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Enviando por email HOMEM O MÚSICO - Man the Musician - Victor Zuckerkandl (1)

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HOMEM O MÚSICO 
 
Som e Símbolo: Segundo Volume 
 
 
 
 
Victor Zuckerkandl 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
 
 
 
 
 
Tradução do alemão para o inglês 
por Norbert Guterman 
 
 
Tradução do inglês para o português 
Gregório J. Pereira de Queiroz 
 
 
 
 
 
 3 
 
 
 
 
Introdução 
 
 
 
 
 
 
Phaedo, o grande diálogo sobre a imortalidade da alma, mantido à véspera da 
morte de Sócrates, começa com uma confissão notável em um aparte do filósofo a 
respeito da música. Os amigos de Sócrates o estão questionando sobre o rumor 
corrente em Atenas que nos últimos dias de seu aprisionamento ele havia se voltado 
para a prática da música, acima de todas as demais coisas. Em resposta, Sócrates lhes 
contou que repetidamente, durante toda sua vida, ele havia tido um sonho no qual 
uma voz lhe dizia para “fazer música e trabalhar com ela”. Até recentemente, ele lhes 
disse, não havia se sentido obrigado a tomar a advertência literalmente. Antes, ele 
havia tomado-a no sentido em que um mensageiro toma os anseios do povo: não 
havia já ele feito o máximo? Depois de tudo, ele não havia devotado sua vida à 
filosofia, a verdadeira arte das Musas? (Para os gregos, a arte dos sons e a das 
palavras eram intimamente relacionadas: não havia música sem palavras, e a poesia 
não era falada, mas cantada ou salmodiada.) Desde o seu julgamento, no entanto, 
Sócrates havia começado a se admirar de que ele pudesse ter tomado a advertência 
tão levianamente, e desde então tem se ocupado em seus últimos dias antes da 
execução em compor um hino a Apolo e colocar em verso algumas das fábulas de 
Esopo. 
A história é muito antiga e muito bem conhecida para não ser tomada 
seriamente. Embora isto seja dito auto-depreciativamente, seu sentido é perfeitamente 
claro. Como as últimas palavras de Sócrates, “Nós devemos um galo a Esculápio”, 
refere-se ao pagamento de uma dívida. O filósofo está sendo escrupuloso ao final. 
Sua vida inteira foi devotada ao serviço de uma única força, aquela da palavra falada. 
Agora, antes de ser tarde demais, ele deve fazer uma reparação por não ter servido à 
única força que modela a essência espiritual humana. Ele fará um último gesto de 
 4 
reverência e gratidão ao poder da música: ele elevará sua voz numa canção ao menos 
uma vez antes de morrer. 
Nietzsche foi o primeiro a compreender o sentido de Sócrates como “fazedor 
de música”, sem dúvida fora de qualquer parentesco subjacente. Para ele, o último 
gesto no Phaedo é um reconhecimento das limitações do pensamento lógico-
científico. Nietzsche via Sócrates como o “pensador abstrato” arquetípico, como o 
“mistagogo da ciência”. “Essas palavras ouvidas por Sócrates em seu sonho”, ele 
escreve em O Nascimento da Tragédia, “são a única indicação de que ele alguma vez 
experimentou alguma inquietação sobre os limites de seu universo lógico. Ele pode 
ter se perguntado, ‘Teria sido eu tão preconceituoso para ver o que era ininteligível 
para mim como sendo destituído de sentido? Por ventura existe um reino da 
sabedoria, afinal de contas, do qual a lógica está excluída? Por ventura a arte deve ser 
vista como o complemento necessário ao discurso racional?’” Embora certamente 
Sócrates fosse já bem ciente disso. Por repetidas vezes, no curso de diálogo após 
diálogo – e no momento mais especialmente importante o ponto é alcançado – o 
dialético estrito repentinamente começa a contar uma história; o lógico se torna um 
provedor do mito. O Logos é alimentado e feito mais vívido com o recurso do Mito. 
E a voz no sonho é uma voz de advertência: mesmo quando Logos e Mito trabalham 
lado a lado, as palavras não são suficientes. Para dar elocução à totalidade das coisas, 
para ser ela própria inteira, as notas são necessárias, e o canto. Nietzsche deve ter ele 
mesmo experimentado algo semelhante quando disse de seu trabalho, logo antes de 
enlouquecer, “Ela deve cantar, esta ‘nova alma’, não falar!” Sem dúvida a música, a 
canção, sofreu o mais extraordinário desenvolvimento entre Sócrates e Nietzsche, 
mas uma coisa não mudou. A música ainda é, exatamente como sempre tem sido, o 
outro poder, o qual, junto com a linguagem, define plenamente o homem enquanto 
um ser espiritual. Ninguém que tenha reconhecido e honrado a música como tal pode 
dizer que tenha pago seu inteiro débito para com o mundo, consigo mesmo, com a 
humanidade. 
A noção da qual o Phaedo dá expressão é aquela do homo musicus, do homem 
como músico, como ser que requer música para realizar-se plenamente. Esta 
dimensão de nossa humanidade tem se mantido largamente à sombra no curso do 
pensamento ocidental. Este é o tempo de trazê-la à luz. 
 5 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Musicalidade
 6 
 
 
I. Os Dois Conceitos de Musicalidade 
 
 
 
 
Como correntemente utilizado, o termo ‘musicalidade’ se refere a um dom 
especial que leva os indivíduos a um íntimo relacionamento com a música. O dom se 
apresenta não somente no fazer ativo mas também na recepção passiva: chamamos de 
‘musical’ não somente o compositor ou intérprete mas também o ouvinte sensível. O 
dom é sempre a propriedade de um indivíduo, e como tal é uma propriedade 
acidental, no sentido que uma pessoa pode tê-la e outra não. Quando a maioria das 
pessoas fala sobre ser musical, a observação novamente se refere à individualidade de 
uma pessoa comparada a outra. Em todos os casos é feita uma comparação; e uma 
comparação estabelece uma linha divisória a qual, como uma fronteira, cria dois 
campos. A musicalidade faz seu aparecimento ao ser contrastada com sua contraparte 
negativa, a ausência de musicalidade. Em acréscimo, a comparação implica num 
julgamento de valor: musicalidade é uma vantagem, sua ausência uma deficiência. 
Indivíduos distinguidos como musicais formam uma minoria com a característica de 
uma elite que se coloca num relacionamento privilegiado com a música. Na maioria 
dos casos, se não exclusivamente, a música é interesse – na verdade, posse – dessa 
minoria; o resto pode, no melhor dos casos, participar de sua periferia. 
O conceito aqui delineado é fundamentalmente diferente daquele expresso no 
Phaedo. Lá, musicalidade não é propriedade de indivíduos, mas um atributo essencial 
da espécie humana. A implicação é que não alguns homens são musicais enquanto 
outros não o são, mas que o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à 
música e com necessidade de música, um ser que para sua plena realização precisa 
expressar-se em notas musicais e deve produzir música para si mesmo e para o 
mundo. Neste sentido, musicalidade não é algo que alguém pode ou não pode ter, 
mas algo que – junto com outros fatores – é constitutivo do homem. Assim definido, 
o conceito não pode ter uma contraparte negativa. Ninguém é escolhido ou colocado 
à parte. Música é concernência de todos, não de uma elite privilegiada, e se 
musicalidade representa uma vantagem, ela não é prerrogativa de uns poucos 
escolhidos, mas um atributo do homem como homem. 
 7 
Os dois conceitos não são mutuamente exclusivos; não se pode dizer que um é 
verdadeiro e o outro falso. Mas um deles é original e irrestritamente válido, enquanto 
o outro é derivado e relativo. O conceito com o qual estamos familiarizados é o 
derivado e relativo, e ao considerá-lo como universalmente válido desviamos nosso 
pensamento do caminho e distorcemos nossa visão. 
Para começar, é importante perceber por que o conceito que nos é familiar 
pode ser chamado de relativo e derivado. 
O erudito que mais completamente investigou o problema da musicalidade é 
Géza Révész. No seu Introdução à Psicologia da Música, cônscio da dificuldade para 
chegar a uma definição que caiba para todos os casos, ele se limitou a descrever as 
características essenciais de uma pessoa musical. (Que ele concebe musicalidade 
somente em termos de um traço individual está implícito em sua abordagem 
psicológica).Os excertos seguintes provêm os exemplos sobre este ponto: “Uma 
pessoa é considerada musical quando ela é capaz de transferir suas experiências 
musicais para a esfera na qual a obra de arte é o objeto de uma contemplação 
puramente artística.... A conquista mental da música como arte caracteriza uma 
pessoa musical.... Uma pessoa musical possui um profundo entendimento das formas 
musicais e da estrutura ou do movimento projetados na obra. Ela tem um sentido de 
estilo e da estrita organização do processo do pensar musical requintadamente 
desenvolvidos.... Ela experimenta a obra de arte tão interior quanto profundamente, 
que a sente como se a estivesse criando.” Por outro lado, pessoas não musicais “são 
incapazes de compreender a estrutura de uma composição musical e avaliá-la em 
termos de conteúdo estético. ... Elas gradualmente se colocam em contato com a 
música sem, no entanto, realmente alcançarem a esfera do especificamente musical 
na qual a beleza-em–música torna-se o objeto da percepção estética. ... Não importa 
quão arduamente tentem, elas nunca ... alcançam a composição, e nunca são capazes 
de entender seu projeto composicional e estrutural”. 
Estas afirmações são suficientes para indicar o ponto crucial: musicalidade 
assim como sua contraparte negativa surgem quando o ouvinte é confrontado com 
uma composição musical. A pessoa musical está à altura da obra; a pessoa não 
musical falha em lhe responder. Verdade, esta distinção não é de tudo ou nada. 
Révész reconhece graus de musicalidade, estágios de transição entre os dois 
extremos. Contudo o critério último permanece sendo a profundidade com a qual a 
pessoa, escutando e compreendendo, pode penetrar a estrutura artística de uma dada 
composição. Por toda parte, a confrontação do ouvinte com a obra é pressuposta 
como um ponto de partida auto-evidente. Révész caracteriza explicitamente a 
musicalidade que ele investiga como sendo receptiva sem, contudo, sugerir um 
contraste com a musicalidade criativa. Esta última é vista – uma profunda percepção 
– como distinta da primeira somente em grau, não em espécie; ela é um caso especial 
extremo. Pois, afinal de contas, o compositor também é no fundo um ouvinte; ele 
deve atingir sua obra por escutá-la com sua audição interna, e neste sentido ele 
também se confronta com ela. Onde há uma obra, deve haver uma confrontação. 
 8 
Subjacente a tais reflexões, é claro, está uma concepção específica de música 
(não tão pouco específica para não ser formulada) e a suposição de que uma relação 
específica entre homem e música é universalmente válida. Música é equiparada com 
sua forma mais altamente desenvolvida, o conjunto das grandes composições, e o 
relacionamento entre homem e música são restritos ao encontro dos ouvintes com tais 
composições. Por ser uma equiparação e uma restrição, no entanto, pode ser aplicada 
somente sob condições especiais. Como nascemos dentro destas condições especiais, 
nós tendemos a esquecer que elas não são características da totalidade da música mas 
meramente uma fase em curso de sua história. Este é uma fase preeminente, sem 
dúvida, mas ainda assim é somente uma: a fase culminante. 
Em um duplo sentido, nós somos testemunhas da fase culminante: como 
membros da civilização Ocidental e como contemporâneos deste século. Com a 
notável descoberta da polifonia – isto é, a possibilidade de produzir um todo musical 
pela combinação de diferentes e simultâneos fios de notas musicais – a música 
Ocidental fez uma clara quebra com todos os demais tipos de música e embarcou em 
um padrão que no período de milhares de anos de excitante desenvolvimento, 
conduziu ao destilado final da música instrumental pura. Este processo não tem 
paralelo na história de qualquer outra arte; pode ser comparado apenas com o 
desenvolvimento mais ou menos simultâneo da ciência da matemática. A construção 
destes dois mundos, o mundo das notas musicais e o mundo dos números, deverão 
certamente permanecer como a mais notável realização do homem Ocidental durante 
esse período. Sendo assim, um desenvolvimento como esse necessariamente gera 
suas próprias formas especiais, e não é surpresa que nossa vida musical se manifeste 
em formas que são muito diferentes daquelas de outras épocas. Elas podem ser 
resumidas em quatro categorias: a obra, o compositor, o executante e a audiência. 
A obra, sobretudo: vivemos uma era de obras compostas individualmente. Para 
nós, música quase não é concebível que não em termos de sinfonias e sonatas, óperas 
e oratórios, cantatas, canções, concertos, quartetos de cordas, e assim por diante, cada 
um dos quais uma obra de arte, um pequeno mundo em si mesmo, como uma pessoa 
individual única e não intercambiável, um microcosmo, uma criação. Uma criação 
implica em um criador, um homem com altos poderes mentais, capaz de realizar 
muitas e muitas vezes a ultimação e ativação que leve a fronteira da arte ainda mais 
além. As obras são preservadas em notação musical, a partir da qual podem ser 
transformadas em som vivo, e isto pede por intérpretes e executantes os quais façam 
jus à sempre crescente demanda das composições. Tudo isto leva a divisão de 
funções. Compor e interpretar é o negócio de alguns poucos especialistas; todas as 
outras pessoas estão confinadas a participar da música como meras ouvintes, como 
uma audiência. Música é algo em grande parte produzido por uma pequena minoria 
para um grande público. Este divisão de funções determina a atitude na qual nós 
experimentamos música hoje: sentamos-nos em frente a algo – um palco, um pódio, 
um toca discos, um rádio – e esperamos que a música venha até nós. Música sempre 
vem para nós desde o outro lado, do outro lado da fronteira; ela vem a nós e nós a 
recebemos. 
 9 
Outra fronteira divide a própria audiência. Como uma criação superior do 
espírito humano, uma composição é um desafio para o ouvinte; um dom 
extraordinário requer um receptor extraordinário. Na presença da obra, os ouvintes 
são separados de acordo com os vários graus de intensidade, sensibilidade e 
compreensão com o qual respondem. Uns poucos ouvintes se separam dos demais e 
aproximam-se intimamente da obra, como se sob um encantamento; obviamente eles 
ouvem coisas às quais os outros são surdos. Isto significa que o sentido da audição 
não é uniformemente o mesmo. Algumas pessoas têm uma faculdade auditiva 
especial; seus ouvidos são especialmente afinados para ouvir música. Em resumo, a 
audição pode ser musical ou não-musical: há pessoas musicais e não-musicais. Esta 
observação pretende ser um insulto ou uma crítica; ela coloca fatos que não podem 
ser diferentes. Nosso conceito familiar de musicalidade é o resultado direto das 
condições sob as quais o encontro entre homem e música presentemente tem lugar, as 
condições da fase culminante. 
Para nós, música é simplesmente a música da fase culminante. Oprimidos por 
sua magnificência, temos voltado as costas para qualquer coisa fora dela. E embora a 
grande arte musical, como a conhecemos, seja um evento excepcional, algo único e 
quintessencial, consideramos que a música pura e simples é parte dos atributos 
humanos gerais. Ela não está confinada às grandes obras da arte musical, mas é 
inerente às pessoas em toda parte. Não há povo ou tribo sem música, conquanto 
primitiva. Onde quer que exista fala, há também canto. As harpas das sepulturas de 
Ur e os discos de pedra sonoros da floresta malaia dão testemunho do fato de que a 
música é tão antiga quanto os registros históricos. Não há nenhum argumento real 
contra a suposição de que a música é contemporânea com a linguagem e que o 
aparecimento da raça humana no tempo anunciou-se conjuntamente por palavra e 
som. Desta música dos primórdios, nós que somos testemunha da fase culminante, 
estamos demasiadamente afastados, tanto que na verdade nos perdemos de seu 
aspecto. Como, então, podemos esperar entendera mais interna essência da música, 
incluindo aquela da fase culminante, a menos que consideremos a totalidade de sua 
trajetória e levemos em conta tanto seu primórdio quanto sua culminância? O 
primórdio da música não é um evento histórico – o homem fazia música muito antes 
que ele fizesse história – não, este é um evento pré-histórico, algo que ocorreu em um 
tempo indefinidamente remoto do passado humano. Se não podemos separar homem, 
tempo e música em nosso pensamento, então é impossível pensar no primórdio da 
música; em outras palavras, o primórdio da música está situado no campo do mito. 
Como lenda que é, a música foi o dom de um deus para a humanidade. O que isto 
significa é completamente claro. Não pode ter sido que um deus entoou uma canção 
para as pessoas cantarem depois dele. Os deuses não a deram por este caminho, desde 
o exterior. O dom divino veio do lado interno; ele abriu o coração do homem e 
desselou seus lábios. Outra lenda é igualmente clara sobre este ponto: os homens 
primeiro levantaram suas vozes numa canção, quando testemunharam a morte do 
herói jovem divinamente belo. No começo, a música veio do homem, não para ele – 
ou, melhor, também para ele mas como repercussão. O cantor ou executante não pode 
ajudar a audiência para a qual ele canta ou executa: o círculo precisa ser fechado. 
 10 
Aqui a noção de confrontação entre ouvinte e obra não faz sentido. Música é tanto a 
doação quanto o doador, o músico é tanto o doador quanto o recebedor. 
Dentre os períodos cuja música estamos adequadamente informados, os séculos 
do canto gregoriano oferecem o melhor exemplo de formas predominantes na 
situação dos primórdios. Nesse tempo a música Ocidental estava ainda em seu estágio 
pré-composicional. Como olhamos para trás desde a fase culminante, as melodias 
gregorianas podem soar para nós como obras de arte, mas para aqueles que as 
criaram, cantaram e ouviram, elas não eram nada disso, e ainda que as melodias 
gregorianas possam ser gravadas em notação elas nunca foram consideradas como 
composições para serem executadas para ou ouvidas por uma audiência. O canto 
gregoriano é algo inteiramente diverso; é uma oração – um louvor, uma súplica, uma 
ação de graças – uma oferenda e não algo recebido. Dar e receber mudaram seus 
lugares; se há um recebedor este é o homem em cuja mente a melodia primeiro toma 
forma. Longe de pensar em si mesmo como um compositor, ou ainda como humilde 
artesão, ele vê a si próprio como tendo sido agraciado com o dom de ser capaz de 
ouvir os anjos cantando; tudo que ele faz é anotar os sons concedidos a ele pelos 
céus. Então, a melodia ecoa durante o serviço divino, cantado pelo sacerdote ou pelo 
coro, nada mais distante da mente de qualquer pessoa do que a idéia de música 
executada para uma audiência. A melodia será cantada quer alguém esteja escutando 
ou não, e se há ouvintes eles não são uma audiência mas uma congregação. Eles se 
reuniram não para ouvir mas para venerar. O cântico não é cantado para eles mas por 
eles, em seu favor. A divisão em cantores e ouvintes permanece na superfície, 
debaixo da qual todos eles, cantores e ouvintes se assemelham, são um. Somente no 
mais óbvio sentido físico os sons vêm ter aos ouvintes a partir do lado de fora deles; a 
verdadeira fonte está dentro dos ouvintes. As melodias são suas orações, e os cantores 
servem somente para vocalizá-las transmutando-as em som. 
Estamos próximos aos primórdios da música quando consideramos aquilo que 
hoje, na fase culminante, é chamado música folclórica. Em nenhum sentido a melodia 
de uma canção folclórica é considerada como uma composição musical. Nunca (antes 
de nossos dias) colocada em notação, ela existe somente nos sons transmitidos de 
geração a geração. Como ela é viva, submete-se a mudanças e toma novas formas. 
Ela nunca está acabada, como uma composição está, e na verdade resiste a se fixar. 
Coletar e transcrever canções folclóricas é a preocupação ansiosa do estágio de 
culminância em preservar tesouros negligenciados. O mesmo é verdadeiro a respeito 
da performance. Em seu próprio ambiente, as canções folclóricas não são uma 
performance. Gentes ficam juntas para cantar canções, não para ouvi-las. Elas cantam 
para elas mesmas, e se alguma delas está ouvindo, é para aprender a melodia para 
então cantá-la. (A balada na qual uma história é colocada em forma poética musical 
marca a transição para o estágio de culminância). Novas melodias podem bem 
ocorrer a alguns indivíduos, mas isto não faz deles compositores, uma pessoa 
escolhida de modo permanente pelo grupo e encarregada de uma função especial. Ele 
se distingue do grupo somente enquanto lança a nova melodia; depois que ele o faz, 
funde-se outra vez com seus colegas cantores, os quais podem adotar sua 
 11 
contribuição ou rejeitá-la. Quando certas linhas são pretendidas para uma voz solo, o 
cantor solo não é um executante [performer] diante de uma audiência; sua voz 
permanece como a voz do grupo, a qual pode unir-se de volta a qualquer momento, 
como realmente acontece no refrão. A situação é de todos juntos, não de uma 
confrontação. As três funções – compor, executar, ouvir – tão formalmente 
diferenciadas na fase culminante são ainda facetas intercambiáveis de uma função 
global residente no grupo. Isto é igual verdade quando a música aparentemente está 
sendo feita de uns para os outros, como acontece com a música para dançar. Aqui 
novamente, os outros não são ouvintes, eles são participantes, e a música e a 
produção da música são parte de sua própria atividade. A música, como tal, está por 
detrás deles mais do que propriamente diante deles. Igualmente no caso extremo do 
rito mágico onde o mago usa certas fórmulas musicais as quais de fato são seu 
próprio poder cuidadosamente guardado, as formulas não são endereçadas àqueles 
presentes como se eles fossem uma audiência, mas juntamente com eles para o deus 
ou o demônio então invocado. Outra vez, a música vem dos seres humanos, não para 
eles. 
Há um traço de esnobismo com relação ao termo “música folclórica” 
(Volksmusik), como uma nobre condescendência para com seus inferiores. O termo 
não é simplesmente uma classificação: ele expressa também um julgamento de valor. 
Além da fronteira ele estabelece o situamento de algo menor, não mais que um 
modelo primitivo, uma modesta semente, que não mostra vestígio algum do 
esplendor do organismo quando plenamente desenvolvido. Expedições ocasionais a 
estas humildes regiões podem trazer à tona achados valiosos, e em tempos de crise 
estes podem nos atrair para um efêmero retorno à natureza. Mas a música “real”, a 
encarnação da verdade e do valor, reside deste lado da fronteira. Aqui, e somente 
aqui, nas grandes obras da composição, a música revela sua verdadeira essência e seu 
pleno alcance. 
Ninguém irá negar que a melodia de um coral e um prelúdio coral de Bach 
pertencem a diferentes estágios; mas os estágios diferem em grau, não em espécie. A 
melodia não é um produto um pouco plebeu que é enobrecido quando tocado pelo 
gênio de Bach; ela contém encapsulado tudo o que uma grande mente musical pode 
levar a frutificar. Música folclórica é como a infância, não como um embrião; o feto 
ainda não é um ser humano, mas uma criança é. Música folclórica é música em 
sentido pleno e apropriado por que ela contém todos os elementos que compõem a 
natureza da música. O ato decisivo que traz a música à existência a precede, ou ainda 
melhor, é uno com ela: a descoberta das notas musicais e do sistema de notas. 
Ocasionalmente ainda se encontra a opinião de que o homem encontrou as 
notas já prontas na natureza (no canto dos pássaros, por exemplo) e fora desta música 
criada. Nada pode ser mais errôneo. Não mais do que os números, as palavras e as 
notas existem na natureza. E do canto do pássaro até uma melodia é como do ladrar 
do chacal para uma sentença. As notas musicais existemtão antes da música como os 
números antes da matemática: um nasceu com o outro. Num certo sentido pode-se 
igualmente dizer que as notas foram criadas pela música: “É a música que dá 
 12 
nascimento às notas”, de acordo com o Li Chi (Livro dos Ritos). Foi o impulso para 
criar a música que criou as notas. Não há notas ao acaso, então, subseqüentemente 
colocadas em ordem ou arranjadas em um sistema; as notas musicais são uma ordem 
e não têm existência exceto dentro de um sistema. O sistema das notas representa a 
completação do ato da criação musical, e com a música folclórica este ato foi 
plenamente realizado porque o sistema está completamente presente nela. O que 
sucedeu depois, incluindo as grandes obras primas, é porém a realização de algo 
inerente nas notas. Aqui outra vez a música assemelha-se à matemática: não é que de 
algum modo primeiro existem os números, que então são levados a uma ordem 
sistemática. Os números são ordem. Muito deles será discutido em grande detalhe 
depois. Para descobrir a sombra de sutil falsidade no termo “música folclórica” 
precisamos somente imaginar a adição e a subtração elementares sendo chamadas de 
“matemática folclórica”. 
Aqueles que fazem a assim chamada música folclórica não são “povo” ou 
“gentes”, mas “homens”. Não para algumas pessoas nem todas e certamente não 
indivíduos específicos, mas para o homem enquanto tal, um daqueles atributos 
inigualavelmente humanos é ser musical. Agora, faz sentido falar de “musicalidade” 
não como a característica distinta deste ou daquele indivíduo mas como um atributo 
humano por excelência: o homem como homem é musical. Não que primeiro ele era 
um homem, o qual no curso do tempo adquiriu a música para tornar sua vida mais 
atraente por aliviar a tensão do trabalho ou preencher seu tempo de lazer; mais 
precisamente, homem e música estão tão fundamentalmente entrelaçados desde os 
primórdios que um não existe sem o outro. 
Vemos que o conceito de musicalidade o qual temos chamado de original em 
contraste com nosso conceito familiar, que é derivado e relativo, não é uma invenção 
da imaginação. Ele corresponde à realidade da música em seu começo, da condição 
musical primordial. A concepção que considera a musicalidade como um dom de 
indivíduos privilegiados e a música como uma prerrogativa de musicistas e amantes 
da música passa a ser também limitada porque ela omite o essencial. O que ela omite 
pode ser visto quando delineamos melhor uma conclusão lógica surpreendente: na 
estrutura de nosso pensamento corrente sobre a música podemos imaginar um mundo 
sem música. Mas visto do ponto superior do começo e do conceito original de 
musicalidade, um mundo sem música é impensável. 
É espantoso que nós que somos testemunhas da fase culminante da música 
sejamos capazes de considerar um mundo sem música. Mas tal é o caso: em nosso 
pensamento isolamos o fenômeno e a abordagem da música com conceitos analíticos. 
Quando pensamos em música como arte, nós a isolamos do mundo da realidade de 
todo dia; quando a consideramos como a arte dos sons, nós a isolamos das outras 
artes; compositor e executante são os escolhidos, indivíduos privilegiados; o 
conhecimento da música é como um campo especializado para especialistas; e os 
muitos, o grande público, vêem a música como um dom especial. Se eliminamos a 
música o mundo será empobrecido de uma forma de arte, poucos especialistas 
perderão seu meio de subsistência, e o público será privado da fonte de um grande 
 13 
prazer; este será um mundo empobrecido e sombrio, mas este será também o mesmo 
mundo como o conhecemos e entendemos: podemos imaginar um mundo sem 
música. Não é assim quando olhamos a música a partir de sua fase de sua origem. Se 
o homem e a música, existencialmente pertencem-se um ao outro, e música é um 
elemento essencial dos atributos humanos, então o homem sem música não é homem 
e um mundo sem música não é mundo: ambos, homem sem música e mundo sem 
música, são contradições impensáveis. Em outras palavras, para nosso pensamento 
corrente musica é uma obra do acaso, ao passo que quando vista de sua origem ela é 
uma obra da necessidade. Qual destes dois pontos de vista está mais próximo do real 
entendimento da música? Aquele que a relega para o campo da contingência ou 
aquele que a considera como necessária? 
Outras eras, outras civilizações empenharam-se para entender a música como 
necessária neste sentido. Nós recordamos a visão de Platão do Demiurgo (no 
Timaeus) que coloca a ordem da escala diatônica firmemente como fundamento do 
universo. A sabedoria do antigo Oriente pode ser menos familiar para nós. As duas 
seguintes passagens são tiradas outra vez do Li chi (da versão alemã de Richard 
Wilhelm): 
“A primavera cria, o verão faz crescer: isto é amor. O outono colhe, o inverno 
protege no celeiro: isto é justiça. O amor corresponde à música, a justiça corresponde 
aos ritos.” 
“A música realiza a união, os ritos realizam a separação. Na união, os homens 
amam uns aos outros, na separação os homens respeitam uns aos outros. Se a música 
predomina, surge o perigo da dissolução; se os ritos predominam, surge o risco da 
estagnação.” 
Estas afirmações são suficientes para indicar como o estilo deste pensamento 
sobre música e a atitude que ela reflete diferem da nossa. As palavras associadas com 
música não são “arte”, “artista” ou “obra de arte”, mas verão e inverno, separação e 
união, amor e justiça, dissolução e estagnação. Onde nosso pensamento tende a 
analisar e isolar, o sábio chinês contempla um todo ordenando. Ele não compara uma 
coisa com outra ou procura por traços que possam ter em comum ou progredir do 
particular para o geral. Antes, ele se esforça por entender como a música, tal como 
ela é, pode necessariamente encaixar-se no todo. (O todo não é o mesmo que o geral: 
criações particulares separadas do geral são acidentais, enquanto a parte de um todo é 
necessária. O geral permanece o mesmo quando um particular é removido, mas 
quando uma parte é suprimida o todo não é mais o todo.) Aqui música é algo em si 
mesma mas não para si mesma. Ela é uma metade de um par, um de dois pólos, o 
outro pólo sendo os ritos. Outra vez, música e ritos não são tidos como existindo por 
si mesmos, mas como mediadores, como mediadores terrestres entre dois poderes 
supraterrestres cuja tensão polar mantém o universo em permanente equilíbrio. 
Somente se os mediadores estão em equilíbrio e em um estado sadio está a sanidade 
do todo garantida. A oposição entre os pólos é em realidade uma dependência mútua. 
O perigo não está na ameaça da existência ou na força do outro pólo mas na sua não 
 14 
existência e debilidade. Cada pólo deve querer a existência e a força do outro, e teme 
sua não existência e debilidade. Se um pólo estava desaparecendo, a dissolução ou 
estagnação do todo começava imediatamente a se manifestar. É óbvio que na 
estrutura de tal pensamento, a idéia de um mundo sem música não encontra lugar. 
O que foi dito antes pode, é claro, ser rejeitado como uma especulação 
metafísica e uma fantasia mitológica, inadmissível sem uma substanciação de sua 
reivindicação por validade. Nosso pensamento a respeito de música e musicalidade 
pode ser menos ambicioso, mas ele tem a vantagem incontestável de apoiar-se em 
fatos como nós os experimentamos e explaná-los adequadamente. E não há razão 
para que uma explanação da música como sendo necessária deva em si mesma ser 
superior a uma que a considera como uma contingência. Por que deveria a música 
não ser um sublime acidente? A pedra de toque, certamente, deveria ser aquela 
concepção que se ajusta melhor à realidade dos fatos. E não pode ser negada que a 
evidência de nossa experiência não suporta qualquer alto vôo de pretensão a uma 
validade universal. É matéria de fato que em seu mais alto desenvolvimento a música 
separa as pessoas mais propriamente do que as une.Podem haver muitos ouvintes, 
mas muito mais nunca ouviram, e em meio àqueles que ouviram somente uma 
pequena parcela está capacitada a ouvir o que vai em uma cantata de Bach, um 
quarteto de cordas de Mozart ou uma sonata de Beethoven. Não estamos, então, 
limitados a concluir que em seu sentido mais alto e mais estrito a música é uma posse 
especial de uma minoria muito pequena? Não deveriam nossas concepções de música 
e musicalidade levar em conta este fato? 
O que está errado com este argumento é que ele usa o termo “experiência” em 
um sentido muito grosseiro e estreito. Para ser claro, a confrontação com uma obra-
prima musical aparentemente divide as pessoas mais do que as une: somente uma 
pequena faixa está sendo unida, agrupando-se em torno da obra, separados daqueles 
que podem ter uma atenção ocasional e partir insensíveis e de todo o resto que está 
muito distante para estar realmente ciente da música. Mas somente uma visão muito 
superficial poderia concluir que a música não interessa a todos aqueles outros 
também, que ela não existe para eles de qualquer modo. Beethoven escreveu as 
seguintes palavras “Do meu coração – possa ela atingir outros corações” antes dos 
acordes de abertura de sua Missa Solemnis. Estava ele pensando somente nos 
musicalmente dotados? Ele dentre todas as pessoas não teria sido consciente que 
somente muitos poucos seriam capazes de seguir a alta complexidade e o pensamento 
musical completamente abstrato desta Missa? E contudo o trabalho não é endereçado 
a estes poucos ou a outros grupos maiores; ele é endereçado a todos, à totalidade da 
humanidade, ao coração humano. Se houve alguma vez um só indivíduo capaz de 
entender esta obra, ele seria o representante de toda a humanidade; em seu proveito 
ele quereria alargar a compreensão do coração humano; em sua consciência quereria 
estender seu alcance e através dele uma nova realidade poderia ter ingressado em seu 
conhecimento. Pois o que tenha ocorrido é compartilhado por todos os homens, 
realmente como muitos podem compartilhar uma nova iluminação sem verem a fonte 
da luz. Neste sentido a grande obra de arte – e na verdade particularmente as grandes 
 15 
– são, se não endereçadas para todos, criadas por todos. A evidência oferecida pela 
confrontação na sala de concerto é superficial. Por detrás da superfície evidente nós 
sentimos, embora não possamos obrigá-la a confessar, a realidade de um todo-
conjunto no qual todos – compositor, executante e ouvinte – permanecem juntos e 
olham fixamente, por assim dizer, com os olhos da obra na mesma direção, a grande 
situação que encontramos na fase dos primórdios. Nem são as paredes da sala de 
concerto um limite cerceador: o todo-conjunto se estende além delas. O fato de a obra 
existir e ser entendida por uns poucos significa simplesmente que daí em diante 
muitos outros quererão ser diferentes em sua poesia, em suas emoções, seu 
pensamento, talvez equilibrando seus movimentos e sua respiração. 
Embora o pleno alcance e impacto dos problemas fundamentais levantados 
pela música possam ser revelados somente para aqueles de nós que testemunham a 
fase culminante, parece que ao mesmo tempo perdemos a habilidade de nos 
concentrar nestes problemas, além de pensá-los a partir do fim. Será que a 
proximidade com a fase culminante nos oprimiu, tornando-nos mudos, e sufocou 
nosso pensamento a tal grau que só podemos dar minúsculos passos em um pequeno 
círculo? Vista da fase dos primórdios, a música se revela como uma das faculdades 
principais da consciência humana em seu avanço em direção a horizontes sempre 
mais amplos. O que podemos fazer é tomar o problema da musicalidade fora do 
contexto da fase culminante e colocá-lo de volta no contexto de seu primórdio. A 
procura de respostas não pode proceder por mais tempo das linhas da especulação 
metafísica; seria um empenho infrutífero. A tarefa simplesmente é ter uma visão 
cuidadosa dos fatos, descrevê-los fielmente, e interpretá-los corretamente. 
 16 
 
 
 
II. O Significado da Canção 
 
 
 
 
Por que as pessoas cantam? 
 
 Notoriamente, questões de “por que” prestam-se à ambigüidade. Elas podem 
se referir à causa de um dado fenômeno, para seu antecedente, ou para seu 
significado, suas implicações. No primeiro caso a resposta será referida a fatos 
observáveis dos quais o dado fenômeno é seu efeito; no segundo, para a idéia da qual 
o fenômeno pode ser conseqüência lógica. As respostas não são mutuamente 
excludentes, mas são de diferentes tipos. A distinção entre as duas é análoga àquela 
feita por Dilthey entre a demanda para a explanação e a demanda para a 
compreensão. Por exemplo, para a questão “Por que as pessoas morrem?” respostas 
de diferentes tipos são possíveis. Se a questão se refere à causa, iremos tratar dos 
processos físicos e químicos do organismo envolvido, e a interação destes processos 
com outros processos vindos do ambiente em direção a este organismo; se a questão 
se refere ao significado, devemos olhar para a questão no Livro do Gênese, na Queda 
do Homem. 
Que tipo de resposta é a mais apropriada, dependerá do assunto da questão. Ao 
que a questão se refere é muitas vezes imediatamente óbvio. Por exemplo, ouvindo 
uma peça de música, eu posso bem perguntar, por que exatamente este acorde 
exatamente aqui? Claramente, não espero que seja dito que é porque certos 
instrumentos produzem ondas sonoras particulares, portanto sendo responsáveis por 
aquele acorde exatamente aqui. Pelo contrário, o que realmente me interessa é 
compreender o significado deste acorde com referência à obra como um todo. Em 
outros contextos, contudo – tais como “por que a lua é muito maior e avermelhada 
quando ela está surgindo no horizonte do que quando está alta no céu?” – obviamente 
quero uma consideração científica para o fenômeno, uma resposta nos termos de sua 
causa. Na verdade, perguntar o que a ascensão da lua realmente significa parece sem 
sentido em primeiro lugar. Isto não quer dizer, claro, que todas as questões exigem 
respostas que caem nitidamente dentro de uma das duas classes mutuamente 
 17 
exclusivas: causas e significados. Igualmente quando lidamos com fenômenos da 
natureza é possível buscar e encontrar significados acima e além de qualquer mera 
contabilização deles. Então, acredita-se geralmente que a única questão sobre as cores 
do arco-íris é “Como elas são produzidas?” Mas Goethe pensou ser possível inquirir 
sobre seu significado e encontrou uma resposta na concepção do Urphänomen, o 
“fenômeno primordial”. Goethe também escreveu que as coisas efêmeras são como 
uma reflexão – em outras palavras, que a suprema sabedoria consiste na busca do 
significado, não das causas. Esta é uma atitude diretamente oposta àquela da ciência 
destes últimos tempos, a qual elimina qualquer busca por significado e olha somente 
para as causas – mais precisamente, para as leis específicas governadoras da 
ocorrência sucessiva dos fatos observáveis. Nesta última perspectiva, a questão “Por 
que as pessoas cantam?” seria automaticamente interpretada como uma questão a 
respeito das causas, e seria conseqüentemente respondida no sentido da psico-
fisiologia. Nós nos referiremos a esta interpretação de nossa questão num ponto 
posterior; estamos aqui interessados não nas causas mas no significado. 
A primeira questão com a qual temos que lidar, então, concerne nem às causas 
nem ao significado, mas ao objetivo imediato da música, especialmente da música 
mais primordial avaliável por nós em alguma medida – a música folclórica. Quanto 
mais para trás nós vamos, mais parece como se a música, longe de ser um fim em si 
mesma (como ela tem eventualmente se tornando na “música artística” do Ocidente), 
estivesse sempre subordinada a finalidades fora dela mesma – religiosa, social, 
prática. Nem teria a música de hoje cessado de emprestar seu auxílio a tais esforços 
extramusicais.Crianças até agora estão cantando para dormir, soldados ainda cantam 
para dar coragem a si mesmos, e trabalhadores tornam mais leve seu trabalho com 
canções. Os ritos religiosos do Ocidente não dispensam sua música, e ritos civis 
parecem monótonos sem ela. E embora possa-se não prestar muita atenção a ela, uma 
certa quantidade de música é ingrediente indispensável para muitos filmes. 
Quando um e o mesmo significado serve a muitas finalidades diferentes, e 
servem-nas a todas igualmente bem, é natural procurar o que estas finalidades têm em 
comum. Em nosso caso, este elemento comum é facilmente identificável. Embora 
seja diferente o comportamento de pessoas rezando, marchando, dançando, assistindo 
a um espetáculo, trabalhando ou celebrando, e embora os caminhos nos quais se 
expressem possam diferir – ação ou contemplação, movimento ou repouso, alerta 
físico ou psíquico ou a falta deste, tensão ou relaxamento – em todas estas situações 
as pessoas envolvidas abandonam-se inteiramente ao que quer que estejam fazendo. 
Elas não se abandonam neste caso por amor ao auto-abandono, a fim de esquecerem-
se de si mesmas ou – o caso extremo – para encontrar libertação em um frenesi 
dionisíaco. Contudo, há um elemento comum a todas estas diversas expressões de 
uma necessidade de auto-abandono, e esta não é um dar as costas ao próprio ser, não 
é uma negação, mas um alargamento, uma intensificação do ser, uma quebra das 
barreiras separando o ser das coisas, sujeito do objeto, agente da ação, contemplador 
daquilo que é contemplado: é uma transcendência desta separação, sua transformação 
em uma unicidade [togetherness]. 
 18 
Imagine uma encosta em um campo caloroso; é manhã e o sol está brilhando 
luminosamente. Um jovem está em cima de uma pereira, colhendo uma fruta, e 
enquanto a colhe ele canta. Por que ele está cantando? Eu suponho que a maioria de 
nós poderia dizer, porque ele está em um dia bonito, e é bom ser jovem em um dia 
bonito em um bonito ambiente campestre, colhendo pêras suculentas. Tudo isto bem 
pode ser, mas há outra razão, mais profunda, mais essencial para cantar nesta 
situação. Nosso jovem poderia não cantar enquanto colhe, se o dia não foi tão 
agradável ou se problemas pesam sobre ele, mas se ele canta de todo modo enquanto 
colhe pêras, cantará uma mesma canção – e uma canção diferente se elas fossem 
uvas. A canção que ele canta é a canção imemorial de colher pêras em sua parte do 
mundo, uma melodia que musicalmente torna um, fruto e colhedor, que “traz” as 
pêras às mãos do colhedor e consagra a colheita delas. É como se as mãos do 
colhedor não se estendessem para a fruta mas esta se entregasse a ele, como se a 
fruta, ao invés de resistir às mãos, se encontrasse a meio caminho, deixando-se cair 
nelas por sua própria concordância. Ao invés de oposição, distinção, temos unicidade, 
unidade. 
Pode-se fazer a objeção de que nem todo tipo de atividade é incrementado ou 
realçado pela música. Assim, cientistas e eruditos não precisam render-se a nada em 
capacidade de auto-abandono, e é um fato que eles não cantam enquanto trabalham. 
Fausto sozinho em seu estúdio, cantando, como Gounod o retrata, nos parece um 
ridículo. Um jogo como o xadrez, igualmente, não se presta a um cenário musical; 
imagine um coro de espectadores intrometidos! Caçadores também cantam somente 
em óperas, e então somente antes ou depois que eles atiram (isso se o compositor 
conhece o seu negócio). Na vida real, caçadores mantêm-se quietos, não exatamente 
para deste modo não alertar a caça – eles se manteriam quietos ainda que os pássaros 
ou animais que eles visam não tivessem o sentido da audição. Na cozinha você ouve 
cantando somente as pessoas fazendo tarefas de rotina, como descascar batatas, nunca 
o chefe preparando nervosamente um molho delicado. O que a objeção omite é que o 
tipo de relacionamento pessoa–objeto característico do pensamento, estudo ou 
qualquer outra atividade que requeira concentração não é corretamente designada 
pelo termo “auto-abandono”. Pois aqui o oposto é verdadeiro: ser e objeto são 
simetricamente distinguidos. Quando engajados em tais atividades, estamos 
inteiramente em nós mesmos e inteiramente com o objeto ao mesmo tempo. Verdade, 
não nos concentramos em nós mesmos, todavia estejamos inteiramente absorvidos 
em observar o objeto, concentrados nele, e fazendo isto nós mantemos o objeto fora 
de nós mesmos, distinto de nós mesmos. Este é uma atitude incompatível com 
quaisquer sons. O homem cantando sobre a pereira não se concentra na fruta. Nem 
Orfeu age como um caçador quando ele encontra feras selvagens. 
Deste modo, música é apropriada, é útil, onde o auto-abandono é pretendido ou 
requerido – onde o ser vai além de si mesmo, onde sujeito e objeto reúnem-se. As 
notas parecem prover a ponte que torna isto possível, ou pelo menos torna isto mais 
fácil, atravessar a fronteira separando os dois. 
 
 19 
Aí existe um tipo de música elaborada para este nível a qual não serve – ou, em 
todo caso, não tão obviamente como outros tipos – como um meio para um fim. Onde 
quer que a música folclórica ainda esteja viva, as pessoas se juntarão para cantar. 
Para ser claro, muitas canções, como as melodias de dança, cantigas de ninar, árias 
marciais, cantos religiosos e hinos têm um propósito específico e imediato; mas há 
também outras que são cantadas por si mesmas, realmente pelo amor de cantar. Qual 
é o significado desta prática? 
Uma canção popular é primeiramente um poema, isto é, uma estrutura verbal. 
Ela conta uma história, evoca uma situação, expressa sentimentos. Pode ser sem 
dúvida que as palavras da canção sejam da maior importância: a melodia toma um 
lugar secundário. O título da canção se refere ao que as palavras dizem, não à 
melodia; na verdade, diferentes canções são igualmente cantadas na mesma melodia. 
Em muitas coleções de canções folclóricas a maior parte do livro é preenchido pelos 
textos verbais, seguido pela indicação “Para ser cantado na melodia de ...” Como 
cada texto é cantado usualmente está colocado no apêndice; o número de melodias é 
invariavelmente inferior ao dos textos. 
Pareceria, então, que igualmente nestas canções folclóricas onde a melodia não 
é realmente o sentido de sua finalidade, sua função é claramente secundária. Poderia 
mesmo ser sustentado que nas canções folclóricas a contribuição da melodia é menos 
essencial do que em outras formas do fazer musical antigo. Nas danças e celebrações 
sem acompanhamento musical falta algo essencial, ao passo que em um poema há um 
todo independente, nada faltando. 
Isto é sem dúvida verdade para o poema não vocalizado, o poema que eu penso 
a respeito ou leio silenciosamente, talvez recitado para mim mesmo ou para alguém 
para quem ele não é familiar; isto não é verdade para o poema que é na realidade 
intencionado para ser vocalizado, para representar a voz de uma comunidade. Pode 
alguém imaginar que pessoas se juntem para falar canções? Alguém pode, mas 
somente como uma possibilidade lógica; na vida real isto seria absurdo. Isto tornaria 
algo natural em algo expressamente artificial. Visto por este lado, o que as notas 
musicais contribuem para a canção folclórica é essencial: somente quando ela é 
cantada a canção folclórica realmente existe. Jogue a melodia fora, e o que resta é 
algo inteiramente diferente. 
Uma explicação trivial sugere: a naturalidade do cantar e a artificialidade de 
falar em coro supõem-se que seja devido ao fato do metro regular a sucessão 
temporal das notas mas não das palavras. Argumenta-se que o metro sozinho torna 
possível uma performance grupal ordenada, mas que manter o tempo enquanto 
falando é artificial. Esta explicação omite o fato que somente com o avanço da 
genuína polifonia – em outras palavras, o avanço da arte musical – que o metro 
tornou-se um elemento indispensável da linguagem musical. A música em seu estadooriginal é livre para concordar ou discordar do metro. Melodias gregorianas que não 
conhecem metro são apesar disso cantadas pelos coros. Na música folclórica do lado 
de fora das fronteiras do Ocidente, grupos cantando e grupos tocando sem metro não 
 20 
são de modo algum estranhos. Nós podemos nos maravilhar com a realização, mas 
ela é considerada como uma concessão. Por outro lado, não há razão por que um 
poema, um modo de falar em linguagem rítmica, não possa ser meramente falado 
metricamente sob certas circunstâncias. Em todo caso, a razão por que é artificial 
recitar canções folclóricas ao invés de cantá-las pode ser buscado noutra parte, não 
realmente no fato de que as notas tornaram-se inseparáveis do texto. 
Parece que falar palavras é inadequado na situação naturalmente pressuposta 
pela existência de canções folclóricas. A palavra falada pressupõe alguém que fala e 
alguém falando para, dirigida de uma pessoa para outra, implica numa comunicação. 
“Toda fala”, lemos no Der Ausbau der Sprache de Bruno Snell, “consiste nisto: um 
som alcança o ouvido de outro ser ... falar é sempre o falar de alguém para alguém 
sobre algo”. As palavras da canção folclórica, no entanto, não são dirigidas para uma 
pessoa ou outra, ou de muitas pessoas para muitas outras; a voz é aquela do grupo, 
que inclui a todos os presentes; aqui não há “outro ser”, não há meros ouvintes. Mais 
precisamente, os que falam são também os ouvintes, não no sentido que cada 
indivíduo fala para todos os outros, mas no sentido de que todos eles juntos falam 
para todos eles receberem; o que há para ser comunicado onde cada um conhece 
exatamente – na verdade, precisam saber – o que é para ser dito a fim de tomar parte 
numa fala coletiva? Se ocorre de um membro do grupo liderar o coro, suas palavras 
não são endereçadas aos outros certamente; cada uma das pessoas do coro poderia 
dizê-las tão bem. Ele não fala para elas nada que elas não saibam; ele não fala para 
elas mas por elas; ele é ainda o porta-voz do grupo. Nem se compara com a situação 
especial do monólogo levado a nós de qualquer parte; monologar é somente pensar 
em voz alta, pronunciar sonoramente pensamentos que poderiam perfeitamente 
também permanecer não pronunciados, enquanto uma canção não existe realmente 
enquanto ela não for pronunciada. As pessoas não se juntam para pensar canções 
silenciosamente, para imaginá-las em conjunto. E então nasce a questão, qual é o 
elemento da melodia cuja adição às palavras de uma canção folclórica transforma 
algo sem significado em algo com significado? 
A resposta pode ser buscada na diferença entre as relações humanas criadas 
pelas palavras, ou faladas, e aquelas criadas pelas notas, ou cantadas. O falar palavras 
pressupõe “o outro”, a pessoa ou pessoas a quem estas são endereçadas; o um falando 
e o um para quem é falado estão voltados um para o outro; a palavra sai de um para o 
outro, criando uma situação na qual os dois estão encarando um ao outro como 
indivíduos distintos e separados. Onde quer que exista fala, há o “ele-não-eu” de um 
lado e sua contraparte, um “eu-não-ele”, em outra. Isto é por que a palavra não é a 
natural expressão do grupo. No grupo, as pessoas são trazidas juntas, não separadas; 
as barreiras entre indivíduos não são enfatizadas, são minimizadas. Uma 
individualidade pode certamente entrar diante de um grupo e falar a ele; mas quando 
ele fala para dentro do grupo de fora do grupo, como um membro, e quando o grupo 
inclui todos os indivíduos presentes, quando não há “outro”, não há “encarar um ao 
outro”, então uma das condições sob as quais falar é significativo é cancelada 
reciprocamente pelas realidades da situação. Agora, se adicionar notas às palavras 
 21 
resulta em transformar o sem sentido em algo que se explica por si, é razoável supor 
que cantar é a expressão natural e apropriada do grupo, da união dos indivíduos 
dentro do grupo. Se este é o caso, podemos supor que as notas – cantadas – 
essencialmente expressam não o indivíduo mas o grupo, mais precisamente, o 
indivíduo na medida em que ele é um membro do grupo, ainda mais precisamente, o 
indivíduo na medida em que sua relação com os outros não é um “encará-los” mas 
uma unicidade. 
Um olhar conclusivo à situação envolvida em cada caso confirma isto: a 
natureza das notas expressa a situação de união tão de perto quanto a natureza da 
palavra expressa a situação de “encarar um ao outro”. As notas musicais não são 
dirigidas aos outros (a hipótese de Géza Révész que elas se originaram no grito – isto 
é, a intenção de gritar para dar maior alcance à voz – é realmente tão bem ou mal 
fundamentada como qualquer outra tentativa de racionalizar o primordial e penetrar 
ainda mesmo além dos primórdios). Notas musicais não fazem referência a coisas; 
elas não dizem nada a respeito de coisa alguma. E ainda elas não são meras 
“expressões”, também não são meramente emitidas: elas além disso pretendem ser 
ouvidas, a saber, pelo próprio cantor. Invariavelmente, elas são ambos, o ponto de 
partida e o ponto de chegada. Enquanto que a palavra sai de mim, aquele que fala, e 
permanece no exterior com a pessoa a quem é falada, que responde com outra 
palavra, eu, como cantor, vou fora de mim mesmo com as notas e ao mesmo tempo, 
como ouvinte, retorno a mim desde o lado de fora por meio das notas. Nas notas, e 
somente nas notas, o cantor encontra a si mesmo vindo de fora, e não somente a si 
mesmo se o cantor é o grupo. Em uma única nota que venha do todo, eu encontro 
tanto o grupo quanto a mim mesmo. A linha divisória entre eu e os outros perde sua 
agudeza. Aqui a situação não é aquela onde duas partes distintas encaram uma a 
outra; aqui os outros não endereçam seu cantar para mim. Enquanto as palavras 
levam as pessoas uma em direção a outra, por assim dizer, as faz olhar uma a outra, 
as notas levam-nas todas à mesma direção: todos seguem as notas em seu caminho 
para fora e em seu caminho de volta. No momento em que as notas ressoam, a 
situação onde uma parte encara a outra é transmutada em uma situação de união, os 
muitos diferentes indivíduos dentro de um grupo. 
Se este é o caso, por que as pessoas não cantam simplesmente canções sem 
palavras? Por que as palavras nas canções cedem lugar às notas somente em curtos 
momentos, na maioria das vezes? Por que não há canções folclóricas que não sejam 
poemas cantados? 
Meras melodias seriam suficientes se o sentido da canção fosse esgotado pela 
transmutação do encontro face a face entre pessoas em uma unicidade, se o cantor 
estivesse interessado somente com o sentimento ao invés de com a comunidade. Algo 
mais deve estar envolvido na forma de expressão onde palavras são necessariamente 
unidas a notas. O cantor que usa palavras quer mais do que somente estar com o 
grupo; ele também quer estar com coisas, aquelas coisas às quais as palavras do 
poema se referem. Uma pessoa usando somente palavras nunca está com as coisas 
neste sentido: ela permanece à distância delas; ela permanece como “o outro” em 
 22 
relação a elas, aquela que não é, “do lado de fora” delas. Em contraste, se suas 
palavras não são meramente ditas mas cantadas, ele constrói uma ponte viva que a 
liga com as coisas referidas pelas palavras, que transmuta distinção e separação em 
unicidade. Pelo sentido das notas, aquele que fala sai em direção às coisas, traz as 
coisas de fora para dentro de si mesmo, então ele não é mais “o outro”, algo alheio ao 
que ele é, mas o outro e si próprio em um. Assim, uma forma de falar que não é 
endereçada a alguém e nada comunica torna-se inteligível. Tão logo as palavras do 
poema restem silenciosas dentro de mim mesmo, o que elas pretendem dizer não é 
“algo outro”, uma coisa “do lado de fora” de mim mesmo; eu posso pronunciá-las, 
projetá-las para fora de mim, a fim de transformar o que elas dizem em uma “coisa” 
outra do que eu mesmo, encontrada dolado de fora. Somente então podem as notas 
satisfazer sua proposta: remover a barreira entre pessoa e coisa, e limpar o caminho 
que pode ser chamado de a participação interior do cantor na qual ele canta – para 
uma participação ativa, uma experiência de um tipo especial, uma experiência 
espiritual. Esta experiência não é um sonhar-se-fora-de-si-mesmo, não é um sonhar-
a-si-em-outra-coisa, como se alguém fosse diferente do que esse alguém é. O cantor 
permanece o que ele é, mas seu ser é dilatado, seu alcance vital é estendido: ser o que 
ele pode ser agora, sem perder sua identidade, ser com o que ele não é; e o outro, 
sendo o que ele é, pode, sem perder sua identidade, ser ele. Este tipo de experiência 
não deve ser confundida com simpatia. Simpatia é dirigida a uma ação imediata, 
como a compaixão, que leva a diminuir ou aliviar o sofrimento alheio, ao passo que a 
participação ativa do sofrimento – por exemplo, expressa em uma canção que conta 
uma história de sofrimento – consiste exatamente nisto, que o sofrimento é 
plenamente re-experienciado na mente do cantor. Aqui a emoção é secundária, é o 
efeito não a causa da participação, e junto com a última é espiritualizada, “colocada 
em parênteses”. (Por isso é que a maldade à qual o poeta se refere é realmente tão 
boa, realmente tão adorável, quanto o bem.) 
Assim nossa questão do significado da canção foi levada a uma resposta 
preliminar: ela reside na transmutação da dupla confrontação entre pessoa e pessoa, e 
entre pessoa e coisa, em uma dupla união: o eu-não-ele e eu-não-ela torna-se o eu-e-
ele e o eu-e-ela. As notas são o meio no qual a transmutação acontece. 
 
 
 23 
 
 
 
III. Palavras e Notas na Canção 
 
 
 
 
Desde que a interpretação da relação palavra-nota dada aqui difere 
substancialmente das interpretações geralmente correntes, fará bem discutir estas 
outras enquanto propostas de orientação e demais elucidações. O pensamento a 
respeito da música hoje é quase inteiramente dominado por uma ou outra destas duas 
teorias mutuamente exclusivas. De acordo com certos escritores, a música é 
essencialmente uma linguagem dos sentimentos, uma expressão da emoção; de 
acordo com outros, a música é composta por “padrões dinâmicos de som” os quais 
constituem um jogo puramente formal (no mais sério sentido do termo), um que não 
contém qualquer significado, que contém só e inteiramente a si mesmo. A relação 
palavra-nota é portanto interpretada por dois caminhos muito diferentes. Nos termos 
da segunda destas teorias, este relacionamento é externo, não mais que uma íntima 
correspondência métrica (por exemplo, as palavras “rauschender Strom, brausender 
Wald” adaptam-se a , mas não se adaptam a ). De 
acordo com esta teoria, então, o problema com o qual estamos lidando nunca aparece. 
De acordo com a outra teoria, as notas acentuam expressivamente os sentimentos que 
as palavras estimulam. (Se os sentimentos são aqueles do cantor ou dos personagens 
referidos ao poema, é uma questão que deixamos aqui em suspenso). Visto que o 
termo “canção” denota hoje primeiramente a arte da canção, e visto que muito das 
canções artísticas exibam impressionantemente a força para acentuar o sentimento, é 
compreensível que a interpretação “emocional” raramente seja contestada. No 
entanto, os estágios primordiais da canção – as verdadeiras canções folclóricas – não 
provêm quase nenhuma evidência de apoio. 
O exemplo dado abaixo é a bem conhecida canção alemã, “Morte, a ceifadora”. 
Eu não a escolhi para refutar uma teoria ou para apoiar a outra, mas em consideração 
ao que se tornará evidente no próximo capítulo. Quanto ao que concerne à relação 
palavra-nota, um grande número de exemplos poderia servir igualmente bem. 
 24 
 
Pode o canto desta canção ser interpretado como a expressão dos sentimentos 
que suas palavras permitem ao cantor? 
Primeiro de tudo, o sentido como o qual o termo “expressão” é usado aqui deve 
ser definido claramente. Palavras são ditas para “expressar” o que elas denotam; 
gestos e gritos, para “expressar” a emoção que dá nascimento a eles; escritos, para 
“expressar” a personalidade do escritor. Notas são ditas para “expressar” emoções em 
um sentido intermediário entre o primeiro e o segundo destes três sentidos, um tanto 
mais próximo ao segundo. Aqueles que vêem a música como uma linguagem dos 
sentimentos dizem que as notas expressam emoções de um modo similar (mas não 
mais que similar) àquele no qual as palavras expressam as coisas que elas denotam, 
isto é, que as notas servem como um meio de comunicar emoções. Pode ser 
sustentado pela mente, contudo, que a correlação de palavras e coisas é superficial e 
acidental. Não há necessidade intrínseca de que um dado vocábulo denote qualquer 
coisa mais que outra; vocábulos idênticos podem denotar coisas diferentes, e 
diferentes vocábulos uma e a mesma coisa. Por contraste, toda emoção exterioriza 
sua própria expressão característica, como uma flor o seu aroma; a correlação entre 
os dois é direta, inerente, não deixa lugar para ambigüidade. Toda expressão 
emocional em si mesma – sob qualquer condição – desce a nuanças sutis em sua 
própria maneira característica. Deste modo, ao passo que deve ser dito o que as 
palavras da linguagem significam a fim de entendê-las, não somente as pessoas mas 
ainda os animais diretamente compreendem o significado de uma fúria ou de um 
gesto conciliatório, nunca confundindo o choro de temor com o choro de alegria. 
Vamos agora voltar para nosso exemplo, e ver se o relacionamento palavra-
nota nesta canção é realmente deste tipo. 
Concebemos imediatamente que a importância da melodia iguala-se àquela das 
palavras. Esta observação é inevitavelmente trivial. Obviamente nosso poema, se 
tomado seriamente, não parodiado, não pode ser cantado em uma canção alegre de 
dança. Seriedade, no entanto, não é uma emoção mas um humor, não é algo que nos 
 25 
agita mas um certo estado receptivo no qual acontece estarmos. Diríamos, então, que 
a melodia expressa as emoções que são permitidas em mim pelo meu humor sério. 
Claramente, esta afirmação não nos leva muito longe, não contribui 
significativamente para nosso entendimento da canção e o meio particular pelo qual 
ela nos afeta. Há incontáveis humores sérios, incontáveis melodias sérias. A resposta 
à nossa pergunta deve ser mais específica. Podemos dizer, por exemplo, que a 
melodia expressa as emoções do cantor quando a transitoriedade das coisas mundanas 
– não realmente as coisas sem valor, mas precisamente as coisas naturais e inocentes 
do mundo – nos é colocada tão vigorosamente quanto o é, pelas palavras de nosso 
poeta. 
Mesmo esta formulação é ainda muito vaga, muito geral: ela ainda não abarca 
o conteúdo desta canção em particular. Claro, ninguém estará isento de ser afetado 
por sua vigorosa evocação da transitoriedade de todas as coisas mundanas, claro, a 
cor da emoção que ela desperta é consoante com o tenor de nossa melodia. Mas esta 
emoção, tomada em seu sentido geral, não é mais que um fundo monocromático para 
as diversas imagens sugeridas pelas palavras, visto que a melodia é muito mais que 
um mero fundo musical para as palavras. O que ouvimos não é meramente alguma 
música suave acompanhando o recital do poema, mas mais propriamente uma íntima 
e indissolúvel união de notas e palavras; a melodia, por assim dizer, funde-se com as 
palavras, move-se em completo acordo com elas, sílaba por sílaba, nuança a nuança. 
É esta concordância que determina a alta qualidade da canção, e é esta concordância 
que está em questão aqui e que nós estamos tentando entender. Aqui a teoria da 
música como uma linguagem das emoções falha em passar no teste da experiência. 
Ao invés de clarear a experiência, esta teoria a torna ininteligível. 
Vamos prosseguir, se não palavra a palavra, ao menos linha a linha. 
 
(Há um Ceifador, homens, chamado Morte) 
O movimentoescassamente diferenciado das notas de abertura da canção é 
mantido com as palavras da abertura, cujo significado não se torna explícito antes de 
ouvirmos a palavra “morte”. Adequadamente, com esta palavra o movimento das 
notas vem a uma breve parada na nota mais grave. 
______________ 
 
Nesta linha emergem um contorno melódico definido e um padrão rítmico 
definido. Severidade e restrição caracterizam o movimento das notas – comparável a 
 26 
uma série de passos cuidadosamente medidos ao longo de um caminho estreito – 
mantendo nas palavras a referência à corte suprema, diante da qual não há apelação. 
 
(A lâmina está sendo afiada, Afiada, mais afiada ele está ficando, 
Logo mais estará em movimento, Todos deveremos sofrer isto) 
As palavras severas, até cruéis, os eventos inexoráveis referidos a elas, são 
igualados pelo padrão rítmico rígido, pela repetição inexorável da mesma frase 
melódica, a descida passo a passo (indicado no exemplo musical) de frase a frase. 
Inesperadamente, a frase não é repetida até o final; ao invés, temos uma seqüência 
descendente. As notas caem repentinamente, como se rendendo à sua própria 
concórdia ao desvio abrupto desde a atividade à passividade sofredora. Finalmente, 
nada pode transmitir mais vigorosamente a ênfase, todo o peso da advertência 
expressa nas últimas palavras do que a ascensão da melodia para o “Acautele-se” 
[“Beware”] seguindo diretamente pela sua descida até a nota conclusiva: 
 
(Cuidado, ó flor adorável) 
Severidade, restrição, aspereza, crueldade, inexorabilidade, atuação e 
sofrimento passivo, violência, gravidade, cautela: todos estes termos denotam não 
emoções mas atitudes ou estados de ser. O que temos observado é somente que as 
notas correspondem intimamente a atitudes ou estados. Para colocar emoções dentro 
do quadro, teríamos que assumir que elas são liberadas pelas atitudes e só 
indiretamente são expressas pelas notas. Mas isto seria uma hipótese ad hoc: a nota 
enquanto percebida por um ouvinte atento pode ser adequadamente descrita sem 
referência a emoções. Que emoções estão presentes certamente não poderá ser 
contestado, e elas parecem ser produzidas pelas notas, não por outro meio. (É por isso 
que é totalmente errôneo cantar esta canção “com sentimento” – por exemplo, a 
primeira estrofe “cruelmente”, a segunda e a terceira “pesarosamente”, e a quarta 
“desafiadoramente”.) 
A segunda estrofe mostra que o problema pode ser estabelecido sem ir adentro 
daquelas sutilezas. 
 
 27 
 (O que é sempre verde e fresco hoje, será ceifado amanhã) 
As palavras da abertura estão intimamente relacionadas àquelas da primeira 
estrofe, a qual meramente enuncia a lei cujo significado é explicitada na segunda. 
Você pode, se quiser, admitir que estas palavras são ditas pelo Ceifeiro: o fato das 
mesmas notas serem cantadas para diferentes palavras pode então ser considerado 
pela similaridade das emoções expressas em ambos os casos. Mas começando com a 
próxima linha, todas essas explanações falham. As palavras agora viram do executor, 
em direção às suas vítimas: 
 
(O nobre narciso, As gemas dos prados, 
O belo jacinto, As papoulas escarlate brilhantes) 
É impensável que estas palavras nasçam das mesmas emoções, ou ainda de 
similares, como as palavras correspondentes na primeira estrofe, “A lâmina é afiada” 
[“The blade is whetting”], e assim por diante. E ainda as notas são as mesmas, e elas 
se ajustam às nossas palavras igualmente tão bem. O paralelismo rítmico e melódico 
das frases, a descida gradual é agora percebida como o anti-tipo tonal correto das 
imagens sugeridas pelas palavras: flores e flores e flores ameaçadas pela lâmina. 
Então, vemos que um e o mesmo gesto expressivo se ajusta a diferentes emoções 
igualmente bem. 
A terceira estrofe confirma isso. As palavras agora se referem somente às 
vítimas do Ceifador. A congruência das palavras e notas – 
 
(As campânulas prateadas, Os doces sultões dourados) 
produz a concordância mais íntima. 
 
(Todos eles caem no chão) 
Isto é agora tão verdadeiro para as notas como para as flores. 
 28 
 
(O que acontecerá com eles?) 
A desesperança, o colapso expresso nesta pergunta não poderia ser transmitido 
mais vigorosamente do que pela descida íngreme da linha das notas neste lugar. É 
inconcebível que a melodia não tenha sido inventada para se ajustar a estas exatas 
palavras. 
E agora a última estrofe. Após a proclamação da lei e a submissão à lei, a 
rebelião contra a lei: “Atreva-se, Morte!” [“Dare, Death!”]. As emoções 
correspondentes a estas palavras são indiscutivelmente a direção oposta daquela 
procedente das estrofes precedentes. E anda a firmeza, a resolução agora revelada 
pelo começo do movimento melódico se ajusta perfeitamente à atitude expressa nas 
palavras. E quão exatamente o movimento cortante e nítido das notas (embora seu 
significado emocional seja muito diferente) corresponde às palavras. 
 
(Atreva-se, venha em um único salto) 
A canção alcança sua culminância quando a ascensão melódica – o gesto tonal 
que, por ter sido repetido três vezes, tornou-se associado em nossas mentes com o 
“Acautele-se” – transmite o “Regozije-se” com o efeito de se mover mais 
profundamente. 
Considere somente o último efeito mencionado: em termos da teoria emotiva, 
ele não faz sentido. Um e mesmo gesto não pode ser uma igualmente vigorosa, 
igualmente convincente expressão do sentimento de ser ameaçador e do sentimento 
de alegria, realmente, de triunfo. De acordo com esta teoria, o uso das mesmas notas 
para expressar ambos os sentimentos pode ser atribuído somente a uma imbecilidade 
ou a um milagre. Que não estamos lidando aqui com uma imbecilidade – embora o 
inventor da melodia não pudesse pensar em uma expressão mais adequada e 
apropriada que aquela que ele utilizara antes – é mostrado pela experiência direta. É o 
bastante mudar a melodia da última linha de maneira a fazê-la conforme a teoria 
emotiva – recolocando-a, digo, com 
 29 
 
(O qual nos receberá a todos. Regozije-se, Ó flor adorável) 
– para realizar pela primeira vez que o efeito do final permanece precisamente 
sobre a repetição da frase, precisamente no fato de que a melodia de “Acautele-se” 
inesperadamente manifesta o aspecto de “Regozije-se”
1
. Falar de um milagre, por 
outro lado, seria só e obviamente sugerir uma tentativa de cobrir a falha da teoria. O 
milagre não é o incompreensível. A verdadeira teoria prova seu valor não ao ignorar 
o miraculoso mas por torná-lo compreensível. Uma teoria que rejeita fatos 
observáveis como incompreensíveis prova somente sua própria inadequação. 
Reduzidos à fórmula mais resumida, os fatos com os quais esta canção nos 
confronta, e os quais nos concernem aqui, podem ser colocados como segue: (1) as 
notas se ajustam às palavras, e (2) uma e mesma nota pode se adequar igualmente 
bem a palavras que dizem coisas diferentes e ainda diametralmente opostas. Segue 
que seu “ajustamento” não pode apoiar-se sobre um acordo tal como entre emoção e 
expressão. Tornamo-nos íntimos dos fatos, entendendo-os melhor, se admitimos não 
que as notas são mensagens enviadas para dentro de nós desde o mundo exterior (o 
que elas seriam se elas fossem a expressão de emoções), mas que nas notas nossa 
própria interioridade vai para fora e encontra a si mesma do lado de fora – que as 
notas servem não para comunicar nossas emoções mas para ajudar-nos a compartilhar 
ativamente o que elas dizem. 
Uma observação incidental: o leitor destas páginas encontra as palavras e notas 
da canção “Morte, a Ceifadeira” como caracteres impressos em um livro, isto é, de 
fora. Não poderiam vir a ele de outro modo: elas são ditas a ele, contadas a ele de 
modo insondável: ele se confronta com elas vindas de fora. Em contraste, o cantor –e 
ele está em questão aqui – tem as palavras e as notas dentro de si mesmo; elas estão 
“atrás” de seu cantar (ele deve conhecera canção para ser capaz de cantá-la); ela sai 
dele e vem de volta para ele mesmo. Desde que o seguinte se refere somente à atitude 
do cantor, do leitor é esperado, sem deixar de ser um leitor, imaginar que ele é um 
cantor, mais exatamente, um membro de um grupo de cantores. 
 “Há um Ceifador, homens, chamado Morte... O qual está ainda verde e fresco 
hoje... O colorido-azul-celeste não-me-esqueço... atreva-se, Morte, venhá cá” – o que 
a “partilha ativa” se refere neste contexto? O que ela não se refere é claro. As 
palavras não evocam algo fora do cantor, digo, imagens mentais do Ceifador afiando 
sua ferramenta, uma campina verde, uma flor azul, e uma Morte cavaleira combatente 
 
1
 Mudar as notas para adaptá-las ao valor emocional das palavras individuais é (como um fator secundário) 
característico da arte da canção. Quando Hugo Wolf, na canção “In der Frühe” eleva as notas , “Não 
tema mais, não se atormente mais, minha alma”, para as notas , “Regozije-se”, da linha seguinte, a mudança 
é precisamente correta. 
 30 
e o Demônio. Aqui não pode haver dúvida de qualquer coisa como esta, nenhuma 
dúvida da identificação do cantor em total empatia com o que tais imagens evocam, 
com a Morte e seus feitos, com as flores e seu sofrimento, com o desafio e seu 
triunfo. A imaginação enquanto a faculdade de conjurar imagens mentais não está por 
conseguinte envolvida; nem é ilusão, o colocar a si mesmo no lugar do imaginado, a 
substituição de outro ser pelo próprio ser. Mas é igualmente claro que o cantor não 
leva realmente as palavras e notas para fora de si mesmo, permanecendo atrás como 
mero observador. Ele partilha ativamente com aquilo que ele diz, ele o “vive”. 
Como? Em que sentido? 
Palavras que não servem para evocar vívidas representações de coisas, eventos 
e sentimentos não são nada que não signos vazios – eu entendo os signos sem 
explorar completamente seus significados. “Morte”, “flor”, “desafio” – eu posso 
entender estas palavras sem visualizar as coisas que elas denotam. Posso entendê-las 
como “meras palavras”, “palavras vazias”, as quais provêm comunicação superficial, 
nada mais. As palavras que são cantadas, no entanto, não são vazias, ainda se elas não 
apontam a uma visualização concreta. Para o cantor, as palavras adquirem uma 
plenitude muito especial e uma profundidade de significado. Algo que permanece 
silente nas palavras meramente faladas começa a fluir, a vibrar; as palavras abrem e o 
cantor abre-se a elas. É como se as notas infundissem nas palavras a força que revela 
um novo estrato de significado nelas, que soprasse vida dentro delas de uma maneira 
especial: não por fazer da palavra uma coisa tangível, como aparece quando vista do 
lado de fora, e certamente não no sentido de submergi-las em uma vida universal na 
qual toda particularidade, todas as distinções são abolidas, mas exatamente em seu 
conteúdo determinado quando visto de dentro, desde um ponto onde o mundo é, por 
assim dizer, um “Eu”. 
 
(As campânulas prateadas, os doces sultões dourados, todos cairão no chão) 
Para o cantor, estas palavras não sugerem algo como uma infinita queda de 
formas esplendorosas e frágeis. De fato, ele não vê nada de todo, não imagina nada; 
nem ele “empatiza” com todas aquelas coisas, incluindo a si mesmo, que deverá cair 
ao chão. Ele simplesmente é esta queda e a queda é ele. Ele não observa a queda; ele 
a “vive” e a queda “vive” nele. No estrato de significado tornado acessível pelas 
notas, coisas que estão separadas se unem; aquele que fala e a palavra falada, 
“pessoa” e “coisa” entram em contato direto. É como se uma porta tivesse aberta 
através da qual o ser vivo daquele que fala vai para aquilo que ele está dizendo, e 
aquilo que ele está dizendo entre dentro dele como algo que tem uma vida em si 
própria, como um “Eu”. Embora nenhum dos dois absorva o outro, a antítese “eu” e 
“ele” é transcendida: o cantor pode dizer “Eu” para aquilo que ele canta, e dizer “ele” 
para si mesmo. A integral realidade da pessoa e a integral realidade das coisas são 
agora fundidas em uma realidade assentada. 
 31 
Expressar tudo isto em palavras pode ser algo complicado, mas o que 
realmente acontece é simples. O processo é quase automático, comparável ao acender 
de uma luz. O que temos aqui não é – longe disso – o resultado de um esforço 
emocional: toma lugar abaixo da camada da afetividade (é por isso que o cantar “com 
sentimento” inibe mais propriamente do que promove o processo). Mas se 
exatamente as mesmas notas que se ajustam então singularmente a palavras 
específicas de modo a levar à luz seus significados mais íntimos pode realmente se 
ajustar singularmente a diferentes palavras, produzir o mesmo efeito – se a mesma 
frase musical pode atingir diferentes escopos com a mesma acuidade – é claro que as 
palavras, as quais enfatizam o que distingue uma coisa da outra, não pode tomar parte 
decisiva neste processo. (“Coisa” localiza aqui tudo o que não é um “Eu”, quer seja 
material ou espiritual, um objeto ou estado de mente, um sentimento ou evento.) O 
afiar a lâmina, a queda das flores, a transitoriedade de todas as coisas mundanas, o 
êxtase ascencional ao jardim celestial – cada um desses é cantado nas mesmas notas, 
cada um é tornado igualmente vivo pela mesma melodia. Podemos concluir que no 
estrato e realidade de onde vêm as notas e para a qual elas levam, não somente a 
antítese entre “eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são 
transcendidas. Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então 
as notas podem, por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos 
às raízes das coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”, 
implicando não em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte 
comum que nutre cada coisa particular. Esta fonte é também o domínio das notas. A 
experiência característica de cantar palavra, a qual conota ambos, a individualidade 
concreta das coisas a que se refere e sua submersão em um todo maior, torna-se então 
inteligível. Uma e mesma melodia não poderia expressar “Cautela” e “Regozijo” com 
igual verdade se tal domínio não existisse, se ele não fosse a fonte onde medo e 
alegria, perdição e salvação, embora certamente diferentes, estão ligados em um 
significado comum. A verdadeira existência das notas é a evidência de um estrato da 
realidade no qual a unidade brilha através da diversidade. 
Conseqüentemente, uma segunda resposta à nossa questão a respeito do 
significado da canção pode ser: as pessoas cantam a fim de se certificarem, através da 
experiência direta, de sua existência em uma camada de realidade diferente daquele 
na qual seu encontro de um com o outro e de coisas com aqueles que falam, como 
que faceiam um ao outro e se separam um do outro – a fim de ser consciente de sua 
existência em um plano onde a distinção e a separação entre um homem e outro 
homem, entre homem e coisa, entre coisa e coisa, dá lugar à unidade, à autêntica 
unicidade. 
Pode parecer que esta interpretação do relacionamento palavra-nota não é 
compatível com a segunda das teorias acima mencionadas, a teoria formal. Se uma 
melodia é inventada para um poema, e se suas notas não estão correlacionadas com as 
palavras com base nos significados objetivos ou emoções expressas, elas podem estar 
baseadas somente no esquema métrico do poema. Realmente, é a inflexão das 
palavras enquanto palavras – enquanto unidades métricas e fonéticas, não enquanto 
 32 
veículos de significado – que reluz na invenção de uma melodia adequada – somente 
deste modo podemos explicar por que poemas inteiramente diferentes em conteúdo 
mas de mesma ou similar estrutura métrica podem ser cantados em uma e mesma 
melodia. Isto é verdade não somente para a música folclórica: mesmo os grandes 
compositores não hesitaram em usar a mesma

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