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Autora: Profa. Angélica Carlini Colaboradoras: Profa. Elizabeth Nantes Cavalcante Profa. Maria Cecilia Rebello Pinho Teoria Geral do Direito II Professora conteudista: Angélica Carlini Angélica Carlini é natural de Araraquara, Estado de São Paulo, graduada em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e advogada atuante nas áreas de Direito do Seguro, Responsabilidade Civil e Relações de Consumo. É doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2012; em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2006; mestre em Direito Civil pela Universidade Paulista (UNIP), em 2002; e, em História Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1995. É pós-doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2015, sob orientação do prof. dr. Ingo Wolfgang Sarlet. Professora do curso de Direito da UNIP desde 1998, membro da Comissão de Qualificação e Avaliação (CQA), desde 2009 e professora convidada do mestrado em Administração da UNIP desde 2017. É coordenadora do Curso Superior Tecnológico de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro, desde 2018. Redige material didático para os cursos de Educação a Distância da UNIP e é docente no curso de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C282t Carlini, Angélica. Teoria Geral do Direito II / Angélica Carlini. 2. ed. São Paulo: Editora Sol, 2020. 100 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. História do direito. 2. Fontes do direito. 3. Ramos do direito. I. Título. CDU 340 U424.22 –20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ana Fazzio Kleber Nascimento de Souza Giovanna Oliveira Sumário Teoria Geral do Direito II APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 HISTÓRIA DO DIREITO .................................................................................................................................... 13 1.1 Código de Hamurabi ........................................................................................................................... 13 1.2 Código de Manu ................................................................................................................................... 15 2 DIREITO GREGO ................................................................................................................................................ 16 3 DIREITO EM ROMA .......................................................................................................................................... 20 3.1 Breve história de Roma ...................................................................................................................... 20 3.1.1 O Direito Romano ................................................................................................................................... 22 4 DIREITO MEDIEVAL ......................................................................................................................................... 24 4.1 Direito Canônico ................................................................................................................................... 26 4.2 Direito Inglês .......................................................................................................................................... 29 4.3 O Direito no século XVIII .................................................................................................................... 30 4.4 Direito Português ................................................................................................................................. 34 4.5 Direito no Brasil .................................................................................................................................... 36 4.6 As constituições brasileiras............................................................................................................... 37 Unidade II 5 DIREITO – CONCEITO E SIGNIFICADOS ................................................................................................... 50 6 SISTEMAS DO DIREITO ................................................................................................................................... 64 7 FONTES DO DIREITO ....................................................................................................................................... 68 7.1 Lei ................................................................................................................................................................ 70 7.2 Princípios ................................................................................................................................................. 72 7.3 Costumes ................................................................................................................................................. 73 7.4 Jurisprudência ....................................................................................................................................... 75 7.5 Doutrina ................................................................................................................................................... 77 8 RAMOS DO DIREITO ....................................................................................................................................... 78 8.1 Hermenêutica e aplicação do Direito ........................................................................................... 86 7 APRESENTAÇÃO A disciplina Teoria Geral do Direito II tem por objetivo qualificar o aluno para a compreensão do Direito como ciência, sua história e principais instrumentos de atuação na vida prática. Além disso, esta disciplina contempla estudos sobre a história do Direito no Brasil e no mundo, para que o aluno possa compreender que o Direito é uma obra concebida ao longo de muitos anos, fruto da cultura e da atuação do homem durante sua vivência como membro de diferentes grupos sociais organizados, construção que não termina nunca porque está sempre às voltas com a necessidade de solução de novos problemas. O Direito é uma construção histórica e social que se diferencia nos diversos grupos societários e, que nunca será concluída, porque com o passar do tempo a sociedade tem que resolver novos problemas e, para isso, precisa da contribuição dos estudos proporcionados pela referida matéria. A partir dessas premissas, contemplaremos: aspectos históricosdo Direito, no mundo e no Brasil; estudo das Constituições brasileiras ao longo dos períodos do Império e da República, até nossos dias; análise dos sistemas jurídicos e de alguns conceitos de Direito utilizados pelos estudiosos; compreensão das diferentes fontes que permitem o surgimento do Direito, em especial a lei, os costumes e os seus princípios gerais; os distintos ramos de Direito e seus objetivos; e, ao final, nos deteremos sobre interpretação do Direito e de seus principais mecanismos de atuação. Com esses tópicos se pretende que o aluno do curso de Gestão em Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro adquira conhecimento suficiente para transitar com naturalidade nos diferentes ambientes jurídicos, seja por possuir linguagem apropriada para compreender e se fazer compreender diante dos desafios da vida profissional, seja por ter raciocínio adequado para a resolução de problemas de caráter jurídico ou de questões administrativas que necessitem de compreensão jurídica para serem solucionadas de forma adequada e eficiente. Após os estudos realizados na disciplina Teoria Geral do Direito II, o aluno estará capacitado para compreender o conceito de direito e seus principais instrumentos de ação; as diversas áreas em que o Direito atua e as ferramentas mais úteis para realizar o entendimento das leis e dos regulamentos administrativos que estarão presentes na sua prática de gestor de serviços jurídicos, notariais e de registro. O conhecimento desta disciplina habilita o aluno a prestar serviços em escritórios de advocacia, departamentos jurídicos de empresas públicas ou privadas, cartórios de registro ou tabelionatos de notas e registros, porque garante sua capacidade de compreensão e de comunicação com profissionais da área do Direito, além de viabilizar a construção de análise e raciocínio jurídicos necessários para marcar sua ação profissional pela qualidade e eficiência. 8 INTRODUÇÃO Estamos em uma época de amplo debate sobre o Direito e sua aplicabilidade nas sociedades brasileira e mundial contemporâneas. Os principais fatos que ocorrem apontam para soluções que precisam da contribuição do conhecimento sobre Direito. Além disso, em vários aspectos de análise da vida cotidiana, inclusive nos esportes, as decisões dos tribunais têm sido debatidas pela população em geral, independentemente de possuirmos ou não formação para essa área específica do conhecimento. Podemos afirmar que o Direito está na pauta dos principais temas nacionais e internacionais e não é difícil de exemplificar isso. Preste atenção nos exemplos a seguir: Primeira notícia Hamburgo limita circulação de veículos a diesel Hamburgo é desde esta quinta-feira a primeira cidade da Alemanha a limitar a circulação de veículos a diesel. A decisão promete melhorar a qualidade de vida, mas não deixa de ser criticada pelas associações ambientais, que consideram que as autoridades não foram suficientemente longe (SOUSA, 2018). Segunda notícia O escândalo de corrupção que derrubou premiê espanhol e deixou poder na mão dos socialistas Mariano Rajoy é o primeiro chefe de governo da história da Espanha a perder o cargo após uma moção de censura. Em votação na manhã desta sexta-feira, no Parlamento, 180 deputados foram a favor de sua saída e 169 contra (houve uma abstenção). Eram necessários 176 votos (um voto a mais da metade dos 350 deputados). “Foi uma honra ser presidente do país e deixar uma Espanha melhor que encontrei”, disse Rajoy, que estava no cargo desde 2011. A moção de censura contra Rajoy foi apresentada pelo líder oposicionista Pedro Sánchez, que agora assume o cargo de premiê espanhol. A oposição pressionava pela saída do premiê por causa do escândalo de corrupção envolvendo o partido do agora ex-premiê, o conservador Partido Popular (PP) (BBC BRASIL, 2018). 9 Terceira notícia Lei citada por Trump para separar pais e filhos imigrantes não existe A lei que autoriza a separação de pais e filhos imigrantes apreendidos na fronteira do México com os Estados Unidos não existe, ainda que o presidente americano, Donald Trump, insista em sua validade, mostra o serviço de verificação de fatos da Associated Press. Em recentes declarações a jornalistas e em entrevista na Fox News, Trump não apenas manteve o argumento como culpou os democratas pela implantação da suposta legislação. A separação de pais e filhos se deve, na verdade, à política de “tolerância zero” adota pela administração Trump na questão imigratória. Nenhuma lei a impõe. “Tolerância zero” significa que quando se descobre uma família entrando de forma clandestina dos Estados Unidos, os pais são detidos e processados penalmente, mesmo se não tiverem antecedentes criminais em seus países de origem. É neste momento que as crianças são separadas dos seus responsáveis. Antes da política, em geral, os pais eram alvo de processos civis de deportação, que não requeriam separação imediata. Um relatório da Segurança Nacional obtido pela Associated Press mostra que, desde quando a “tolerância zero” foi imposta, em abril, 1.995 crianças foram separadas de seus pais. As reiteradas – porém pouco específicas – referências de Trump à lei democrata parecem aludir a um projeto de 2008. A legislação foi aprovada por unanimidade no Congresso e assinada pelo então presidente do país, o republicano George W. Bush. O texto prevê a liberação e ajuda a menores que chegaram à fronteira sem pais ou tutores e nada fala sobre a separação de famílias (O POVO ONLINE, 2018). Quarta notícia Paolo Guerrero leva suspensão por doping ao TAD O avançado do Flamengo foi condenado pelo Comité de Disciplina da FIFA a um ano de suspensão, depois de ter acusado doping num jogo de apuramento para o Mundial 2018. O internacional peruano Paolo Guerrero entregou, esta sexta-feira, um recurso no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) para anular a sua suspensão devido ao uso de substâncias dopantes, informou a instituição (O JOGO, 2018). 10 As quatro notícias tratam de temas diferentes: a primeira é sobre a cidade alemã de Hamburgo que limitou a circulação de veículos movidos a diesel, com o objetivo de melhorar a qualidade do ar, ou seja, diminuir a poluição. Foi publicada pelo portal de notícias Euronews, de Portugal. A segunda refere-se ao escândalo de corrupção que derrubou o presidente de governo da Espanha e tem detalhes de como ocorreu a votação no Poder Legislativo espanhol. Foi publicada pela BBC, uma importante agência de notícias que divulga suas informações em vários idiomas em todo o mundo. A terceira aborda a política adotada pelo presidente norte-americano Donald Trump em relação à imigração clandestina e à suposta existência de uma lei que o autorizaria a separar pais e filhos quando apreendidos em situação de irregularidade. Foi publicada pelo portal de notícias O Povo, de Fortaleza, no Ceará. E a quarta, lançada no portal português O Jogo, faz referência à punição ao atleta Paolo Guerrero, peruano que atua no Flamengo, time do Rio de Janeiro, e que foi punido pelo uso de substância proibida para a prática de esportes, caracterizando o chamado doping. Em todas as diferentes matérias (poluição, mudança de governo, política de imigração e esporte), o Direito está presente e com grande relevância. Hamburgo precisou de uma lei para restringir a circulação de veículos a diesel; a Espanha necessitou da aprovação do Legislativo para destituir o presidente de governo; nos EUA, Trump praticou atos com fundamento em uma lei que parece não existir ou que não regula o assunto da forma como ele gostaria que fizesse; e, por fim, uma lei que proíbe a prática de esportes sob o efeito de certas substâncias químicas foi responsável pela condenação do jogador de futebol no Brasil. O Direito foi o elemento subjacente a todas as notícias que analisamos. Sem a sua existência, certamente, a forma de solução desses problemas seria outra, bastante diferente. Os veículos continuariam circulando livremente em Hamburgo,mesmo causando poluição e prejuízo para o meio ambiente; o presidente de governo da Espanha seria o mesmo, ainda que provada a prática de atos passíveis de punição; o presidente dos Estados Unidos poderia fazer o que bem entendesse com os imigrantes sem precisar dar nenhuma satisfação às comunidades nacional e internacional e cada atleta das diferentes categorias de esporte praticaria sua modalidade como quisesse, mesmo sob forte influência de drogas capazes de alterar seu desempenho para melhorar e tornar a competição desigual. O Direito existe exatamente para buscar soluções que sejam de interesse de uma comunidade social, de um agrupamento de pessoas que se organizam para viver melhor, ou seja, para que haja ordem, garantia de direitos e deveres e, consequentemente, equilíbrio, isonomia e justiça. A ideia fundamental que envolve as práticas do Direito é essa: a melhor organização possível para cada grupo social, respeitadas as características históricas e culturais das diferentes comunidades (por isso nem sempre será possível existir uma lei mundial aplicável a todas as nações do planeta Terra), que garanta a todos o pleno exercício de seus direitos (que serão determinados pela própria comunidade) e que, ao mesmo tempo, exija de cada um dos cidadãos que cumpra rigorosamente seus deveres (que também serão detalhadamente determinados pela sociedade). Aqueles que não cumprirem suas obrigações serão punidos e, evidentemente, a punição será definida previamente pelo grupo social e tornada lei de cumprimento obrigatório sempre que ocorridas as circunstâncias capazes de ensejar a sua aplicação. É por isso que alguns países punem o crime de homicídio com pena de morte, outros com prisão perpétua e há aqueles com prisão por um determinado número de anos. Não há regra fixa para essa punição porque cada país adota aquilo que lhe parece melhor, em conformidade com sua história, sua cultura, seus valores e sua forma de organização social. 11 O Direito é, portanto, fruto da decisão das diferentes sociedades ao longo de sua história. É mutável, imperfeito em muitos momentos, inadequado em outros, ótimo em determinadas ocasiões e sempre possível de ser modificado e aprimorado com o passar do tempo e a partir do acúmulo das experiências que uma sociedade que têm ocorrido. Além disso, é preciso alterá-lo quando as circunstâncias se modificam, como tem ocorrido nos últimos anos no Brasil e no mundo, em razão das significativas transformações tecnológicas vivenciadas. Hoje, tão importante quanto punir crimes que comumente ocorrem em toda parte, como furto, roubo ou homicídio, deve-se fazê-lo com os chamados “crimes eletrônicos”, praticados a partir do furto de dados bancários ou pessoais que causam grandes prejuízos às pessoas e às instituições econômicas como bancos, financeiras e seguradoras, entre outros. Consequentemente, as sociedades organizadas precisam estar atentas para manter o Direito que as regula sempre adequado às suas necessidades, às mudanças que ocorrem frequentemente em todas as áreas da vida social. Transformações na economia, na tecnologia, nas formas de trabalho e prestação de serviços, na vida e na organização das famílias, nos equipamentos sociais como escolas, hospitais, formas de lazer, entre outros, obrigam as comunidades a modificar sua organização e, em função disso, alterar o Direito. Devido a tal fato, estudamos a forma de organização do Estado e quais são os deveres dele para tentar garantir que a vida social se desenvolva com harmonia e justiça para todos os cidadãos. Neste momento, estudaremos mais detalhadamente o Direito para compreender seu alcance e valor na organização da vida social, suas possibilidades de atuação e as diferentes áreas em que se divide para tentar estruturar todas as possibilidades de atuação dos homens na sociedade. Iniciaremos nosso percurso de estudos com um pouco de história do Direito no mundo e no Brasil, para percebermos que, na verdade, ele é uma construção dos homens ao longo dos diversos períodos da História e, tudo indica, continuará sendo modificado, sempre com erros e acertos, porém, procurando mecanismos que garantam uma vida digna para a sociedade para a qual se aplica. Depois, estudaremos o valor das constituições brasileiras como instrumento de lei mais importante do país; os sistemas jurídicos adotados em diferentes nações e os conceitos de Direito que são mais conhecidos. Compreenderemos ainda o papel das fontes do Direito, ou seja, dos elementos que contribuem para sua formação, em especial, a lei, os costumes e os seus princípios gerais. Em seguida, estaremos prontos para analisar algumas áreas importantes do Direito e os principais temas de que elas tratam. Finalmente, estudaremos os elementos essenciais para que se possa interpretar e aplicar o Direito na vida prática e cotidiana. É importante que, a partir de agora, o aluno passe a identificar a presença do Direito em sua vida diária e, também, na vida do país e do mundo. O que praticamos determinado exclusivamente pela nossa vontade e o que fazemos ou deixamos de fazer em razão do Direito? Há inúmeras situações cotidianas que são estabelecidas pelo Direito e que nem sempre ficam perceptíveis para todas as pessoas. Comece a realizar esse exercício de percepção e, certamente, ficará espantado com a quantidade de situações que o Direito estabelece em sua vida e na de todos ao seu redor. 12 Por isso, conhecer Direito não é relevante só para a sua formação profissional. É fundamental para seu desenvolvimento como cidadão, a fim de permitir que se compreenda melhor a organização da sociedade e, com isso, consiga perceber onde e como pode influir para melhorar as situações que estão em desequilíbrio. Cada cidadão brasileiro pode contribuir de forma muito efetiva e prática com o aprimoramento da sociedade em que vive, para aperfeiçoar as práticas de governo (municipal, estadual e federal) em todos os níveis (legislativo e executivo) e, principalmente, pode ser um permanente fiscal dos agentes públicos com o intuito de garantir que os recursos tributários sejam utilizados para garantir o acesso e a qualidade para tudo o que faz a vida ser digna, em especial, educação, saúde, assistência social, moradia e capacitação para o trabalho. A sociedade mais justa e solidária que desejamos depende também de nossa atuação na cidadania participativa. Esperamos que este livro-texto possa ajudá-lo nessa tarefa. 13 TEORIA GERAL DO DIREITO II Unidade I 1 HISTÓRIA DO DIREITO Nosso objetivo neste item não é transformar você, aluno, em profundo conhecedor da história do Direito porque isso demandaria um tempo considerável. A intenção é viabilizar a sua compreensão como uma ciência viva, fruto da construção de diferentes sociedades e variável em conformidade com os valores que cada nação deseja preservar e tornar obrigatórios para todos. Portanto, poderemos compreender que não existe um Direito perfeito, pronto e totalmente imutável. Ao contrário, as sucessivas experiências históricas vão demonstrar que ele precisa ser sempre modificado, aprimorado, adequado às necessidades dos diferentes grupos sociais e também àquelas que as distintas organizações sociais possuem em comum, como os problemas com o meio ambiente e a prevenção de práticas terroristas, que hoje afetam grande parte da população. Para facilitar a compreensão e funcionar como proposta de reflexão sobre as diversas fases do Direito ao longo do tempo, utilizaremos a sequência cronológica. História não é necessariamente estudada por linhas de tempo, pode empregar outros modos de abordagem. Todavia, neste caso, empregaremos o seu uso a fim de favorecer a compreensão e a construção dos pensamentos analítico e reflexivo, ou seja, para obtermos elementos para analisar e refletir sobre as diferentes formas pelas quais o Direito já foi tratado. 1.1 Código de Hamurabi Os estudos indicam o Código de Hamurabi como uma das primeiras leis escritas da história da humanidade.Hamurabi foi um rei que governou a Babilônia, região do Oriente Médio em que hoje se encontram o Iraque e uma parte do Irã. Ele teria sido rei no período de 1792 a.C. e o código que tem seu nome seria uma lei com mais de 200 artigos. Sobre o Código de Hamurabi, consta o seguinte: [...] as sociedades mesopotâmica e egípcia, em face de seu caráter urbano e comercial, passaram a desenvolver um grau de complexidade que exigia a vigência de um direito mais abstrato do que o simples costume ou tradição religiosa. Era necessário um conjunto de leis escritas que desse previsibilidade às ações no campo privado, que estipulasse algum tipo de tribunal ou juiz para resolver controvérsias e que fosse inteiramente seguido em toda a extensão do reino para o qual se destinava [...]. Deve ser ressalvado, contudo, o fato de que uma característica do direito arcaico ainda produziu efeitos nessas civilizações urbanas: as normas de direito tinham sua justificação no princípio da revelação divina. [...] 14 Unidade I O exemplo mais enfático dessa revelação consta do Código de Hammurabi: num extenso prólogo, fica ali explicitado que o conjunto de leis foi oferecido ao povo da Babilônia pelo deus Samas, por intermédio do rei Hammurabi, e não por decisão deste. Na exata descrição de Aymard e Auboyer, “Hammurabi, ao publicar o seu código, quer satisfazer a Samas, deus da justiça, ‘fazer resplandecer o direito no país, arruinar o mau e o malfeitor, impedir que o forte maltrate o fraco’. Mas a justiça, no fundo, identifica-se à vontade dos deuses, cujas razões escapam à compreensão dos homens: e estes não devem julgá-la”. [...] O direito terá de se originar num plano superior: a revelação divina (PINTO, 2007, p. 25). O Código de Hamurabi não foi o único conjunto de leis cuja autoria foi atribuída aos deuses. Na verdade, os reis se consideravam os representantes de deus na Terra e, por isso, a eles eram reveladas as leis que deveriam ser cumpridas por todos. Com isso, a elas se atribuía um caráter de “santidade” que impedia qualquer discussão ou crítica, porque todos temiam sofrer as consequências dos impiedosos castigos que acreditavam que lhes seria dirigido se duvidassem da sabedoria e do poder dos deuses. O Código de Hamurabi (ou Hammurabi) foi descoberto na Pérsia, em 1901, por um grupo de arqueólogos franceses. As leis estão gravadas em uma pedra negra que, na atualidade, se encontra no Museu do Louvre, situado em Paris, França, um dos mais importantes acervos de pinturas e esculturas do mundo. Figura 1 Os estudiosos apontam que o texto do Código de Hamurabi já tratava de questões que ainda hoje estão presentes na organização das sociedades contemporâneas, como o roubo e a receptação de produtos roubados; o estupro; o recebimento de salários pelos trabalhadores; o funcionamento do poder judiciário, entre outros. 15 TEORIA GERAL DO DIREITO II Os historiadores atribuem ao Código de Hamurabi o surgimento da lei do “olho por olho, dente por dente”, também conhecida por lei de talião, cujo significado seria lei de retaliação, ou simplesmente lei que permite a prática de vingança por parte daquele que foi atingido pela ofensa de outro. A pena deveria ser aplicada na mesma proporção da ofensa. Princípio semelhante é encontrado na Bíblia (Êxodo: 23-25), que conta a história de Moisés, a quem Deus ditou os dez mandamentos (capítulo 20). O capítulo (Êxodo: 21) do referido livro trata das leis acerca dos servos e dos homicídios e daquelas referentes à violência. Se considerarmos a época em que esses fatos ocorreram: Código de Hamurabi, deslocamento de populações pelo deserto para procurar terras em que pudessem se fixar, e, principalmente, as dificuldades de organização social nesse período de inúmeras tribos com diferentes valores e crenças, é aceitável supor que uma lei permitisse a prática da violência como forma de organização. Em nossos dias, leis que permitem a prática de violência são cada vez mais raras e, quando existem, são fortemente criticadas – haja vista o debate em torno do porte de armas. Nos Estados Unidos há, em alguns estados da federação, ampla liberdade para que o cidadão comum tenha armas e possa portá-las consigo em todos os lugares, não apenas em sua casa. Aqui no Brasil existe lei que restringe a compra e o porte de armas pelos cidadãos comuns. Em ambos os países, há debate sobre a lei e a necessidade de mudança. Nos Estados Unidos, existe o clamor daqueles que entendem que portar armas gera mais violência e usam como argumento os ataques realizados em escolas por estudantes que, ainda que muito jovens, têm acesso a armas existentes em suas casas ou vendidas pela rede mundial de computadores; aqui no Brasil, há o clamor daqueles que entendem que diante do quadro de violência social em que estamos vivendo, seria muito bom que as leis fossem flexibilizadas e que cada cidadão tivesse maior facilidade para adquirir armas e se defender de eventuais agressões. O debate é atual e acontece em vários outros países, o que demonstra que a aplicação da chamada lei de talião ainda é motivo de debate no mundo contemporâneo e não está perdida na história como se poderia supor. 1.2 Código de Manu Outra referência de lei historicamente relevante é o Código de Manu, que teria sido escrito em forma de versos, na Índia, cerca de 1.000 anos a.C. Ele reflete a sociedade de castas que se organiza na Índia e que tem nos brâmanes a casta superior, formada por líderes, inclusive os espirituais. Portanto, o texto da lei reflete as crenças espirituais daquela comunidade porque, naquele momento histórico, a religião era fundamental para a organização. Alguns de seus aspectos interessantes são o tratamento dispensado às testemunhas que se mantivessem em silêncio ao serem interrogadas e o dado ao fim do matrimônio pela prática do divórcio. 16 Unidade I Os indivíduos chamados para prestar depoimento que se mantivessem calados eram considerados como tendo praticado falso testemunho, ou seja, eram tidos como mentirosos e condenados à pena de precipitação no abismo. O texto da lei declarava que a testemunha que comparecesse ao tribunal e nada dissesse agiria como aquele que mente, ou seja, seria culpada por ser mentirosa e deveria ser punida. Quanto ao divórcio, ele somente poderia ser decidido pelo homem e nunca pela mulher. Além disso, quando o homem desejasse o divórcio, ele tinha direito de se apropriar dos bens da mulher e, expulsá-la de casa apenas com a roupa do corpo e o mínimo necessário para sobreviver. O Código de Manu também tratou de questões como a incidência de juros nas transações comerciais e dos crimes de roubo e furto. Os juros deveriam ser aplicados em percentual menor para os brâmanes e maior para as castas menos nobres. E o roubo e o furto eram definidos de maneira semelhante àquela que utilizamos até hoje no direito penal brasileiro, ou seja, roubo é tirar uma coisa com uso da violência e o furto sem o uso da violência. Novamente encontramos situações que, até hoje, estão sendo discutidas pelas sociedades. O papel das testemunhas é ainda fundamental para a prova dos fatos nos diferentes casos que chegam à justiça e, por vezes, o silêncio é bastante negativo para a solução das questões jurídicas, tanto quanto é negativa a mentira praticada por algumas testemunhas quando prestam depoimento. Por outro lado, a divisão de bens por ocasião do divórcio, o pagamento de pensionamento entre o casal após a separação, a iniciativa de interpor o pedido de divórcio, todas são questões ainda muito debatidas, tanto no Brasil como em outros países do mundo. 2 DIREITO GREGO A Grécia e sua história são habitualmente estudadas pelos historiadores a partir da divisão em três períodos: • do século VIII a.C. a 480 a.C., chamado de Período Arcaico; • de 480 a.C. a 338 a.C., o denominado Período Clássico; e, • de 338 a.C. a 150 a.C., o Período Helenístico, durante o qual ocorre a submissão da Grécia à Roma. Figura 2 – Monumento Partenon,construído em homenagem à Deusa Atena. Situado na Acrópole, em Atenas, Grécia 17 TEORIA GERAL DO DIREITO II José Reinaldo de Lima Lopes compõe alguns traços do Direito Grego e o faz distinguindo esse Direito daquele praticado em Roma, que será nosso próximo objeto de estudo. Lima Lopes (2008) ensina que: Algumas coisas distinguem Grécia de Roma no campo do direito. Por exemplo, não existe entre os gregos uma classe de juristas e não existe um treinamento jurídico, escolas de juristas, ensino de direito como técnica especial. Existem sim as escolas de retórica, dialética e filosofia. Ali se aprende a argumentação dialética que vai ter um uso forense ou semiforense (JONES, 1972). Havia, porém, costume de aprender de cor (recitando em forma poética) alguns textos jurídicos, assim como os poemas de Homero. As leis de Sólon eram ensinadas como poemas, de modo que todo ateniense bem-educado terminava por conhecer sua tradição político-jurídica comum. A literatura “jurídica” era fonte de instrução e prazer. Em geral no tempo da filosofia socrática sabia-se ler. As técnicas propriamente jurídicas eram próprias do logógrafo, o redator de discursos forenses: pedidos, defesas etc. O direito, presumia-se, devia ser aprendido vivenciando-o. As leis deveriam fazer parte da educação do cidadão. As discussões sobre justiça são discussões sobre a justiça na cidade, entre cidadãos e iguais. As leis menores não importavam para a discussão política. [...] Havia muitas diferenças de classe nas cidades gregas e em Atenas. Ao lado dos proprietários rurais, latifundiários, que tendiam a formar a oligarquia conservadora, estavam os hoplitas, artesãos, agricultores, homens livres, que favoreciam uma democracia moderada. Restavam também os miseráveis, abertos a uma democracia radical. Muitas das reformas feitas ao longo da história ateniense são resultado destas lutas sociais: Aristóteles considerava um traço constitutivo da democracia ateniense a proibição da servidão por dívidas (LOPES, 2008, p. 24). Observação Os hoplitas eram os soldados gregos. Em primeiro lugar, podemos concluir que a Grécia não vivia sem conflito suas relações sociais, embora tenha sido o berço da democracia e lugar privilegiado para o exercício da filosofia e da política. Todavia, isso não eliminava as tensões sociais e a luta por mudanças na lei e no governo. Sócrates, que morreu condenado por suas ideias sem jamais haver praticado um ato de violência, foi um bom exemplo de como os conflitos podem ocasionar atitudes radicais em determinadas épocas históricas. Em segundo lugar, enfatizamos como aspecto importante, que as leis deviam ser aprendidas pelos gregos e memorizadas para serem faladas quando fosse preciso, porque todos deveriam saber já que não havia uma carreira jurídica, ou seja, a lei não era algo de conhecimento apenas para especialistas, mas também para toda a comunidade que tivesse acesso a ela. Como lemos anteriormente, “as leis deveriam fazer parte da educação dos cidadãos”. 18 Unidade I Esse exemplo da Grécia deveria ser rigorosamente seguido em nossos dias, porque, realmente, se a população conhecesse melhor seus direitos e deveres, poderia contribuir para que a organização da sociedade fosse mais efetiva e eficiente. Os gregos acreditavam que o Direito deveria ser vivenciado, o que, na atualidade, faz falta em muitos momentos, porque o Direito não é conhecido e, por isso, não pode ser vivido por todos os cidadãos. Na Grécia era papel do rei conter os conflitos que eram muito diferentes nas áreas da cidade e do campo, assim como compreender as práticas de seus emissários que atuavam no trabalho militar, administrativo e fiscal, ou seja, de cobrança de tributos. Como a economia grega acontecia de forma distinta nas cidades e nos campos, é possível supor que, a exemplo da atualidade, as divergências fossem díspares e igualmente complexas. O Direito praticado na Grécia era laico, ou seja, as leis eram feitas pelos homens e podiam ser revogadas por eles, porque não havia nenhuma pretensão de que os deuses estivessem agindo para influenciá-las. Não havia o cultivo da ideia de que as leis poderiam ter sido reveladas pelos deuses nem que deveriam ser fruto de uma tradição herdada dos antepassados. A lei era tida como fruto da discussão democrática dos cidadãos, pelo menos daqueles que podiam participar da democracia estabelecida à época, que não era permitida a todos os habitantes das cidades gregas. Atenas conheceu duas formas diferentes de tribunais. O primeiro era voltado para os casos dos chamados crimes públicos, cujo julgamento era realizado nos tribunais que tinham participação de dezenas de membros. O segundo fazia o julgamento dos casos de menor repercussão pública, quase sempre de conflitos patrimoniais, que eram praticados por um magistrado único. Nesse caso, após a decisão, poderia ser apresentada uma apelação para um órgão colegiado, formado por um número maior de integrantes. Nos tribunais, a exemplo do que acontece até hoje, era preciso provar os fatos ocorridos e que haviam gerado o conflito, assim como evidenciar qual o direito que protegia a parte supostamente atingida pela divergência. Esse direito poderia derivar tanto das leis quanto dos costumes praticados naquela época, que eram tão exigíveis quanto as leis. Os advogados ainda não existiam da forma como conhecemos hoje e, curiosamente, era considerado moralmente indigno receber dinheiro para realizar uma defesa perante um tribunal. A crença era que aquele que precisava pagar não tinha uma boa causa para defender. As pessoas que redigiam os discursos a serem proferidos nos tribunais ficavam ocultas, não apareciam para fazer a acusação e nem a defesa. Outra pessoa era designada para fazê-lo perante o tribunal. Os juízes testemunhavam nos processos que estavam julgando, sempre que conhecessem fatos relacionados com a causa. Isso decorria do fato de que eles eram juízes não profissionais, ou seja, pessoas escolhidas para essa atividade, porém sem concurso ou seleção prévia, diferente do que temos na atualidade. As testemunhas ou partes poderiam depor por escrito ou pessoalmente. E as acusações de crimes podiam ser feitas por qualquer pessoa que se sentisse indignada quando tivesse conhecimento de um delito. Não havia um órgão específico para denunciar delitos como temos hoje, no Brasil, o Ministério Público, federal ou estadual, a quem compete por força de lei denunciar os crimes e 19 TEORIA GERAL DO DIREITO II pedir seu julgamento pelo Estado. Entretanto, embora qualquer cidadão pudesse denunciar infrações, essa delação deveria ser realizada por escrito, para desestimular que ocorressem por revanchismo, vingança, ou seja, sem fundamento. A liberdade de processar era compreendida como prática importante da democracia, porém tornou-se um problema para Atenas, porque muitas pessoas eram processadas. Curiosamente, no Brasil contemporâneo, vivemos uma fase de grande judicialização dos conflitos, com um número enorme de processos sendo movidos no poder judiciário. A Grécia era uma organização social e política que temia a impunidade. Acreditavam os gregos que uma ofensa, por menor que fosse, quando não punida, poderia desarranjar toda a cidade, gerando vingança, por exemplo. Aqui também encontramos um ponto de encontro com as reflexões contemporâneas sobre segurança. Há uma política pública denominada “Tolerância Zero”, aplicada em Nova Iorque, nos Estados Unidos, com grande êxito na década de 1990, que contribuiu para a drástica redução dos números da violência urbana e que era fundamentada nesse princípio que os gregos já utilizavam: nenhum crime deve ficar sem punição. Do mais simples furto ao crime hediondo, todos os atos criminosos devem ser punidos, para não gerar a sensação de impunidade que é fomentadora da prática de outros crimes. Esse é um tema que no Brasil atual é muito discutido, face aos números atuais da violência em muitas cidades brasileiras. As penasaplicadas na Grécia eram severas e consistiam em: castigo, multas, ferimentos corporais, mutilações, morte e exílio. Também podiam ser empregadas a pena de morte e o ostracismo. Este consistia em afastar a pessoa da vida social, expulsá-la por um determinado número de anos de qualquer convívio político, profissional ou comercial. O indivíduo se tornava um excluído da sociedade em razão da condenação por um delito. Devemos aos gregos algumas instituições do direito que são utilizadas até hoje, como, por exemplo, a obrigação das partes de agirem de boa-fé nos contratos e nos compromissos em geral. Contudo, principalmente, devemos a eles a aproximação entre o Direito e a Filosofia, questão importante para que possamos discutir a efetividade da justiça. Entretanto, ainda mais importante que isso: A experiência grega tem uma novidade importante [...]. A promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino: são assuntos humanos. Não significa que a sociedade grega não fosse religiosa ou até supersticiosa em certos termos. Tampouco significa que a condução da política fosse feita sem qualquer vinculação com o sagrado. No entanto, o direito já não precisa ser revelado divinamente para valer e nem é preciso invocar a vontade dos deuses para deliberar sobre as leis (LOPES, 2008, p. 26). O Direito na Grécia é construído por homens e não por homens aos quais se atribuía o poder de ouvir as divindades para saber o que era certo ou errado. Isso, sem dúvida, foi benéfico para a organização social da época e para a humanidade. 20 Unidade I Observação Sólon viveu na Grécia de 640 a.C. a 588 a.C. Foi um importante legislador e homem público, considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga. 3 DIREITO EM ROMA 3.1 Breve história de Roma A história de Roma como cidade-estado e das conquistas daquele que ficou conhecido como Império Romano é uma das mais amplas e complexas páginas da humanidade. Para nós, neste momento do curso de Gestão de Serviços Jurídicos, Notariais e de Registro, importa conhecer aspectos relevantes do direito construído naquele período histórico e avaliar se, de alguma forma, o Direito praticado no Brasil sofreu influência do Direito Romano. Os estudos históricos apontam que Roma foi criada em torno dos anos 750 a.C. Há uma lenda sobre uma loba que teria criado dois irmãos como se fossem seus filhos, amamentando-os e protegendo-os. Esses irmãos, Rômulo e Remo, seriam, então, os fundadores de Roma. Evidente que se trata de uma lenda, não se pode considerar como verdade, porém, é muito conhecida e tem sido repetida por sucessivas gerações. O Império Romano estabeleceu-se em torno do Mar Mediterrâneo, o qual os romanos chamavam de Mare Nostrum – “nosso mar” – que se estende entre a Europa e a África. Nos tempos de Cristo, o Império Romano ocupava as regiões que hoje pertencem à Espanha, Portugal, França, Itália, Alemanha, Grécia, entre outros – um imenso território que eles conquistaram ao longo de sua história. Figura 3 – Mapa da área do Império Romano 21 TEORIA GERAL DO DIREITO II Saiba mais O filme O Gladiador, de 2000, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Russell Crowe, conta uma estória ocorrida durante o Império Romano, sobre a disputa de poder de dois generais romanos, Maximus e Cômodo, que querem suceder o imperador Marco Aurélio. Trata-se de ficção, porém, retrata aspectos característicos daquele período histórico. Vale a pena assistir! O GLADIADOR. Dir. Ridley Scott, 2000. 155 minutos. Os estudos de história e geografia do Império Romano são muito importantes, porém, neste momento, nosso foco é principalmente o Direito praticado naquele período histórico e as influências que exerceu no direito contemporâneo. Roma teve três grandes fases de organização política: a monarquia, a república e, por fim, o império. Isso ocorreu entre os anos 750 a.C. até 470 a.C., aproximadamente. A sociedade romana era estruturada com grande divisão de classes. Parte disso era por riqueza ou por ausência dela; parte era por cidadania; outra segmentação se dava entre os que tinham liberdade e os que eram escravos, enfim, não se tratava de uma organização simples. Os cidadãos de origem abastada eram chamados de patrícios enquanto aqueles de linhagem pobre eram os plebeus, termo que ainda hoje utilizamos para nos referir a pessoas de poucas posses. Durante a fase em que Roma foi um reino, os patrícios ocupavam o cargo de conselheiros do rei e, por via de consequência, controlavam boa parte das atividades políticas e econômicas do Estado. Mais tarde, quando Roma viveu um período republicano eles se tornaram consultores jurídicos, magistrados, oficiais militares, representantes de Roma nos territórios conquistados, senadores e até sacerdotes. Eram designados pelo cargo em caráter perpétuo, o que lhes garantia grande período de exercício do poder. Já os plebeus não podiam exercer nenhum cargo público, nem se casar com patrícios. No decorrer da história, eles lutaram para obter maior poder político e mais direitos, porém nunca chegaram a ter efetiva paridade com os patrícios. Todavia muitos plebeus tiveram oportunidade de enriquecer com atividades ligadas ao comércio, a navegação e os bancos, em razão da grande expansão do Império Romano por meio das campanhas militares. A escravidão não era decorrente de raça. Eram feitos de escravos os habitantes de áreas geográficas conquistadas pelos romanos ou, ainda, aqueles que não pagassem suas dívidas, as crianças abandonadas por seus pais e os condenados à pena de escravidão. Era possível deixar de ser escravo mediante o pagamento de um valor em dinheiro ou por determinação de lei. Os escravos eram usados em diferentes trabalhos, inclusive como professores de filhos de romanos quando demonstrassem possuir bons conhecimentos. 22 Unidade I Para o direito civil romano, os escravos eram considerados res, ou seja, coisa. Eram, portanto, tratados como relação patrimonial e, exatamente por isso, podiam ser vendidos, alugados, doados ou dados em testamento. 3.1.1 O Direito Romano O Direito Romano é considerado até hoje um dos mais importantes conjuntos de conhecimento do Direito, cujo estudo é fortemente recomendado para todos aqueles que atuam nas carreiras de Direito em quaisquer das suas diferentes modalidades. José Cretella Júnior (2009, p. 10), professor de direito e autor de vários livros na área, afirma [...] numerosos institutos do direito romano não morreram: estão vivos, ou exatamente como foram, ou com alterações tão pequenas que se reconhecem, ainda, nos modernos institutos de nossos dias que lhes correspondem. Para dar exemplos, apenas no campo das obrigações, podemos citar diversos tipos de contratos (a compra e venda, o mútuo, o comodato, o depósito, o penhor, a hipoteca) ainda existem nos sistemas jurídicos de hoje. O Direito Romano se dividia em público e privado. O primeiro era destinado aos interesses do Estado (cobrança de impostos, administração da justiça e organização administrativa); e o segundo regulava os interesses dos particulares, ou seja, o direito de família, direito das coisas, direito das obrigações, direito das sucessões, entre outros aspectos que se referem à vida comum das pessoas. Na atualidade, no Brasil, ainda respeitamos essa clássica divisão entre direito público (interesses da organização sociopolítica e econômica do Estado) e direito privado (interesses dos particulares, tanto na esfera da família, como no âmbito das atividades empresariais). No entanto, essa divisão tem se tornado cada vez menos relevante no mundo contemporâneo, porque todas as atividades públicas e privadas terminam por exercer influência umas sobre as outras. O Direito Romano constituiu-se a partir de fontes que variaram conforme a época e os grupos sociais que as criaram. As fontes quase sempre foram escritas ou não escritas. As escritas basicamente são representadas pelas leis, editos dos magistrados, constituições imperiais; e, as não escritas são retratadaspelos costumes tradicionalmente aplicados nas relações entre as pessoas e os grupos sociais. Várias ideias do Direito Romano foram importantes para o Direito em todo o mundo, como é o caso do Códex, criado pelo Imperador Justiniano, que copiou todas as constituições imperiais para que se tornassem conhecidas. Esse documento estabelecia que o dever de provar era de quem alegava o fato, regra que até hoje é mantida no Direito Brasileiro. O Digesto, arquivo que reunia pareceres e escritos dos estudiosos do Direito Romano, tinha cerca de 50 livros e um dos tópicos mais importantes era a definição de Direito adotada pelos romanos: “viver honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu”. Atribui-se a um jurista chamado Tribuniano a compilação dos textos do Digesto. Institutas, era um documento jurídico para as pessoas que exerciam a justiça, semelhante a um livro-texto para aqueles que se preparam para atuar nas áreas em que o Direito é um conhecimento essencial. O Imperador Justiniano determinou que as Institutas fossem de uso obrigatório. E, finalmente, as Novelas, que eram 23 TEORIA GERAL DO DIREITO II um texto que reunia todas as leis do imperador Justiniano e que deveriam ser cumpridas pelos povos que compunham o Império Romano do Oriente. A mais importante manifestação do Direito Romano foi a chamada Lei das XII Tábuas, considerada pelos romanos a fonte de todo o direito público e privado. Não foram encontrados documentos da íntegra dessa lei, porém os comentários referentes ao seu conteúdo foram registrados e, por essa razão, é possível conhecer muitos temas dos quais ela tratava. É importante saber que a Lei das XII Tábuas teve inspiração na Grécia, nas Leis de Sólon. Tratava-se da lei escrita que se tornou mais importante que o direito dos costumes praticado naquela época. Alguns aspectos importantes da Lei das XII Tábuas: • Família: a referida lei estabelecia que a família seria sempre patriarcal e somente existiria parentesco na linha masculina, ou seja, a mulher estava sempre sob o poder do marido ou do pai do marido quando este estivesse ausente. • Direito Penal: tratava dos delitos públicos e privados. Os mais importantes delitos regulados pela lei eram o homicídio, o furto, a injúria, que poderia ser praticada com a agressão a um membro do corpo humano da vítima. A vítima poderia obter autorização para vingar a ofensa sofrida praticando também ela uma violência contra o agressor ou substituir a vingança física por um valor em dinheiro cujo montante era fixado pela própria vítima. • Propriedade: aplica-se aos móveis e aos imóveis. Para poder ser proprietário e transferir a propriedade não basta apenas a vontade, porque é necessário praticar atos previstos na lei, ou seja, eram estabelecidas formalidades que deveriam ser cumpridas rigorosamente. A justificativa para a prática de atos legais de transferência de propriedade era dar ciência a terceiros, para que estes não alegassem que não sabiam que determinado bem pertencia a uma pessoa e que havia sido vendido ou doado por ela. Na atualidade, se dá o mesmo no Direito Brasileiro. Não basta ser proprietário, é preciso seguir rigorosamente todas as determinações da lei para possuir documentação que comprove a propriedade e permita a transferência dela para outra pessoa. • Processo Civil: o formalismo era bastante forte na Lei das XII Tábuas. Quando o autor de uma ação judicial desejasse o comparecimento do réu ao tribunal, podia levá-lo à força. O réu que fosse condenado e não cumprisse a decisão poderia ser morto ou vendido como escravo. Para que o processo judicial tivesse início, era preciso que as partes pronunciassem palavras consideradas sacramentais, ou seja, sem elas o processo poderia ser anulado por falta de cumprimento das formalidades exigidas. Apesar disso, a Lei das XII Tábuas é importante para marcar a modificação ocorrida nas sociedades e que hoje, no mundo em que vivemos, é adotada pela maioria dos países: as pessoas que desejarem garantir seus direitos devem fazê-lo por meio de um processo judicial e não com o uso de suas próprias forças. São muito poucas as situações em que o cidadão é autorizado a agir com suas próprias forças, como acontece, por exemplo, na legítima defesa. Em todas as demais situações em que um direito tenha sido ofendido por 24 Unidade I alguém, a pessoa deverá comparecer a um tribunal para exigir a reparação dos danos ou a garantia do direito, sem jamais poder utilizar seus próprios recursos de força e poder para garantir o que lhe é legalmente devido. Apesar de toda a importância de Roma, de sua história, de suas conquistas e de seu poder político, os autores e estudiosos do direito reconhecem e assinalam que a Grécia influenciou enormemente o Direito Romano. Nessa linha de pensamento, vejamos o que diz Lopes: O debate grego sobre a melhor forma de governo, sobre as relações entre a vida pública, cidade, direito e justiça, tudo isso torna-se patrimônio dos romanos, ainda que para modificá-lo e adaptá-lo. Outra vez, Cícero escrevendo sua República adota o gênero literário do diálogo para defender a melhor forma de governo, o governo misto dos romanos (da República romana). E o convencionalismo, o respeito pela boa-fé e pelas promessas como meios de se garantirem direitos também se deriva do muito que os gregos já praticavam sobre o que discutiam. Assim, muito embora os juristas não tenham sido filósofos, é claro que alguma relação com a cultura de seu tempo faz com que um senso comum moral esteja presente em seus escritos (LOPES, 2008, p. 46). Formalismo e Direito são expressões que ainda caminham juntas em muitos lugares, inclusive no Brasil. Os profissionais que atuam nas diferentes áreas do Direito são comumente apontados como pessoas apegadas ao formalismo, seja na maneira de se trajar (o terno e a gravata ainda prevalecem), como na maneira de se comunicar (prolixa e muito apegada às palavras de origem latina). O apego excessivo ao formalismo é um dos fatores que torna o Direito tão distante das pessoas comuns da população, o que, por certo, tem efeito negativo porque o Direito é para ser conhecido, cumprido e respeitado por todos os membros da sociedade em que ele se aplica. Observação Prolixo. Adjetivo: que usa palavras em demasia ao falar ou escrever; que não sabe sintetizar o pensamento. Sinônimo: abundante, copioso, difuso, loquaz, proluxo, verboso (HOUAISS, 2009, p. 1.559). 4 DIREITO MEDIEVAL O Direito Medieval que habitualmente se estuda é aquele praticado durante o lapso de tempo de 476 d.C., época da queda do Império Romano do Ocidente, e 1453, também d.C., quando Constantinopla é tomada pelos turcos otomanos. 25 TEORIA GERAL DO DIREITO II Lopes (2008, p. 50) afirma que a invasão dos bárbaros e o fim do Império Romano decorreram, principalmente, da fraqueza de um império cuja burocracia e o exército já não mais se sustentavam. Era o fim da civilização romana, mas que se entenda claramente que esse fim nunca representou o abandono das ideias, muitas das quais, como vimos, estão firmemente presentes no Direito Contemporâneo, sem demonstrar sinais de fraqueza ou de perecimento. O Direito dos povos bárbaros era basicamente fundado nos costumes, tinha na família o centro irradiador das regras e no pai, o poder absoluto que todos deveriam obedecer. Os temas do furto, roubo, estupro e violência contra as pessoas eram tratados no Direito dos povos bárbaros e os crimes não eram punidos com prisão como fazemos na atualidade, mas sim com castigos e multas devidas às vítimas, ou à sua família, ou, ainda, à pessoa que a vítima designasse para receber os valores da multa. Quanto aos castigos, eram públicos, quase um espetáculo que todos tinham o direito de assistir e que, certamente, cumpria a finalidade de servir como exemplo para fazer com que atos semelhantes não fossem praticados. A pena de morte também era aplicada, inclusive para casos de furto ou roubo. Segundo afirmação deLopes (2008, p. 54), “[...] Em tudo isso vemos o desaparecimento do Estado, da vida civil. As penas são de torturas e castigos infligidos aos contraventores. São quase sempre formas de vingança privada. Não existe ainda qualquer ideia de prisão”. O poder político havia se pulverizado com o fim do Império Romano. Nesse sentido, Rogério Dutra dos Santos (2007, p. 216) analisa: [...] algo inusitado se desenvolveu nos escombros do Império Romano. O que predominava em termos de “instituição” social era algo originado da junção de características do regime escravocrata com o regime comunitário primitivo das tribos nórdicas. Os historiadores colocam geralmente que apesar de ambas as formações sociais estarem em crise, a sua mútua incorporação acabou por fomentar um novo regime social, o regime feudal. O responsável político pela junção desses dois modos de vida diferenciados foi a Igreja Católica Romana. Por um lado, ela negava aspectos importantes da cultura romana, como o caráter divino do imperador, a hierarquia e o militarismo: por outro lado, acabava por ser também um prolongamento do caráter universalista de Roma, fazendo, por exemplo, com que o cristianismo fosse elevado à religião do Estado. Poder-se-ia sustentar, inclusive, o caráter nacional da religião católica e de sua expansão. Embora a verdade divina fosse alcançada pela Revelação, pode-se perceber um projeto claro e lógico de dominação e a imposição de um modelo de pensamento através da teologia. [...] O direito derivado da Igreja servirá, desse modo, para sedimentação do poder institucional através de fundamentações “racionais” da interpretação da verdade. A razão será o instrumento total que permitirá à prática jurídica subjugar tanto os direitos paralelos, existentes na diferença – porque 26 Unidade I espontâneos e fragmentados –, quanto qualquer tipo de contestação expressa em interpretações “incompetente” porque contra-hegemônicas e descentralizadoras do poder político-jurídico. Saiba mais Assista ao filme O Nome da Rosa, dirigido por Jean-Jacques Annaud e baseado no romance de Umberto Eco. O longa tem Sean Connery como protagonista, no papel de um padre franciscano chamado para resolver um mistério em uma abadia medieval. O NOME da Rosa. Dir. Jean-Jacques, 1986. 131 minutos. A Igreja cumpre, como vimos, o papel de centralizar uma parte do poder durante o período da Idade Média e, para exercer essa função com efetividade, o Direito Canônico se torna um importante recurso. É, também, até nossos dias, um elemento de influência para o Direito Contemporâneo. Portanto, o vazio do poder político e, consequentemente, jurídico, foi ocupado pela Igreja Católica durante parte do período da Idade Média. E, por meio dos concílios, convocados pelos reis ou pelos próprios bispos, os temas de interesse coletivo serão discutidos e as regras elaboradas. 4.1 Direito Canônico Cânones eram as regras escritas segundo os desígnios de deus. Durante a Idade Média, a Igreja resolveu codificar seus cânones para que os fiéis os obedecessem e os infiéis fossem punidos por seu descumprimento. Rogério Dutra dos Santos (2007, p. 223) explica: Os cânones são regras jurídico-sagradas que determinam de que modo devem ser interpretados e resolvidos os litígios. Mais que regras, são leis, isto é, são verdades reveladas por um ser superior, onipotente, e a desobediência, muito mais que uma infração, é um pecado. Os cânones são os desígnios de Deus, transformados em regras a serem seguidas sem questionamento pelos homens. A origem do Direito Canônico, assim, é o texto da Bíblia Sagrada, é, portanto, originado de fonte divina; e, as determinações oriundas dos papas e dos concílios realizados no período da Idade Média. Os costumes também foram inspiração para o Direito Canônico, mas é possível afirmar que tiveram menor importância que a Bíblia e a regras emanadas dos concílios. 27 TEORIA GERAL DO DIREITO II Ao estudar a importância do Direito Canônico, Lopes (2008) nos ensina que se deve à Igreja o surgimento do processo e do conceito de jurisdição, com a organização de cortes, tribunais e jurisdições responsáveis pela apuração dos delitos, julgamento e condenação dos culpados. O principal tribunal criado nesse período histórico foi o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, por meio do qual eram julgados os hereges, as pessoas que se opunham aos cânones da Igreja, ou os acusados de praticar bruxaria e feitiçaria. Sobre as reuniões do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, ensina Lana Lage da Gama Lima (1999, p. 17-21): Parece-me fundamental ressaltar aspectos da legislação e das práticas processuais do Tribunal do Santo Ofício Português, no intuito de caracterizá-lo como uma justiça que oferecia aos réus chances mínimas de defesa, transformando assim, via de regra, suspeitos em culpados. Dentre as peculiaridades que tornavam os tribunais do Santo Oficio mais temidos do que quaisquer outros de seu tempo, tem sido destacada a não distinção entre a fase de instrução e a fase probatória. O processo iniciava-se desde que se faziam as primeiras diligências para averiguação da culpa, podendo o acusado ser submetido à prisão preventiva, com ou sem sequestro de bens, assim que se acumulavam indícios contra ele, portanto antes de qualquer acusação formal. Sobre a culpabilização do réu nos tribunais inquisitoriais afirma Tomás y Valiente: “O processo é orientado para comprovar a veracidade de umas suspeitas iniciais. À margem de qualquer declaração de princípios, o funcionamento do processo inquisitorial parece dirigir-se a comprovar uma espécie de tácita presunção de culpabilidade daquele contra quem existam indícios de conduta delituosa” (TOMÁS Y VALIENTE, 1980, p. 57-58). Em outras justiças, após a acusação formal, o réu tinha acesso aos traslados dos autos onde constavam os nomes dos depoentes e os delitos de que era acusado. No Santo Ofício isso nunca acontecia, pois não havia praticamente diferença entre a primeira e a segunda fase, sendo o processo permanentemente alimentado com a inclusão de novas acusações, permanecendo os autos em segredo até o final. Outra característica marcante do processo inquisitorial era a reiterada busca da autoacusação do réu, expressada na pregação constante para que confessasse suas culpas e no uso da tortura como forma de extrair confissões. Não se pode esquecer de que esse estilo de processo de origem romana, conhecido por inquisitio, elevou a confissão à categoria de “rainha das provas”. 28 Unidade I Felizmente, o direito de defesa é um direito constitucional no Brasil e todos podem exercê-lo em qualquer processo, seja no campo do direito penal, civil ou administrativo. Essa influência do Direito Canônico foi superada e a garantia da defesa do acusado é um direito determinado em estatutos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, construídos por órgãos como a Organização das Nações Unidas – ONU e pela Organização dos Estados Americanos – OEA. Observação Quando nos referimos à Igreja Católica o fazemos de forma institucional e histórica. Portanto, não há qualquer crítica aos fundamentos religiosos, inspirados nas lições de Jesus Cristo, apenas a análise histórica da instituição que, ao longo dos séculos, participou intensamente da vida política e jurídica de grande parte da humanidade. O avanço do método e do conhecimento científico provocou o declínio do poder da Igreja para determinar o que era certo e errado no âmbito das relações entre as pessoas, fosse no âmbito da família, na esfera da propriedade, dos negócios comerciais ou mesmo das instituições sociais. De fato, a produção do conhecimento científico permitiu aos homens questionarem as verdades até então divinas e, portanto, inquestionáveis. A sociedade começa a construir um modelo denominado secular, ou seja, o predomínio do laico, o rompimento com as ideias e doutrinas oriundas do pensamento religioso. Carvalho (2007) descreve detalhadamente esse processo:O avanço das ciências humanas causou um choque na doutrina cristã, quando Copérnico (1473-1543) destronou a Terra de sua centralidade e afirmou a impossibilidade de o universo ter um centro, pondo em cheque toda uma estrutura psicológica desenvolvida durante muitos séculos. Com perfeição, Freud colocou a teoria de Copérnico como a primeira ferida na cultura ocidental. [...] Cristóvão Colombo provou a teoria da esfericidade da Terra, que passou a ser encarada como um astro igual aos outros e revelou a existência de um mundo totalmente alheio às instituições cristãs, com divindades completamente diferenciadas dos padrões impostos. Foi Spinoza (1632-1677), contudo, quem expressou a noção de natureza que fundamentou a separação entre ciência e religião. Ele afirmou a existência de um mundo absoluto e independente da teologia, um universo que seria pura extensão e movimento, passível de cálculo matemático. O mundo considerado teologicamente como criado não era mais compatível com os anseios científicos. 29 TEORIA GERAL DO DIREITO II A ruptura com o sagrado, com a ideia de pecado e com os cânones da Igreja permitiu ao Direito trilhar outros caminhos. Seu diálogo com outras ciências estava apenas iniciando e até hoje é bem intenso, nunca deixou de ocorrer. Lembrete O avanço do método e do conhecimento científico provocou o declínio do poder da Igreja para determinar o que era certo e errado no âmbito das relações entre as pessoas. 4.2 Direito Inglês O Direito Inglês criou um dos mais importantes textos jurídicos da história da humanidade, reconhecido como sendo o primeiro de maior importância para a proteção dos direitos humanos. Trata-se da Magna Carta, de 1215, na qual o Rei João Sem-Terra se compromete a respeitar os direitos de seus súditos, em especial de barões ingleses que queriam respeito à sua propriedade, e regras mais claras para pagamento de tributos. João Sem-Terra era rei e havia liderado os exércitos ingleses na luta contra a França, da qual resultou a perda do território da Normandia, que foi ocupado pelos franceses. Em decorrência dos gastos da guerra, João adotou medidas impopulares, como, por exemplo, o aumento do valor dos tributos. Consequentemente, gerou enorme insatisfação, fato que originou o documento que os ingleses fizeram que ele assinasse e se comprometesse a cumprir. A Magna Carta ou Carta Maior estabeleceu, principalmente, que o rei só poderia governar em conformidade com a legislação e, dessa forma, não deveria praticar desmandos contrários à lei. Com isso, seus poderes ficaram limitados e a população, nobres e povo, podia confiar ter tranquilidade para viver. As leis protegeram, principalmente, o direito de propriedade. Contudo, isso não foi pouco, porque estabeleceram também que as mulheres e as crianças tinham direito de herdar a propriedade, o que garantiu a subsistência de muitas famílias, que puderam permanecer em suas terras após a morte de esposos e pais, e continuaram a plantar e viver daquilo que produziam. A Magna Carta estabeleceu dois aspectos essenciais que inspiraram depois dela muitas constituições de outros países: ninguém poderia ser punido por um crime antes de ser julgado e condenado; e o povo poderia fazer guerra se o soberano não cumprisse aquilo que estava determinado no texto daquela lei. Até mesmo para os ingleses a Magna Carta foi um passo importante em direção à mudança para uma monarquia constitucional, que viria depois de alguns anos, mas cuja origem está determinada por esse primeiro momento histórico. 30 Unidade I Apesar da grande importância da Magna Carta, um texto legal escrito e que pode ser encontrado até hoje, o Direito Inglês, tem como principal característica ser um direito não escrito, por isso mesmo denominado common law. Trata-se de um direito fundamentado em costumes, razão pela qual é chamado de consuetudinário. O juiz para julgar um caso concreto se vale de decisões anteriormente adotadas por seus pares, ou seja, por outros que já decidiram situações semelhantes. Os magistrados julgam a partir de precedentes judiciais, o que, no Brasil, chamamos de jurisprudência. A própria Constituição inglesa não é escrita, no sentido de que não é formada por um único documento, como a Constituição brasileira, por exemplo. Ela adota costumes importantes para aquela nação e contém documentos escritos que se encontram dispersos; apesar disso, no entanto, todos sabem que esses documetnos constituem o arquivo integral. Figura 4 – Casas do Parlamento inglês, em Londres, Inglaterra, ao lado do famoso relógio Big Ben Desse conjunto, decisões judiciais, costumes e textos esparsos é que se constrói o direito constitucional inglês, que inspirou e ainda inspira muitas outras obras constitucionais em várias partes do mundo, em razão de sua importância e da seriedade com a qual trata os direitos dos cidadãos, garantindo que tenham uma vida digna. 4.3 O Direito no século XVIII O século XVIII foi marcado por muitos fatos importantes no campo da política, das ciências e do Direito. Temos, por exemplo, o início da Revolução Industrial, a fundação da Química moderna e os estudos de classificação das espécies por Carl Linnaeus. No campo político duas revoluções importantes impactaram a história: a Revolução de Independência dos Estados Unidos, de 1776; e, a Revolução Francesa, de 1789. Para nossos estudos na área do Direito importam, principalmente, os dois textos de lei que resultaram das revoluções e que foram a Constituição Norte-Americana e a Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela França. 31 TEORIA GERAL DO DIREITO II Ambos os textos de lei eram fundamentados no Direito Natural ou Jusnaturalismo, uma linha de pensamento filosófico e jurídico que acredita que os homens nascem portadores de direitos, que pelo simples fato de serem homens são detentores desses direitos que devem ser respeitados por todos. No texto da Declaração de Independência das Treze Colônias, de 1776, que é o texto por meio do qual Thomas Jefferson e seus aliados expressam as razões da declaração de independência em relação à Inglaterra, que era o país colonizador dos Estados Unidos, ele afirma: [...] Sustentamos que essas verdades são evidentes, que todos os homens foram criados iguais, que foram dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, que, entre eles, estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. – Que para garantir tais direitos, são constituídos governos entre os homens, cujos justos poderes derivam do consentimento dos governados. – Que, toda vez que qualquer forma de governo tornar-se destrutiva de tais fins, é direito do povo alterá-lo ou aboli-lo e instituir novo governo, fundando-o em princípios tais e organizando-o e a seus poderes de tal forma que lhe pareça mais adequado para a efetivação de sua segurança e felicidade (JEFFERSON et al., 1776). Figura 5 – Estátua de Thomas Jefferson, no Jefferson Memorial, em Washington, Estados Unidos da América do Norte No texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da França, após a Revolução de 1789 que derrubou a monarquia, também há referência expressa aos direitos naturais do homem: Os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, decidiram apresentar, em solene declaração, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, 32 Unidade I constantemente atual para todos os membros do corpo social, lembre incessantemente os seus direitos e deveres; para que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo respeitem a possibilidade de serem a cada momento comparados com a finalidade de toda instituição política; de modo que as reclamações dos cidadãos, baseados de agora em diante sobre princípios simples e incontestáveis, tenham sempre como resultado preservar aConstituição e a felicidade de todos (AMBAFRANCE, 2017). Figura 6 – Quadro sobre a Queda da Bastilha, episódio que marcou o início da Revolução Francesa, em 14 de julho de 1789 O direito natural não foi criação de norte-americanos e franceses, porque sempre esteve presente na história do Direito, mesmo entre gregos e romanos, que respeitavam a existência de um direito que era próprio da condição humana e que estava representado, principalmente, nos direitos à vida, à liberdade e à igualdade. Claro que muitos homens não eram considerados exatamente iguais pela classe politicamente dominante, como já acontecia com os escravos, por exemplo. De qualquer modo, as primeiras noções clássicas do direito natural foram encontradas em todas as fases da história do direito, com maior ou menor ênfase. Siqueira Júnior (2017, p. 42) define Modernamente, o direito natural pode ser entendido como fundamento ao direito positivo, tal como “dar a cada um o que é seu”, “não lesar ninguém”, “viver honestamente”, “deve-se fazer o bem” etc. [...] [...] direito natural é o conjunto mínimo de preceitos dotados de caráter universal, imutável, que surge da natureza humana e que se configura como um dos princípios de legitimidade dos direitos. Os direitos naturais são inerentes ao indivíduo, devem estar em qualquer sociedade e precedem a formação do Estado e do direito positivo. 33 TEORIA GERAL DO DIREITO II O direito natural deve ser o fundamento do direito positivo, ou seja, das leis que foram adotadas por um país para sua organização política, econômica e social. O direito positivo vem depois, como explica Siqueira Júnior (2017), porque é exatamente o direito natural que deve fundamentá-lo. As boas leis, segundo esse entendimento, têm de ser construídas por homens que respeitam outros homens e seus direitos, de forma a que se possa construir uma sociedade justa. No campo do Direito o século XVIII marca, também, o período em que começam a ser elaborados códigos com o objetivo de colocar de forma organizada e concentrada todas as leis que regem uma determinada área da vida de uma sociedade. Assim, Napoleão manda que seja elaborado um Código Civil na França, que entra em vigor em 1804 e se torna importante referência para muitos países do mundo, inclusive o Brasil, particularmente o Código Civil de 1916. Figura 7 – Túmulo de Napoleão Bonaparte localizado no Museu de L’Armée, em Paris Figura 8 – Monumento localizado ao redor do túmulo de Napoleão e que faz referência a seus grandes feitos, entre eles, ter mandado fazer o Código Civil francês 34 Unidade I Outros códigos importantes também foram desenvolvidos naquele período. Na Europa, Itália, Portugal e Espanha criaram codificações e, na América Latina, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina, Venezuela, Equador e Peru, igualmente elaboraram seus códigos. Até hoje, no Brasil, é uma prática a organização de códigos para leis de grande importância como o Direito Civil, o Direito Penal, o Direito Processual. Trataremos de cada um deles na segunda unidade deste livro-texto. 4.4 Direito Português A Universidade de Coimbra foi criada por Dom Dinis, em Portugal, entre 1288 e 1290. Muitos brasileiros do período do Brasil Colônia e Brasil Império estudaram nela, em especial devido ao fato de os primeiros cursos de Direito só terem sido iniciados por aqui em 1827 e porque o Direito português era praticado no país em razão do Período Colonial e do reinado de Dom Pedro I, que era português. Um dos decretos importantes de Portugal foi a Lei das Sete Partidas, adotada por ordem de Dom Dinis. Ela já era utilizada na Espanha e foi trazida para ser aplicada em Portugal. Tinha inspiração no Direito Canônico e no Direito Romano. Tratava de temas essenciais para a organização social do país, como o direito de família, o direito das sucessões, o direito dos contratos e dos delitos e penas para puni-los. Outros princípios de grande relevância no Direito Português foram as Ordenações Afonsinas, de origem portuguesa, criadas em 1466, cujo nome era uma homenagem ao Rei Afonso V. Também tinha influência do Direito Canônico e da Lei das Sete Partidas. Regulamentou temas como Direito Civil, Direito Marítimo ou Comercial, Direito Penal e Direito Processual. Outra importante lei portuguesa foi a chamada Ordenações Manuelinas. Ela foi criada em 1512 e recebeu esse nome em homenagem a Dom Manuel I. Tratava dos contratos mercantis e do Direito Marítimo, em especial porque Portugal vivia o momento de expansão de seu território; mas também tratava de Direito Administrativo e de organização judiciária. As Ordenações Manuelinas foram utilizadas como a primeira lei no Brasil, como veremos mais à frente. Por fim, temos as Ordenações Filipinas, de 1595, que entraram em vigor em 1603, no Reinado de Dom Felipe II, que era Rei da Espanha, neto de Dom Manuel I, e que se tornou rei de Portugal e liderou a União Ibérica que perdurou de 1580 a 1640. Elas também foram aplicadas no Brasil e tratavam de temas como Direito Civil, Direito Marítimo e Comercial, Direito Penal, organização judiciária e Direito Administrativo. Em 1769, por determinação do Marquês de Pombal, foi aprovada a Lei da Boa Razão, em Portugal, que no dizer de Lopes (2008, p. 191): Ela (a Lei da Boa Razão) permitiu que se incorporasse, como fonte subsidiária do direito nacional, a lei das nações polidas da Europa, ao mesmo tempo em que rejeitou e proibiu o uso dos medievais. Por ela, Pombal conseguiu ou pelo menos pretendeu remodelar as fontes do direito, introduzir novos métodos de interpretação, assegurar o primado de vigência das leis nacionais, eliminar extravagantes sutilezas (HESPANHA, 1978:73). Tratava-se também de um 35 TEORIA GERAL DO DIREITO II golpe na pluralidade de ordenamento, até então convivendo (costumes, tradição medieval e corporativista etc.). Pombal também modifica profundamente o ensino de Direito em Portugal, principalmente para restringir o estudo do Direito Romano. Com isso, pretendeu colocar Portugal definitivamente no Direito do século XVIII, mais racional e pragmático. Figura 9 – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Figura 10 – Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Lembrete A Lei de Ordenações Manuelinas foi criada em 1512 e recebeu esse nome em homenagem a Dom Manuel I. 36 Unidade I 4.5 Direito no Brasil Vamos agora conhecer o Direito praticado no Brasil ao longo dos três períodos históricos: Colônia, Império e República. O Direito Colonial no Brasil, como vimos, adotou leis portuguesas e ignorou por completo os interesses da população que vivia no país, tanto quanto desconsiderou o direito que já era praticado por comunidades indígenas e pelos quilombos existentes naquela época. O sistema judicial era formado por juízes singulares que eram distribuídos nas categorias de ouvidores, juízes ordinários (leigos, eleitos pelo povo ou pela Câmara Municipal) e juízes especiais (de órfãos, de sesmarias etc.). A segunda instância, era constituída por tribunais colegiados cujos membros eram chamados desembargadores e suas decisões acórdãos. Em linhas gerais, o sistema judiciário brasileiro até hoje atua com essa mesma organização. A última instância de recurso era a chamada Justiça Superior e tinha sede em Portugal, ou seja, na metrópole. Os magistrados no período colonial eram portugueses e deviam obediência e lealdade à Coroa. A carreira era rígida e obedecia a um sistema muito burocrático, que incluía a prestação de serviços na colônia e na metrópole. O primeiro critério de escolha dos magistrados era sua posição social, embora fossem utilizados ainda o apadrinhamento e a venda de vagas clandestinas. Para ser magistrado era indispensável ser graduado em Coimbra, preferencialmente nas áreas de Direito Civil ou Direito Canônico. Cristiani (2007, p. 350) analisa Pelos portugueses colonizadores o Brasil nunca foi visto como uma verdadeira nação, mas sim como uma empresa temporária, uma aventura, em que o enriquecimento
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