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MÉTODOS E INTERPRETAÇÃO BÍBLICA Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero GRADUAÇÃO Unicesumar C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância; ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. Métodos e Interpretação Bíblica. Júlio Paulo Tavares Zabatiero. Maringá-Pr.: UniCesumar, 2016. Reimpresso em 2020. 278 p. “Graduação - EaD”. 1. Métodos. 2. Interpretação. 3. Bíblica. 4. EaD. I. Título. ISBN 978-85-459-0435-9 CDD - 22 ed. 220 CIP - NBR 12899 - AACR/2 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Impresso por: Reitor Wilson de Matos Silva Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor Executivo de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva Pró-Reitor de Ensino de EAD Janes Fidélis Tomelin Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi NEAD - Núcleo de Educação a Distância Diretoria Executiva Chrystiano Minco� James Prestes Tiago Stachon Diretoria de Graduação Kátia Coelho Diretoria de Pós-graduação Bruno do Val Jorge Diretoria de Permanência Leonardo Spaine Diretoria de Design Educacional Débora Leite Head de Curadoria e Inovação Tania Cristiane Yoshie Fukushima Gerência de Processos Acadêmicos Taessa Penha Shiraishi Vieira Gerência de Curadoria Carolina Abdalla Normann de Freitas Gerência de de Contratos e Operações Jislaine Cristina da Silva Gerência de Produção de Conteúdo Diogo Ribeiro Garcia Gerência de Projetos Especiais Daniel Fuverki Hey Supervisora de Projetos Especiais Yasminn Talyta Tavares Zagonel Coordenador de Conteúdo Roney de Carvalho Designer Educacional Yasminn Talyta Tavares Zagonel Projeto Gráfico Jaime de Marchi Junior José Jhonny Coelho Arte Capa Arthur Cantareli Silva Ilustração Capa Bruno Pardinho Editoração Fernando Henrique Mendes Qualidade Textual Daniela Ferreira dos Santos Yara Martins Dias Em um mundo global e dinâmico, nós trabalhamos com princípios éticos e profissionalismo, não so- mente para oferecer uma educação de qualidade, mas, acima de tudo, para gerar uma conversão in- tegral das pessoas ao conhecimento. Baseamo-nos em 4 pilares: intelectual, profissional, emocional e espiritual. Iniciamos a Unicesumar em 1990, com dois cursos de graduação e 180 alunos. Hoje, temos mais de 100 mil estudantes espalhados em todo o Brasil: nos quatro campi presenciais (Maringá, Curitiba, Ponta Grossa e Londrina) e em mais de 300 polos EAD no país, com dezenas de cursos de graduação e pós-graduação. Produzimos e revisamos 500 livros e distribuímos mais de 500 mil exemplares por ano. Somos reconhecidos pelo MEC como uma instituição de excelência, com IGC 4 em 7 anos consecutivos. Estamos entre os 10 maiores grupos educacionais do Brasil. A rapidez do mundo moderno exige dos educa- dores soluções inteligentes para as necessidades de todos. Para continuar relevante, a instituição de educação precisa ter pelo menos três virtudes: inovação, coragem e compromisso com a quali- dade. Por isso, desenvolvemos, para os cursos de Engenharia, metodologias ativas, as quais visam reunir o melhor do ensino presencial e a distância. Tudo isso para honrarmos a nossa missão que é promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária. Vamos juntos! Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou profissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu- nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con- tribuindo no processo educacional, complementando sua formação profissional, desenvolvendo competên- cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessá- rios para a sua formação pessoal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de cresci- mento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o Studeo, que é o seu Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das dis- cussões. Além disso, lembre-se que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranqui- lidade e segurança sua trajetória acadêmica. A U TO R Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero Doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (2000). Mestrado em Teologia pela mesma instituição (1995). Graduação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (1980). Atualmente é professor da Faculdade Teológica Sul Americana e coordena o Instituto de Teologia Humanidades e Artes do Vale do Paraíba (ITHAVALE). Suas experiências são na área de Teologia e Ciências da Religião, atuando principalmente nos temas: Exegese Bíblica, Judaísmo Antigo, Análise do Discurso, Teologia Pública e Sociologia da Religião. Link: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id= K4777582U6 SEJA BEM-VINDO(A)! Olá, aluno(a)! Seja bem-vindo(a) a mais uma disciplina de nosso curso de Bacharelado em Teologia! É uma bênção poder contar com sua participação e sua companhia conos- co no Unicesumar. Nossa expectativa é que o curso seja uma bênção e que lhe propicie momentos de edificação e companheirismo no aprendizado da Teologia. Esta disciplina tem como título: MÉTODOS E INTERPRETAÇÃO BÍBLICA. Como o título indica, é uma disciplina que ensinará como fazer algo. Ou seja, ensinará você a interpre- tar a Bíblia de um modo mais aprofundado, disciplinado e, teoricamente, consistente. Em certo sentido, você já sabe interpretar a Bíblia. De fato, mesmo sem conhecimento teológico, toda pessoa é capaz de ler e entender razoavelmente bem uma boa parte dos textos bíblicos. Entretanto, a interpretação de textos antigos como os da Bíblia deman- da mais do que o conhecimento e a capacidade adquiridos na vida cotidiana. Você já sabe, por exemplo, que os livros da Bíblia foram escritos em três idiomas: hebrai- co (quase todo o Antigo Testamento), aramaico (poucas partes do Antigo Testamento) e grego (Novo Testamento). Também já sabe que foram escritos em lugares e épocas bem diferentes dos nossos: no Antigo Oriente Próximo, a partir do século XII a.C., o Antigo Testamento foi escrito. Já o Novo Testamento foi escrito ao longo das duas margens do Mar Mediterrâneo, ou seja, na região do Oriente, mas também no que hoje conhecemos como o sul da Europa (na região da Itália e Grécia, principalmente). Essas distâncias geográficas, cronológicas e culturais tornam a interpretação da Bíblia um desafio. O desafio de conhecermos e compreendermos modos de viver e de explicar a vida bem distintos dos nossos. E, em especial, modos de crer em Deus e viver a fé que não são idênticos aos nossos. Além dessas razões, a interpretação da Bíblia é desafiadora porque cremos que nela está a Palavra de Deus para nós. Lemos a Bíblia para conhecer melhor a Deus e para viver mais de acordo com o Seu desejo e plano para a Sua criação. Por isso, nossa leitura de- manda excelência.Não podemos “ler de qualquer jeito”. Precisamos ler com dedicação, cuidado, afinco, perseverança e qualidade. Por isso, precisamos aprender métodos que são modelos de como fazer algo. Ler é algo que pode ser feito de diferentes maneiras. Algumas melhores, outras nem tanto. Mas não há uma única maneira de ler adequadamente um texto. Assim, você aprenderá diferentes métodos. Entretanto, precisamos escolher um método para aprender com mais profundidade e para poder aplicar com mais constância. Nesta disciplina, você en- contrará as duas coisas: métodos para poder escolher e um método para aprofundar e começar a usar. Métodos não são inventados a partir do nada. Por isso, começaremos a disciplina com uma descrição de aspectos cruciais da história da interpretação da Bíblia, começando com a própria Bíblia. É verdade, pois dentro dela mesmo encontramos formas de in- terpretar textos bíblicos que podem nos ajudar a entender o que é ler com proveito. Veremos como a Bíblia foi interpretada ao longo da história das Igrejas Cristãs, antes, durante e depois da Reforma. APRESENTAÇÃO MÉTODOS E INTERPRETAÇÃO BÍBLICA Estudaremos com mais detalhes o que eu chamo de paradigma histórico da in- terpretação da Bíblia. Até meados do século passado, era o modo mais comum e conhecido de interpretação da Bíblia. O que poucos sabem, porém, é que, nas ori- gens dos métodos históricos de interpretação da Bíblia, encontramos os escritos de um filósofo, Espinosa, que não era um cristão atuante, mas uma pessoa que buscou seriamente compreender o mundo. Em um de seus livros, dedicou um capítulo ao tema de como interpretar a Bíblia. Com base nesse capítulo, começou a se desen- volver o paradigma histórico. Depois, estudaremos uma forma de renovação do paradigma histórico, desenvolvi- da no Brasil e América Latina, nas décadas de 1970 em diante. O que eu chamo de hermenêuticas sóciocontextuais. Estudaremos dois métodos distintos: o da her- menêutica contextual e da leitura popular da Bíblia. Finalizaremos nossa disciplina com o estudo do método sêmio-discursivo, desen- volvido a partir dos anos 1990, e que engloba tanto o paradigma histórico quanto a sua renovação sóciocontextual. O conteúdo desta disciplina faz parte de minha vida acadêmica desde o seu início. Sempre me preocupei com a leitura da Bíblia: os métodos, os objetivos, as atitudes, as finalidades com que lemos a Bíblia. Por isso, também escrevi alguns livros que estão na base do que você estudará aqui. Ler a Bíblia com qualidade e paixão! São essas as atitudes indispensáveis para aprender a ler a Escritura com eficiência. Es- pero que você também as desenvolva. Mais do que métodos, são as atitudes que contam. Os métodos são ferramentas, não são a leitura em si. Tenha um ótimo proveito deste estudo. Paz e bênção! Prof. Júlio Paulo. APRESENTAÇÃO SUMÁRIO 09 UNIDADE I DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA 15 Introdução 16 A Interpretação da Bíblia: Definindo Hermenêutica e Exegese 24 Interpretação de Textos Bíblicos na Própria Bíblia 29 História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica na Igreja Antes da Reforma 34 História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma 44 História da Interpretação da Bíblia: Uma Visão Panorâmica da Hermenêutica Evangélica Atual (1) 49 História da Interpretação da Bíblia: Uma Visão Panorâmica da Hermenêutica Evangélica Atual (2) 57 Considerações Finais 65 Gabarito UNIDADE II A INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA DA ESCRITURA 69 Introdução 70 A Hermenêutica de Espinosa e o Surgimento da Exegese Histórica (1) 79 A Hermenêutica de Espinosa e o Surgimento da Exegese Histórica (2) 89 A Exegese Histórico-Gramatical 93 A Exegese Histórico-Crítica SUMÁRIO 10 95 A Exegese Histórica: Uma Visão Crítico-Valorativa 104 Considerações Finais 111 Gabarito UNIDADE III A INTERPRETAÇÃO SÓCIO-CONTEXTUAL DA ESCRITURA 115 Introdução 116 A Hermenêutica Contextual 125 A Leitura Popular da Bíblia 138 Exemplo de Exegese Popular Sociológica 143 Exemplo de Exegese Popular Sociológica (2) 149 Exemplo de Exegese Contextual 158 Considerações Finais 165 Gabarito UNIDADE IV A INTERPRETAÇÃO DISCURSIVA DA ESCRITURA 169 Introdução 170 Fundamento Teórico 178 O Método em Ação – Fases Preliminar e Preparatória 187 O Método Em Ação – Fase Final – I Ciclo: Dimensão Espaço-Temporal da Ação SUMÁRIO 11 194 O Método em Ação – Fase Final - II Ciclo: Dimensão Teológica da Ação (1) 202 O Método em Ação – Fase Final - II Ciclo: Dimensão Teológica da Ação (2) 217 Considerações Finais 222 Gabarito UNIDADE V DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA 225 Introdução 226 O Método Em Ação – Fase Final - III Ciclo: A Dimensão Sóciocultural da Ação – Caminho da Narratividade 234 O Método em Ação – Fase Final - III Ciclo: A Dimensão Sóciocultural da Ação – Caminho da Interdiscursividade 239 O Método em Ação – Fase Final - IV Ciclo: A Dimensão Psicosocial da Ação 249 O Método em Ação – Fase Final - V Ciclo: A Dimensão 262 Exemplo de Exegese Sêmio-Discursiva 271 Considerações Finais 279 Gabarito 280 CONCLUSÃO U N ID A D E I Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Zabatiero DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Objetivos de Aprendizagem ■ Explicar o que é interpretação bíblica, a partir dos conceitos de exegese e hermenêutica. ■ Descrever as principais características da interpretação bíblica na Escritura. ■ Descrever as principais características da interpretação bíblica nos Pais da Igreja e na Idade Média. ■ Descrever as principais características da interpretação bíblica dos reformadores. ■ Descrever as principais características da interpretação bíblica evangélica atual. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: ■ A interpretação da Bíblia: definindo hermenêutica e exegese ■ Interpretação de textos bíblicos na própria Bíblia ■ História da Interpretação da Bíblia: a hermenêutica na Igreja antes da Reforma ■ História da Interpretação da Bíblia: a hermenêutica no período da Reforma ■ História da Interpretação da Bíblia: uma visão panorâmica da hermenêutica evangélica atual (1) ■ História da Interpretação da Bíblia: uma visão panorâmica da hermenêutica evangélica atual (2) Introdução Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 15 INTRODUÇÃO Olá, aluno(a)! É um prazer estar com você estudando o importante tema da inter- pretação bíblica. Nesta primeira unidade, estudaremos os principais conceitos utilizados na disciplina acadêmica da Hermenêutica e Exegese. Termos como hermenêutica, exegese, leitura, análise do discurso, releitura etc. Para dominar bem uma disciplina e saber usar os métodos que ela desenvolve, você precisa conhecer e dominar os conceitos (termos técnicos) da disciplina. Além disso, você aprenderá como a interpretação da Bíblia começou a acontecer na própria Bíblia. Verá como autores do Antigo e Novo Testamento interpretavam os seus textos. É verdade! A interpretação da Bíblia começa na própria Bíblia e aprenderemos os princípios usados pelos autores bíblicos na interpretação em sua época. Depois, veremos os princípios de interpretação utilizados pelos Pais da Igreja (teólogos, pastores e bispos que, nos séculos II-V d. C., desempenharam um papel importante na formulação da doutrina cristã eclesiástica). A seguir, estudaremos a interpretação medieval da Escritura. Neste período (sécs. VI-XV d. C.), a Igreja Católica Apostólica Romana era a única institui- ção eclesiástica cristã existente. Nesse tempo, desenvolveu-se a interpretação chamada sensus plenior, uma atualização da hermenêutica dos Pais da Igreja. É uma metodologia importante e deve ainda ser levada em conta nos nossos dias. Finalizaremos nosso livro com a reflexão sobre a interpretação da Bíblianos meios evangélicos brasileiros da atualidade. Dei um salto histórico para a nossa época porque, com muita probabilidade, você aprendeu a interpretar a Bíblia den- tro dos parâmetros do mundo cristão atual. Assim, é importante que você possa olhar criticamente para a sua prática, e é importante notar como a interpretação da Bíblia se dá fora da Academia. Muito bem! O terreno é longo, mas proveitoso. Mãos à obra e que Deus lhe abençoe! DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E16 A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA: DEFININDO HERMENÊUTICA E EXEGESE Aluno(a), talvez você tenha estranhado o título deste tópico: “o estudo da her- menêutica”. Que palavra é essa? Bem, hermenêutica é uma palavra importada da língua grega. No grego da época do Novo Testamento, usava-se o verbo herme- neuo – com o significado de “traduzir”, “interpretar’. O substantivo hermeneutes significava “tradutor”, “intérprete”. Havia até um deus na religião grega, de nome Hermes, cuja tarefa primária era traduzir a fala dos deuses para os seres humanos. Então, a palavra hermenêutica, em nossa língua, é usada para se referir à “interpre- tação” (o ato de interpretar) e também para se referir à ciência da interpretação, a Hermenêutica. Agora, você já conhece o primeiro termo técnico indispensável para estudar esta disciplina e ler a bibliografia sobre o assunto da interpretação da Bíblia. Há, porém, mais um termo técnico que você precisa aprender antes de continuar o estudo: exegese. Também é uma palavra importada da língua grega. No grego do período do Novo Testamento, usava-se o verbo exegeomai que poderia significar: explicar, relatar, contar, ou interpretar. Em João 1,18, lemos: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” – o verbo “revelou” traduz o verbo exegeomai, que poderia também ser traduzido como explicou ou anunciou. Literalmente, o verbo grego signi- fica: “conduzir para fora”, mas ele nunca é usado no Novo Testamento com esse sentido. Em português, quase não usamos a forma verbal “exegetar” – embora seja correta, não é de uso comum. Usamos, sim, o substantivo exegese, com o sentido técnico de “análise interpretativa” ou “interpretação” de textos bíblicos. A Interpretação da Bíblia: Definindo Hermenêutica e Exegese Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 17 Há diferença de sentidos entre hermenêutica e exegese? Sim e não! (Vá se acostumando com esse tipo de resposta, pois, na linguagem técnica das ciên- cias, os termos recebem diferentes sentidos conforme os autores e autoras que os utilizam). Não há diferença se usamos os dois termos apenas para signifi- car “interpretação”. Entretanto, há usos desses termos na Teologia que mostram diferenças marcantes: (1) às vezes, exegese é o termo usado para o método de interpretação, enquanto hermenêutica se refere à teoria da interpretação; (2) às vezes, hermenêutica é usado nos dois sentidos de método e teoria, então, fica, de novo, sinônimo de exegese; (3) às vezes, hermenêutica é usada no sentido de “aplicação” ou “atualização” do sentido do texto bíblico para o tempo do intér- prete; então, nesse caso, exegese se refere à interpretação do sentido do texto bíblico no contexto em que foi escrito. É isso? Bem, ainda falta algo mais. Usamos também outros termos para falar da interpretação da Bíblia nos cursos de Teologia. Leitura e releitura também são termos usados. Normalmente, leitura é sinônimo de exegese (interpretação do texto em seu contexto) e releitura é sinônimo de hermenêutica (atualização do sentido do texto). Por fim, também se usa o termo análise do discurso e/ou aná- lise semiótica do discurso. Esses dois nomes não são tão comuns no campo da Teologia. Ambos veem de estudos da Linguística e Literatura na França (prin- cipalmente). São nomes de duas disciplinas científicas derivadas da Linguística que têm algo em comum, mas também diferenças de sentido e prática. De qual- quer modo, para nosso uso no momento, basta saber que são diferentes técnicas de interpretação de texto, baseadas na Linguística. Em que essas técnicas se diferenciam da Hermenêutica? Principalmente porque a Hermenêutica é uma disciplina acadêmica ligada à Filosofia e não à Linguística. Ademais, enquanto a hermenêutica se preocupa principalmente com a interpretação do sentido, as Análises do Discurso se preocupam primariamente com o processo de produção do sentido dentro da sociedade, especialmente em relação à política e à cultura. Como introdução, já basta! Você terá chance de voltar a esses termos téc- nicos ao longo da disciplina. Vamos, então, estudar por que precisamos de Hermenêutica (ou de métodos de interpretação). DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E18 O estudo da Hermenêutica Quando examinamos a interpretação da Bíblia que se faz em igrejas cristãs, vemos que são muito diversificadas as interpretações que pregadoras e pregadores dão aos mesmos textos bíblicos. Um texto como Isaías 53, por exemplo, pode servir para defender a ausência de doenças, pois Cristo “carregou sobre si nossas enfer- midades”; para afirmar a necessidade de fé em Cristo, “mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões”; para defender a prosperidade, “pois eu lhe darei mui- tos como a sua parte e com os poderosos repartirá ele o despojo”; para defender a humildade e a obediência a Deus, “ele foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca”; e eu poderia continuar a alistar mais e mais exemplos. A situação não é tão diferente nos meios acadêmicos, em que mais e mais comentários a cada livro da Bíblia são publicados, com novas propostas de leitura, novas soluções para antigos problemas exegéticos, novas interpretações para textos familiares. Nas igrejas e nas academias teológicas, a novidade também é moeda corrente. Por que precisamos de uma hermenêutica? Tanta novidade assim também é expressão de perplexidade. Sinal de que não se sabe muito bem o que fazer, de que hábitos antigos já não têm mais tanto valor quanto antes imaginávamos que tivessem. Tempos pós-modernos diriam algu- mas pessoas! Tempos de relativismo, de pluralismo, de contextualismo, de tantos ismos que a gente pode escolher o nosso próprio ismo nas prateleiras dos super- mercados culturais. Mas há mais do que esse tipo de ismos. Há também a busca de certezas, de estabilidades, de verdades em que ainda valha a pena acreditar. Os limites dos hábitos anteriores não devem nos impedir de reconhecer seus valores e de buscar, a partir deles, aperfeiçoamento, melhora de qualidade, novos hábitos mais eficazes, mais criativos, mais realizadores. Por isso, precisamos estudar her- menêutica em um curso de Teologia. Não para inventar tudo de novo, mas para contribuir para o avanço de nossas habilidades interpretativas. Não para fechar a questão, mas para apresentar novas perguntas e possibilidades. Por que a Bíblia é importante? Por que os tempos em que vivemos são complexos? Precisamos fazer melhor algumas das coisas que fazíamos antes. Ler a Bíblia é uma dessas A Interpretação da Bíblia: Definindo Hermenêutica e Exegese Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 19 práticas que valem a pena ser mantidas. Precisamos continuar lendo a Bíblia, mas lendo melhor, mais criativamente, mais fielmente. Por quê? Por que a Bíblia é um livro diferente? De fato, como sabemos, a Bíblia não é um livro, mas uma pequena biblioteca de sessenta e seis livros (no cânon adotado por protestantes), ou setenta e três (no cânon adotado por católico-romanos). Uma biblioteca de duas religiões: judaica e cristã. Uma bibliotecade dois mundos culturais: oriental e ocidental. Uma biblio- teca de livros provenientes de lugares e épocas diferentes. Uma biblioteca de livros escritos em três idiomas distintos (hebraico, aramaico e grego) e traduzida para inúmeros outros idiomas. Uma biblioteca sem as primeiras edições de seus livros – não temos nenhum manuscrito original dos livros da Bíblia, apenas cópias antigas também manuscritas, que serviram de base para as edições impressas dos textos nas línguas originais e nas traduções. (As edições impressas da Bíblia são muito recentes, durante muitos séculos os livros da Bíblia eram manuscritos, copiados geração após geração, circulando em vários lugares e sofrendo pequenas alterações no processo de cópia). Uma biblioteca de livros com os mais variados gêneros lite- rários e temas: narrativas, leis, cartas, interpretações da história do povo de Deus, profecias, exortações, canções litúrgicas e canções de amor. Outra peculiaridade dos livros da Bíblia, em relação as nossas práticas de escrever livros, é que boa parte deles não foi escrita pela mesma pessoa, nem em um curto período de tempo. Para sermos exatos, nem deveríamos chamar os livros da Bíblia de “livros”, pois isso já nos faz pensar em um tipo muito específico de obra. Veja o “livro” dos Salmos, por exemplo, não é um livro, mas uma coletâ- nea de orações, de poemas e de hinos litúrgicos, escritos por pessoas diferentes, em épocas e lugares diferentes, e usados em diversas liturgias e festividades cúlti- cas ao longo da história de Israel. Os doze “livros” dos profetas menores, por sua vez, eram considerados um único “livro” nos tempos bíblicos após sua escrita – porque eles ocupavam um “rolo” de pergaminho – um dos materiais de escrita utilizados. A chamada “literatura paulina” se compõe exclusivamente de cartas, assim como as “obras” de Pedro e Judas, e há um livro do Novo Testamento que não é nem livro, nem carta, nem sermão – Hebreus! DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E20 Essas características da biblioteca que chamamos de Palavra de Deus exi- gem, consequentemente, um trabalho interpretativo disciplinado. Mesmo se o objetivo da leitura for devocional, não podemos abrir mão de interpretar o texto a partir de suas próprias características literárias e linguísticas, nem pode- mos deixar de ler o texto à luz do seu próprio contexto. Uma leitura devocional não terá as mesmas características de uma leitura acadêmica, mas os princípios básicos, derivados da natureza sociocultural da Bíblia, não podem deixar de ser aplicados. A diversidade literária, social, cultural e religiosa da Bíblia gerou, em meios acadêmicos, amplas e detalhadas pesquisas e constituiu todo um campo de estudos que é composto por várias disciplinas acadêmicas: geografia e arqueologia bíblicas, introdução aos escritos bíblicos, história dos tempos bíbli- cos, estudo dos idiomas bíblicos, teologia bíblica, exegese e hermenêutica bíblica. As riquezas da pesquisa acadêmica da Bíblia não podem ser desperdiçadas, mesmo quando não seguimos os seus métodos, não concordamos com seus resultados, ou simplesmente quando nossos interesses na leitura da Bíblia são distintos dos interesses acadêmicos. Graças a esse imenso esforço de muitas pessoas ao longo dos últimos três séculos, temos hoje a nossa disposição uma vasta bibliografia especializada em diversas áreas do estudo da Bíblia. Gramáticas e livros-texto para aprendizado das línguas bíblicas, léxicos e dicionários teológicos de grego, hebraico e aramaico; séries de comentários exegéticos, literários, sociológicos, homiléticos, feministas etc.; compêndios de arqueologia bíblica, história de Israel, história do período do Novo Testamento; introduções ao Antigo e Novo Testamentos; manuais sobre formas literárias da Bíblia; manuais de crítica textual, de metodologia exegé- tica e muito mais. Graças a essa bibliografia, nosso trabalho de interpretação fica bastante facilitado, pois muitas questões já foram resolvidas por estudiosos. Ao mesmo tempo, porém, precisamos tomar cuidado com a maneira mediante que usamos essa bibliografia. Ela não pode substituir o nosso trabalho de aná- lise cuidadosa e interpretação do texto bíblico, deve servir como auxiliar e não como guia da nossa interpretação. Para muitas pessoas, a Bíblia é apenas mais uma coleção de livros. Mas, para muitas outras, gente como nós que estuda Teologia, é muito mais do que A Interpretação da Bíblia: Definindo Hermenêutica e Exegese Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 21 uma coleção de livros. É Palavra de Deus. Como Palavra de Deus, encanta-nos (quantos textos da Bíblia marcaram nossa vida por sua beleza e riqueza), às vezes nos chateia (experimente ler aqueles vários capítulos de genealogias, de descri- ções de rituais sacrificiais) e nos faz trabalhar duro para entendê-la (afinal de contas, quem são as bestas do Apocalipse? O que era o tal batismo pelos mor- tos que os cristãos coríntios praticavam? Quem eram os filhos de Deus que se casaram com as filhas dos homens?). Como palavra de Deus, desafia-nos, exor- ta-nos, ensina-nos, corrige-nos, conforta-nos, transforma-nos, alimenta nossa fé, capacita-nos para fazer a vontade de Deus, sermos felizes, praticarmos a mis- são e os seus ministérios. Por que o caminho aqui proposto é diferente? Resumindo e simplificando quase ao extremo, as práticas de exegese da Bíblia mais comuns nos últimos duzentos anos são: (1) leituras devocionais dos mais variados tipos, nas quais se busca, de forma intuitiva e sem muito trabalho com o texto, ouvir o que Deus tem a nos dizer hoje; (2) leituras homiléticas dos mais variados tipos, nas quais o texto é estudado em função do que se busca: o melhor sermão para a comunidade; (3) leituras técnicas ou acadêmicas, principalmente as históricas (exegese histórico-crítica e exegese histórico-gramatical), que são as mais antigas e ainda mais comumente praticadas no ambiente acadêmico, mas também as sociológicas, as antropológicas, as feministas, as de raça e as diaco- nais. O que todas essas formas diferentes têm em comum? De uma forma ou de outra, todas buscam o sentido do texto. Nos manuais técnicos de exegese, quase sempre se define a tarefa da interpretação como “entender o sentido original do texto, conforme a intenção do autor, e a compreensão dos seus primeiros lei- tores” - esse é o primeiro passo, a partir do qual se pergunta pelo “sentido do texto para nós hoje”. O que varia nos manuais é principalmente a ordem dessas duas tarefas. Tradicionalmente, a ordem é a que eu descrevi acima – a exegese tem prioridade sobre a hermenêutica. Mais recentemente, essa ordem tem sido invertida – a hermenêutica tem prioridade sobre a exegese. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E22 Em que sentidos a teoria interpretativa que estudaremos nesta disciplina ofe- rece um caminho diferente? Em primeiro lugar, o método aqui proposto pode ser usado igualmente para leituras devocionais, homiléticas e técnicas, conforme o interesse de quem está estudando a Bíblia, que selecionará, então, partes do método que lhe sejam mais úteis. Em segundo lugar, porque não se prende à ordem do hábito acadêmico de interpretação bíblica – você pode começar com a exegese ou com a hermenêutica. Tanto faz, pois, de fato, sempre que lemos fazemos as duas coisas simultanea- mente. Só as distinguimos por razões metodológicas e didáticas. Por isso, nesta disciplina, usaremos indistintamente os termos exegese, interpretação, leitura e hermenêutica. São termos que, na história, receberam sentidos diferentes e definiram propostas distintas de leitura, mas precisam ser revistos e reconheci-dos como sinônimos. Em terceiro lugar, porque a tarefa fundamental da exegese não é vista como a compreensão do sentido do texto, mas dos sentidos da ação no texto e a partir do texto. Essa mudança representa uma tentativa de ir além dos limites da inter- pretação moderna da Bíblia, limites impostos pelas discussões e conflitos entre fé e razão, ciência e revelação, objetividade e subjetividade, deísmo e teísmo; e, mais importante, pela prioridade do sujeito individual, masculino, branco, racional e norte-atlântico, e pela prioridade da teoria sobre a prática. A leitura da Bíblia é Há uma importante diferença entre os objetivos de interpretação da Bíblia na “igreja” e na “academia”. Normalmente, na Igreja, se lê a Bíblia para pregar, formar doutrina, ensinar a viver a fé cristã nos dias “de hoje”. Na academia, dá-se mais ênfase ao conhecimento da época do texto bíblico, dos proble- mas que o texto tentava resolver, e das formas literárias, retóricas e discursi- vas usadas na escrita dos textos bíblicos. Por isso, às vezes, se tem a impres- são de que a leitura acadêmica é “teórica” e “seca”, mas não se trata disso, e, sim, de diferença de ênfase. Pode-se usar os métodos acadêmicos para, com proveito, atualizar o sentido da Bíblia para a prática cristã. Fonte: o autor. A Interpretação da Bíblia: Definindo Hermenêutica e Exegese Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 23 tarefa de comunidades cristãs, eclesiais, missionárias, acadêmicas e familiares. A leitura da Bíblia é parte integrante da espiritualidade cristã e da ação ministerial e missionária. Isso exige uma mudança do centro da tarefa: por isso, o sentido da ação vem ocupar o lugar do sentido do texto enquanto tal. Em quarto lugar, porque integra as três grandes tendências da leitura: a base- ada na intenção do autor ou autora, a baseada na intenção da obra e a baseada na intenção da leitora ou do leitor. O eixo central é a obra, o texto enquanto expres- são de um conteúdo que é simultaneamente pessoal e social, pelo que a autoria é importante, mas não determinante do sentido. Como consequência, a pergunta textual mais importante não é “o que o autor/texto quer dizer?”, mas “que possi- bilidades de sentido o texto coloca à disposição de quem o lê?”. Em quinto lugar, porque a mudança da tarefa exige mudança da teoria e do método interpretativos. Precisamos de uma teoria da ação que seja, também, uma teoria do sentido. Precisamos de um método que priorize a ação, mas simul- taneamente seja apropriado para o trabalho com textos, pois nos textos que se testemunha da ação – de Deus e de sua criação. Em sexto lugar, porque a mudança da tarefa exige mudança de objetivos da interpretação da Bíblia. Neste curso, o objetivo fundamental da leitura da Bíblia é a práxis cristã. Lemos a Bíblia para responder à ação de Deus por meio da nossa ação, como membros do povo de Deus, visando ao crescimento espiri- tual, à edificação da Igreja, à realização da missão, à transformação das pessoas, grupos sociais e da própria sociedade. Enfim, visando à expansão do Reino de Deus que, como Pai, Filho e Espírito Santo é glorificado quando sua vontade é realizada na terra e seu propósito se concretiza em nossas vidas. Antes de aprendermos o método de análise semiótica de textos bíblicos, estudaremos os principais métodos de exegese usados na Teologia e nas Igrejas. Construiremos um caminho histórico que nos levará à hermenêutica sêmio-dis- cursiva (semiótico-discursiva), que entendo ser o método mais completo, por ora, para estudarmos a Bíblia com proveito. São diversas as disciplinas de um curso de Teologia, mas todas formam um grande caminho para que possamos aprender a interpretar melhor o texto bíblico, a fim de viver mais intensamente a fé e a missão cristãs. Caminho que passa por muitas estações, mas que se com- põe de um único grande eixo: ler, ler, ler, ler... a Palavra de Deus. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E24 INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS BÍBLICOS NA PRÓPRIA BÍBLIA A interpretação da Bíblia já começou a existir dentro da própria Bíblia. Os auto- res e autoras de livros bíblicos também eram leitores (ou exegetas) da Bíblia (mesmo ainda não completa canonicamente) e nos deixaram alguns exemplos de como liam a Bíblia. Nosso objetivo nesta lição é analisar aspectos importan- tes da interpretação (hermenêutica) dentro da Escritura. Aspectos da hermenêutica no Antigo Testamento Este breve exemplo a seguir, oferece-nos três princípios hermenêuticos no Antigo Testamento: (1) um texto sempre é interpretado a partir do contexto de quem o interpreta; (2) a interpretação de um texto envolve vários textos com paren- tesco discursivo (temático); e (3) a interpretação nunca é repetição do sentido do texto interpretado, podendo ser uma ampliação, uma reformulação, uma cor- reção, ou uma nova aplicação. Um exemplo baseado no conteúdo do texto Aluno(a), leia com bastante atenção estes três textos bíblicos, de preferência, várias vezes: YHWH, YHWH, Deus de ternura e de piedade, lento para a cólera, rico em graça e fidelidade; que guarda sua graça a milhares, tolera a @ sh ut te rs to ck Interpretação de Textos Bíblicos na Própria Bíblia Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 25 falta, a transgressão e o pecado, mas a ninguém deixa impune e castiga a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a quarta geração. (BÍBLIA, Êx 34,6-7). Saberás, portanto, que YHWH teu Deus é o único Deus, o Deus fiel, que mantém a aliança e o amor por mil gerações, em favor daqueles que o amam e observam os seus mandamentos; mas é também o que retri- bui pessoalmente aos que o odeiam; faz com que pereça sem demora o que o odeia, retribuindo-lhe pessoalmente. (BÍBLIA, Dt 7,9-10). “Tu YHWH, Deus de piedade e compaixão, lento para a cólera, cheio de amor e fidelidade, volta-te para mim, tem piedade de mim” (BÍBLIA, Sl 86,15-16). Os trechos descritos estão em ordem cronológica: o mais antigo é o do livro do Êxodo, depois o do Deuteronômio e, por fim, o do Salmo 86. Repare como o texto de Êxodo é interpretado e reformulado: 1. O texto Deuteronômico interpreta o do Êxodo a partir da nova situação urbana em que o Deuteronômio está sendo escrito: (a) desaparece a expressão “a falta dos pais nos filhos, e os filhos dos seus filhos, até a terceira e a quarta geração”, que é substituída pelas expressões “o que retribui pessoalmente aos que o odeiam [...] retribuindo-lhe pessoalmente”. O Deuteronômio interpreta o texto do Êxodo e já lhe dá um novo sentido (ou um sentido renovado). O texto do Êxodo fazia bas- tante sentido em uma comunidade agrária, pouco urbanizada, em que os filhos e netos viviam na propriedade do pai (e do avô) e sofriam os efeitos dos proble- mas do pai (ou do avô) – quando a colheita ia mal, todos sofriam. Já o texto do Deuteronômio é escrito em um ambiente urbanizado, onde pais e filhos e netos vivem em casas separadas, têm (podem ter) diferentes profissões e suas vidas não estão ligadas de forma tão intensa quanto no sítio; (2) pela mesma razão, o termo “milhares” de Êxodo é substituído por “mil gerações” e recebe o acréscimo de “em favor daqueles que O amam e observam os seus mandamentos”; (3) O texto do Deuteronômio é da mesma época (ou talvez um pouco anterior) aos de Ezequiel 18 e Jeremias 31, textos que também indicam uma mudança de mentalidade em Judá: Nesses dias já não se dirá: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes terá os dentes embotados (BÍBLIA, Jr 31,29-30). A palavra de YHWH me foi dirigida nestes termos:Que vem a ser este provérbio DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E26 que vós usais na terra de Israel: Os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados’? Por minha vida, oráculo de YHWH, não repetireis jamais este provérbio em Israel. Todas as vidas me pertencem, tanto a vida do pai, como a do filho. Pois bem, aquele que pecar, esse morrerá (BÍBLIA, Ez 18,1-4); e (4) o Deuteronômio insere sua própria visão da aliança na interpretação de Êxodo: YHWH é descrito como “teu Deus”, “o único Deus”. 2. Já o Salmo 86 cita apenas a primeira parte do texto do Êxodo, deixando de fora toda a seção sobre a punição. Por quê? Porque o Salmo 86 é uma oração individual de súplica, de modo que o contexto litúrgico da interpretação autoriza o intérprete a se apropriar de apenas parte do texto interpretado, a fim de destacar a mensagem que deseja comunicar aos seus ouvintes. A interpretação que o Salmo 86 faz do texto do Êxodo é exemplo de uma “nova aplicação” do texto em um novo contexto. Não se trata de negar os aspectos do texto que não foram citados, nem de ressignificar o texto (como no caso do Deuteronômio), mas, sim, de se apropriar do texto em uma situação distinta da situação em que o texto interpretado foi elaborado. Um exemplo baseado na forma do texto Vejamos outro exemplo, dessa vez, destacando um aspecto mais técnico da inter- pretação, o recurso à intertextualidade: Em Dt 12,13-19, há dois exemplos de citação de Êx 20,24, o primeiro no verso 14 e o segundo no 15: (a) Em Dt 12:14 que faz referência ao santuário único e às instruções acerca do que fazer no santuário citam Êx 20,24, mas de forma quiástica, ou seja, inver- tida. A lei do altar em Êx 20,24 tem dois componentes principais: A Sacrificarás sobre ele tuas ofertas queimadas. B em todo lugar onde... Dt 12,14 toma esses dois elementos em ordem quiástica, invertida, fazendo com que o foco da lei recaia sobre o lugar do sacrifício e não sobre o ato do sacri- fício (como em Êxodo): B1 no lugar que Javé tiver escolhido. A1 lá oferecerás tuas ofertas queimadas. Interpretação de Textos Bíblicos na Própria Bíblia Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 27 (b) Em Dt 12,15, o texto de Êx 20,24 é ressignificado, de modo a permitir o abate de animais nas cidades, longe do altar (o que era exigido no texto do Êxodo): A sacrificarás sobre o altar tuas ofertas queimadas. B em todo lugar onde Eu proclamar meu nome Eu virei a ti e te abençoarei. O texto do Êxodo é citado invertidamente e ressignificado em Dt 12,15: A1 conforme o desejo de teu coração poderás abater e comer carne. B1 conforme a bênção de Javé teu Deus em cada um de teus portões. Aspectos da hermenêutica em o Novo Testamento Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi ba- tizado por João no rio Jordão. E, logo ao subir da água, ele viu os céus se rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele, e uma voz veio dos céus: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”. (BÍBLIA, Mc 1, 9-11). Repare no conteúdo da voz que veio dos céus: as sentenças Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo vêm do Antigo Testamento e são retiradas de três textos dis- tintos: Gn 22,2 “Deus disse: ‘Toma teu filho, teu único, a quem amas, Isaque, e vai à terra de Moriá, e lá o oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei” (BÍBLIA, Gn 22,12-16); Sl 2,7 “Publicarei o decreto de YHWH: Ele me disse: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei’.” e Is 42,1 “Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem me comprazo. Pus sobre ele o meu Espírito, ele trará o direito às nações”. O Evangelho de Marcos usa diferenciadamente os três textos vétero-testamentários: no caso de Gn 22, temos uma alusão, pois não há uma cópia literal do texto de Gênesis: “filho amado” (de Marcos) equivale - “a quem amas” (de Gênesis). Nos casos do Sl 2,7 e de Is 42,1, é usada a estratégia da citação, pois parte do texto vétero-testamentário é literalmente copiada: “Tu és meu filho” (no caso do Salmo); “me comprazo” (no caso de Isaías). Por que Marcos junta três textos aparentemente tão diferentes para falar de Jesus? Ou, em outras palavras, que princípios hermenêuticos Marcos usou ao construir o seu texto? Dois dos princípios nós já conhecemos – Marcos interpreta os textos do Antigo Testamento à luz de seu próprio contexto como intérprete. Marcos já conhece a vida de Jesus e essa vida de Jesus se torna a chave para inter- pretar os textos do Antigo Testamento – o princípio hermenêutico (1) acima. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E28 Marcos não escolhe os textos do Antigo Testamento de qualquer jeito. É a cris- tologia que serve de base para a escolha: o texto de Gênesis é aludido porque Jesus era anunciado como o novo Isaque – mas um Isaque diferente, que mor- reu sacrificialmente. O Salmo é citado porque a igreja cristã acreditava que Jesus era o pregador do reino de Deus, o rei assentado à direita do trono de Deus Pai. Isaías é citado porque Jesus era anunciado como o Servo de Deus que morre e ressuscita em benefício do Seu povo – o princípio (2) acima. O terceiro princípio que vimos no exemplo do Antigo Testamento é usado de forma peculiar por Marcos. Ele, de fato, corrige o sentido dos textos vétero-testa- mentários, mas não os textos em si, e sim a interpretação que rabinos judeus faziam desses textos, afirmando que a interpretação cristã era a mais correta. Isso nos mostra um quarto princípio hermenêutico: (4) o da conflitividade da interpretação – textos sagrados recebem interpretações conflitantes nas diferentes comunidades de segui- dores desses textos. Um novo princípio, por fim, também é perceptível: (5) Marcos usa uma técnica comum entre os intérpretes judeus: a associação de textos das dife- rentes seções do cânon hebraico mediada pelo uso de palavras-chave ou temas-chave. No pano de fundo dessa técnica, está o texto bíblico de Dt 17,6: “Pela boca de duas ou de três testemunhas, será morto o que houver de morrer; pela boca duma só testemunha não morrerá”. Esse texto é interpretado a partir de outro princípio hermenêutico: (6) se um texto vale para uma situação material, também há de valer para uma situação espiritual. As três seções do cânon hebraico são as três testemu- nhas que confirmam a validade do texto de Marcos! (Note como esse princípio está presente também na pregação de Paulo, [BÍBLIA, 1 Co 9,8-14 e BÍBLIA, 1 Tm 5,17- 18] que interpreta o texto “não amordaçarás o boi que debulha” como um texto que valida o pagamento de remuneração aos pregadores da palavra). Escreva, em sequência, todos os princípios hermenêuticos estudados ante- riormente. Reflita sobre a importância deles para entender a Bíblia e sobre como você pode usá-los em seu estudo bíblico (o autor). História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica na Igreja Antes da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 29 HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA: A HERMENÊUTICA NA IGREJA ANTES DA REFORMA Na seção anterior, examinamos brevemente os modos e princípios de inter- pretação de textos bíblicos na própria Bíblia. Notamos como a preocupação fundamental da interpretação era a compreensão da palavra e da vontade de Deus para a época do intérprete (aquilo que alguns chamam hoje em dia de apli- cação). Notamos também alguns dos princípios hermenêuticos utilizados para que essa compreensão não fosse arbitrária (ou seja, de acordo com a vontade do intérprete), mas pudesse ser validada pela comunidade judaica ou cristã na época da interpretação. Aprendemos, enfim, que,na Bíblia, a interpretação de textos bíblicos nunca se resumia a uma repetição do texto, mas sempre envolvia uma ampliação ou mesmo uma reinvenção do texto interpretado. Nosso foco recairá agora sobre a interpretação da Bíblia na história das Igrejas Cristãs antes da Reforma. É importante prestarmos atenção a esse tema, pois um hábito ruim de estudo teológico se desenvolveu em escolas protestan- tes. Esse hábito foi o do esquecimento da riqueza da fé e do trabalho cristão no período anterior à Reforma. Juntamente com esse esquecimento, muita vez se afirmou que toda a história entre o Novo Testamento e a Reforma foi uma histó- ria de corrupção e banalização da fé cristã. Não é possível, neste pequeno texto, corrigir tais injustiças, por isso, nosso foco recairá sobre os aspectos principais da hermenêutica pré-Reforma, com destaque para a sua importante contribui- ção para a nossa própria tarefa de interpretação da Bíblia. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E30 A hermenêutica no período dos Pais da Igreja Há diversos modos de estruturar e apresentar o trabalho hermenêutico no período da Patrística que é o nome que se dá ao estudo dos textos e obras dos chamados Pais da Igreja, líderes e teólogos. Eles foram responsáveis pelo desenvolvimento da estrutura e do pensamento do Cristianismo nos primeiros séculos da história da Igreja. Uma das maneiras de organizar cronologicamente esse período é a seguinte: ■ Período ante-niceno: corresponde ao período anterior ao Concílio Ecumênico de Niceia (324 d. C). Geralmente compreende os escritos surgidos entre o século I e início do IV século. ■ Período niceno: corresponde ao período entre os anos anteriores até alguns imediatamente posteriores ao Concílio Ecumênico de Niceia (324 d. C). Geralmente compreende os escritos surgidos entre o início do IV século até o final deste. ■ Período pós-niceno: corresponde ao período compreendido entre os séculos V e VII (ou VIII). Tal cronologia aponta para um fator importante no estudo da Patrística – o forte vínculo entre o trabalho dos Pais e a formação do Dogma, da Doutrina oficial da Igreja Cristã (então, havia apenas a Igreja Católica). Além da ênfase na formação doutrinária, o trabalho dos Pais da Igreja também teve um forte tom evange- lístico e apologético (diálogo e debate com religiões e filosofias concorrentes). Dessa forma, a hermenêutica dos Pais da Igreja deve ser entendida à luz dessa tarefa dual: formar doutrina e comunicar o Evangelho fora da Igreja. Conforme Allen Brent, em artigo no Dictionary of biblical criticism and inter- pretation, há pelo menos três modos de interpretação bíblica entre os Pais da Igreja, os quais podem ser assim descritos: (1) Os contextos históricos e narrativas do Antigo e do Novo Testamentos eram literalmente verdadeiros e os eventos, pessoas e palavras descritos pos- sibilitavam a seleção de princípios gerais e de modelos de ação para o bem ou para o mal [...]. (2) [...] os contextos históricos e as narrativas eram verdadeiros, mas os even- tos e pessoas descritos eram misteriosos. Eventos e pessoas não eram exatamente História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica na Igreja Antes da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 31 o que pareciam: por trás do sentido literal desenvolvia-se uma história eterna, na qual o tipo dava lugar ao antítipo, e o presente seria cumprido no futuro [...]. (3) Os textos bíblicos serão mal-entendidos se acreditarmos que são literais e históricos, ou que são produtos exortativos, poéticos e proféticos endereça- dos a uma situação histórica específica: ao contrário, são alegorias nas quais cada pessoa e evento da estória é um código para o drama eterno da salvação. A redenção é alcançada por quem consegue captar o sentido verdadeiro da ale- goria ou história redentiva. O elemento comum a esses três modos hermenêuticos era o da prioridade da dou- trina para a validação da interpretação da Bíblia. A maioria dos textos bíblicos era interpretada segundo o sentido mais claro do texto (chamado erroneamente de literal), mas, quando os textos apresentavam dificuldades hermenêuticas, deve- riam ser lidos à luz da doutrina cristã. Nesse sentido, a hermenêutica patrística não se diferenciava, em termos formais, das hermenêuticas presentes na Bíblia. Os Pais não se preocupavam em descrever o que o texto bíblico quis dizer no passado, mas o que o texto bíblico diz no presente (do intérprete). As diferenças estavam no grau de ampliação ou reinvenção do texto inter- pretado. No primeiro modo (literal), a ampliação se dava do ponto de vista da vida cristã ou espiritualidade, e normalmente se usavam recursos tipológicos para tornar textos do Antigo Testamento relevantes para a prática cristã e para a evangelização ou apologética (por exemplo, Moisés podia ser descrito como um grande filósofo, cujas ideias já prenunciavam as descobertas filosóficas e eram “Tipo” é uma pessoa ou instituição do Antigo Testamento que apontava para outra pessoa ou instituição (o antítipo) do Novo Testamento. Por exemplo: Moisés e Davi eram tipos de Cristo. O sacrifício pascal era tipo da redenção na Cruz. Fonte: o autor. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E32 até mesmo superiores a elas). No segundo modo, o uso da tipologia era bem mais intenso, de modo que o Antigo Testamento era interpretado à luz dos ensinos do Novo, e esse à luz das doutrinas da Igreja (por exemplo, após a definição da doutrina da Trindade, mesmo textos bíblicos que não se referiam à Trindade pas- savam a ser interpretados à luz dessa doutrina, tais como o plural em Gn 1,26, ou as menções ao Anjo do Senhor no Pentateuco, que era visto como o próprio Jesus etc.). No terceiro modo, o alegórico, o grau de reinvenção do texto era ainda maior, de modo que o recurso tipológico era estendido aos próprios detalhes do texto (por exemplo, uma interpretação excessivamente alegórica procurava nas parábolas um significado específico para cada detalhe: o assaltado na parábola do Samaritano era o incrédulo, a estalagem a igreja, o samaritano Jesus etc.). Aos princípios hermenêuticos presentes na própria Bíblia, acrescentou-se um princípio determinante: a interpretação do texto deve corresponder ao con- junto da doutrina cristã. Até hoje a interpretação da Bíblia nas Igrejas segue esse princípio patrístico – o sentido dos textos bíblicos sempre valida as doutrinas de cada denominação cristã e invalida as doutrinas concorrentes. Hermenêutica Medieval No período medieval, poucas foram as inovações na hermenêutica. Em geral, seguiam-se os princípios da Patrística, mas foi feita uma formalização desses princípios por meio da definição de uma quádrupla descrição do sentido dos textos bíblicos. Afirmava-se, em geral, que o texto bíblico deve ser lido à luz de quatro dimensões de sentido: literal ou histórico, alegórico ou tipológico (com ênfase na cristologia), moral ou tropológico e anagógico ou místico (distinção que é atribuída a João Cassiano, autor do V século da era cristã). Littera gesta docet Quid credas allegoria Moralis quid agas Quo tendas anagogia O sentido literal ensina os fatos História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica na Igreja Antes da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 33 O alegórico, o que crer O moral, o que fazer O anagógico, a direção a seguir (Poema de Nicolau de Lira, século XIII d. C.). O sentido literal servia de base para os demais, especialmente para o alegórico, de modo que esse não se tornasse excessivamente subjetivo. Osentido anagó- gico, que correspondia grosso modo à doutrina cristã, servia de critério para os demais na medida em que nenhuma interpretação da Bíblia poderia contradi- zer o ensino da Igreja. A interpretação da Bíblia não era a principal tarefa dos cristãos nem dos sacerdotes ou líderes cristãos. Essa era, sim, a comunicação da doutrina cristã aos membros da Igreja e aos pagãos no território da Igreja. Na pregação, por exemplo, a ênfase recaía sobre os deveres morais dos ouvintes (sentido tropo- lógico), ou sobre os exemplos bíblicos a serem seguidos (sentido alegórico), ou sobre a fidelidade à doutrina da Igreja (sentido anagógico). No estudo da Bíblia, em geral, havia significativas diferenças entre os intérpretes no tocante ao peso que cada sentido do texto deveria ter na interpretação. Se por um lado é verdade que muitos exageraram na alegorização e na vinculação do texto à doutrina da Igreja, não foram poucos os intérpretes da Escritura que davam peso significa- tivo ao sentido literal ou histórico do texto bíblico, que servia como controle para as suas ampliações e/ou reinvenções. Infelizmente, nosso tempo não permite um aprofundamento desse tema tão rico e significativo. Fica assim o desafio para o estudo de obras que permitam tal aprofundamento. Cabe ressaltar, porém, que não podemos desconsiderar o período pré-Reforma, nem descrevê-lo como um tempo de corrupção moral e doutrinária, ou como um tempo de distanciamento dos ensinamentos bíblicos. Certamente, houve excessos, exageros e erros na vida cristã, na organização ecle- siástica e na interpretação da Bíblia. Tais excessos, porém, não podem ocultar a riqueza da vida cristã e da hermenêutica nos séculos entre o Novo Testamento e a Reforma Protestante. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E34 HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA: A HERMENÊUTICA NO PERÍODO DA REFORMA Para a maioria dos protestantes, as práticas hermenêutico-exegéticas dos Reformadores se revestem de uma validade peculiar. Elas são vistas como a superação dos grandes erros da interpretação bíblica na Igreja antes da Reforma, de modo que se tornam como que um princípio de fé e não apenas uma forma historicamente condicionada de realizar a interpretação da Bíblia. Hermenêutica na Reforma Em grande medida, a validade que se dá aos reformadores é fruto do sincretismo entre a mentalidade protestante e a metanarrativa moderna. Enquanto a protestante classifica o passado eclesiástico como de deturpação do ideal bíblico, a moderni- dade classifica o mundo pré-moderno como pré-racional ou mesmo irracional, dogmático. Se queremos, porém, entender a hermenêutica dos reformadores de modo adequado, precisamos abrir mão dessa visão avaliativa. Precisamos des- crever a hermenêutica nos tempos da Reforma como mais um passo na história da interpretação bíblico, sem lhe atribuir valor especial – seja para a metodolo- gia, seja do ponto de vista da fé. Com isso em mente, apresento alguns aspectos fundamentais da hermenêu- tica na Reforma, com destaque para o seu aspecto crítico que, em certa medida, é precursor do paradigma moderno-iluminista de exegese. @shutterstock História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 35 Uma nova atitude perante a Escritura Um dos princípios fundamentais da Reforma Protestante foi o da Sola Scriptura (expressão latina que significa: Somente a Escritura). Esse princípio tinha uma dupla função: (a) polêmica, na medida em que contradizia a doutrina católico- -romana da continuidade da revelação divina na tradição eclesiástica e, com isso, contradizia a legitimidade das doutrinas que os reformadores consideravam não bíblicas; e (b) positiva, na medida em que fazia com que a Escritura voltasse a ocupar lugar de destaque na vida da Igreja e na vida cristã. Para os Reformadores, a doutrina oficial da Igreja Católica havia se desviado do rumo correto, afastando-se das Escrituras e se tornando fortemente mar- cada pela presença de ideias meramente humanas. Parte da responsabilidade por esse desvio estava no modo medieval de ler as Escrituras. Por um lado, os Reformadores criticavam o costume medieval de ler trechos isolados da Escritura, bem como o uso de traduções sem consulta aos textos originais. À época, a tradu- ção oficial era a Vulgata (tradução para o latim), a qual, segundo especialistas de línguas bíblicas de então (tanto nas igrejas quanto fora delas), não representava a melhor tradução possível. Para as igrejas nascentes, a Vulgata estava profun- damente marcada pela tradição eclesiástica e não oferecia um caminho seguro para o conhecimento da Palavra de Deus. Por outro lado, criticavam o uso exagerado das alegorizações e da vinculação do texto bíblico ao controle do dogma oficial. Embora não negassem plena- mente o valor da interpretação medieval, com sua teoria dos quatro sentidos, os Reformadores consideravam perigoso o método enquanto praticado, pois ficava muito exposto à subjetividade dos intérpretes, sem controles adequados para a interpretação do texto. A teoria dos quatro sentidos permitia que a deci- são do intérprete estivesse acima da direção oferecida pelo próprio texto bíblico, tornando, assim, a Escritura sujeita ao arbítrio do indivíduo e da direção ecle- siástica. O princípio da sola Scriptura não poderia ser eficaz sob tais condições, de modo que o método medieval foi abandonado. Um segundo princípio fundamental da hermenêutica dos Reformadores foi a afirmação da perspicuidade (clareza) das Escrituras. Esse segundo princípio completava o primeiro, na medida em que afirmava que qualquer cristão seria DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E36 capaz de compreender a Bíblia. Como o primeiro princípio já exposto, esse tam- bém tinha uma dupla função – polêmica e positiva. Para apreciar o que está genuinamente em jogo na ênfase de Lutero e Cal- vino sobre a claritas scripturae precisamos examinar com cuidado como ela emergiu em vários contextos polêmicos, e também sua formulação no contexto das questões acerca do estatuto do conhecimento humano. Em relação à afirmação que notamos, por exemplo, em Clemente de Ale- xandria e outros, que o sentido da escritura é, em princípio, enigmático e polivalente, a perspicuidade da escritura emerge como um princípio hermenêutico. Em relação à afirmação de que a escritura só pode ser in- terpretada à luz do magisterium da Igreja, ele se torna um princípio cris- tológico, eclesiológico e crítico. Em relação à afirmação de que nenhum conhecimento pode ser suficientemente certo para permitir que juízos teológicos resultem em ação radical, a perspicuidade da escritura se torna um princípio epistemológico. (THISELTON, 1992, p. 180). Como um princípio hermenêutico, a perspicuidade da escritura afirma que tudo o que é necessário e possível conhecer sobre a Escritura está no sentido natural do texto, ou seja, no sentido que pode ser apreendido na que se chamava, então, de sentido literal (o primeiro dos quatro sentidos da tradição medieval). Como um princípio crítico, a noção de perspicuidade da Escritura apontava para o fato de que Jesus Cristo é a própria chave hermenêutica da Bíblia – toda a Bíblia dá testemunho de Cristo e esse testemunho é claro, compreensível e serve como fundamento da igreja. Como princípio epistemológico (relativo às condições do conhecimento), a perspicuidade implica em que qualquer pessoa que conhecer a linguagem (não a língua original) e o contexto (contexto textual, não o histó- rico) dos textos bíblicos será capaz de entendê-los. O aspecto epistemológico do princípio da perspicuidade nos encaminhapara a terceira grande mudança de atitude dos Reformadores em relação à interpre- tação da Bíblia. Esse terceiro princípio afirma que a Bíblia é a melhor intérprete de si mesma. Completamos, assim, a grande transformação no modo de ver e ler a Bíblia promovida pelos Reformadores. Por um lado, esse princípio polemiza com a necessidade da autoridade eclesiástica para interpretar adequadamente a Bíblia. Por outro lado, o princípio afirma que não se deve interpretar textos bíblicos isoladamente, mas sempre a partir do conjunto da própria Escritura. A melhor formação para a interpretação bíblica é o estudo constante de toda a História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 37 Escritura, pois ela oferece aos leitores e leitoras as orientações necessárias para sua própria compreensão. Uma nova metodologia de interpretação A partir da nova atitude perante a Bíblia, os Reformadores passaram a usar uma nova metodologia para a interpretação da Palavra de Deus. Eles não escreveram manuais de interpretação bíblica, mas, em seus sermões, comentários bíblicos e obras de teologia, encontramos os princípios metodológicos por eles utilizados. Em primeiro lugar, embora fossem críticos dos modos anteriores de interpreta- ção da Bíblia na Igreja, eles não deixaram de utilizar a bibliografia já existente, especialmente os escritos dos Pais da Igreja. Não se tratava, então, de “começar do zero”, mas, sim, de permitir que a Escritura fosse reencontrada em sua clareza e autoridade e de permitir que a Escritura funcionasse como princípio crítico para a leitura das obras de teologia e interpretação bíblica ao longo da história do Cristianismo. Em segundo lugar, os Reformadores tiraram proveito dos conhecimentos produzidos fora do ambiente eclesiástico – filosofia, direito, as ciências de sua época – a fim de desenvolver suas próprias metodologias de interpretação da Escritura. Ou seja, para eles, a metodologia não era uma questão de “doutrina”, mas, sim, de eficiência e utilidade. O alvo final era a compreensão da Bíblia e a prática da vontade de Deus, o método era uma ferramenta em busca desse alvo. Para alcançar o alvo, foram capazes de usar crítica e sabiamente conhecimen- tos hermenêuticos e filosóficos do mundo exterior à Igreja, pois acreditavam que toda verdade provinha de Deus – por mais maculado que estivesse o ser humano pelo pecado. Em terceiro lugar, não encontramos uma única metodologia nos escritos dos Reformadores – nem mesmo nos escritos de um mesmo reformador (ao longo de sua vida, eles mudavam modos de trabalhar). Por exemplo: (a) Calvino admi- rava a obra de Martin Bucer e de Melanchton, mas criticou o trabalho de ambos como comentaristas de Romanos: a Bucer pela grande extensão de seu comen- tário e pela excessiva sofisticação do mesmo em certos pontos, a Melanchton pelas omissões que, segundo Calvino, podiam ser encontradas em seu escrito; DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E38 (b) Zwínglio deu muito mais valor ao modo alegórico de interpretação do que outros reformadores. Feitas as considerações já descritas, passo a descrever com brevidade as principais características hermenêuticas encontradas em obras dos principais líderes da Reforma. 1. Valorização do texto enquanto fonte e critério da sua própria interpretação. Seguindo a tradição humanística e renascentista de sua época, os Reformadores insistiam no uso das línguas originais no estudo da Bíblia (lembremos que não havia traduções suficientemente confiáveis em seu tempo), a fim de apreciar com maior qualidade e precisão a estrutura, o vocabulário, o estilo e o modo de fun- cionamento do texto bíblico. 2. Identificação do sentido do texto com a intenção do autor do texto, embora tal princípio fosse entendido primariamente como a percepção da intenção explícita do autor no próprio texto – não se tratava de uma busca psicológica da intenção do autor independentemente do texto bíblico. 3. Atenção aos detalhes do texto juntamente com a utilização de outros textos bíblicos como auxiliares indispensáveis na compreensão de cada texto estudado, especialmente em dois sentidos: (a) para situar o texto estudado em seu contexto histórico; e (b) para permitir que o conjunto da Escritura funcio- nasse como chave hermenêutica da leitura de textos particulares. 4. A finalidade da interpretação era a edificação da pessoa e da Igreja, de modo que não distinguiam entre uma leitura “histórica” e outra leitura “aplica- tiva”. Todo texto era lido sempre em função do significado que ofereceria para a vida da Igreja e das pessoas na época da leitura. Uma nova epistemologia para a interpretação da Bíblia Michel Foucault concentrou boa parte de seus esforços na análise crítica dos modelos epistemológicos da Modernidade, especialmente com relação às ciên- cias humanas e às ciências psíquicas. Em seus escritos maiores, praticamente não deu atenção à questão da hermenêutica bíblica. Entretanto, em um artigo fundamental sobre a epistemologia crítica da modernidade, o tema da leitura da Bíblia ocupa papel central. Foucault descreve a leitura da Bíblia na Reforma História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 39 a partir da sua discussão do conceito de crítica do poder, e nos ajuda a perce- ber aspectos normalmente não destacados na descrição da hermenêutica dos Reformadores. Segundo Foucault, “a pastoral cristã, ou a igreja cristã ao realizar uma atividade precisamente e especificamente pastoral, desenvolveu a ideia – singular e estranha à cultura antiga – que cada indivíduo, qualquer que seja sua idade, seu status, do início ao fim de sua vida e nos deta- lhes de suas ações, deve ser governado e deve se deixar governar, isto é, se deixar dirigir para a sua salvação, por alguém ao qual se liga por um relacionamento global e ao mesmo tempo meticuloso, detalhado, de obediência. E esta operação de direção para a salvação por meio de um relacionamento de obediência a alguém, deve se fazer em uma tripla relação com a verdade: verdade entendida como dogma; verdade, também, na medida em que esta direção implica um certo modo de co nhecimento dos indivíduos, particular e individualizante; e, enfim, na medida em que esta direção se dispõe como uma técnica reflexiva, comportando regras gerais, conhecimen tos particulares, preceitos, mé- todos de exame, confissões, entrevistas etc.”. (FOUCAULT, p. 170ss). Essa “direção de consciência”, essa “arte de governar”, sofreu uma “verda- deira ex plosão” a partir do século XV, “explosão entendida em dois sentidos. Deslocamento, pri meiro, em relação ao seu lar religioso e, em segundo lugar, multiplicação desta arte de governar em domínios variados. [...] Como governar uma das questões fundamentais que se passa do século XV ao XVI. Questão fundamental que é respondida com a multi plicação das artes de governar – arte pedagógica, arte econômica, arte política, se vocês Epistemologia é um termo técnico da filosofia, que significa “teoria do co- nhecimento”. Vem de duas palavras gregas: episteme = conhecimento e lo- gos = palavra, doutrina. Falar em epistemologia é falar sobre o modo como nós produzimos conhecimento válido. Fonte: o autor. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E40 quiserem – e de todas as instituições de governo, no sentido amplo que tinha a palavra governo àquela época. (FOUCAULT, 2000, p. 171). Ou, colocado de outra forma, a essa explosão da governamentalizaçãocorres- pon de uma questão: “como não ser governado? [... ou] como não ser governado desse modo, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedi mentos, não desse modo, não para isto, não por estas pessoas” (FOUCAULT, 2000, p. 171). A atitude crítica, pensa Foucault (2000, p. 171ss), cresce lado a lado dessa explosão da governamentalização: [...] em face, e como contraparte, ou melhor, como parceira e adversária das artes de governar, como maneira de desconfiar delas, de recusá-las, de limitá-las, de lhes encontrar uma justa medida, de transformá-las, de procurar escapar a estas artes de governar, ou, em todo caso, de des- locá-las a título de reticência essencial, mas também, e, por isso mes- mo, como linha de desenvolvimento das artes de governar, teria nasci- do na Europa, naquele momento, uma espécie de forma cultural geral, ao mesmo tempo atitude moral e política, maneira de pensar etc., que pode ser chamada como arte de não ser governado ou arte de não ser governado dessa forma e a esse preço. Proporia, portanto, como uma primei ra definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não ser de tal forma governa do. Os pontos históricos de ancoragem da atitude crítica, segundo Foucault (2000, p. 172), teriam sido a Bíblia, o direito e a ciência: [...] em uma época na qual o governo dos homens era es sencialmente uma arte espiritual, ou uma prática essencialmente religiosa ligada à autori dade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer ser governado de tal modo seria essencialmente buscar nas Escrituras uma relação outra, que a ligada ao fun cionamento do ensinamento de Deus [...] uma certa maneira de refutar, recusar, limitar (di gam como vocês quiserem) o magistério eclesiástico, seria um retorno às Escri- turas, se ria a questão do que é autêntico nas Escrituras, do que está efetivamente escrito nas Es crituras, a questão de que espécie de ver- dade dizem as Escrituras, como ter acesso a esta verdade da Escritura na Escritura e a despeito, talvez, do escrito, e até chegarmos à questão finalmente muito simples: as Escrituras são verdadeiras? Diremos que a críti ca é historicamente bíblica. História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 41 E, especialmente no caso da crítica em busca da verdade bíblica, a Reforma de- sempenha um papel crucial, reconhecido pelo próprio Foucault (1995, p. 236): Eu suponho que não é a primeira vez que a nossa sociedade se con- frontou com este tipo de luta. Todos aqueles movimentos dos séculos XV e XVI, e que tiveram a Reforma como expressão e resultado máxi- mos, poderiam ser analisados como uma grande crise da experiência ocidental da subjetividade, e como uma revolta contra o tipo de poder religioso e moral que deu forma, na Idade Média, a esta subjetividade. A necessidade de ter uma participação direta na vida espiritual, no tra- balho de salvação, na verdade que repousa nas Escrituras – tudo isso foi uma luta por uma nova subjetividade. Do ponto de vista histórico, a Reforma Protestante é o clímax de uma série de movimentos de oposição à maneira pela qual os interesses da instituição eclesiástica foram se sobrepondo ao ideal neotestamentário da vida cristã. Em particular, a centralização da autoridade e do governo na instituição papal gerou reações significativas que, aliadas ao movimento mais amplo de autonomia das nações europeias, desembocaram na Reforma. Se a crítica é um não querer ser governado desta maneira, então, pode-se dizer que a crítica faz parte da identi- dade do Protestantismo. Na linguagem de Foucault, o Protestantismo encarna uma atitude crítica cristã à forma de institucionalização e governo desenvolvi- dos pela Cristandade. Paul Tillich apresenta uma interpretação semelhante para o Protestan- tismo, caracterizando a identidade protestante como a concretização do que ele chamou, em diferentes escritos, de o princípio protestan- te. “O princípio protestante pode aparecer de diversas formas. A mais simples é esta: ‘os meios pelos quais o sagrado aparece não podem ser identificados com o sagrado’. Esta formulação negaria quaisquer rei- vindicações de identidade com o divino feitas por qualquer religião, credo religioso, doutrina ou rito, bem como por qualquer movimento histórico ou político ou por destacadas personalidades religiosas. Com a mesma intenção Tillich formularia às vezes o princípio protestante como ‘... a luta de Deus dentro da religião contra a religião’ (UMESP, on-line)1. Devemos levar em consideração, também, que a crítica protestante não se fun- damentava exclusivamente na Escritura, mas tinha também sua parcela de apoio no pensamento secular. DEFINIÇÃO E HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO DA ESCRITURA Reprodução proibida. A rt. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. IU N I D A D E42 Tillich reconhece que “em toda forma protestante, o elemento religioso deve ser vinculado a um elemento secular e questionado por ele. [...] O secularismo é exatamente o corretivo do qual o protestantismo precisa contra a tentação de toda esfera religiosa e de todo sistema eclesiástico, de querer identificar-se ao incondicionado ao qual remetem.” (TILLI- CH, 1995, p. 258). Por mais paradoxal que pareça, o retorno à Escritura como única fonte de auto- ridade para a fé cristã, presente na Reforma Protestante, exige também uma nova valorização do pensamento secular. Em outras palavras, o princípio da Sola Scriptura somente se sustenta em um ambiente intelectual que desconfie do dualismo entre espiritual e material, revelado e racional, religioso e político. A arte de não querer ser governado, portanto, constitui parte essencial da identidade do Protestantismo. Entretanto, a atitude crítica encontra dentro do próprio Protestantismo uma forte tensão dialética: não queremos ser governa- dos por seres humanos pecadores e suas instituições corruptas, mas queremos ser governados por Deus e sua pura e santa Palavra. A aliança entre o espiritual e o secular que se constitui como elemento integrante da identidade Protestante não tem pontos fortes de sustentação. E a própria luta pela autoridade única da Escritura contra a autoridade da instituição eclesiástica acaba se voltando con- tra o Protestantismo. A crítica, como bem percebeu Foucault, é historicamente bíblica, na medida em que se insurge contra os dogmas e outras técnicas do poder pastoral da Cristandade. Entretanto, a partir do momento em que se volta para a própria Escritura, lança desconfiança contra a autoridade única dela. Desde suas origens, até nossos dias, o Protestantismo tem de lidar com essa tensão entre a submissão ao governo divino e a atitude crítica contra os governos humanos. Como distinguir entre ambos? Como saber qual governo é humano e qual é divino? A Reforma apostou no princípio da Sola Scriptura como a res- posta a essas perguntas. Em pouco tempo, porém, percebeu a fragilidade da Escritura para atender a esse fim e foi lhe acrescendo elementos de suporte e força. Primeiramente, foram as sistematizações da pluralidade teológica da Bíblia em História da Interpretação da Bíblia: A Hermenêutica no Período da Reforma Re pr od uç ão p ro ib id a. A rt . 1 84 d o Có di go P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . 43 tratados teológicos, dos quais as Institutas da Religião Cristã, de João Calvino, são um dos mais brilhantes exemplos. Posteriormente, dados os conflitos interpreta- tivos entre as diferentes sistematizações produzidas nas diferentes denominações protestantes, apostaram nas Confissões de Fé, como meios de garantir que a interpretação da Bíblia fosse relativamente uniforme dentro da denominação. Essas duas respostas, porém, trouxeram em si mesmas o germe de sua fra- queza. Teologias
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