigo Testamento. No século III d.C., Orígenes tentou esclarecer os erros dos copistas que haviam se infi ltrado no texto da Septuaginta, que então variava amplamente de uma cópia para outra, e vários outros estudiosos consultaram os textos hebraicos para tornar a Septuaginta mais precisa”. Fonte: https://www.britannica.com/topic/Septuagint 33| Teologia Sistemática III | FTSA | Abaixo apresento um quadro que correlaciona os termos hebraicos aos termos gregos, que apontam para a principal opção de tradução, assim como a correspondência em português: Hebraico Grego Português basar (ָּבָׂשר) sarx (σάρξ) carne nephesh (֫נֶֶפׁש) psyche (ψυχή) alma ruach (רּוַח) pneuma (πνεῡμα) espírito leb (ֵלב) kardia (καρδία) coração 1.4.1. Os conceitos de carne, alma, espírito e coração - sarx, psyche, pneuma e kardia Nossa tarefa inicial será verifi car como se comporta a tradução dos conceitos hebraicos para o grego. Para isso, recorremos aos dicionários e léxicos da língua grega. Seguindo a ordem de termos indicadas na tabela, encontramos a tradução de basar como sarx. Em uma análise rápida, vemos que a tradução é bastante próxima já que sarx designa “a parte muscular do corpo humano ou animal”, abarcando a totalidade do corpo físico (Schweizer, 1971, p. 99-101). Eduard Schweizer (1971, pp. 98-151) faz uma longa apresentação do emprego da palavra, desde de a Antiguidade até os pais apostólicos, e chama a atenção para a infl uência da fi losofi a grega na atribuição de uma conotação negativa do termo, como algo corruptível, em contraposição à psyche, como algo imortal e superior. Mencionando as reações às difundidas ideias de Epicuro, Schweizer comenta que Não se deve esquecer que seus oponentes pertenciam a uma tradição que desde o tempo de Platão via os desejos e vontades do corpo como os meios por onde a alma era enfeitiçada, manchada e poluída. Nos dias do NT, então, a expressão ἡδονῂ σαρκός [desejo ou sensualidade da carne] era um slogan, especialmente popular no judaísmo helenista. Era constantemente visto | Teologia Sistemática III | FTSA34 como uma convocação às formas mais cruas de prazer. Os animais não conheciam nada melhor que ἡδονῂ, sem retidão divina; todas as coisas serviam ἡδονῂ σαρκός e à satisfação de seu desejo (1971, p. 104). É com esse pano de fundo que o apóstolo Paulo utiliza o termo, de forma fi gurativa, em suas cartas, pensando na natureza humana caída, com tendência ao pecado. Jürgen Moltmann esclarece a concepção teológica paulina: “Carne”, aqui, é uma afi rmação sobre a totalidade do homem, e não pode fi car limitada à corporalidade do homem. A sede do pecado, que fracassa no encontrar a vida, não é a sensualidade, nem são os impulsos ou instintos assim chamados inferiores, mas é o homem todo, primordialmente sua alma ou seu coração, o centro de sua consciência ou de sua vontade, na medida em que é possuído pelo impulso da morte (1999, p. 91). Nesse sentido, sarx se distancia do conceito de basar, que não carrega esse mesmo entendimento fi gurativo, e negativo, no pensamento hebraico. Passando para a análise da tradução de nephesh por psyche, Albert Dihle explica que essa palavra é a de menor ocorrência, dentre as aqui investigadas, e que significa “a impalpável essência central do homem, a sede do pensamento, desejo e emoção, a quintessência da vida humana” (1974, p. 616). É na psyche que se reconhece a personalidade, a existência como indivíduo, possuindo um entendimento, já mencionado anteriormente, como algo imortal, em contraste com sarx. “Quando usada para denotar a sede do intelecto e intenção, ψυχή [psyche], naturalmente, não corresponde ao hebraico ֶפׁש nem a muitas outras palavras no ,֫נֶ vocabulário psicológico hebraico, que é rico, embora diferente, quando comparado com o grego, c.f. ֵלב [leb], �ַרּו [ruach]” (Dihle, 1971, p. 632). Aqui também vemos um distanciamento entre a ideia de nephesh e psyche, causando certo descompasso com a construção veterotestamentária. Como vimo, nephesh não é considerada como aquilo que move o pensamento ou se reconhece a personalidade. 35| Teologia Sistemática III | FTSA | Tratando da palavra pneuma, usada na tradução de ruach, Hermann Kleinknecht explica que, “apesar do estoicismo, πνεῡμα [pneuma] possui apenas uma leve e secundária signifi cação no pensamento grego como um todo. Isto está em contraste com o seu importante papel no NT” (1968, p. 357). Isso signifi ca que a expressão recebeu nos textos do Novo Testamento um signifi cado maior que aquele presente na cultura grega visando se adequar ao Antigo Testamento. Para a cultura grega pneuma signifi cava algo semelhante a um dos entendimentos de ruach, ode fl uxo de ar ou sopro do vento, além dos aspectos relacionados à respiração e da ideia de algo que enchia o ser humano de inspiração e entusiasmo. Contudo, ruach também carregava o entendimento do vento proveniente de Deus como a força vital no ser humano e de capacitação. Principalmente com o apóstolo Paulo, a adjetivação de pneuma recebeu a conotação de nova existência, como um sopro do vento divino gerando nova vida a partir do relacionamento com Jesus Cristo. Exercício de aplicação - 05 Ao olharmos para a constituição do ser humano, a partir da antropologia bíblica, é correto afi rmarmos que: a) É possível perceber o corpo, assim como o sopro do espírito, que vivifi ca a minha alma. Por isso, assim como Deus, me percebo trino. b) Como não consigo perceber a minha alma, considero que o corpo físico é o elemento mais importante na minha existência. c) Percebo facilmente meu corpo físico, mas é bastante difícil distinguir a alma e o espírito. Assim, aquilo que didaticamente conhecemos como corpo, alma e espírito me parecem perspectivas do meu ser, que é uma unidade indivisível. d) Percebo claramente o meu espírito e consigo facilmente diferenciá-lo da minha alma e corpo físico, a carne. Sabendo que o sopro de Deus é o responsável por me dar o espírito, ele acaba se tornando a parte mais importante. e) A minha alma são os meus sentimentos e raciocínio. O meu espírito é como percebo a minha comunicação com Deus, sem que precise usar o raciocínio. Tudo isto acontece na minha carne, por isto, me percebo composto como três partes distintas e separáveis. | Teologia Sistemática III | FTSA36 Por último, observamos que a palavra kardia, traduzindo leb, representa na cultura grega o órgão central do corpo humano e dos animais. Ela também era usada pelos poetas para representar a sede da vida moral, intelectual, das paixões e emoções. Johannes Behm explica que “o uso do NT da palavra concorda com o uso do AT mas é distinto do uso grego” (1965, p. 611); isto porque o entendimento de leb recebe, à semelhança de rûach, uma interpretação teológica mais ampla e profunda que acaba sendo absorvida no Novo Testamento. Assim, “o coração é de maneira suprema o centro no homem a que Deus se volta, em que a vida religiosa é enraizada, que determina a conduta moral” (1965, p. 612). 1.4.2. O ser humano nos evangelhos Diferente dos textos do apóstolo Paulo, que procura organizar o pensamento doutrinário da igreja gentílica, as narrativas dos evangelhos não têm esta preocupação sistematizadora. Assim, nossa observação fi cará restrita aos acontecimentos como tais, tentando propor possíveis compreensões e caminhos para a antropologia ali apresentada. Um detalhe importante que deve estar em nossa mente é que os relatos dos evangelhos são posteriores, em termos de datação, aos textos paulinos. Eles foram compostos na língua grega, mas tinham a intenção de relatar os acontecimentos da vida e ministério de Jesus e seus discípulos. Esse grupo de pessoas, de quem os textos tratam, assim como seus contemporâneos, falavam aramaico e hebraico e possuíam a prerrogativa da teologia judaica, anterior ao tempo da igreja. Além disso, para eles, as Escrituras continham apenas os textos do que hoje chamamos de Antigo Testamento, ou seja, a Bíblia Hebraica. Esse alerta é importante por causa de possíveis interpolações de ideias considerando os cruzamentos de contexto e tempo que envolveram o registro dos textos feitos posteriormente em grego. A dinâmica utilizada para essa investigação é a de encontrarmos passagens que mencionem os principais termos que se refi ram ao ser humano, a partir daquilo que foi desenvolvido pelo Antigo Testamento. Mais especifi camente, procuramos as ocorrências de basar, nephesh, ruach e leb, em suas correspondências em grego que são, respectivamente, 37| Teologia Sistemática III | FTSA | sarx, psyche, pneuma e kardia, além da inclusão de soma nesta busca. Antes, porém, ressalto a importância de mantermos em mente o contexto em que os textos foram produzidos, caracterizado pela forte infl uência da cultura grega e da apocalítica judaica. Ambas as infl uências contribuíram para a perspectiva dualista da realidade e dicotômica do ser humano. Lembro que o dualismo apocalíptico construiu uma expectativa escatológica que percebia o mundo dividido entre Deus e Satanás, e seus respectivos exércitos angelicais, céu e inferno, vida e morte eterna, etc. Nesse sentido, é interessante notarmos como a teologia neotestamentária dialogou com esse ambiente na construção da compreensão do ser humano. Observando os textos, não percebo haver uma preocupação doutrinária na menção de algum aspecto da condição humana. Pelo contrário, as referências parecem concordar, em sua maioria, com o entendimento hebraico do assunto, conforme já discutido na apresentação dos textos do Antigo Testamento. Contudo, algumas narrativas de contornos escatológicos tendem a fortalecer um possível entendimento dicotômico do ser humano, mas elas também dão margem para uma interpretação de fundo apenas didático e não necessariamente defi nidor de sua constituição. Comecemos com algumas referências em que encontramos o uso da palavra sarx, que traduz o termo hebraico basar. Nos textos sinóticos de Mateus 16:17 e Lucas 24:39 percebemos um dualismo, não radical, em oposição ao pneuma, além da diferenciação entre aquilo que é puramente humano e aquilo que recebe a infl uência divina. Já nos textos do evangelho de João, cuja mensagem encontra-se mais integrada à cultura grega, vemos o mesmo dualismo, mas também uma conotação negativa de sarx quando associada à ideia de humanidade pecadora (e.g. Jo 1:13, 14; 3:6; 6:51, 52, 56, 63). De forma semelhante, temos o tratamento de soma, entendido como conceito paralelo ao da sarx — c.f. Mateus 14:12 — em Mateus 10:28, mas nesse texto ele se encontra em oposição a pneuma. Os textos que mencionam a psyche, como possível indicação de nephesh, ou seja, signifi cando simplesmente vida, não trazem novidade para o | Teologia Sistemática III | FTSA38 entendimento da constituição humana (e.g. Mt 26:38; Lc 2:35) a não ser a visível infl uência da perspectiva escatológica (Mt 16:26) apontando para o conceito grego de imortalidade. O termo mais complicado na comparação entre a antropologia do Novo Testamento e do Antigo é pneuma. Isso porque ele traz a compreensão apocalíptica e grega de representação de seres angelicais ou demoníacos, sem se referir à constituição humana em si (e.g. Mt 8:16; 10:1; 12:43; Mc 3:30). Também percebemos indícios de uma possível compreensão dicotômica, de maneira similar e talvez até intercambiável com o que ocorre com psyche (e.g. Mt 26:41; Mc 2:8; Lc 1:47; Jo 11:33, 13:21). Contudo, o maior uso parece concordar com a perspectiva veterotestamentária em que o ruach dá e sustenta a vida — também a nova vida —, capacita e infl uencia o comportamento e estado de ânimo das pessoas (e.g. Mt 27:50; Lc 1:47, 67, 8:55, 9:55; Jo 4:23, 11:33, 13:21). Por último, quando os evangelhos usam a expressão kardia, ela concorda com o Antigo Testamento sem qualquer novidade e mudança no entendimento da constituição humana (e.g. Mt 9:4; 12:34; Mc 7:21; Lc 2:35; Jo 12:40) ou mesmo na inclusão da mesma em alguma opção dicotômica ou tricotômica. 1.4.3. O ser humano no pensamento paulino O apóstolo Paulo é o principal autor a ser investigado sobre a complexidade da constituição humana. Foi ele o responsável pela estruturação, mesmo em forma de carta, das doutrinas da igreja. Também parece ter assumido o encargo de fazer a transição entre a teologia hebraica e nova realidade contextual greco-romana. Particularmente, defendo a hipótese de que seus textos possuem uma intencionalidade didática, em especial, na exposição da antropologia teológica. Apesar do texto da carta aos Tessalonicenses, particularmente o versículo 23 do capítulo 5, ser a referência que fundamenta a opção por uma compreensão tricotômicado ser humano, não podemos cair no equívoco de sintetizar todo o pensamento paulino nele. Pelo contrário, a fi m de entendermos o que o apóstolo Paulo pensava sobre a constituição humana, devemos 39| Teologia Sistemática III | FTSA | investigar a argumentação presente no conjunto de sua obra. Uma rápida apresentação de alguns textos de Paulo me parece sufi ciente para mostrar que ele não tem a intenção de apresentar uma doutrina sistematizada da constituição humana. Em diferentes situações, contextos e propósitos ele menciona o ser humano caracterizando-o de forma inconclusiva: • Romanos 1:24 – kardia e soma (coração e corpo); • Romanos 2:29 – soma e pneuma (corpo e espírito); • Romanos 7:23 – melos e nous (corpo e mente) • Romanos 8:13 – sarx e soma (carne e corpo); • 1 Coríntios 5:3 – soma e pneuma (pessoa e espírito); • 1 Coríntios 5:5 – sarx e pneuma (carne e espírito); • 1 Coríntios 14:15 – pneuma e nous (espírito e mente); • 1 Coríntios 15:44 – soma psychikon e soma pneumatikon (corpo natural ou psíquico e corpo espiritual); • 1 Coríntios 15:45 – pneuma e psyche (espírito e alma); • Filipenses 4:7 – kardia e nous (coração e mente); • 1 Tessalonicenses 5:23 – pneuma, psyche e soma (espírito, alma e corpo) Nessa lista incluí o termo nous, traduzido como mente, que embora não tenhamos abordado anteriormente, possui grande proximidade com o conceito de leb no hebraico. Outro termo mencionado foi melos que signifi ca um membro ou uma parte do corpo físico, muito próximo da palavra sarx. Interessante é percebermos o uso das expressões corpo natural e corpo espiritual, que foge da tendência de se considerar o corpo como algo apenas físico, especialmente quando interpretamos o texto de 1 Tessalonicenses 5:23. O que parece concluir-se dessa pequena lista é que o texto que acabou sendo utilizado como fundamento para a tricotomia não se repete em nenhum outro ensino de Paulo e, portanto, acaba fi cando como algo isolado em sua antropologia. Arrisco dizer que a perspectiva paulina concorda com a do Antigo Testamento, mas utiliza diversas caracterizações de funções ou percepções do ser humano para poder transmitir sua mensagem. Por isso, Schweizer afi rma: | Teologia Sistemática III | FTSA40 Os termos antropológicos de Paulo não são consistentes ou originais. O Espírito Santo afeta o homem todo e não pode ser explicado psicologicamente. Isso permite que Paulo adote idéias populares quase que livremente. A tese de que não há um πνεῡμα antroplógico em Paulo difi cilmente pode ser sustentada. Junto com σωμα e σάρξ, πνεῡμα é usado quase exclusivamente para as funções físicas do homem, 1Co 7:34; 2Co 7:1; Cl 2:5(?). Pode ser um paralelismo com ψυχή, (Fl 1:17) ou paralelismo com σάρξ, pode denotar o homem como um todo, com uma ênfase mais forte em sua natureza psíquica do que física, 2Co 2:13; 7:5; cf. 7:13; 1Co 6:18, tudo com pronomes pessoais (1968:434-435). Como conclusão do que procurei expor tanto no que se refere à constituição do ser humano, desde uma perspectiva neotestamentária quanto veterotestamentária, considerando as categorias dicotômica ou tricotômica, apresento a opinião de Philip J. Hefner: Há um sério questionamento sobre se qualquer uma destas categorias é útil ou mesmo inteligível para nós hoje. Lutero, por exemplo, já as contestou porque acreditava que a criatura humana é um ser unitário perante Deus, uma pessoa que é totalmente criação de Deus, totalmente pecadora e totalmente redimida [...] Em acréscimo a esta consideração teológica, a compreensão contemporânea do ser humano e da estrutura da personalidade humana não permite uma concepção dicotômica ou tricotômica, exceto metaforicamente. Requer-se uma perspectiva evolutiva moderna. Dentro desta perspectiva, há ainda considerável ambiguidade, incerteza e desacordo sobre a relação entre corpo e espírito ou mente. Nem mesmo há total acordo a respeito de como a mente deveria ser descrita. Não obstante, espírito ou mente e corpo ou 41| Teologia Sistemática III | FTSA | matéria são vistos como parte do mesmo processo, e não como entidades separadas [...] Para os teólogos na tradição da Reforma, as categorias contemporâneas de pensamento são libertadoras porque permitem expressar de maneira lúcida uma perspectiva unitária da criatura humana. O ser humano é uma criatura una, uma criatura da natureza, criada com uma relação especial com Deus o Criador e com a capacidade de perceber essa relação e de viver uma vida de resposta a Deus. O ser humano é uma criatura unitária em termos de origem e destino em termos de pecado e de erro e em termos de redenção (1990, pp. 335-337) Referências bibliográfi cas BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1985. BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert W. (ed.). Dogmática Cristã. Vol.1. São Leopoldo: Sinodal, 1995. BRUNNER, Emil. The Christian doctrine of creation and redemption. Dogmatics Vol. II. Philadelphia: Westminster, 1952. 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Mandato cultural A expressão mandato cultural reúne duas
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