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A FORMAÇÃO DO MODELO TECNOASSISTENCIAL PARA A SAÚDE Há algum tempo, a saúde tem sido analisada sob o ponto de vista da micropolítica - ou seja, entende-se que a produção da saúde é feita por sujeitos (e coletivos) que agem de acordo com projetos próprios - ou da própria pessoa ou da corporação. É inevitável, diante desse conformação, que surjam tesões pela convergência de diferentes vontades - do profissional, do usuário, do governo, do mercado, etc. E, todos esses atores, exercem um governo sobre o espaço que lhe convém porque lhes é garantida uma certa liberdade em como produzir a saúde. O resultado, portanto, é um modelo assistencial gerado a partir da pactuação e contratualidade entre o profissional, o usuário e organizações macropolíticas - mesmo que esse acordo e essa produção sejam gerados a partir de tensões e relações conflituosas. A organização da assistência é produto da convergência de todas essas liberdades individuais. MAS O QUE É UM MODELO ASSISTENCIAL? É a forma como é organizada a assistência, como é ofertado o cuidado, como se dá a produção de saúde. Por isso, o modelo assistencial está diretamente ligado às tecnologias de trabalho - ou seja, ao modo de agir no sentido de ofertar produto (cuidado) e obter resultado que, na saúde, é a melhora da condição geral do paciente e o alcance de graus crescentes de autonomia na sua vida. Entende-se, portanto, que a saúde não somente deve usar das tecnologias leves, dura-leves, e duras, mas saberes da área clínica, epidemiológica, do planejamento, da psicanálise, da filosofia, dentre outros. A complexidade dos problemas de saúde, só torna possível resolvê-los contando com a multiplicidade de saberes e fazeres. A MICROPOLÍTICA DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO NA CONSTITUIÇÃO DO MODELO ASSISTENCIAL Para além dos instrumentos ou “tecnologias materiais” e dos conhecimentos técnicos ou “tecnologias não materiais”, surge a preocupação com a dimensão relacional na organização do modelo assistencial. O trabalho em saúde é sempre relacional porque ele é um trabalho vivo, está em ato - e, é claro, há a possibilidade de torná-lo um “trabalho morto” quando o cuidado é burocratizado e a assistência se centra na prescrição, na medicação, onde o saber médico é hegemônico e produtor de procedimentos. É claro que o trabalho morto deve ser inserido/somado ao cuidado - mas não deve prevalecer. Podem (e devem) ser incorporadas e priorizadas as tecnologias leves no cuidado à saúde - garantindo que o trabalho relacional se mantenha, de fato, vivo. Quando favorável ao trabalho vivo e ao uso das tecnologias leves, o projeto terapêutico torna-se mais relacional, mesmo utilizando do instrumental (exames e medicamentos); e reconhece que aquele usuário é para muito além de um problema de saúde, trazendo consigo uma origem social, relações sociais e familiares, uma dada subjetividade; portanto, este conjunto deve ser olhado. O médico, aqui, trabalha com a transferência de conhecimentos para o autocuidado, e com formas diversas de intervir sobre sua subjetividade, valorizando-o e aumentando sua auto-estima e assim o projeto terapêutico deve ter o objetivo de conferir autonomia para viver a vida ao paciente. ⇨ AS TECNOLOGIAS DE TRABALHO O QUE É TECNOLOGIA? Não necessariamente está ligada a equipamentos, a instrumentos, a aparatos. Tecnologia é um modo de fazer algo; é um conhecimento que se aplica para fazer algo. No que diz respeito à saúde, as tecnologias são três. Todas elas são aplicadas no dia a dia do cuidado em saúde, e compreendê-las ajuda na, também, compreensão da micropolítica nesse espaço. 1. Tecnologias DURAS São as tecnologias que estão estruturadas; organizadas. Estão inscritas nas máquinas, nos instrumentos, nos formulários, nos protocolos. Especialmente a partir do século XX, com a Revolução Científica e o grande avanço das tecnologias duras, cresce a “sedução” exercida por elas - somada à indução ao seu uso exacerbado proposta por indústrias de medicamentos e equipamentos biomédicos (que lucram com isso), pela mídia, pela propaganda (com promessas). Por isso, infelizmente, instalou-se ao longo dos anos uma cultura de relacionar fortemente o cuidado ao consumo dessas tecnologias duras - tanto por parte dos profissionais quanto por parte dos pacientes, o que deixou a importantíssima tecnologia leve em segundo plano (que se torna algo, portanto, que temos que recuperar). Por muitos anos, e, inclusive, até hoje, o processo de trabalho cotidiano e as decisões clínicas estão centradas no consumo de medicamentos e procedimentos. Instala-se, portanto, um modelo de produção de saúde muito voltado ao consumo de procedimento e com uma, cada vez menor, presença das tecnologias leves/relacionadas. Elas estão presentes no processo de trabalho de forma secundária. 2. Tecnologias LEVE-DURAS São as tecnologias relativas ao conhecimento técnico, ao conhecimento da clínica, ao conhecimento da epidemiologia; ao planejamento, às ciências sociais. É um conhecimento também estruturado, mas que têm uma parte leve na sua aplicação. Ao aplicar essas tecnologias anteriormente organizadas, cada trabalhador de saúde a fará do seu jeito, do seu modo. Por isso, ela tem as duas dimensões. Diante da completa impossibilidade de se produzir saúde alheio às relações sociais/interpessoais, surge a proposta das tecnologias leve-duras, que começam a retomar/recuperar a medicina do diálogo, da comunicação, das relações. O processo de trabalho em saúde, a sua micropolítica e as relações profissional-usuário são mediadas, então, por tecnologias duras e leve duras. 3. Tecnologias LEVES São as tecnologias das relações sociais; absolutamente fundamental na aplicação do cuidado em saúde. O cuidado em saúde se estabelece a partir da relação entre trabalhador e usuário. Com uma secundarização do cuidado em saúde fundamentado na relação, e a priorização do uso de tecnologias duras, a produção em saúde tornou-se muito cara (controle do ato prescritivo do médico) e pouco resolutiva - visto que aqueles problemas de saúde de origem emocional, afetiva, psíquica, de humor (que afetam profundamente a saúde física e fomentam o processo de doença) não são identificadas por máquinas. É imperativo o diálogo e o espaço de escuta qualificada para a percepção, por parte do profissional, desses processos “subjetivos”/”abstratos” da doença. Se não há uma proteção ao espaço relacional,a escuta estará prejudicada - e, portanto, a perceção da doença, o diagnóstico, a relação médico-paciente (o paciente deve sentir que está sendo ouvido, levado a sério), a percepção do usuário quanto ao compromisso e cuidado do médico, a confiança neste médico, e no tratamento, a adesão ao tratamento; há implicações diretas sobre a saúde do paciente e os tratamentos terapêuticos falham/fracassam. O PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA De maneira geral, portanto, o processo de trabalho precisa fazer uso dos três tipos de tecnologias. Mais quais tecnologias devem “comandar” o processo de trabalho? Ne medicina e na produção de cuidado em saúde, ainda prevalecem/preponderam as tecnologias duras e leve-duras. Esse é um modelo de cuidado, um modo de produzir saúde, adorado em momento anterior e que, hoje, não mais condiz. Diante do que foi exposto sobre as tecnologias leves e sua indubitável importância, justifica-se a necessidade de uma mudança do processo de trabalho em saúde e, portanto, do serviço de saúde: precisa predominar a tecnologia leve. É necessário que as relações profissional-usuário dentro do trabalho em saúde sejam qualificadas; no encontro entre o médico e o paciente deve haver um espaço de fala, um espaço de escuta, uma horizontalidade no diálogo. É preciso que o profissional entenda/perceba o paciente como um ser complexo, com desejos, com medos, com expectativas, com sentimentos, com uma existência e lugar no mundo. O processo de reestruturação produtiva na saúde é, portanto, a mudança gradual no modo como o cuidado é ofertado/realizado. É importante salientar aqui que “o processo de reestruturação produtiva” não diz respeito à uma “inversão radical” do uso das tecnologias. Aqui, não predominam ainda as tecnologias leves - mas elas são incorporadas ao processo de trabalho em saúde. Por exemplo dentro de um hospital, por exemplo, obviamente, existem/dominam muitos e variados instrumentos, equipamentos, maquinário - mas devem ser incorporadas as tecnologias leves, que, naturalmente, gerarão uma mudança no processo de trabalho em saúde - sem, contudo, implicar numa inversão total das tecnologias. O núcleo tecnológico do cuidado permanece inalterado, isto é, centrado no trabalho morto, pouco relacional. Já na atenção básica, por exemplo, surge uma tentativa de transição/reestruturação com a Estratégia em Saúde da Família, ou seja, com a mudança da assistência centrada na unidade básica para uma atenção centrada no domicílio - ou seja, o deslocamento do trabalho para o território e a ilusão da incorporação da escuta qualificada ao paciente. Isso dá uma falsa sensação de reestruturação do modelo de saúde, mas, nada muda se, nos domicílios, o processo de trabalho segue centrado nas tecnologias duras - o cuidado continua operando na lógica instrumental da produção de saúde. Resumidamente, é uma mudança gradual no processo de produção do cuidado em saúde onde passam a ser incorporadas as tecnologias leves. A TRANSIÇÃO TECNOLÓGICA Aqui, está concretizada a inversão completa da ordem de priorização das tecnologias, com as “leves” e relacionais como as tecnologias centrais no processo de produção do cuidado e saúde. A tecnologia leve comanda todo esse processo de trabalho, subsumindo os cuidados duros e leve duros - eles ficam “submetidos” à lógica das tecnologias leves. O modelo assistencial deve ofertar todos recursos tecnológicos aos cuidado dos usuários e mesmo que este necessite para sua assistência de insumos de alta tecnologia, o processo de trabalho deve ainda ter no seu núcleo de cuidado “vivo”. O trabalho relacional, numa situação de necessidade de recursos tecnológicos, dá-se no encaminhamento seguro do paciente, no acompanhamento pela rede assistencial pelo profissional ou equipe com quem o paciente formou vínculos - que assumem uma responsabilidade por aquele procedimento terapêutico. Isso garante a frequente presença do trabalho vivo. A transição tecnológica, portanto, é um processo de mudança/inversão total e radical no uso das tecnologias no processo de trabalho. As repercussões são notadas nas relações dos trabalhadores entre si, e dos trabalhadores com os usuários, com diálogos mais horizontais; entende-se que o usuário também detém conhecimento da saúde e deve ser ouvido, e suas opiniões devem ser consideradas, que ele é o protagonista no processo de cuidado (a consulta médica passa a ser um espaço onde os sujeitos têm protagonismo na produção da saúde). Ele deixa de ser visto como uma “doença”, mas como um ser em toda a sua dimensão, integralidade e complexidade. Outra repercussão se faz notar exatamente no tratamento e nos resultados - mais positivos. COMO É O MODELO ASSISTENCIAL HOJE? O trabalho executado a partir da relação entre sujeitos, acolhedor e produtor de vínculo com responsabilização sobre a clientela, acompanhando projetos terapêuticos cuidadores, é subsumido por uma lógica instrumental, tecnologias duras centrada, realizado a partir do ato prescritivo. A pequena mudança verificada não chega a alterar de fato as estruturas do modelo assistencial vigente, médico hegemônico produtor de procedimentos. É urgente romper com a lógica prescritiva da atividade assistencial, que a captura do Trabalho Morto exerce em todos os níveis da assistência.
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