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SUMÁRIO 1 O surgimento do Serviço Social 9 1.1 O surgimento do Serviço Social como profissão 9 1.2 O surgimento do Serviço Social na Europa e nos Estados Unidos 12 1.3 Principais bases teórico-metodológicas mundiais do Serviço Social 18 2 Serviço Social no Brasil 24 2.1 Constituição e desenvolvimento do Serviço Social no cenário brasileiro 24 2.2 Surgimento da questão social e a sua relação com a profissão 29 2.3 As políticas sociais e o Serviço Social 33 3 Questão social: formas de expressão e enfrentamento 40 3.1 Questão social no cenário contemporâneo 41 3.2 Questão social e Serviço Social 45 3.3 Questão social e suas expressões 47 3.4 Enfrentamento da questão social 50 4 Questão social e o Estado 55 4.1 Estatização da questão social 55 4.2 O Serviço Social no cenário da estatização brasileira 58 4.3 Propostas de intervenção do Estado frente às novas expressões da questão social 61 5 Movimento de reconceituação 66 5.1 Movimento de reconceituação na América Latina 66 5.2 Movimento de reconceituação no Brasil 73 5.3 Congresso da Virada 80 5.4 A prática do Serviço Social contemporâneo 82 O surgimento do Serviço Social 9 APRESENTAÇÃO Este livro tem como objetivo apresentar os fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social nos diferentes períodos de sua trajetória, desde seu surgimento até seus reflexos na contemporaneidade. É tratado o contexto mundial e, especificamente o da América Latina, para compreendermos a história da profissão como um todo. Assim, no primeiro capítulo, abordaremos os fundamentos que deram sustentação aos processos de trabalho do assistente social na Europa e nos Estados Unidos da América. Veremos que o Serviço Social teve sua origem com base em preceitos da Igreja e ações de caridade, com o objetivo de manter a ordem social, e que algumas correntes filosóficas interferiram na constituição do Serviço Social, devido ao avanço do capitalismo e ao agravamento das expressões da questão social. No segundo capítulo, trataremos da Constituição e do desenvolvimento do Serviço Social no Brasil. Compreenderemos o surgimento da questão social e a sua relação com o Serviço Social, além de identificar as políticas sociais no contexto brasileiro, para, desse modo, entendermos melhor essa questão e suas configurações nos dias atuais. O terceiro capítulo irá propor reflexões sobre as expressões da questão social como objeto de intervenção do assistente social. Para isso, ela foi contextualizada, abordando suas expressões e o modo como os assistentes sociais trabalham com elas. Destacamos a pobreza, principal expressão da questão social, e as políticas existentes para o seu enfrentamento. No quarto capítulo, apresentaremos a estatização da questão social e sua relação com a consolidação do Serviço Social. No Brasil, o fenômeno da estatização modificou a prática da profissão, trouxe alguns rótulos aos profissionais da época e impactou a formação dos assistentes sociais. Também veremos que a estatização trouxe novos campos de atuação para o assistente social com instituições do terceiro setor. No quinto capítulo, discutiremos o surgimento das primeiras escolas de Serviço Social na América Latina, assim como sua trajetória histórica até o momento de ruptura da profissão, marcado pelo movimento de reconceituação na América Latina e no Brasil. Conheceremos também alguns movimentos importantes que ocorreram no período de tensões devido ao regime militar vivido no Brasil. Desejamos que esta obra auxilie você a conhecer o processo de constituição histórica da profissão. Também esperamos que você possa entender as conjunturas que influenciaram a profissão ao longo dos anos, as quais foram essenciais para seu amadurecimento, redirecionamento e fortalecimento, visto que compreender a história permite compreender o posicionamento atual e a identidade profissional dos assistentes sociais. Que esta leitura inspire você! Bons estudos! 10 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I O capitalismo surge e, com ele, emergem as desigualdades so- ciais. Para manter o controle dos trabalhadores, em uma parceria de Estado e Igreja, surgem os profissionais do Serviço Social, que deveriam trabalhar com a população vulnerável, buscando a orga- nização e o controle social dessa população. Neste capítulo, conheceremos os fundamentos que deram sus- tentação aos processos de trabalho do assistente social na Europa e nos Estados Unidos (EUA). Além disso, iremos analisar as primei- ras bases teóricas e metodológicas mundiais que tiveram interfe- rência na constituição do Serviço Social. No sistema capitalista, o mercado é regido pelo controle do capital, em que o dono dos meios de produção exerce domínio sobre o proletariado, o qual possui apenas sua força de trabalho. Para garantir sua sobrevivência, o proletariado vende sua força de trabalho aos donos do meio de produção, isto é, à burguesia. 1 O surgimento do Serviço Social 1.1 O surgimento do Serviço Social como profissão Vídeo Se refletirmos sobre a história da humanidade, perceberemos que a desigualdade social e a pobreza sempre existiram, da mesma forma que sempre existiu quem se preocupasse com os indivíduos que so- friam com essas mazelas. Com o surgimento da sociedade capitalista, a exploração da força de trabalho e a má distribuição do que é produzido coletivamente, cresceu a preocupação com essa população e com os problemas sociais e políticos que ela poderia trazer à classe burguesa (ESTEVÃO, 2005). O surgimento do Serviço Social 11 Artigo Acesso em: 12 fev. 2020. No artigo A presença da religião no exercício profissional de assistentes sociais, escrito por Patrícia V. Dutra e apresentado no I Congresso Internacional de Política Social: Desafios Contemporâneos, você vai compreender com maior clareza a presença e influência da religião na atuação profissional do assistente social. Encontrará também uma contextualização histórica mais aprofundada e direcionada para a história do Serviço Social brasileiro. http://www.uel.br/pos/mestradoservicosocial/congresso/anais/Trabalhos/eixo4/oral/53_a_presenca_da_religiao ...... pdf Com a chegada do capitalismo, emergiram também as desigualda- des sociais. A relação entre burguesia e proletariado foi marcada pela exploração. Não satisfeitos com essa relação, os proletários passaram a pedir melhores condições de vida, incomodando a tranquilidade dos burgueses, os quais pediram uma intervenção do Estado para mediar essa situação de revolta. O Estado, então, utilizou dispositivos legais para regular a relação capital-trabalho. Porém, conforme o capitalismo se enraizava na sociedade, deixava transparecer as desigualdades e a questão social. Com isso, a população menos favorecida nesse sistema passou a exigir um posicionamento das classes dominantes, Estado e Igreja, que se uniram para ajudar e organizar essa população. O Estado ficava responsável por impor a paz política e a Igreja encarregava-se do lado social, o de “fazer caridade”. A assistência social dessa época era realizada sem análise crítica da realidade, feita apenas por mera bondade. Não havia o pensamento de reformar o Estado ou suas políticas, mas de reformar o indivíduo. Assim, os pobres recebiam auxílio material e conselhos educativos e religiosos, pois acreditava- -se que, dessa forma, poderiam mudar sua própria condição de vida (ESTEVÃO, 2005). Após tantas manifestações do proletariado, a sociedade civil mo- dificou suas concepções de capital e trabalho, o que fez com que o Estado passasse a ter atenção com a classe trabalhadora e a inserisse no desenvolvimento de suas políticas. Nesse contexto, surge o Serviço Socialcomo uma resposta dos grupos dominantes à iminente questão social. Entretanto, ele devia servir ao Estado, à Igreja e à burguesia, e não ao proletariado, como uma maneira de manter o controle e a or- dem, ameaçados pela questão social (SANTOS; TELES; BEZERRA, 2013). Dessa forma, o Serviço Social surgiu como uma profissão socialmente Atividade 1 Por que o Estado e a Igreja se uniram após a chegada do capitalismo? 12 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I necessária, que busca compreender e intervir nas desigualdades so- ciais que impactam a vida dos trabalhadores. A definição de Serviço Social não pode ser generalizada para todos os países, visto que é necessário levar em consideração aspectos sin- gulares de cada país, como cultura e sociedade. Dessa forma, cada país possui uma definição da profissão adaptada à sua própria realidade. No Brasil, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em 2010, lan- çou a seguinte proposta para definição da profissão: O/a assistente social ou trabalhador/a social atua no âmbito das relações sociais, junto a indivíduos, grupos, famílias, comunidade e movimentos sociais, desenvolvendo ações que fortaleçam sua autonomia, participação e exercício de cidadania, com vistas à mu- dança nas suas condições de vida. Os princípios de defesa dos di- reitos humanos e justiça social são elementos fundamentais para o trabalho social, com vistas à superação da desigualdade social e de situações de violência, opressão, pobreza, fome e desemprego. O CFESS (2010) define ainda que o trabalho social realizado pelos assistentes sociais deve apoiar-se em conhecimentos teóricos, empíri- cos e específicos da profissão. Esse conjunto de conhecimentos auxilia na compreensão da complexa relação social existente e da condição de vida dos indivíduos, permitindo aos assistentes sociais que analisem e intervenham em grupos, famílias, sujeitos, comunidades e movimen- tos sociais. Segundo o Conselho Regional de Serviço Social de Sergipe (CRESS), o Serviço Social atua na luta social e defende uma sociedade norteada pelos princípios de igualdade, liberdade e justiça social e por políticas públicas. A Federação Internacional dos Assistentes Sociais (FIAS) e a Associa- ção Internacional de Escolas do Serviço Social (AIESS) 1 aprovaram, em 2014, uma definição global para a profissão: o Serviço Social é uma profissão de intervenção e uma disciplina acadêmica que promove o desenvolvimento e a mudança social, a coesão social, o empowerment 2 e a promoção da pessoa. Os princípios de justiça social, dos direitos humanos, da responsa- bilidade coletiva e do respeito pela diversidade são centrais ao Serviço Social. Sustentado nas teorias do serviço social, nas ciên- cias sociais, nas humanidades e nos conhecimentos indígenas, o serviço social relaciona as pessoas com as estruturas sociais para responder aos desafios da vida e à melhoria do bem-estar social. (IFSW; IASSW, 2014, tradução oficial) 1 Em inglês: International Fede- ration of Social Workers (IFSW) e International Association of Schools of Social Work (IASSW), respectivamente. 2 O empowerment é uma abordagem usada na área de administração de empresas e significa empoderamento ou delegação de poderes. Ele pro- põe que os funcionários tenham mais participação e autonomia nas atividades organizacionais e na tomada de decisões. Saiba mais Inicialmente, a assistência social era realizada por aqueles que tinham bens, ou seja, as damas de caridade, para aqueles que não possuíam. Com a crescente demanda por auxílios, surgiu a necessidade de se criarem instituições para organizar essas ações de caridade. Em 1869, foi fundada a Sociedade de Organização da Caridade, em Londres. Aos poucos, outros paí- ses capitalistas foram aderindo à ideia e abrindo suas próprias sociedades de caridade. Um diferencial dessas sociedades é que elas precisavam de pessoas que fizessem o trabalho com a população vulnerável, nascendo, então, a necessidade de se criarem instituições para formar essas pessoas. O surgimento do Serviço Social 13 Atividade 2 O livro O serviço social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional, de Marilda V. Iamamoto, é uma ótima leitura para você ampliar seus estudos sobre o surgimento do Serviço Social, além de conhecer como ele se encontra na atualidade. São Paulo: Cortez, 2018. Por meio da postura e voz nas organizações re- presentativas, os profissionais de Serviço Social aca- baram chamando para si o papel de agentes ativos que buscam a promoção do bem-estar e da coesão social, com base em valores de justiça social, direitos humanos, responsabilidade coletiva e respeito pela diversidade (saberes, crenças, escolhas, etnias e cul- turas), adotando e buscando a mudança social para alcançar o desenvolvimento social justo. 1.2 O surgimento do Serviço Social na Europa e nos Estados Unidos Vídeo Em que contexto nasceram os movimentos sociais na Europa? Os problemas sociais aumentaram acentuadamente na maioria dos países europeus como resultado da Revolução Industrial e, con- sequentemente, da industrialização. A crescente diferença entre os grupos mais ricos da sociedade e os mais pobres com o aumento da pobreza e da miséria contribuiu para despertar a consciência social. Nesse contexto, greves, manifestações e movimentos sociais começa- ram a aparecer como uma reação a essa situação, e houve uma sen- sibilização da sociedade sobre a situação em que milhões de pessoas viviam, o que levou à conscientização da responsabilidade social. Os problemas sociais já existentes, antemão à implementação do sistema econômico capitalista, levaram principalmente a Igreja Cató- lica a atuar em setores pobres das cidades, centros de vizinhança ou centros comunitários. Tivemos alguns atores importantes no contexto de atuação com a comunidade carente, os quais são considerados os pioneiros do Serviço Social europeu: Livro Saiba mais Você lembra o que foi a Revo- lução Industrial? Ela teve início no século XVIII, na Inglaterra, e foi o período em que ocorreu o desenvolvimento tecnológico, o que ocasionou o surgimento das indústrias, trouxe transformações econômicas, políticas e sociais e consolidou o processo de constituição do capitalismo. 14 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I Figura 1 Linha histórica dos precursores do Serviço Social na Europa Juan Luis Vives Criado e formado em instituições cristãs, começou a levantar críticas quanto ao posicionamento da Igreja diante da fome e miséria que assolava a Europa. No tratado De subventione pauperum, Vives propôs assistência aos pobres e, considerada ousada para a época, apresentou a sugestão de treinar quem 1493 1540 1581 1660 1844 1913 1877 1953 São Vicente de Paulo Em sua vida como sacerdote, dedicou-se a ajudar os pobres. Em sua experiência com as famílias camponesas, percebeu que estavam em total abandono e viviam na miséria. Diante disso, passou a pregar missões e organizar instituições de caridade. Fundou a Congregação da Missão para evangelização e a Companhia das Filhas da Caridade para assistência espiritual e material aos pobres. Ficou conhecido como o pai dos pobres. Samuel Augustus Barnett Era pároco de uma Igreja no subúrbio da Inglaterra. O primeiro centro comunitário foi fundado em 1884, em Whitechapel, promovido por Barnett e sua esposa Henrietta. A experiência e o reconhecimento desses centros fez com que a ideia fosse replicada em outras cidades da Inglaterra. Esse projeto também foi expandido para outros países europeus e norte-americanos.René Sand Foi um médico belga que organizou e promoveu várias ações sociais durante o não possuísse qualificação para trabalhar em alguma função e, em troca, oferecer um valor mínimo que pagasse essas atividades e auxiliasse na sobrevivência. Octavia Hill Teve sua atuação marcada em uma das expressões sociais resultantes da Revolução Industrial, na qual, diante do rápido crescimento da população urbana e em busca de oportunidades nas indústrias, criou-se um grave problema habitacional. Nesse contexto, Hill surge com a ideia de reorganizar e construir habitações estruturadas nos subúrbios. Charles Stewart Loch Dedicou sua vida à Sociedade de Organização da Caridade, que tinha como lema “uma sociedade sem dependentes”. Acreditava em uma sociedade ideal na qual todos deveriam ganhar a vida por meio de seus próprios meios. Em seus inscritos, estabeleceu os primeiros conceitos sobre trabalho social. 1838 1912 1849 1923 período entreguerras. Para ele, o Serviço Social não era contra a caridade nem a filantropia; a atuação dos profissionais ultrapassava essas práticas, pois ao reconhecer as realidades, os profissionais buscavam a causa de tais problemas sociais e se destacavam pelo campo possível de estudo diante de questões sociais e ações propostas. Fonte: Elaborada com base em Vieira, 1984; Mezzadri, 1996; Martinelli, 2013; Sand, 1931. O surgimento do Serviço Social 15 3 A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um conflito de proporção global iniciado na Europa, mas que se espalhou por outros países, inclusive o Brasil. Esse período ficou marcado pelo Holocausto e o lançamento de bombas atômicas nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. As consequências geradas às pessoas e famílias pela Segunda Guerra Mundial 3 afetaram o surgimento do Serviço Social, principal- mente com relação à saúde. Nessa época, ele foi promovido pela Igreja Católica, com uma orientação de bem-estar social. Na Europa, houve três momentos que geraram mudanças no Ser- viço Social, devido à importância deste e seus impactos na realidade. O primeiro foi a Revolução Industrial (1760-1840), quando nasceram os movimentos sociais focados em reformas e em iniciativas sociais. O segundo foi a Revolução Francesa (1789-1799), que resultou na ela- boração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual garantiu que todos os cidadãos (franceses) teriam direito à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão. Por fim, o terceiro momento foi a promulgação dos direitos humanos (1948), a qual vi- sava garantir a liberdade, a justiça e a paz mundial. Nesse contexto, foi gerado o pano de fundo que deu origem ao mé- todo de Serviço Social de Grupos, que, na Europa, se concentrava em ajudar grupos a superarem problemas comuns. Nos anos 1960, esse método cresceu e teve um grande impacto social. Ele era organizado em três fases: estudo, que consistia na coleta de informações; diagnós- tico social; e tratamento. Os centros comunitários criados na Europa contribuíram significativamente para o desenvolvimento do método de trabalho social de grupos, pois se tornaram um dos principais campos de aplicação. Nos Estados Unidos também temos alguns pioneiros notáveis para a gênese do Serviço Social; muitos deles foram destaques e seguidos pelo mundo todo. Eles trouxeram metodologias e inovações relaciona- das à profissão, desde a caraterização como profissão até métodos de atendimento a indivíduos, grupos ou comunidades. O primeiro centro comunitário nos EUA foi criado em 1886 na ci- dade de Nova York, com o nome de Neighborhood Guild – que anos depois mudou para University Settlement. Em 1889, Jane Addams (1860-1935) e Ellen Gates Starr (1859-1940) fundaram o centro Hull House – primeira casa de caridade – em Chicago, que se tornou o sím- bolo do movimento de centros comunitários e de vizinhança, graças aos escritos de Jane Addams. Esses escritos se referiam principalmen- te à filosofia dos centros e à experiência adquirida neles. Os centros se expandiram rapidamente, especialmente nos Estados Unidos e no 16 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I Canadá: enquanto em 1891, havia seis centros comunitários nos EUA, nove anos depois, em 1900, havia mais de 400. Mary Richmond (1861-1928) apontou a necessidade de se formar pessoas que realizassem o trabalho social e sugeriu a elaboração de um curso (criado logo em seguida). Em seus textos, trouxe escritos sobre o estudo de caso. Seus livros Diagnóstico Social e O que é Serviço Social de Caso foram muito importantes para o Serviço Social mundial na época, uma vez que apresentavam uma metodologia de atuação para os pro- fissionais por meio da resolução de casos. Richmond também foi pio- neira em orientar e escrever sobre a visita domiciliar (ESTEVÃO, 2005). Mary Parker Follet (1868-1933) atuou como educadora e organiza- dora de serviços sociais e assistenciais em sua cidade. Tendo em vista essa atuação, começou a se preocupar com os problemas gerados pela má administração industrial. Ela conseguiu a liberação para utilizar os espaços da escola no período noturno, formando os centros educacio- nais e de lazer para crianças pobres (VIEIRA, 1984). Em 1912, Samuel Richard Slavson (1890-1981) reuniu crianças dos subúrbios e criou a primeira teoria do Serviço Social de Grupos com base na abordagem da Psicanálise, que realiza estudos de caso em cada indi- víduo. Em 1934, a assistente social Grace Coyle (1892-1962) escreveu o livro Estudos em comportamento de grupo, no qual levanta alguns funda- mentos teóricos sobre o Serviço Social de Grupos. Em 1935, o método Serviço Social de Grupos foi oficialmente incluído como parte da profissão, e Grace Coyle apresentou o primeiro trabalho na área, intitulado Serviço Social de Grupo e Mudança Social. Também é importante mostrar que, antes da Segunda Guerra Mundial, a intervenção predominante do Serviço Social era de maneira preventiva e, após esse período, era necessário trabalhar uma perspec- tiva de restauração e reabilitação para grupos. Foi então que, em 1940, o escopo e as funções do Serviço Social de Grupos começaram a ser definidos mais precisamente. Durante esse período, houve a falta de um corpo ordenado de conhecimentos, quadros de referência, proposições teóricas organizadas e concepções sistemáticas. Gradualmente, os assistentes sociais – conscientes do es- tado de desenvolvimento desse método e da necessidade de identificar, sistematizar e fortalecer o conhecimento – dedicaram seus esforços ao desenvolvimento de teorias que orientariam a prática profissional. Atividade 3 Qual foi a importância de Mary Richmond no Serviço Social? O surgimento do Serviço Social 17 Em 1946, a especificidade metodológica e acadêmica do Servi- ço Social de Grupos foi trabalhada com maior rigor como disciplina científica. Grace Coyle ministrou o primeiro curso de Serviço Social de Grupos e escreveu seu trabalho intitulado Processo Social em Grupos Organizados, com uma abordagem psicoterapêutica (saúde mental) e intrapsiquiátrica. Foi ela quem apresentou os primeiros trabalhos so- bre Serviço Social de Grupos na Conferência Nacional de Serviço Social. Gisela Konopka (1910-2003), assistente social e psicanalista ale- mã, desenvolveu, em 1949, a teoria metodológica do Serviço Social de Grupos, incorporada em seu livro Trabalho em Grupo Social. Em 1963, ela propôs valores básicos para a prática do Serviço Social de Grupos, destacando a participação, a cooperação, a liberdade de expressão, a iniciativa e o valor da individualização. No momento, mostrando maturidade metodológica, foram realizadas conferências especializadas de Serviço Social de Grupos, além de publica- ções especializadas.Ainda, em 1963, Robert Vinter (1921-2006) concei- tuou e classificou os grupos sob o modelo corretivo, e William Schwartz (1916-1982) conceituou e classificou os grupos de ajuda mútua. Em 1966, foram estudados e organizados os tipos de grupos sob os critérios de finalidade, por tratamento para promover a ajuda mútua, criando a conscientização do cidadão. Outro autor importante é Charles Garvin (1929-), que estuda gru- pos por valores e papéis em várias e diferentes circunstâncias e os clas- sifica em quatro grupos ou categorias: • grupos para reduzir a anomia; • grupos para enriquecer o desempenho de funções; • grupos de controle social; • grupos para desenvolver papéis alternativos. Na década de 1970, o treinamento de assistentes sociais nos EUA era ministrado nos níveis de graduação, mestrado e doutorado, de uma perspectiva integracionista ou generalista. Em 1980, alguns auto- res tentaram agrupar todos os tipos de grupos existentes, apresentan- do duas grandes categorias: Glossário anomia: ausência de objetivos, leis ou regras. Também pode ser considerada como a perda de identidade, causada pelas trans- formações sociais no mundo. 18 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I Artigo Acesso em: 12 fev. 2020. Gostou de conhecer um pouco sobre a história do Serviço Social? O artigo A origem do Serviço Social no mundo e no Brasil, publicado por Sandra N. dos Santos, Silvia B. Teles e Clara A. A. S. Bezerra nos Cadernos de Graduação: Ciências Humanas e Sociais, poderá aprofundar seus conhecimentos sobre o contexto histórico da profissão. As autoras fazem uma análise mundial e a aproximam da realidade brasileira, até a criação de escolas de Serviço Social no país. https://periodicos.set.edu.br/index.php/cadernohumanas/article/view/844/517 Grupo de tratamento Subgrupos educacionais, de crescimento, corretivos e socializantes. Grupo de tarefas Subgrupos formados pelos comitês: administrativos, conselhos de delegados, equipes geralmente interdisciplinares, conferências de tratamento e grupos de ação social. Para finalizar a jornada cronológica e a abordagem do processo pe- los Estados Unidos, é importante afirmar que, em meados do século XX, três métodos clássicos do Serviço Social foram implementados e profis- sionalizados: o Serviço Social de Caso, pautado nos estudos de Mary Richmond, Porter Lee e Gordon Hamilton, preocupa-se com a per- sonalidade do cliente (assim eram chamados os usuários do Serviço Social); o Serviço Social de Grupos, cujos autores de maior influência foram Gisela Konopka e Robert Vinter, busca auxiliar os sujeitos em seu autodesenvolvimento e no ajuste a valores e normas vigentes no ambiente em que vivem; e, por fim, o Serviço Social de Comunidade objetiva desenvolver os indivíduos socialmente e promover relações eficientes entre eles, para que haja um desenvolvimento equilibrado e harmonioso (ANDRADE, 2008). O surgimento do Serviço Social 19 Figura 2 1.3 Principais bases teórico-metodológicas mundiais do Serviço Social Vídeo O Serviço Social teve sua origem e seu desenvolvimento na socie- dade capitalista e estava diretamente relacionado à doutrina social da Igreja. Trata-se, então, de uma área que se institucionalizou como um recurso do Estado para exercer o controle e a regulação da questão social, tendo como base os ideais da Igreja. Em suas origens, o Serviço Social foi fortemente influenciado pela filosofia das doutrinas tomista e neotomista, explicadas a seguir. Toda a visão de homem e mundo, adotada pela profissão, aconteceu com base na doutrina católica, sendo ela, inclusive, a responsável pelo sur- gimento das primeiras escolas de Serviço Social. É importante estudar- mos essas correntes para compreendermos a atuação profissional em seu início, visto que a forte influência dos ideais cristãos que estava Os estudos de Tomás de Aquino deram origem ao Tomismo presente na filosofia tomista, depois retomada na filosofia neotomista, estava presente também na ação dos assistentes sociais. 1.3.1 Tomismo Nascido na Itália (c. 1225), Tomás de Aquino foi um teólogo e filósofo católico pertencente à Ordem dos Pregadores, sendo o principal representante da tradição escolar e fundador da Escola Tomística de Teologia e Filosofia. Ele também é conhecido como doutor angélico ou doutor comum e é considerado santo pela Igreja Católica. Sendo a escola filosófica e teológica que surgiu como legado de Tomás de Aquino, a palavra Tomismo deriva do nome de seu autor. Tomás de Aquino se de- dicou à explicação da relação entre verdade revelada e filosofia, buscando a verdade entre a fé e a razão. Para o filósofo, Deus deveria ser a primeira realidade a ser compreendida, visto que seria a fonte de tudo, e ape- Fonte: LAFUENTE, L. M. Santo Tomás de Aquino. 1795. Pintura a óleo, color., Museu de Huesca, Huesca. nas depois desse entendimento seria possível estudar A obra mais conhecida de Tomás de Aquino é a Summa Theologiae, um tratado no qual ele pretende expor a doutrina católica de maneira ordenada. Trata-se de um dos documentos mais influentes em Teologia e Filosofia medievais, estudada até hoje, especialmente, nas universidades católicas. 20 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I o homem, composto de duas substâncias incompletas: a alma e o corpo. Juntas, elas resultariam no ser humano, diferente de todos os outros se- res, pois seria dotados de razão, capaz de escolher e saber. Por possuir inteligência, ele seria a existência mais perfeita do universo, tanto no fator físico quanto no espiritual (AGUIAR, 1989). O Tomismo argumenta que a fé (crença na autoridade divina) e a razão (fundamentada na demonstração) são diferentes, não devem ser confundidas e não são contraditórias entre si, porque ambas vêm de Deus. A filosofia do Tomismo tem como base a disciplina da sabedoria e procura cientificamente fornecer respostas para as certezas naturais do raciocínio, os princípios do conhecimento humano e o realismo integral. Dessa forma, é a unificação da verdade e fé reveladas, da razão natural e do senso comum. Como dote da natureza, coerência de princípios bá- sicos e racionalidade (e não senso imaginário desprovido de valor filosó- fico), o senso comum seria o uso correto da inteligência, da qual nasce espontaneamente, sendo uma razão natural (STRAUSS, 2014). No que diz respeito à ética tomista, Tomás de Aquino adaptou o princípio da ética com os ensinamentos morais vindos dos evangelhos. Uma distinção feita por ele é que a clareza seria manifestada na razão e na obscuridade, sendo um princípio da vida eterna e da fé. Ainda dentro do Tomismo, podemos destacar que acreditava-se que o homem, além de ser um “animal social”, era também um “animal político”. Mesmo após ser expulso do paraíso, o homem não perdeu sua natureza social e começou a se organizar em comunidade, criou as leis e instituiu as hierarquias, nascendo assim um poder político (AGUIAR, 1989). Logo após instituir o poder político, foi estabelecido o Estado em busca do bem comum, trazendo a autoridade, ainda dentro de preceitos cristãos, pois acreditava-se que “toda forma de autoridade deriva de Deus, respeitá-la é respeitar a Deus” (SCIACCA apud AGUIAR, 1989, p. 43). Desse modo, toda forma de governo deveria ser respeita- da, bem como deveria garantir os direitos das pessoas e o bem-estar das comunidades, sendo assim merecedora de respeito. Essa visão de autoridade e Estado foi reafirmada pelo Neotomismo, que trouxe a explicação sobre a posição inicial dos assistentes sociais, a qual não questionava a ordem vigente, mas buscava apenas refor- mar a sociedade, de acordo com os preceitos da Igreja e do Estado. As correntes tomista e neotomista influenciaramprincipalmente os países latino-americanos, em destaque o Brasil, que esteve presente desde sua primeira escola. Saiba mais A Patrística – corrente filosófica cristã que buscava a expansão do cristianismo e recebeu esse nome por ser desenvolvida por padres e teólogos – de Santo Agostinho precedeu os estudos de Tomás de Aquino e fez as primeiras tentativas de igualar fé e razão. Para isso, retomou o pensamento filosófico grego, particularmente Platão, mas finalmente deduziu que a fé está acima da razão. Ao contrário de Santo Agostinho, Tomás de Aquino concluiu que é pela razão que podemos manifestar nossa fé. Curiosidade Na encíclica Angelici Doctoris, o papa Pio X alertou que os ensi- namentos da Igreja não podem ser entendidos, em seu sentido preciso, sem os fundamentos filosóficos e teológicos básicos das principais teses de Tomás de Aquino. Em Sacrorum Antistitum, ele trata também da promoção dos ensinamentos de São Tomás de Aquino nas escolas católicas, de modo que o Tomismo seja estabelecido como o funda- mento de estudos filosóficos e teológicos. A encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII, trata da restauração da filosofia cristã, de acordo com a doutrina de Tomás de Aquino, e recomenda o estudo do Tomismo. O surgimento do Serviço Social 21 1.3.2 Neotomismo O Neotomismo surgiu como uma tentativa de retomada da filosofia de Tomás de Aquino no século XIX. Acreditava-se que essa filosofia aju- daria a compreender os problemas da época, principalmente a miséria e a exploração que assolavam a Europa, resultantes da industrialização e do desenvolvimento do sistema econômico capitalista. Esses proble- mas sociais levaram a Igreja a se posicionar, uma vez que a situação da sociedade estava sendo vista como uma decadência da moral e dos costumes cristãos. Nesse sentido, ela resolveu investir e incentivar o ressurgimento da filosofia tomista, tendo em vista que suas ideias ser- viriam para buscar o enfrentamento da realidade posta. A filosofia neotomista identifica que o homem é dotado de razão e capacidade escolher, podendo aperfeiçoar sua condição material e es- piritual, pois sua perfeição seria inspirada em Deus. O ser, que consiste nas qualidades morais, pessoais, ideológicas e filosóficas dos sujeitos, estaria sobre o saber, isto é, a ciência e a racionalidade, características presentes na filosofia de Tomás de Aquino (ORTIZ, 2007). O homem, na perspectiva neotomista, por ser dotado de inteligência, podia orientar a si e a outros homens sobre os valores cristãos. O homem é visto como ser social e deve buscar a perfeição para o coletivo, pois o bem comum deve estar sempre acima das necessidades individuais. Nesse contexto, os assistentes sociais se expressam por meio de ações que reforcem o altruísmo, o dom de si, o respeito à livre ini- ciativa etc. O Neotomismo influenciou a formação do Serviço Social, destacando-se inclusive da tradição conservadora, que incentivava que as relações sociais fossem constituídas pela busca do bem comum, dei- xando de lado as dimensões políticas. Os assistentes sociais, ao se posicionarem a favor de um pro- jeto de sociedade que pudesse reconstruir a ordem social des- truída pelo desrespeito à dignidade humana, situavam a prática profissional em uma perspectiva idealista vinculada às diretrizes da Igreja Católica daquele período. Postulavam uma ação profis- sional pautada na reeducação moral, seguido de um mínimo de bem-estar ou de atividade profissional que assegurasse condi- ções mínimas de sobrevivência, tais como: restaurantes em am- bientes de trabalho, assistência a menores e algumas garantias legais para minorar as condições de trabalho. (GUEDES, 2000) 22 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I As escolas de Serviço Social formavam os profissionais de acordo com a doutrina e os valores cristãos, buscavam desenvolver e garantir que os estudantes tivessem conhecimentos sobre a realidade, os problemas sociais e as técnicas de trabalho. Os futuros assistentes sociais deveriam ter base sólida a respeito dos conhecimentos doutrinários cristãos, pois acreditavam que exerciam, além de uma profissão, uma vocação divina. As escolas de Serviço Social repassavam seus ensinamentos calcados nos princípios neotomistas: da dignidade da pessoa humana (ser livre, ter o mínimo de bem-estar) e do bem comum (GUEDES, 2000). Os profissionais, por ser imagem do homem dotado de inteligência, deveriam escolher atuar dentro dos princípios religiosos e ter alguns atri- butos, como: ser responsável, realizar sacrifícios se fossem necessários, ser perseverante, desapegado da materialidade, possuir capacidade de sentir e de se adequar às realidades e, consequentemente, ter maturidade para não se deixar abalar pela realidade (TELLES, 1939; MANCINI, 1939). O capitalismo trouxe muitos problemas e demandas sociais. Nesse contexto, os profissionais de Serviço Social começaram a questionar e repensar suas práticas, ainda marcadas por ações filantrópicas e assis- tencialistas. A ruptura do Serviço Social com o Neotomismo teve início em 1960, com a aproximação da teoria crítica, e a nova postura profis- sional se aproximou da visão dialética. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Serviço Social, em sua origem, teve suas bases em preceitos de dou- trinas religiosas, realizando ações filantrópicas e voltadas para manutenção da ordem social. Os clientes do Serviço Social recebiam conselhos e bens materiais, pois acreditava-se que assim poderiam melhorar sua condição de vida por meio do seu esforço e sua motivação própria. Nessa época, a atuação profissional servia apenas para manutenção da ordem burguesa. Com o agravamento das questões sociais, resultantes do capitalismo, os indivíduos organizaram-se em movimentos sociais e foram às ruas para solicitar direitos e melhorias. O Estado, então, entrou como parceiro da Igreja para conter essas manifestações, mas as mediações realizadas foram insuficientes, uma vez que se mantinham no viés assistencialista. Desse modo, os profissionais de Serviço Social começaram a repensar suas práticas e se questionaram sobre qual era o real papel de suas in- tervenções, deixando de lado a filantropia e as práticas de reajuste social. Atividade 4 Quais são as características do Neotomismo e como foram in- seridas na prática dos assistentes sociais? O surgimento do Serviço Social 23 As correntes filosóficas foram atualizadas, os princípios tomistas e neo- tomistas foram abandonados. As experiências de profissionais de outros países foram compartilhadas e seguidas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Após o rompimento com o Neotomismo, vieram outras correntes filosóficas que influenciaram a prática dos profissionais, mas apenas anos mais tarde o Serviço Social tradicional foi deixado de lado. REFERÊNCIAS AGUIAR, A. G. Serviço social e filosofia: das origens a Araxá. 4. ed. São Paulo: Cortez; Unimep, 1989. ANDRADE, M. A. R. A. de. 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A Revolução Industrial foi responsável por impulsionar a organização dos movimentos sociais, pois os grupos de trabalhadores insatisfeitos com os problemas sociais, como o aumento da pobreza e da miséria, se organizaram para solicitar melhorias, realizan- do greves, manifestações e movimentos sociais. 3. Mary Richmond foi responsável por descrever como deveria ser executado o trabalho dos assistentes sociais, norteando a atuação dos profissionais por meio da resolução de casos. Ela foi a responsável pioneira por lançar as bases da visita domiciliar. 4. A filosofia neotomista identifica que o homem é dotado de razão e capacidade de escolher, podendo aperfeiçoar sua condição material e espiritual. As escolas de Ser - viço Social formavam os profissionais de acordo com a doutrina e os valores cristãos, buscavam desenvolver e garantir que os estudantes tivessem conhecimentos sobre a realidade, os problemas sociais e as técnicas de trabalho. Os futuros assistentes sociais deveriam ter base sólida sobre os conhecimentos doutrinários cristãos, porque acreditavam que exerciam, além de uma profissão, uma vocação divina. As escolas de Serviço Social repassavam seus ensinamentos calcados nos princípios neotomistas: da dignidade da pessoa humana (ser livre, ter o mínimo de bem-estar) e do bem comum. O surgimento do Serviço Social 25 O Serviço Social como profissão tem um ponto em comum na Europa e no Brasil: nasce com as marcas do capitalismo incipiente, decorrente dos acentuados traços de empobrecimento e das vul- nerabilidades sociais a que os trabalhadores estavam submetidos. No Brasil, o movimento ocorre um pouco depois, sendo chamado de capitalismo tardio. A complexidade que envolve essa questão se deve à sua inteira e irrestrita vinculação com elementos macroestruturais, como as condições econômicas, políticas e culturais de determinado ter- ritório e de dado momento histórico. Compreender a gênese da questão social no mundo e, em particular, no Brasil é fundamental, pois só assim poderemos refletir, com mais argumentos e embasa- mento, sobre as configurações contemporâneas da questão social. Neste capítulo, você vai estudar o surgimento da profissão no Brasil e como a questão social se relaciona com ela. Além disso, vai conhecer um pouco mais sobre a relação estabelecida entre a política social e o trabalho desenvolvido pelo Serviço Social. 2 Serviço Social no Brasil 2.1 Constituição e desenvolvimento do Serviço Social no cenário brasileiro Vídeo O surgimento do Serviço Social no Brasil é, de certa forma, seme- lhante ao que ocorreu na Europa. No entanto, a experiência brasileira difere por conta de suas características de país subdesenvolvido. Ape- nas nos anos 1930 o país passou por uma mudança econômica, saindo de um modelo agrário exportador para um modelo industrial, que se instalou nas grandes cidades como São Paulo. Essa mudança produ- ziu profundas alterações sociais, pois, assim como na Europa no ápice da Revolução Industrial, levou a uma crescente urbanização, acirrando problemas e conflitos sociais (MANTEGA, 1984). Serviço Social no Brasil 25 O Serviço Social começa, também no Brasil, com as damas da alta sociedade e a influência da Igreja, fazendo, assim, um trabalho assis- tencialista. Em sua política de alianças, o governo brasileiro procu- rou o apoio da Igreja Católica, cujo entendimento relativo à questão social é apresentado nas encíclicas papais Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931). Elas abordam a intervenção do Estado nas relações entre o capital e o trabalho quanto à obrigatoriedade de reali- zar políticas sociais. Logo, é se preocupando com a harmonia social, ou seja, com a ausência de conflitos de classe, e na relação com a Igreja Católica, que o Serviço Social brasileiro vai fundamentar a formulação de seus primeiros objetivos po- lítico-sociais, orientando-se por posicionamentos de cunho hu- manista conservador contrário aos ideários liberal e marxista na busca de recuperação da hegemonia do pensamento social da Igreja em face da “questão social”. (YAZBEK, 2009, p. 8) Uma marca característica dos nossos políticos, em especial de Getúlio Vargas, foi o populismo do Estado Novo, no qual foram arti- culadas as primeiras legislações de proteção social do país. Somente com as primeiras leis trabalhistas da década de 1930 é que o Serviço Social começa a tomar forma e articular certas garantias de direitos à população do Brasil. Assim, são abertos outros campos para o trabalho do assistente social, que começa a lidar com a indústria. Surge, então, o Serviço Social como profissão, especialmente dentro das vilas operá- rias e, fortemente, na esfera pública, que ainda hoje é seu campo de atuação principal (ESTEVÃO, 2006). Podemos observar, na linha do tempo a seguir, algumas fundações importantes na história do Serviço Social brasileiro: Encíclicas papais, ou cartas papais, são documentos ponti- fícios escritos e encaminhados aos bispos de todo o mundo. Seu conteúdo, geralmente, traz atualizações sobre a doutrina católica por meio de ensinamentos ou temas atuais. Ao longo dos anos, a Igreja emitiu várias encíclicas falando sobre a questão operária, o fascismo, o nacional-socialismo, o comunismo, a moral conjugal, o trabalho humano, a regulação da natalidade, a esperança cristã, o desenvolvimento humano na caridade, entre outros temas. 1936 É fundada a primeira escola de Serviço Social do país na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 1932 É criado o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), entidade que viria a ser a fundado- ra e mantenedora da primeira escola de Serviço Social do Brasil. (Continua) Saiba mais 26 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I 1937 É criado o curso de Serviço Social na PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). 1945 1942 • São instituídos o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). • É criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), por meio da qual o ensino do Serviço Social co- meça a ganhar força nas demais capitais, com a implantação de novos cursos. É inaugurada a Escola de Serviço Social de Porto Alegre, hoje denominada Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). 1951 1946 • São fundados o Serviço Social da Indústria (Sesi) e o Serviço Social do Comércio (Sesc), que atendiam os trabalhadores brasileiros. • É criada a Fundação Leão XIII, para atuar na educação da população residente em favelas no Rio de Janeiro. É instituída a Fundação da Casa Popular, um serviço que busca contribuir para a melhoria das condições de habitação da classe trabalhadora. Fonte: Adaptada de Yazbek, 2009; Bulla, 2003; Estevão, 2006. Segundo Yazbek (2009, p. 8), ainda na década de 1930, quando os cursos de Serviço Social, até então, encontravam-se em sua origem, a “questão social” é vista a partir do pensamento social da Igre- ja, como questão moral, como um conjunto de problemas sob a responsabilidade individual dos sujeitos que os vivenciam embo- ra situados dentro de relações capitalistas. Trata-se de um en- foque conservador, individualista, psicologizante e moralizador da questão, que necessita para seu enfrentamento de uma pe- dagogia psicossocial, que encontrará, no serviço social, efetivas possibilidades de desenvolvimento. Com as diversas transformações que ocorreram ao longo dos anos, o Serviço Social começou a ter uma abordagem mais humanista. Con- Serviço Social no Brasil 27 tudo, por viver em um contexto crítico, passou por muita resistência no período da ditadura. Devido ao espírito de enfrentamento quanto à questão social, os assistentes sociais passaram a militar nos movi- mentos de classe e, logo após, em partidos políticos, reivindicando o fim do regime militar. Nesse período, o Serviço Social passou por uma reformulação intelectual, adotando uma dialética marxista. Considerando as transformações que ocorriam mundialmente e, especialmente na América Latina, surgiram ao longo das décadas de 1960 e 1970 movimentos que transformaram a sociedade brasileira; no interior do Serviço Social não foi diferente. No ano de 1965, iniciou-se o Movimento de Reconceituação do Serviço Social com o I Seminário Latino-americano de Serviço Social. Naquele mesmo ano, autores pro- puseram a renovação da profissão no Brasil pela ótica do planejamen- to, de modo que houvesse um diagnóstico, um plano de ação e uma intervenção profissional – essa proposta era contrária à visão marxista. Em 1967, um grupo de profissionais com notório conhecimento teó- rico na área se reuniu no Comitê Brasileiro de Conferência Internacional de Serviço Social com o objetivo de buscar a teorização da profissão. Como produção do intenso debate, expressaram uma definição da ação profissional no Documento de Araxá: o Serviço Social, em sua ação profissional, seria um instrumento de desenvolvimento humano, individual e coletivo. No documento, é defendida a concepção de que o Serviço Social “teria tanto um caráter corretivo das causas que dificul- tam esse desenvolvimento, como um caráter de promoção e preven- ção, para evitar as causas do desajuste, buscando tratar de problemas individuais e coletivos” (FALEIROS, 2005, p. 23). Em 1970, é elaborado o Documento de Teresópolis, que enfatiza as ne- cessidades humanas; ele ainda não rompe com a perspectiva desenvolvi- mentista, mas já questiona a constituição histórica da profissão e vincula-a ao campo das Ciências Sociais. Não há, ainda, relação com a dinâmica de classes e de opressão. De acordo com Faleiros (2005), nesse contexto, o Serviço Social devia amenizar os episódios de carência e adaptar-se à mu- dança e ao crescimento estabelecidos pelos grupos hegemônicos. Somente após dez anos é elaborado o Documento de Sumaré. Se- gundo Faleiros (2005, p. 23-24), “o documento diferencia epistemologia de intervenção, olhando para o serviço social ao mesmo tempo como processo de aprendizagem de ajustamento e de mudança”. Já se abre Vídeo Com o vídeo Especial apresenta história da Assistência Social no Brasil, publicado pelo canal TV BrasilGov, você poderá conhecer um pouco mais sobre a história do Serviço Social no Brasil. O especial resgata a memó- ria coletiva da profissão por meio de imagens históricas. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=qPE5Mdn- tV2Y. Acesso em: 5 mar. 2020. 28 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I uma importante brecha para a discussão da perspectiva dialética e, também, da fenomenologia. Nos anos 1980, os frutos das mobilizações populares começaram a se avolumar, e o movimento social crítico produziu efeitos no Serviço Social. Nessa década, uma corrente marxista estruturalista se desen- volveu no meio acadêmico; ela defendia que o Serviço Social atua na perspectiva da reprodução capitalista. Assim, o Serviço Social passa a ser compreendido como o “executor de políticas sociais que intervém na questão social por meio de um instrumento peculiar que é a política social” (FALEIROS, 2005, p. 28). Essa é uma visão instrumentalista do Serviço Social que parte do pressuposto da reprodução do capital, no qual o movimento histórico e as contradições são descartados. Mas todo esse período de “crise exis- tencial” do Serviço Social – que não está descolado dos acontecimentos no Brasil e no mundo – leva a profissão a um novo patamar. No cenário social, começa a se intensificar a busca pelos direitos sociais e discute-se a cidadania e seus conceitos. Lembre-se de que a Constituição Cidadã foi construída em 1988, com a participação da so- ciedade e dos movimentos populares, e isso não ocorreu de uma hora para a outra. A cidadania passou a ser compreendida como o acesso individual e coletivo dos sujeitos aos direitos sociais. Sua conceituação vai além do direito de acesso às políticas públicas ou aos direitos po- líticos e alcança a participação nos assuntos relativos à sociedade de maneira geral. Ela implica, ainda, os deveres e as responsabilidades da sociedade e do Estado. Nesse contexto de tensionamento e lutas para a garantia constitu- cional de direitos, o Serviço Social ainda buscava sua teorização e o rompimento com a ideia de uma profissão que atendia aos interesses da classe burguesa e do Estado. Já havia essa compreensão, especial- mente no meio acadêmico e pelos movimentos estudantis. Segundo Iamamoto e Carvalho (2017, p. 19), “o Serviço Social surge como um dos mecanismos utilizados pelas classes dominantes como meio de exer- cício do seu poder, instrumento esse que deve modificar-se constante- mente em função das características diferenciadas da luta de classes”. Nessa lógica, o Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais de 1986, aprovado pelo antigo Conselho Federal de Assistentes Sociais, estava alinhado com as lutas da classe trabalhadora. Tratou-se de uma Atenção Com o fim da ditadura e a volta da democracia no Brasil, e com a formulação de uma nova Cons- tituição Federal em 1988, que assegura condições igualitárias de direitos a todos, o Serviço Social começa a trabalhar com a realidade social “nua e crua”. Assim, deixa de lado a visão assistencialista e parte em busca da garantia dos direitos já constituídos por Lei no Brasil. Serviço Social no Brasil 29 Mas, primeiro, o que são, de fato, essas expressões da questão social? De acor- do com Iamamoto (1998, p. 27), a questão social é “o conjunto das expressões das desigualdades da sociedadecapitalista madura, que tem uma raiz comum: a pro- dução social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade”. Você pode identificá-las nas comunidades urbanas e rurais, por exemplo, pela carên- cia de acesso aos direitos sociais e pela violência estrutural. Essa forma de violência é caracterizada pela precariedade ou ausência de investimentos na saúde, impedindo que uma pessoa tenha o atendimento necessário e qualificado, devido à falta de vagas em escolas infantis – o que pode promover a vulnerabilidade social da criança – ou à desqualificação e desmotivação de professores, pelos salários baixos e pela estrutura precária da escola. Também, podemos verificá-la no despreparo e na insuficiência material de insti- tuições que deveriam proteger pessoas vítimas de violência física, emocional ou econômica – o que pode acarretar prejuízos incalculáveis para as vítimas. É possível, ainda, verificá-la na precariedade da defensoria pública, que não possui profissionais em número suficiente para atender os usuários daquele serviço, o que pode levar à perda de ações judiciais. Esses são exemplos que proporcionam a visualização de uma forma de violência muitas vezes invisível para a sociedade, mas que produz efeitos devastadores. opção ético-política alimentada pela formação marxista nas universida- des, pelos movimentos sociais e pelos sindicatos. Somente em 1993 foi aprovado o novo Código de Ética Profissional, que seguiu e desenvol- veu ainda mais essa visão, estando em vigor até hoje. 2.2 Surgimento da questão social e a sua relação com a profissão Vídeo Para entender as expressões da questão social, é preciso com- preender a conjuntura socioeconômica e política do país, já que nada está descolado do contexto em que vive a sociedade, nem mesmo as discussões internas da categoria profissional dos assistentes sociais. No núcleo da questão social, entre 1800 e 1930, estava a consolida- ção da classe trabalhadora enquanto classe social, as suas condições de vida e de trabalho e as lutas sociais que travavam. No novo mo- mento da história da humanidade, quando se instaura o capitalismo, as 30 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I relações se complexificam e são demandadas novas concepções que subsidiem a análise dessa questão. A partir do século XIX, ocorreram mudanças estruturais no caráter in- ternacional e globalizado da economia capitalista. Houve a incorporação da divisão internacional do trabalho e a mudança para a fase imperialista do capital, o que gerou profundos impactos na produção de riquezas, bem como na organização da classe trabalhadora. Nessa fase, a questão social continuou a ser produzida e reproduzida (SANTOS, 2015). O Brasil entrou tardiamente no modo de produção capitalista e, até hoje, convive com formas rudimentares de produção e reprodução so- cial. Enquanto o mundo vivenciava a mudança do modo de produção feudal para o capitalista, o Brasil estava ainda sendo incorporado ao “mundo civilizado”. Ao adentrar o Brasil, o capitalismo encontrou uma sociedade fértil para lançar suas bases de expansão e de maximiza- ção das estratégias de lucro já no modelo monopolista. Sem tradição democrática e marcada por relações sociais e econômicas de explora- ção e opressão, a classe trabalhadora brasileira não impôs resistência à nova forma de produzir (SANTOS, 2015). A base agrícola e de cultu- ra escravocrata da burguesia brasileira (que ainda estava se criando) também se adaptou facilmente às diretrizes capitalistas. Dessa forma, houve uma “modernização arcaica” da economia e da produção de mercadorias no Brasil. Em paralelo à formação da burguesia nacional, ocorria o fortaleci- mento da classe trabalhadora. Com a transição entre os séculos XIX e XX, essa classe começou a ser influenciada pelo movimento anarquis- ta e pelo ideário comunista, especialmente com a chegada de trabalha- dores imigrantes do continente europeu. Embora houvesse aqui uma concepção que reforçava o perfil de um povo “gentil e ordeiro”, diante das péssimas condições de trabalho, o movimento trabalhista começou a ganhar força no cenário urbano. As greves e ocupações se tornaram conhecidas do povo e uma tendência de enfrentamento ao sistema de dominação passou a ser forjada em sindicatos e organizações políticas. O avanço dos ideários anarquistas e comunistas em países desen- volvidos, atrelado ao tom conservador da burguesia e do Estado no Brasil, fez com que a questão social fosse reconhecida enquanto “caso de polícia”. Assim, os acusados de vadiagem eram destinados ao poder Atividade 1 O que é a questão social? Quais são os exemplos de expressões dessa questão? Serviço Social no Brasil 31 policial. Então, foi antecipado e garantido um conjunto de leis trabalhis- tas e sociais que visavam enfrentar as mazelas sociais. No Brasil, o direcionamento populista de organização da sociedade se deu por meio de um falso consenso de classes, com alianças entre a burguesia e o Estado. Este buscava estabelecer direitos pelo “alto” e, assim, desconstruía o protagonismo das classes subalternas (SANTOS, 2015). Contudo, mesmo durante momentos de dissolução dos direitos políticos, os direitos trabalhistas então já criados foram mantidos. Nes- sa lógica, foi construído lentamente um conjunto de leis e políticas para garantir a efetivação desses direitos. Isso tudo estava atrelado a uma organização político-social que impunha ao Estado a modernização das condições para a garantia da produção capitalista no país. As ações do Estado deveriam, portanto, possibilitar a garantia das condições infraestruturais de desenvolvimen- to. Entre outras condições basilares demandadas, destaca-se a respon- sabilização pelo salário indireto, a ser organizado por meio de políticas sociais que possibilitassem a reprodução da classe trabalhadora. Percebemos, portanto, que no Brasil o desenvolvimento do capita- lismo e o reconhecimento da questão social enquanto conceito atre- lado a esse sistema compõem a estrutura básica para manutenção e ampliação do próprio capitalismo. A intervenção das políticas na questão social surgiu como pro- duto do reconhecimento político da classe trabalhadora e re- laciona-se ao agravamento de suas condições de vida. Essa classe passou a demandar a mediação do Estado em diversas expressões da questão social, buscando proteção ou direitos que eram, muitas vezes, violados. Na atualidade, com a intensificação da contradição capital x traba- lho no capitalismo neoliberal 1 , é possível identificar o aumento das expressões da questão social, configuradas por indicadores existentes na sociedade. Nesse contexto, podemos considerar três pontos cen- trais: o aumento do desemprego em nível mundial, a falta de postos de trabalho e a perda dos vínculos formais. Notamos que há prevalência do desenvolvimento econômico em detrimento do social das políticas governamentais, tanto nos países centrais como nos periféricos. Isso tem levado à “banalização do humano” e à radicalização das necessida- 1 O capitalismo neoliberal defende a hegemonia do capitalismo financeiro internacional, no qual o capital controla a economia. Nesse contexto, a interferência do Estado no mercado é mínima, privatizando as estatais e elimi- nando os serviços públicos. 32 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I des sociais. Tal questão é facilmente perceptível em um país de econo- mia frágil como o Brasil. Atualmente, vivemos um período de crise na economia brasileira. Altos índices de desemprego, subemprego, trabalho desprotegido e vínculos fragilizados do trabalhador com omercado de trabalho muda- ram a vida social dos brasileiros. A relação do mais forte (proprietário dos meios de produção) sobre o mais fraco (dono da força de trabalho) produz efeitos concretos na sociedade, os quais podemos ver mate- rializados nas expressões da questão social. Dessa forma, o contexto político e econômico brasileiro, hoje, limita a manutenção de direitos socialmente conquistados e legitimados pela Constituição de 1988, de- vido à crise econômica e ao modelo político atualmente adotado. Desse modo, a questão social atual diz respeito à ampliação da sociedade capitalista. Hoje existe a degradação do trabalho, além da perda e do desaparecimento de muitas categorias e postos de em- prego. Essa realidade se amplia quando o Estado passa a se retirar do campo social com cortes, privatizações e a sistemática regressão dos investimentos na efetivação dos direitos sociais. Diante dessas trans- formações, o Serviço Social define a questão social como objeto de sua intervenção. Vários autores a conceituaram como a manifestação da relação de lutas entre o capital e o trabalho. Na contemporaneidade, é necessário pensar em formas de enfren- tar as multifacetadas expressões da questão social. O enfrentamento envolve a atenção às necessidades dos trabalhadores e a afirmação de políticas sociais universais. Além disso, passa pela democratização da economia, da política e da cultura na construção da esfera pública. Por fim, vale lembrar que não podemos desvincular a conceituação do seu contexto histórico determinante, pois os conceitos podem ser in- terpretados de maneiras diferentes em cada época, obtendo significados distintos. É muito importante compreender a totalidade dos fatos que en- volvem um tema específico e, no caso da questão social, considerar sua historicidade e as contradições inerentes ao processo. Serviço Social no Brasil 33 2 O milagre econômico é a denominação dada à era de crescimento econômico excep- cional que ocorreu durante o regime militar. Naquele período de ouro do desenvolvimento brasileiro, paradoxalmente, houve um aumento na con- centração de renda e pobreza; ou seja, quanto mais o país cresceu, menor foi o alcance da classe trabalhadora para o crescimento e a modernização. Vídeo Há alguns anos, as políticas sociais brasileiras caracterizaram-se pela pouca resolutividade no que se refere ao social e por uma subor- dinação a interesses econômicos. Nesse sentido, destaca-se a incapaci- dade de tais políticas de transformar a realidade de desigualdade social existente no país. No que se re- fere à assistência social, a situação é um pouco mais delicada, afinal, em sua origem, a assistência social esteve ligada a ações filantrópicas e religiosas. Além disso, esteve apoiada no clientelismo e na ideia do favor, não sendo considerada um direito, uma políti- ca pública (COUTO et al., 2006). No Brasil, a crise decorrente do esgotamento do milagre econômico 2 , no final da década de 1970 e no início dos anos 1980, levou o país a uma situação socioeconômica favorável aos movimentos da socie- dade civil. Segundo Cunha e Cunha (2002, p. 13), o processo de redemocratização da socie- dade brasileira levou à instalação da Assem- bleia Nacional Constituinte e à possibilidade de estabelecer outra ordem social em novas bases, o que tornou esses movimentos arti- culados para tentar registrar na Carta Cons- titucional direitos sociais que poderiam ser traduzidos como deveres do Estado por meio de políticas públicas. clientelismo: troca de serviços ou bens materiais por apoio e/ou favores políticos. Assim, as décadas de 1980 e 1990 serviram de caminho para uma nova configuração do cenário político, econômico e social brasilei- ro. Por um lado, foi desenvolvido um processo único de reformas em relação à extensão do processo democrático e à organização política e jurídica, como a publicação da Constituição Federal em 1988, consi- derada por muitos como um guia para a tentativa de estabelecer no- vas formas de relações sociais no país (COUTO, 2004). Por outro lado, ocorreu um processo de recessões e contradições no setor econômico, no qual houve tentativas de reduzir a inflação galopante e retomar o crescimento. 2.3 As políticas sociais e o Serviço Social Glossário 34 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I Artigo Acesso em: 5 mar. 2020. Ao ler o artigo Política Social e Serviço Social: os desafios da intervenção profissional, publicado pelas autoras Regina Mioto e Vera Nogueira na Revista Katálysis, em 2013, você poderá aprofundar seus estudos sobre a interven- ção profissional junto às políticas públicas sociais, além de compreender a importância de um projeto profissional comprometido com a defesa dos direitos sociais. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-49802013000300005 A Constituição Federal de 1988 inovou ao tentar romper com a visão predominante até então. Para isso, inseriu a assistência social na políti- ca da seguridade social, definindo-a como direito de todos os cidadãos e dever do Estado. Assim, a assistência social deve ser prestada a quem dela necessitar, sem vinculação a qualquer tipo de contribuição prévia. Trata-se de um marco histórico que instituiu o início da transformação das ações assistencialistas, beneficiou, explicitou e fortaleceu a com- preensão de direito e cidadania da assistência social, indicando seu ca- ráter como uma política pública de proteção social articulada a outras políticas destinadas a garantir direitos e condições dignas de vida. A assistência social se tornou universal, mas também seletiva, destinada a quem precisa. 2.3.1 Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) Em 1993, a regulamentação da assistência social foi dada pela Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), n. 8.742, na qual a proteção so- cial foi proposta como um mecanismo contra formas de exclusão, con- sequência de certas instabilidades e transformações da vida, como velhice, doença, adversidade e privação. Ela também inclui as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como co- mida e dinheiro) e culturais (como conhecimento), que permitem a so- brevivência e a integração dos sujeitos na vida social. Dessa forma, a assistência social se configura como uma possibilidade de reconheci- mento público da legitimidade das demandas de seus usuários. A Loas também prevê a criação dos conselhos de assistência social, que são instâncias deliberativas e democráticas de igual composição que padronizam, acompanham e avaliam a política, a municipalização da gestão dos recursos financeiros públicos por meio de fundos de as- Serviço Social no Brasil 35 sistência social, e a reorganização institucional da administração pú- blica responsável pela coordenação, articulação e execução da política em cada esfera de governo (COSTA, 2005). De acordo com Couto et al. (2006), apoiada na Loas, a assistência social passou a ser analisada por meio da perspectiva dos direitos, da universalização do acesso e da responsabilidade estatal. Esses foram os primeiros passos para que fosse considerada uma política pública. Marcada, portanto, pelo cunho civilizatório presente na con- sagração de direitos sociais, o que vai exigir que as provisões assistenciais sejam prioritariamente pensadas no âmbito das ga- rantias de cidadania sob vigilância do Estado, a LOAS inovou ao apresentar novo desenho institucional para a assistência social, ao afirmar seu caráter não contributivo (portanto, não vinculado a qualquer tipo de contribuição prévia), ao apontar a necessá- ria integração entre o econômico e o social, a centralidade do Estado na universalização e garantia de direitos e de acessos a serviços sociais e com a participação da população. Inovou tam- bém aopropor o controle da sociedade na formulação, gestão e execução das políticas assistenciais e indicar caminhos alterna- tivos para a instituição de outros parâmetros de negociação de interesses e direitos de seus usuários. Parâmetros que trazem a marca do debate ampliado e da deliberação pública, ou seja, da cidadania e da democracia. (COUTO et al., 2006, p. 34) É importante destacar que, no âmbito da política de assistência social, a Loas considera a proteção da família um objetivo e a determina como um dos focos da política de assistência social. Os efeitos da crise econô- mica não possibilitaram reformas institucionais mais amplas nos siste- mas de proteção social. Assim, o direito à seguridade social garantido na Constituição não foi cumprido em relação à assistência social. Como consequência, vimos que o aprofundamento das desigualda- des sociais e a exclusão social se constituíram sob novos parâmetros de empobrecimento dos trabalhadores e de suas famílias (ALENCAR, 2008). As medidas adotadas para lidar com essa situação foram priori- zar programas assistenciais direcionados, fundos sociais de emergên- cia e programas sociais compensatórios paliativos voltados à atenção de pobres e vulneráveis. O Estado não pode impor à família obrigações que são realmente de responsabilidade do poder público. Alencar (2008) ressalta que a famí- lia deve ser priorizada em programas sociais que, de certa forma, são 36 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I mencionados na Constituição Federal (1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na Loas e, mais recentemente, no Sistema Único de Assistência Social (Suas). 2.3.2 Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e Sistema Único da Assistência Social (Suas) Em 2004, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) foi efetiva- mente aprovada. Nela, são materializados os princípios apresentados na Constituição Federal e as diretrizes da Loas, ampliando o entendi- mento de que a assistência social é uma política social inserida no cam- po da proteção social e da seguridade social (COUTO et al., 2006). Nesse sentido, a PNAS representa uma nova situação para a política brasileira, pois a assistência social passa a “garantir a todos, que dela necessitam, e sem contribuição prévia a provisão dessa proteção. Esta perspectiva significaria aportar quem, quantos, quais e onde estão os brasileiros demandatários de serviços e atenções de assistência social” (BRASIL, 2005, p. 15). Com base nas deliberações da IV Conferência Nacional de Assistên- cia Social, a PNAS foi preparada e aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), em 2004, e instituiu o Sistema Único da Assistência Social (Suas) como instrumento de unificação das ações da assistência social no contexto nacional, materializando as diretrizes da Loas. Em particular, corrobora com o caráter de uma política de ga- rantia de direitos públicos universais. Esse novo modelo de gestão das políticas de assistência social prioriza a família como foco de atenção e o território como base para a organização de ações e serviços em dois níveis de atenção: proteção social básica e especial. Segundo Cruz, Rodrigues e Battistelli (2018, p. 91), a Proteção Social Básica (PSB) visa: prevenir situações de risco através do desenvolvimento de poten- cialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, com precário aces- so aos serviços públicos e/ou fragilização de vínculos afetivos. Além disso, ela prevê o desenvolvimento de serviços, programas e projetos de acolhimento, convivência e socialização de famílias e indiví- duos, conforme as situações de vulnerabilidade apresentadas. Atividade 2 Do que se trata a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas)? Dê um exemplo de aplicação dessa lei. Serviço Social no Brasil 37 Atividade 3 Ainda segundo Cruz, Rodrigues e Battistelli (2018), a Proteção Social Especial (PSE) destina-se a famílias e indivíduos em risco pessoal e social devido a abuso físico, psicológico e/ou sexual, trabalho infantil, cum- primento de medidas socioeducativas etc. As dificuldades no exercício das funções de proteção enfraquecem a identidade do grupo familiar e tornam seus vínculos simbólicos e emocionais mais vulneráveis. Schmidt e Silva (2015) mencionam que a regulamentação da PNAS e a consequente implementação do Sistema Único da Assistência Social (Suas) são os dois principais marcos para o reconhecimento da assis- tência social como política pública de proteção social. Dessa forma, é necessária uma intensa articulação com as demais políticas, como as de saúde, previdência, educação e habitação. É assim que programas efetivos e articulados podem ser implementados. A assistência social deve considerar o enfrentamento das desigualdades socioterritoriais, buscando assegurar os mínimos sociais e a universalização dos direitos sociais (BRASIL, 2005). São seus objetivos: • Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem. • Contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e gru- pos específicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural. • Assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2005, p. 33) De acordo com a PNAS, a assistência social, considerada como di- reito à proteção social e à seguridade social, tem a perspectiva “de su- prir sob dado padrão pré-definido um recebimento e de desenvolver capacidades para maior autonomia” (BRASIL, 2005, p. 15-16). Assim, a assistência social se mostra favorável ao desenvolvimento e à emanci- pação humana e social, afastando-se da perspectiva assistencialista ou tuteladora e também se distanciando da função de mera redutora de necessidades ou vulnerabilidades sociais. Além disso, a PNAS afirma que “o desenvolvimento depende também de capacidade de acesso, Qual é o objetivo da assistência social, de acordo com a Política Nacional de Assistência Social (PNAS)? vale dizer da redistribuição, ou melhor, distribuição dos acessos a bens e recursos, [e] isto implica incremento das capacidades de famílias e indivíduos” (BRASIL, 2005, p. 15). 38 Fundamentos teóricos e metodológicos do Serviço Social I Como você pode notar, as legislações citadas defendem a adoção da política de assistência social no campo da proteção social. Apesar disso, e de todos os avanços obtidos nos últimos tempos nessa área, ainda é necessário considerar o quanto a assistência social esbarra em limites para a sua consolidação e para assegurar os direitos dos cida- dãos. Estão em jogo limites econômicos e interesses políticos contrá- rios à consolidação dos princípios propostos na PNAS. Por isso, apesar da sua abrangência, as ações continuam focalizadas e seletivas, dire- cionadas a grupos específicos da população. Embora haja dificuldades que interfiram na operacionalização da PNAS, ela é um dos principais elementos que podem permitir ou favorecer a emancipação dos indiví- duos e o pleno exercício da sua cidadania. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a política de assistência social, veio a conquista do Suas e, portanto, a formulação e gestão dessas políticas sociais, a setorização, a intersetoriali- dade, a articulação e a integração das políticas sociais e, no centro, a impor- tância da matricialidade sociofamiliar como objetivo central dos programas sociais. A PNAS, vigente no país desde 2004, estabelece novas bases para o direcionamento dessa
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