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HISTÓRIA E MEIO AMBIENTE Walderez Simões Costa Ramalho Mauro Franco Neto E d u ca çã o H IS T Ó R IA E M E IO A M B IE N T E W al d er ez S im õe s C os ta R am al ho M au ro F ra nc o N et o Curitiba 2018 Historia e Meio Ambiente ó Walderez Simões Costa Ramalho Mauro Franco Neto Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. R165h Ramalho, Walderez Simões Costa História e meio ambiente / Walderez Simões Costa Ramalho, Mauro Franco Neto. – Curitiba: Fael, 2018. 294 p.: il. ISBN 978-85-5337-043-6 1. História 2. Meio ambiente I. Franco Neto, Mauro II. Título CDD 909 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/0306PAT Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Tensões e limites entre natureza e cultura | 7 2. Os muitos tempos da natureza | 35 3. Natureza e história | 61 4. Modernidade, capitalismo e natureza | 89 5. Meio ambiente e política | 113 6. História do Brasil e meio ambiente I: práticas | 139 7. História do Brasil e meio ambiente II: representações | 163 8. Tecnologia e natureza em perspectiva histórica | 191 9. Educação e meio ambiente | 215 10. Meio ambiente e ensino de História | 239 Gabarito | 261 Referências | 283 Prezado(a) aluno(a), Por muito tempo, a ciência histórica e o ensino de história se viram distantes de questões relativas ao meio ambiente. Suas justificativas de existência se ancoravam em outros fenômenos, com forte preponderância do fenômeno humano e suas várias vertentes: a social, a cultural e a política. Neste momento da his- tória, porém, os nossos compromissos são outros. Já está claro que um entendimento do fenômeno humano apartado das suas diretas consequências ambientais nos aportaria uma visão decidi- damente míope dos problemas que nos cercam. Para tanto, nesta obra, os autores se dedicaram a estreitar os laços entre história e meio ambiente, para pensarmos em todas as consequências dessa relação e nos desafios que ela nos impõe, sejam eles teóricos, políticos ou práticos. Tenha uma excelente leitura e bons estudos. Carta ao Aluno 1 Tensões e limites entre natureza e cultura Para iniciar nosso estudo sobre história e meio ambiente, o primeiro passo deve ser o de caracterizar a ideia de natureza e sua relação com a cultura que teve lugar durante o Período Moderno. Isso é importante por dois motivos principais. Em pri- meiro lugar, para entender que a ideia que as diferentes culturas fazem sobre a natureza variou ao longo do tempo, ou seja, é his- toricamente condicionada. Em segundo lugar, porque a maneira como a Modernidade definiu a nossa relação com a natureza (de pensá-la e de agir sobre ela) tornou-se dominante e ainda hoje exerce sua força em nossa visão de mundo contemporânea. Atualmente, porém, esse modelo ou paradigma moderno sobre a relação “cultura-natureza” tem sido cada vez mais questio- nado, ao ponto de muitos intelectuais e ativistas sustentarem que essa é precisamente a origem de grande parte da crise ambiental contemporânea. Esta última não veio do nada. Ao contrário, é uma herança histórica legada pelo paradigma moderno, e nossos predecessores continuarão a herdar se nada for feito para mudar esse quadro de crise. Assim, uma das tarefas para concretizar a mudança consiste em fazer uma crítica histórica à ideia moderna de “homem” e de “natureza”. História e Meio Ambiente – 8 – Nesse capítulo, nosso propósito será de caracterizar essa herança histórica moderna que tendeu a opor a natureza e a cultura. Estudaremos, em linhas gerais, as origens desse pensamento e seu desenvolvimento ao longo do tempo. Mas este estudo não fica apenas no campo do pen- samento; por meio de uma análise do conceito de tecnologia, veremos como a oposição e a hierarquização entre natureza e cultura foram pos- tas em prática pela civilização moderna. Na seção final deste capítulo, vamos analisar os limites desse paradigma moderno no contexto con- temporâneo, em que presenciamos o crescimento de uma nova consci- ência ambiental. 1.1 Natureza e cultura na modernidade A história é um fenômeno que diz respeito não só às coisas e ações, mas também permeia o campo das ideias e do pensamento. Analisar a historicidade das ideias constitui uma das vertentes mais importantes da historiografia contemporânea. Como veremos, essa perspectiva também pode ser bastante útil quando nos propomos a pensar a relação entre histó- ria e meio ambiente. Mas, por quê? Dentre as diversas possibilidades que tal perspectiva nos oferece, podemos considerar inicialmente a seguinte questão: como, na história do pensamento, os seres humanos conceberam a sua própria existência em relação à natureza? Trata-se, com efeito, de uma pergunta bastante ampla. Todavia, ela pode servir para introduzir o tema deste capítulo. Afinal, a ideia que o humano faz da natureza (no sentido físico) passou por profun- das e importantes transformações ao longo da história. Como destacou o historiador Walter Mantovani, toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada ideia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura (MANTOVANI, 2009, p. 3). Isso significa que a ideia que fazemos da natureza e sua relação com o ser humano não é um dado eterno. Ela é historicamente condicionada, e varia segundo as épocas e os lugares. Isso significa que a nossa concepção – 9 – Tensões e limites entre natureza e cultura dominante sobre “natureza-cultura” também é histórica (ver box). Ela foi construída e elaborada ao longo de muitos séculos e está ainda hoje em transformação. Ter uma noção sobre essa história é de importância crucial para pensar a relação entre história e meio ambiente. Vamos nos concentrar no caso específico da experiência histórica da Modernidade, que tornou-se dominante no Ocidente e se espalhou progressivamente ao redor do mundo. Começaremos esta análise dando um primeiro passo “para trás”, da mesma maneira como um batedor de pênalti faz para orientar a sua visão e ganhar potência na hora de acertar o alvo. Dessa forma, não precisaremos ir tão a fundo na análise das cosmovisões modernas (e não modernas), pois por ora nos bastará obter uma visão mais global, a partir da leitura dos estudiosos sobre o assunto. Isso significa, então, transformar a nossa pergunta inicial para a seguinte: que novidade a experiência histórica moderna, com sua visão de mundo peculiar, implicou para a autocompre- ensão humana e sua relação com a natureza? Muitos historiadores concordam em assinalar que a ideia de natureza e de cultura é decisiva para a própria conformação da experiência histórica moderna. Pois, até o Renascimento, as cosmovisões dominantes não se referiam ao “homem” como o centro do universo pela sua exclusiva capa- cidade de razão, que o faz destacar de todos os demais seres vivos e que, por isso, o autorizaria a superar e dominar o mundo natural ao seu entorno. Portanto, mais do que estabelecer uma separação entre homem e natureza, a maior “novidade” que a experiência moderna aportou foi radicalizar a oposição e a hierarquia entre eles. Lembremos, por exemplo, da civilização egípcia, que divinizava elementosda natureza (o rio Nilo, por exemplo, era o deus Hapi). Sal- tando para o Período Medieval, a paisagem natural era vista como a essência de Deus na Terra e o próprio espaço onde a Sua presença se manifestava – trovões, terremotos, chuvas (e ausência delas) e outros acontecimentos naturais eram explicados como o desígnio do divino. Nos dois exemplos citados, encontra-se uma certa submissão do indiví- duo à natureza, esta última sendo uma fonte de medo, assombro e ins- piração, algo muito maior do que o ser humano e sua capacidade de conhecer e de controlar as coisas. História e Meio Ambiente – 10 – Isso não significa que nas culturas pré-modernas havia uma relação pura e harmoniosa com a natureza. (FAOLADORI; TAKS, 2004). Tam- bém não é verdade que foi só no Período Moderno que surgiu a distin- ção entre homem e natureza. Já há muito tempo que o homem sabe-se diferente de uma planta ou um animal! O que a Modernidade trouxe de novidade foi uma certa configuração na qual o homem se vê cada vez mais independente e superior à natureza, porque pode descobrir as suas leis por meio da atividade racional. E será essa mesma racionalidade que permitirá e autorizará o homem a agir sobre a natureza sem conhecer outro limite a não ser a sua capacidade tecnológica. Disto decorrerá também uma revalorização do conceito de técnica como a chave para a realização do “destino humano” de dominar e instrumentalizar a natureza – como veremos na seção 1.2. Com a emergência do Humanismo Renascentista, dos séculos XIV a XVI, o quadro geral de submissão do homem à natureza começou a sofrer transformações radicais. De uma maneira mais precisa, a revolução que o nascimento da ciência moderna proporcionou tem como uma de suas principais características a transformação da natureza em um puro objeto de conhecimento empírico-racional. Isso trouxe ao menos duas consequências fundamentais: a primeira é que essa forma de conceber o conhecimento científico supõe, como veremos melhor logo a seguir, um distanciamento ontológico profundo entre o “sujeito” que conhece e o “objeto” conhecido. Assim, o ser humano se autocompreende como um ser especial, precisamente por causa de sua capacidade racional. Mas isso leva a uma segunda consequência decisiva, qual seja, a redução da natu- reza ao âmbito de um puro “objeto” e, portanto, deve estar a serviço do ser humano para o seu desenvolvimento. Dito de uma outra forma, é como se o homem tivesse superado a sua animalidade pela sua capacidade racio- nal, a mesma que o autoriza a atuar na natureza em busca de sua própria realização e felicidade. Assim, mais do que uma separação, o pensamento moderno inverteu a ordem até então existente entre humano e natureza, postulando a supremacia do primeiro sobre a segunda. Essa compreensão sobre a existência foi inaugurada pelo pensamento moderno e recebeu contornos filosóficos precisos. Um de seus maiores expoentes foi René Descartes. Sua famosa frase “penso, logo existo” – 11 – Tensões e limites entre natureza e cultura expressa de maneira bastante clara a cosmovisão moderna que se tornaria dominante. Com essa frase tão conhecida e importante para a Moderni- dade, Descartes postulou que a existência humana funda-se exclusiva- mente na sua capacidade de pensar, sem necessitar de nenhuma ancora- gem no mundo natural para saber-se de si mesma. Sendo certo de sua própria existência graças exclusivamente à sua própria consciência (que lhe é exclusiva dentre os demais seres vivos), e não pelo mundo sensível e carnal, o “sujeito” (homem/mulher) se apresenta de uma maneira autocen- trada na Razão, que o determina como um ser livre para agir e conhecer. Descartes não foi o único a tratar da autorreferência humana dessa maneira. Lembremos também do exemplo de Francis Bacon, pensador inglês considerado o pai da filosofia experimental (que deu origem à ciência moderna) e que, segundo os filósofos Theodore Adorno e Max Horkheimer: “capturou bem a mentalidade da ciência que se fez depois dele. O casa- mento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente é patriarcal: o entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza desencantada. Poder e conhecimento são sinôni- mos” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006). Recordemos ainda do exemplo de Thomas Hobbes, um dos fundadores do pensamento político moderno, que elaborou toda a sua teoria baseado na ideia (imaginária, diga-se de pas- sagem) de que a sociedade humana surge com a superação do “estado de natureza”, uma condição em que o homem estava totalmente submetido aos seus impulsos e integrado à natureza. Para o autor, essa condição natural era um obstáculo à vida social, já que nessa condição o homem se torna o “lobo do homem”, revelando a sua índole inata “maligna”. Mas não podemos esquecer que essas filosofias de Descartes, Bacon e Hobbes, tão importantes para o que entendemos ainda hoje por “Moderni- dade”, não foram aceitas de maneira unânime no século XVII. Seja como for, as visões que esses pensadores expressam tornaram-se dominantes ao longo da experiência histórica moderna, e repercutiram por muitos séculos tanto na história da ciência, da filosofia e do pensamento político, como também fora dos circuitos restritos dos acadêmicos. Essa cosmovi- são moderna, que se espalhou gradativamente também na vida cotidiana, também abriu caminho para o desenvolvimento fantástico da ciência e da tecnologia (como veremos nas próximas seções deste capítulo). História e Meio Ambiente – 12 – No século XVIII, essa história chegou a um momento culminante graças à emergência do pensamento iluminista, por um lado, e da Revo- lução Industrial, por outro. Os pensadores iluministas ficaram célebres por terem desafiado as estruturas políticas, econômicas e sociais do chamado “Antigo Regime”, e suas ideias forneceram as bases inte- lectuais para a construção do mundo contemporâneo. Nesse mesmo passo, contudo, o Iluminismo também reforçou a separação e a hie- rarquia ontológica entre o homem e a natureza. Dessa maneira, a natu- reza era representada como algo destituído de qualquer valor intrínseco, exceto na medida em que ela se presta aos anseios de desenvolvimento e liberdade do homem. Assim, a natureza (assim vista de maneira inde- pendente do homem) tornou-se um mero “instrumento” a serviço do homem racional. Este fato tornou-se decisivo para a história ulterior da Modernidade. A objetivação e operacionalização da natureza serviu de base conceitual e prática para o desenvolvimento do capitalismo, na medida em que a razão (dominadora da natureza) foi celebrada como uma espécie de panaceia para todos os males possíveis da existência. Dessa maneira, o Iluminismo postulou a necessidade de dominar a natureza, seja enquanto espaço aberto para a livre intervenção humana, seja ainda no sentido de que o homem deve “controlar” as suas paixões, contra sua “natureza” animal. Podemos ver, em ambos os sentidos, um rebaixamento da natureza em seu valor mais próprio. Se o movimento iluminista fornece as bases intelectuais para esse entendimento do homem e sua relação de dominação com a natureza, a Revolução Industrial significou a efetivação dessas ideias na realidade prática. A afirmação do domínio humano sobre a natureza nunca havia alcançado tamanho impacto. A produtividade do capital alcançou um volume assombroso, e a tendência desse capital em se autorreprodu- zir continua e aceleradamente garantiu a manutenção desse processo. A Revolução Industrial também permitiu o crescimento das cidades, bem como a construção de estradas e linhas férreas, e tudo isso significou a ampliação da intervenção predatória do homem na paisagem. A figura 1.1 oferece uma demonstração disso, apresentando o enorme crescimento do PIB da Inglaterra (berço da Revolução Industrial): – 13 –Tensões e limites entre natureza e cultura Figura 1.1 – Evolução do PIB da Inglaterra desde 1270 a 2015 Fonte: Roser (2018). O sistema capitalista-industrial foi o motor do desenvolvimento tec- nológico cada vez mais acelerado que a humanidade vem experimentando nos últimos dois séculos. Em larga medida, esse avanço tinha como moti- vação principal justamente a elevação do nível de produtividade do capi- tal. Esse círculo fechado (para não dizer vicioso) está na base do mundo contemporâneo, e só pode se “estabilizar” em detrimento de uma relação mais harmônica com o meio ambiente. Dito com outras palavras: em nome do crescimento econômico e por meio das novas tecnologias aplicadas à indústria, a natureza passa a ser cada vez mais explorada e vista como uma fonte de recursos “inesgotável”, estando à serviço das necessidades e desejos do homem “racional”. Essa situação nos levou a um grande paradoxo. Nunca a humanidade produziu tanto, nunca gerou tantos “lucros”. Mas qual o “preço” de tanto crescimento econômico? Essa questão não pode ser plenamente respon- dida sem envolver os diferentes aspectos culturais, existenciais e, o que História e Meio Ambiente – 14 – particularmente nos interessa mais aqui, ambientais. Nunca na história da humanidade tivemos tanto conforto material (deixemos de lado por ora a questão da desigualdade estrutural que marca o capitalismo contemporâ- neo), tantas facilidades tecnológicas, tantas possibilidades de nos comu- nicarmos e de nos movimentar pelo espaço (inclusive o espaço sideral!). Porém, também nunca produzimos tanto lixo, tanto desmatamento, até mesmo o clima não está mais fora do alcance da intervenção humana. Esse descompasso, que cada vez mais é visto como um problema grave e urgente, só é explicado em função de suas origens filosóficas, ou seja, a separação entre homem e natureza que marcou a história da Modernidade. Não é por acaso que as regiões “mais desenvolvidas” do globo são justamente aquelas que apresentam uma maior devastação da paisagem natural. Por exemplo, estima-se que a Europa Ocidental já perdeu 99,7% de sua cobertura florestal original1. No caso do Brasil, a área original da Mata Atlântica é um exemplo desse processo, sendo alvo da exploração predatória desde o período colonial, e que se acentuou com o avanço do agronegócio e da industrialização e urbanização do país. Atualmente, menos de 10% de sua área original permanece preservada. Figura 1.2 – Devastação da Mata Atlântica, antes da colonização até os dias atuais Fo nt e: A rte E PT V (2 01 7) . 1 https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-pais-tem-mais-florestas/ – 15 – Tensões e limites entre natureza e cultura Chegado ao século XXI, esses fundamentos do mundo moderno parecem ter encontrado um limite. A consciência de crise ambiental e, especialmente, a questão da interferência humana nesse processo, é uma questão da ordem do dia no debate público nacional e global. Movimen- tos ambientalistas, tais como o Greenpeace e o S.O.S Mata Atlântica, por exemplo, têm ganhado cada vez mais relevância e força, e os governos e autoridades internacionais também têm se mobilizado por essa preocupa- ção, ainda que muitas vezes não com a agilidade necessária e, por vezes, com alguns retrocessos. A consciência de um consumo ambientalmente responsável tem se afirmado cada vez mais, e isso promete ser uma das grandes tarefas da humanidade para o futuro. 1.2 Tecnologia, modernidade e natureza Identificamos na seção anterior que o divórcio entre homem/cultura, por um lado, e natureza/meio ambiente, por outro, bem como a ordem hie- rárquica que se estabeleceu entre eles, constituem as raízes filosóficas da experiência histórica moderna. Vimos então que o pensamento moderno considera o ser humano como um ser especial pela sua exclusiva capa- cidade racional, e isso o autorizaria (e mesmo exige) a dominar a natu- reza em busca de satisfazer as suas necessidades e desejos. Desse modo, a natureza passaria a ser vista ora como um obstáculo que deveria ser superado em nome do desenvolvimento humano ilimitado, ora como uma mera fonte de recursos ao dispor da produção incessante de riquezas. Se considerarmos agora o conceito de técnica e de tecnologia, seremos capazes de entender como essa cosmovisão moderna, até aqui descrita no plano das ideias e do pensamento, aconteceu efetivamente na experiência prática da vida. Em outras palavras, a tecnologia e seu desenvolvimento moderno representam uma expressão da vontade de domínio do homem sobre a natureza. A partir desse ponto de vista, poderemos construir uma crítica do conceito de tecnologia considerando a sua historicidade e seu lugar entre homem e natureza. É preciso, em primeiro lugar, ampliar a nossa compreensão de tecnologia. Geralmente, utilizamos esse termo para fazer referência às inovações técnicas surgidas em nossa contemporaneidade: por exemplo, os smartphones, os satélites, os robôs, as televisões de alta definição etc. História e Meio Ambiente – 16 – Mas isso frequentemente nos faz esquecer que também a domesticação do fogo, a invenção da roda e da metalurgia, ocorridas ainda na chamada Pré-História, também devem ser consideradas como inovações tecnoló- gicas extraordinárias. Portanto, a história da tecnologia é precisamente a história de todas as invenções e descobertas que o ser humano criou e que transformaram continuamente o seu modo de viver. Assim, a historicidade do conceito de tecnologia abarca um tempo de longa duração, tal como podemos visualizar no quadro a seguir. Quadro 1.1 – Inovações técnicas por período histórico Período histórico Inovações técnicas Paleolítico (Até ≅ 10000 a.C.)- - A domesticação do fogo - Instrumentos de pedra lascada Neolítico (Por volta de 4000 a.C.) - A cerâmica e polimento de pedra - Desenvolvimento da agricultura e domesticação de animais Idade dos Metais (Até o surgimento da escrita) - Desenvolvimento da metalurgia (cobre, bronze, ferro) - A invenção da roda Baixa Idade Média (Por volta do século XI) - Arreio - Arado de ferro - Os moinhos de vento e de água Primeira Revolução Industrial (Por volta de 1750) - A máquina a vapor - Mecanização das fábricas - A locomotiva e os navios a vapor Segunda Revolução Industrial (Séculos XIX e XX) - O petróleo - O motor a combustão interna - O automóvel, o avião - A eletricidade – 17 – Tensões e limites entre natureza e cultura Período histórico Inovações técnicas Terceira Revolução Industrial (Séculos XX e XXI) - Os computadores eletrônicos - Telecomunicações via satélite - A energia nuclear - A robótica Fonte: elaborado pelos autores. A atividade técnica surgiu na história como uma resposta às neces- sidades que o ser humano encontra na realidade de sua existência prá- tica e cotidiana. Um provérbio popular afirma que “a necessidade é a mãe das invenções”. E sabemos bem que esses ditos traduzem verdades importantes! A necessidade origina-se a partir de um problema com que o indivíduo se depara em uma situação específica – por exemplo, acender uma fogueira para proteger-se do frio. Para solucionar esse problema, o indivíduo sempre partirá da observação da natureza ao seu redor, pois dela provêm os recursos com os quais ele poderá manipular, até chegar num resultado satisfatório. Essa descrição vale tanto para a criação de supercomputadores, como também para os instrumentos de pedra lascada durante o Período Paleolítico. Desde tempos muitos remotos, o ser humano inventa instrumentos para atender as suas diferentes necessidades práticas. Essas necessidades, e o modo de satisfazê-las, variou historicamente segundo os conhecimen- tos disponíveis, os recursos naturais presentes, e em função da maneira como o ser humanovê a si mesmo e a natureza (ou seja, a sua cosmo- visão). Assim, podemos entender que a concepção e o desenvolvimento moderno da atividade técnica não é a única forma possível de ela existir, o que também indica que ela pode ser transformada e reconstruída – como veremos no final deste capítulo. Mas antes, é preciso saber caracterizar, em linhas gerais, o sentido que a técnica enquanto prática e enquanto conceito adquiriu durante a Modernidade. Em outras palavras: de que maneira podemos relacionar a ideia moderna de tecnologia e a separação radical e hierarquia fixa entre homem e natureza? A resposta mais básica a esse problema consiste em História e Meio Ambiente – 18 – afirmar que a submissão da natureza ao homem (justificada e autorizada pela sua capacidade racional soberana) é a condição de possibilidade básica para o enorme avanço tecnológico conquistado pela Modernidade, numa velocidade e abrangência nunca antes vista na história humana. Em outras palavras, a Modernidade não “inventou” a tecnologia, mas acelerou o seu desenvolvimento e lhe atribuiu um sentido diferenciado. Vimos anteriormente que a visão de mundo moderna “libertou” o homem de sua submissão à natureza. Essa visão de mundo abriu caminho para o desenvolvimento tecnológico acelerado, tal como nunca antes na his- tória. E isso porque a ciência e a técnica surgidas na modernidade foram identificadas como a chave para a realização do “destino” humano para a liberdade e a felicidade. Assim, a técnica não é mais vista como apenas um meio, mas tornou-se um fim em si mesmo. O desenvolvimento tecnológico passa a ser visto como um valor em si, justamente porque é ela que garante a superação do homem de seus condicionamentos naturais. A técnica passa a ser vista, assim, como a realização prática do projeto de homem moderno, iluminista e racional. Na base disso tudo está uma maneira de pensar a natu- reza como um campo de exploração em prol do bem-estar material humano. Assim, o domínio tecnológico transformou-se cada vez mais numa ferra- menta de poder e um objeto de competição entre as nações. Com o surgimento da industrialização, esse processo assumiu uma nova amplitude. A partir desse momento, como explicou Rodrigo Duarte: “a natureza torna-se pela primeira vez puro objeto para o homem, pura coisa de utilidade; cessa de ser reconhecida como uma potência em si mesma; e o conhecimento teórico de suas leis autônomas surge ele próprio como astúcia para submetê-lo aos carecimentos humanos, seja como objeto de consumo, seja como meio de produção” (DUARTE, 1986, p. 83). Assim, as inovações técnicas passariam a ser vistas como a chave para reduzir o peso da natureza sobre a ação humana. Mas a consequência desse processo, que nem sempre foi percebida, foi o estabelecimento de uma relação cada vez mais instrumental e predatória da natureza, uma vez desprovida de um significado mais amplo do que o próprio homem. Assim, com a autonomia da técnica frente à natureza e a redução desta última a uma mera fonte de recursos, o homem moderno acabou esquecendo-se de que também a atividade técnica não pode entrar em desarmonia com a natureza, sob risco de se causar sérios transtornos ambientais. – 19 – Tensões e limites entre natureza e cultura O ponto central aqui é entender que a concepção moderna sobre a técnica e seu desenvolvimento atribuiu-lhe uma importância e um sentido radicalmente novo. Em um sentido mais geral, o significado de técnica consiste em que ela é um meio que visa atingir um fim concreto e deter- minado, fora dela mesma. Nesse sentido, pode parecer um contrassenso dizer que o avanço tecnológico seja algo que vale “por si mesmo”. Mas a visão moderna de mundo afirmou, levando às últimas consequências, a autonomia da técnica juntamente com a submissão da natureza como uma paisagem livre para a intervenção humana. Ao buscar transcender a sua condição natural, o homem depositou cada vez mais confiança e energia no desenvolvimento técnico, sem reconhecer qualquer limite na natureza. Na Modernidade, o “fim” a que o desenvolvimento técnico se dirige passou a ser a própria técnica, ou seja, o ser humano e sua busca prática de superação e dominação da natureza. A partir dessa concepção moderna de mundo, a tecnologia passaria a ocupar um papel chave, na medida em que seu desenvolvimento significaria precisamente a realização do “destino humano” de liberdade, riqueza e felicidade. Assim, o conceito de tecnolo- gia assumiu na experiência histórica moderna um sentido totalmente novo e especial. Se a técnica é definida como uma resposta dos seres humanos a uma necessidade, esta necessidade passou a ser referida, na Modernidade, exclusivamente ao próprio ser humano, entendido como um ser indepen- dente e soberano em relação à natureza. O desenvolvimento moderno da técnica não se contenta mais em criar instrumentos que visem uma adaptação e integração com o meio ambiente. A técnica passou a ser celebrada como uma forma de o ser humano concretizar o seu “destino” e autorrealização e liberdade, sem considerar a necessidade de uma relação minimamente harmônica e inte- gral com a natureza. A visão moderna sobre a técnica não concebe o meio ambiente como um limite fundamental, mas o transforma em um simples “meio”, no sentido de algo que não carrega em si mesmo nenhum signi- ficado próprio e autônomo. Assim, a natureza passaria a ser reduzida ora como uma mera fonte inerte de matérias-primas ao dispor da vontade e agência humana, ora como um obstáculo a ser enfrentado pela própria técnica (a construção de estradas e ferrovias, por exemplo). A história da Modernidade é cheia de exemplos que demonstram esse processo predatório (embora nem sempre percebido como tal). Ao ideali- História e Meio Ambiente – 20 – zar o desenvolvimento tecnológico como um fim em si e a chave principal para a realização do destino histórico do ser humano, a visão de mundo moderna tendeu a ignorar as consequências desse desenvolvimento desen- freado para a natureza ao seu entorno. Desprezando a sua condição de “ser natural” em favor da pura racionalidade e busca por riqueza e conforto material, o homem moderno abriu mão (muitas vezes sem nem mesmo se aperceber) da possibilidade de uma convivência mais simbiótica com a natureza, visto que esta última sempre condiciona a sua própria existência. Assim, o desenvolvimento moderno da técnica significou uma pro- gressiva dominação predatória do homem sobre o meio ambiente. Essa postura permitiu tanto a criação de tecnologias extraordinárias e um grau elevadíssimo de produção de riquezas, como também ampliou drastica- mente o grau de intervenção humana nos ecossistemas, alterando a sua dinâmica. Esse descompasso entre tecnologia e natureza chegou ao seu ápice na experiência histórica contemporânea, como fruto da expansão da atividade industrial seja nas cidades, seja no campo. Com isso, cada vez mais sacrificamos nosso habitat natural em prol da satisfação instantânea para problemas de ordem econômica ou política, sem levar em conta que as próximas gerações herdarão um mundo natural cada vez mais degra- dado e, portanto, difícil para a sobrevivência humana. Podemos ilustrar esse descompasso entre tecnologia e natureza com uma experiência marcante de nossa história recente. A manipulação da energia atômica nuclear representa uma das grandes conquistas tecnológi- cas da humanidade, permitindo a produção de energia em alta escala para atender as necessidades de desenvolvimento de uma população em con- tínuo crescimento. Mas ao mesmo tempo, ela também pode representar uma ameaça séria para a vida natural e do próprio homem. Em 26 de abril de 1986, ocorreu a explosão de um dos quatro reatores elétricos da usina nuclear de Chernobyl, cidade ucraniana situada a 16 quilômetros da fronteira com a Bielorrússia.Esse acontecimento é consi- derado o maior acidente nuclear catastrófico da história. As consequências dessa explosão foram devastadoras. A nuvem radioativa rapidamente se espalhou por todo o globo, mas certamente foi a localidade de Pripyat, onde a usina se localizava, que mais sofreu com o desastre. Além de mui- tas mortes causadas diretamente pela explosão, toda a população local – 21 – Tensões e limites entre natureza e cultura foi obrigada a deixar os seus lares, e toda a vida animal e vegetal ficou severamente comprometida. A área contida num raio de 30 quilômetros ao redor da antiga usina foi batida de “zona de exclusão” ou “zona morta”, como um grande mausoléu a céu aberto. Figura 1.3 – Parque abandonado em Prypiat, onde se localizava a usina nuclear de Chernobyl Fonte: Shutterstock.com/meunierd. Figura 1.4 – Monumento erguido aos bombeiros que dedicaram suas vidas para combater o incêndio provocado pela explosão do reator Fonte: Fonte: Shutterstock.com/SSvyat. Chernobyl tornou-se um símbolo da capacidade humana de causar desastres ecológicos, e nos faz lembrar como nos tornamos frágeis diante de nossa própria capacidade tecnológica. Passados mais de 30 anos da História e Meio Ambiente – 22 – catástrofe, ainda hoje as consequências são bastante visíveis. A “zona morta” continua impraticável para o a vida humana e natural, e assim per- manecerá por muitas centenas de anos. Inúmeras espécies de insetos e vegetais passaram por mutações genéticas muito profundas, alterando toda a biologia do local. Os índices de câncer nas proximidades da área ainda hoje são bastante elevados. O caso de Chernobyl representa de maneira dramática o divórcio entre homem e natureza que o desenvolvimento tec- nológico contemporâneo radicalizou. Outro exemplo recente, ocorrido desta vez no Brasil, é o do rompi- mento da barragem do Fundão em Bento Rodrigues, distrito da cidade de Mariana, em Minas Gerais. A exploração mineradora, de responsabilidade da empresa Samarco (controlada pela Vale e BHP, as duas maiores empresas mineradoras do mundo) alcançou uma potencialidade de devastação que foi vista na prática naquela terrível catástrofe. Mais de 60 milhões de tone- ladas de lama tóxica vazaram da barra- gem e foram despe- jados no rio Doce (o segundo maior da região sudeste). Além de todo o vilarejo de Bento Rodrigues e de Paracatu terem sido completamente toma- das pela lama, toda a região banhada pelo rio foi diretamente afetada. Toda a popu- lação de peixes foi morta (algumas exclu- sivas do rio Doce), e o abastecimento de água para as pessoas ficou totalmente comprome- tida, já que as técnicas de tratamento não são Figura 1.5 – Imagem do satélite da foz do rio Doce, tomado pela lama da Samarco/Vale/BHP Fonte: NASA (2015). – 23 – Tensões e limites entre natureza e cultura capazes de eliminar por completo os metais pesados presentes na água. As pessoas ficaram expostas a uma série de riscos graves à saúde. Os ambienta- listas consideram que os efeitos desses rejeitos persistirão por mais de cem anos, afetando a vida de cerca de 200 municípios banhados pelo rio entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A busca desvairada por maior produtividade e lucro resultou no maior desastre ambiental da história do Brasil, e o maior do mundo enquanto consequência da atividade mineradora. Esses exemplos de catástrofes ambientais recentes poderiam, infe- lizmente, serem multiplicados às centenas. Mas além de anunciarem um cenário desolador, essas experiências têm ensejado a emergência de uma nova consciência ambiental, expressando a urgência de a humanidade repensar a sua relação com o mundo natural. Veremos na próxima seção que também a tecnologia pode servir como um importante aliado para essa tarefa, como um meio (e não o fim) para buscar novas soluções para os problemas que o seu desenvolvimento desenfreado acabou imprevisivel- mente causando ao longo da Modernidade. 1.3 Por uma nova concepção de homem e de natureza e o papel da tecnologia Até o início do século XX, o homem moderno não reconhecia na natureza nenhum limite para a sua livre iniciativa. Mas a ocorrência frequente de episódios catastróficos de degradação ambiental, somados às discussões sobre o caráter global das consequências da intervenção humana na natureza (por exemplo, os debates sobre o aquecimento glo- bal), geraram dúvidas crescentes sobre a sustentabilidade desse projeto de Modernidade. Tornou-se cada vez mais claro que a existência humana na Terra será severamente prejudicada caso a ação predatória sobre a natu- reza continue sem cessar. Por um lado, o moderno dualismo entre “homem versus natureza” tornou-se de tal modo dominante em nossa maneira de ver e entender o mundo, que dificilmente podemos conceber uma cosmovisão alternativa. Nesse sentido, pode parecer à primeira vista que a oposição e a hierar- História e Meio Ambiente – 24 – quia entre homem e natureza seria algo simplesmente “universal”, ou seja, um dado inquestionável da realidade. Mas, por outro lado, essa mesma concepção moderna sobre a relação entre homem e natureza parece desa- fiar o nosso senso comum, já que é muito difícil imaginar uma atividade humana sem alguma participação da natureza. E isso porque nada do que somos, fazemos ou pensamos pode se sustentar sem algum vínculo fun- damental com o mundo natural. O grande problema é que a Modernidade parece ter esquecido e escamoteado essa dimensão fundamental. Somente nas últimas décadas esse limite da experiência histórica moderna tem sido questionado de maneira mais clara e firme. Tal é o paradoxo da Modernidade capitalista: afirmar a total indepen- dência e superioridade do homem sobre a natureza, e ao mesmo tempo depender desta última (a natureza) para materializar o seu próprio desen- volvimento (isto é, do capitalismo moderno). É a ocorrência desse paradoxo que explica tanto o enorme avanço do sistema capitalista moderno, como também a concomitante degradação acelerada do meio ambiente. Na aurora do século XXI, o descompasso que identificamos no inte- rior da Modernidade a respeito da relação homem-natureza parece ter chegado ao seu limite, como já mencionamos anteriormente. Esse limite se expressa não apenas pela ocorrência cada vez mais frequente de desas- tres ambientais, nem apenas com a abrangência crescente da intervenção humana na alteração dos processos naturais. Esse limite se revela também na emergência de uma renovada consciência ambiental, que busca pon- derar o desejo de desenvolvimento econômico com as necessidades de preservação ambiental, criando um senso de responsabilidade com relação ao meio ambiente e às gerações futuras que herdarão um mundo que, caso não haja nenhuma transformação mais radical, será bastante desconfortá- vel para o próprio exercício da vida humana. A necessidade de uma nova visão de mundo, que seja ambientalmente mais responsável, é essencial para o enfrentamento dos enormes desafios que o século XXI apresenta para a humanidade. Dentre os problemas que o mundo contemporâneo coloca para a existência humana na Terra, pode- mos citar o aquecimento global, a desertificação de áreas cada vez mais amplas, a redução da disponibilidade de água potável, entre outros. Para superar tais desafios, não basta apenas uma atuação pontual; é preciso – 25 – Tensões e limites entre natureza e cultura também que a humanidade alcance uma nova forma de se relacionar com a natureza, superando aquela oposição e hierarquização entre cultura e natureza que caracterizou a experiência histórica moderna. Essa nova compreensão de mundo, que vem surgindo dos escom- bros da cosmovisão dominante na Modernidade, afirma enfaticamente que é um erro pensar que a natureza “pertence” ao homem sem considerar que tambémo homem “pertence” à natureza como parte integrante dela. Não se trata, portanto, de repetir o paradigma moderno, nem de defender um retorno a uma visão mágica ou divinizada da natureza. Trata-se sim de rejeitar a ideia de natureza como uma coisa sem dignidade própria, como se fosse algo “descartável” e redutível a um puro objeto inerte para o desejo humano de desenvolvimento econômico. Uma das expressões dessa nova consciência ambiental emergente consiste na criação das ciências ambientais como um campo científico autônomo, que se institucionalizou nas universidades a partir de meados do século XX. E uma das bases filosóficas que justificam o projeto das ciências ambientais passa justamente pela crítica da oposição e hierarqui- zação moderna entre homem e natureza. Um exemplo bastante ilustrativo disso é dado nas duas imagens a seguir. Figura 1.6 – O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci Fo nt e: S hu tt er st oc k. co m /K w ir ry . História e Meio Ambiente – 26 – Figura 1.7 – Logomarca da “Rede de Ciência e Saúde Ambiental”, organização estadunidense criada em 1994 Fonte: sehn.org. Como vimos na seção anterior, o desejo de domínio do homem sobre a natureza se manifestou historicamente na atividade técnica e no con- ceito de tecnologia próprio de cada época e cultura. Vimos também que o desenvolvimento tecnológico moderno, que se caracteriza pela crescente aceleração das suas inovações, só foi possível com base na separação e hierarquização entre homem e natureza. Este princípio foi o que, no limite, sustentou todo o avanço tecnológico acelerado que a humanidade experi- mentou, especialmente a partir da Revolução Industrial. E esse processo, – 27 – Tensões e limites entre natureza e cultura continuamente em aceleração, ampliou de maneira drástica a capacidade de o ser humano intervir na natureza, assumindo um caráter cada vez mais radical e predatório. Para dar mais concretude à nossa discussão, consideremos o seguinte exemplo. Em meados do século passado, os países ocidentais viram-se mergulhados numa crise profunda. A experiência de duas guerras mun- diais devastadores, os impactos globais da crise de 1929 (até hoje con- siderada a maior da história do capitalismo), a emergência dos regimes totalitários, tudo isso configurou um quadro de crise profunda. Após o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), as principais lideranças globais (incluindo os blocos capitalistas e socialistas) entenderam que a grande prioridade era acelerar o processo de reconstrução, lançando mão de todo o avanço tecnológico adquirido para a expandir a produção econômica. Tivemos a oportunidade de visualizar a extensão e velocidade espeta- cular desse empreendimento no gráfico da figura 1.2. Naquele momento, contudo, a preocupação com a natureza não estava nem de longe entre as prioridades dos governantes, empresários e mesmo a opinião pública em geral (exceção feita aos primeiros grupos ambientalistas, como veremos melhor em outro capítulo). Não é por acaso, portanto, que à velocidade e amplitude do crescimento econômico mundial vivenciado durante os cha- mados “30 anos dourados” (entre 1945-1973), correspondeu também um processo de degradação ambiental nunca antes visto na história. Podemos visualizar esse processo com o caso da chamada “Revo- lução Verde”, que se iniciou na década de 1950, e consistiu na invenção e disseminação de novas práticas e inovações tecnológicas aplicadas na agricultura e na pecuária, que permitiram um vasto aumento na produti- vidade. Surgia assim o processo de industrialização do campo. O modelo da Revolução Verde baseia-se na utilização de sementes geneticamente modificadas, mecanização da produção, latifúndios monocultores, e o uso intensivo de insumos industriais (agrotóxicos e fertilizantes). O investimento maciço em pesquisas tecnológicas resultou numa produ- ção de alimentos em escala jamais vista. Os entusiastas desse processo (incluindo os governantes e pesquisadores) anunciavam que graças à Revolução Verde a humanidade poderia finalmente resolver o problema da fome no mundo. História e Meio Ambiente – 28 – No entanto, isso não passava de uma vã promessa. A produção de alimentos realmente atingiu um patamar espetacularmente elevado; mas ninguém ousaria dizer em sã consciência que resolvemos o problema da fome! Na verdade, o que a história demonstrou desde então foi que o custo ambiental da dita “revolução” foi enorme, muito mais do que as gerações anteriores sequer poderiam imaginar. Não apenas a vida dos pequenos agricultores foi profundamente afetada; a Revolução Verde também danificou a paisagem natural por meio da ampliação drástica das “fronteiras agrícolas” ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Assistiu-se à contaminação dos solos e das águas, a devastação de florestas e outros biomas, bem como a saúde das pessoas com a ingestão de grandes quan- tidades de agrotóxicos. Figura 1.8 – Avião despeja agrotóxico numa plantação na Califórnia Fonte: Shutterstock.com/Carolina K. Smith MD. A aposta da Revolução Verde era o aumento da produtividade agrí- cola. Produzir mais para lucrar mais, na crença de que “o mercado” faria por si mesmo todo o resto (distribuição desses alimentos na população). Ora, essa crença demonstrou-se historicamente insustentável, e isso não apenas para o “homem” e a “sociedade” (por exemplo, a persistência da fome e o aumento na desigualdade no campo), mas também para a natu- reza. Aliás, as consequências históricas da Revolução Verde nos ensinam que a causa de seu fracasso reside justamente na tradicional separação e hierarquização entre homem e natureza. Ao ignorar os custos ecológicos da expansão agrícola desmedida, a Revolução Verde abriu espaço para – 29 – Tensões e limites entre natureza e cultura o surgimento de problemas novos e graves, muitas vezes imprevistos – desertificação, degradação dos solos, êxodo rural e favelização das cidades etc. Atualmente, estamos bem familiarizados com essas consequências. O avanço tecnológico proporcionado pela Revolução Verde foi impor- tante em termos econômicos, mas ao mesmo tempo esbarrou no limite da questão ambiental. E é justamente a consciência desse limite que vem sendo cada vez mais percebida como uma urgência. Pois não basta apenas aumentar a produtividade; é preciso encontrar uma forma de produção sustentável, que não agrida o meio ambiente nem represente uma concen- tração fundiária tão avassaladora. Isso se revela, nos dias atuais, com a crescente demanda por ali- mentos orgânicos, mais livres de agrotóxicos e cuja produção respeita o meio ambiente e visa a qualidade do alimento, e não a sua quantidade. No Brasil, a demanda por produtos orgânicos tem crescido entre 15% a 20% por ano, segundo dados do Ministério da Agricultura. E esse crescimento envolve tanto a busca por alimentos mais saudáveis, como também se orienta por um ideal de consumo ambientalmente consciente. Além disso, a produção desses alimentos orgânicos escapa à lógica da grande lavoura de monocultura, concentrando-se na agricultura familiar (cerca de 85% no Brasil2). No entanto, ainda é preciso superar algumas barreiras, espe- cialmente em relação ao preço desses produtos no mercado. Incentivos governamentais já têm sido feitos (subsídios, cursos, etc.), mas ainda há muito que avançar. E como realizar esse avanço? Mais uma vez, a atividade técnica tem um papel crucial. Afinal, a nossa compreensão de tecnologia e seu desen- volvimento não consiste apenas na sua acepção moderna, ou seja, como uma maneira de concretizar o domínio absoluto (e no limite irresponsável) do homem sobre a natureza. Ela também pode e deve auxiliar na constru- ção de uma nova relação entre natureza e sociedade. Em outras palavras; a tecnologia não é (necessariamente) um inimigoda consciência ecológica, mas um importante e poderoso aliado. 2 https://exame.abril.com.br/tecnologia/inovacao-tecnologica-na-agricultura-organica-e- -pesquisada/ História e Meio Ambiente – 30 – Uma pesquisa coordenada pelo engenheiro agrícola Mauro José Andrade Tereso (Unicamp) ilustra bem a simbiose entre tecnologia e consciência ambiental. Esse estudo investigou a inovação tecnológica do setor de produção de alimentos orgânicos, chegando a interessantes con- clusões. Como Tereso bem expressou, nesse seu estudo: “como a tecnolo- gia disponível no mercado foi desenvolvida para o modelo convencional [de agricultura], os produtores orgânicos adaptam ferramentas e equipa- mentos e realizam inovações diversas a fim de aumentar a produtividade do trabalho” (TERESO, 2017, p. 54). Esta citação ilustra bem o ponto central desta seção (e de todo o capítulo também). O aparato tecnológico que temos disponível não foi pensado inicialmente para respeitar a natureza, mas principalmente para explorá-la. No entanto, tudo depende no fim das contas na maneira como concebemos nossa relação com o mundo. No caso descrito por Mauro Tereso, os agricultores de produtos orgânicos não abrem mão comple- tamente da tecnologia moderna, mas a adaptam para os seus próprios fins – ambientalmente mais sustentáveis. Essa adaptação do aparato tecnológico revela que a história da técnica conti- nua em transformação. Assim, a agricultura orgânica também emprega o cultivo mecânico, mas adapta essa tecnologia no sentido de aumentar a produtivi- dade visando o mínimo de inter- ferência no ecossistema. Esse sentido de adaptação também pode ser observado em outras áreas da atividade eco- nômica. Pensemos por exemplo no caso da produção de ener- gia – tão essencial para a vida moderna. Até meados do século XX a exploração de carvão e petróleo era feita sem se ter no horizonte a necessidade de buscar fontes alternativas, Figura 1.9 – Uma semeadora autopropelida para plantio direto, desenvolvida no Brasil para operar na agricultura familiar Fonte: Embrapa (2002). – 31 – Tensões e limites entre natureza e cultura que não degradassem tanto o ambiente. Nas últimas décadas, porém, acen- tuou-se os investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecno- logias para buscar fontes renováveis de energia, como a eólica (vento) e solar, visando justamente atender a demanda por uma atividade ambien- talmente consciente. Assim, o remédio para a crise ambiental não consiste no abandono dos recursos tecnológicos modernos, mas a sua adaptação para um novo uso e uma nova finalidade, que inclui uma relação mais harmoniosa com o meio ambiente. O sentido de tal adaptação consiste, portanto, não na recusa de uma maior produtividade, mas no equilíbrio entre produção e boas práticas ambientais. Essa busca de equilíbrio revela o aparecimento de uma nova consciência, que preze mais pela integração entre homem e natureza – em vez de uma separação e hierarquização radical. E essa mudança tem ganhado cada vez mais força, como veremos no decorrer deste livro. Conclusão As visões de mundo dominantes numa dada época legitimam e possi- bilitam as transformações sociais levadas a cabo na vida humana prática. Vimos que a cosmovisão moderna afirmou uma clara e radical separação e hierarquização entre homem e natureza. Enquanto a separação entre socie- dade e natureza é bastante antiga, a Modernidade capitalista, juntamente com os sistemas de conhecimento associados à sua emergência, tornou mais aguda essa separação, estabelecendo tendências a uma ruptura e hie- rarquização radical. Foi isso que tornou possível o desenvolvimento tec- nológico espetacular que a Modernidade experimentou ao longo de sua história, e especialmente a partir do século XVIII, com a Revolução Indus- trial. Mas essa concepção moderna de homem e de natureza não prezava por uma relação harmoniosa entre os dois termos. Em vez disso, ela aca- bou se degenerando em uma relação de caráter cada vez mais predatório. Foi somente a partir de meados do século XX que uma nova concepção de homem e de natureza vem surgindo, fruto de uma sensação crescente de crise e uma busca por solucionar esse problema. Veremos ao longo do livro que isso impactou também a historiografia, que tem cada vez mais se atentado para o problema da relação homem e natureza. História e Meio Ambiente – 32 – Glossário 2 Modernidade – no contexto deste livro, o termo Modernidade faz referência ao período da história que se iniciou ao redor do século XV e XVI, que estabeleceu uma nova visão de mundo (ver Cosmovisão) que representou uma ruptura com a tradição herdada e pregava a autonomia do homem e da razão. 2 Cosmovisão – visão de mundo, o modo como um indivíduo ou uma cultura compreende a si mesmo e o mundo ao seu redor. A base dos valores, conceitos e perspectivas sobre a existência. 2 Humanismo Renascentista – movimento intelectual que surgiu na Europa durante o Renascimento entre os séculos XIV e XVI, que propunha uma visão de mundo antropocêntrica (homem no centro), em contraste com o teocentrismo (Deus no centro) do homem medieval. 2 Ontológico – relativo à ontologia, ramo da filosofia que estuda o ser das coisas. O termo também é usado para indicar a dimensão mais profunda da existência, significado o que é mais profundo e mais fundamental. 2 Antigo Regime – essa expressão designa tradicionalmente as estruturas políticas (absolutismo), econômicas (mercantilismo) e sociais (divisão estamental) que vigorou na Europa entre os séculos XVI a XVIII. 2 Ulterior – posterior. 2 PIB – sigla para “Produto Interno Bruto”, que representa a soma de todos os bens e serviços produzidos numa determinada região durante um período (geralmente um ano). É um dos indicadores mais importantes em economia, e serve para quantificar a ativi- dade econômica de uma região (um país, por exemplo). 2 Movimentos ambientalistas – indica o conjunto de correntes de pensamento e movimentos sociais que trazem como priori- dade a defesa do meio ambiente, reivindicando medidas de pro- teção e uma ampla mudança nos hábitos e nas concepções sobre a natureza. – 33 – Tensões e limites entre natureza e cultura 2 Escamoteado – escondido, deixado em segundo plano, fazer desaparecer alguma coisa. Atividades 1. Caracterize a maneira como a civilização moderna compreendeu a relação entre natureza e cultura, destacando as suas formula- ções filosóficas mais importantes. 2. Relacione a visão moderna sobre a relação natureza e cultura e o desenvolvimento tecnológico acelerado verificado nesse período. 3. Reveja as imagens 1.6 e 1.7. Relacione as imagens considerando o tema tratado ao longo deste capítulo. 4. Releia a citação em destaque do pesquisador Mauro Tereso. Interprete essa passagem considerando o conteúdo tratado ao longo deste capítulo. Saiba mais A crítica do paradigma moderno em opor e hierarquizar cultura e natu- reza tem sido feita também no campo da antropologia. É importante destacar o trabalho de Eduardo Viveiros de Castro e sua teoria sobre o “perspectivismo ameríndio”, que busca descrever a visão amerín- dia sobre o mundo fora desse paradigma moderno. Segundo Viveiros de Castro, reconhecido internacionalmente por sua teoria, existia no continente americano antes da colonização europeia uma cosmovi- são dominante que se baseava justamente na vinculação radical entre cultura e natureza. Para a visão ameríndia sobre o mundo e a existên- cia, o humano não era um ser especial e superior aos outros animais. Estes últimos também teriam uma consciência e uma cultura, uma “alma” semelhante à dos humanos. E mais ainda: cada uma das dife- rentes espécies veem a si mesmas como “humanas”, e todas as outras (incluindo nós mesmos) comonão humanas. Explicando: do ponto de vista de nossa própria espécie, somos “humanos”; o “javali” é uma presa e a “onça” é um potencial predador. Mas do ponto de vista da “onça”, tudo se altera: é ela (a onça) que se vê como “humana”, e nós História e Meio Ambiente – 34 – somos vistos como “javalis” por sermos uma presa dela. Pode parecer estranho para nós modernos, mas essa cosmovisão ameríndia teste- munha que a oposição e hierarquização entre natureza e cultura não é algo “universal”, ou seja, aplicável a todas as civilizações e épocas. O mundo ameríndio é um exemplo claro disso. A partir da visão pers- pectivista sobre o mundo, os ameríndios estabeleciam relações de reciprocidade com a natureza, incluindo formas de conhecimento e saberes técnicos adaptados a sua própria cosmovisão. Para conhecer mais sobre a teoria do perspectivismo ameríndio, veja a relação de textos introdutórios nas referências. 2 Os muitos tempos da natureza Para pensar as relações entre história e meio ambiente, não podemos deixar de considerar o fator tempo. O tempo é uma matéria-prima básica de todo conhecimento histórico. E assim como o ser humano é sempre condicionado pelo seu ambiente, o mesmo pode ser dito sobre a sua condição temporal. Mas o modo como as sociedades interpretaram e atribuíram sentidos à experi- ência do tempo variou historicamente, assim como acontece com o caso da natureza e sua relação com a cultura. Veremos neste capítulo que as concepções sobre o tempo refletem e repercutem no modo como as sociedades concebem a natureza. Visando este objetivo, o capítulo está dividido em quatro seções. Primeiro, tra- taremos das duas formas principais de representação do tempo: o círculo e a linha. Isso nos servirá como guia para caracterizar a visão sobre o tempo que se tornou dominante durante a época Moderna, e que culminou na cunhagem do conceito e da ideolo- gia do progresso. A segunda seção busca caracterizar o tempo do progresso e contrastá-la com o paradigma da sustentabilidade, que ganhou força a partir da segunda metade do século XX. Na terceira seção, será feito uma análise de um documento histórico, História e Meio Ambiente – 36 – o relatório Nosso Futuro Comum, que teve importância crucial na pro- posição do conceito de desenvolvimento sustentável. Na quarta e última seção, levantaremos algumas problematizações a respeito do conceito de desenvolvimento sustentável, considerando exemplos de greenwashing – ou seja, uma estratégia de marketing que muitas empresas têm empregado para tentar passar uma imagem de que seus produtos são ambientalmente responsáveis, muito embora isso nem sempre corresponda à verdade. 2.1 Tempo e natureza: o círculo e a linha Vimos que a ideia e a relação que as sociedades humanas mantive- ram com a natureza variou historicamente segundo as épocas e os luga- res. O mesmo acontece com a noção de tempo. Por mais estranho que possa parecer à primeira vista, a noção de tempo que atualmente vige em nossa contemporaneidade não é de modo algum unívoca ou “universal”. O tempo é, sem dúvida, um fenômeno que permeia e condiciona a exis- tência, mas a concepção ou interpretação que fazemos sobre tal condi- cionamento variou historicamente e, mesmo atualmente, é tema de muita controvérsia e disputa. É possível, portanto, traçar um paralelo com o que dissemos no capítulo anterior. Dizer que o ser humano sempre existe na natureza e no tempo é, sim, apontar para uma característica com validade universal, pois fora desses dois condicionamentos, o próprio ser humano não seria nem mesmo possível. Mas o modo como os homens e as mulheres ela- boraram sentidos e significados quanto a essas dimensões fundamentais, isto sim, variou bastante ao longo da história, seja no âmbito interno da história de uma sociedade, seja ainda na comparação com outras cultu- ras, lugares e períodos. Ao longo deste capítulo, continuaremos dando maior destaque para a configuração que a Modernidade construiu sobre o fator tempo. Mas, para tanto, é preciso estabelecer alguns parâmetros de comparação com outras cosmovisões, de maneira a tornar mais nítido o que estamos discutindo aqui. Cada sociedade cria e adota formas de contagem e representação sobre o tempo, e em torno delas as diversas atividades sociais são orga- – 37 – Os muitos tempos da natureza nizadas. Uma das formas de analisar essas diferenças históricas sobre o fenômeno temporal consiste em identificar duas concepções: cíclica e linear. Parte significativa do debate contemporâneo sobre o tempo passa por considerar as relações entre esses dois modelos de tempo. Figura 2.1 – Representações do tempo segundo as formas geométricas do círculo e da linha Fonte: elaborada pelos autores. Antes de iniciar nossa exposição sobre o tema, é importante esclare- cer que nosso objetivo não é desenvolver uma reflexão teórica mais densa sobre o tempo em geral. Nosso propósito é, sobretudo, compreender que a forma de cada sociedade e cultura lidar e conceber o tempo reflete e reper- cute na maneira como essa mesma sociedade lida e concebe a sua relação com a natureza. Portanto, não precisaremos adentrar tão profundamente nas nuances que envolvem a discussão sobre o tempo, mas apenas traçar alguns apontamentos que possam contribuir para o nosso propósito. Na literatura especializada sobre a história da ideia de tempo, muitos autores consideram que as sociedades modernas construíram uma repre- sentação sobre o tempo que as distinguem profundamente das demais culturas e civilizações. Afinal, o sentimento do tempo nessas sociedades guarda pouca relação com a das outras épocas. Essa diferença pode ser primeiramente analisada a partir da distinção entre o tempo cíclico e o tempo linear. História e Meio Ambiente – 38 – Nas sociedades ditas “primitivas” ou “arcaicas”, pré-modernas, o tempo não era percebido como um plano de coordenadas neutras, mas como uma força poderosa e misteriosa que rege todas as coisas. Nessa forma de consciência do tempo, predominava uma forte carga afetiva e sensível: o tempo pode ser bom ou mau, oportuno ou desfavorável a deter- minadas atividades. Havia o tempo da festa, do sacrifício e do ritual, cujo propósito maior era estabelecer um retorno às “origens”. Assim, apenas o passado e o futuro mais próximos eram dignos de consideração; para além desses limites, os eventos mais distantes eram percebidos de modo muito mais vago, pertencendo já ao domínio das lendas e dos mitos. Em tais sociedades primitivas, portanto, o tempo não era visto como um plano de coordenadas neutras que se desenrolam do passado ao futuro, como uma linha. Em vez disso, predominava nessas sociedades uma con- cepção cíclica do tempo, pois aquilo que já ocorreu sempre retorna em inter- valos determinados. Para Gourevitch, um importante estudioso do assunto: Essa concepção cíclica da [percepção] do tempo, que encontra- mos também muito mais tarde numa forma renovada e em sistemas sociais muito mais evoluídos, está em grande parte ligada ao fato de que o homem não se desligou da natureza e sua consciência se subordinou às transformações periódicas das estações (GOURE- VITCH, 1975, p. 265-266). O ritmo da vida social nas culturas antigas dependia fundamental- mente dos ciclos naturais, como bem demonstra o exemplo da alternância das estações e as etapas da produção que lhes são adaptados. Não apenas a sequência das estações é a mesma; o mais importante é que tal sequência sempre retorna ou repete, infinitamente. No Egito Antigo, por exemplo, o Rio Nilo era também utilizado como referência para medir e calcular o tempo, considerando o seu regime cíclico de cheias e vazões. A percepção do tempo presente nessas sociedades está indissociavelmente ligada aos processos e fatos naturais. O mesmo valepara a sequência dos dias e das noites, que obedece a mesma estrutura de um eterno retorno, um conceito que designa a imagem circular do sentido do tempo. Essa imagem do “eterno retorno” sintetiza a representação cíclica, pois no círculo não há um começo e um fim absolutos, indicando que – 39 – Os muitos tempos da natureza tudo o que acontece agora um dia já ocorreu antes e voltará a ocorrer depois. Assim, mais do que indicar a mudança e a transitoriedade das coi- sas, a representação circular do tempo privilegia a repetição e a perma- nência. Dessa forma, em tais sociedades primitivas torna-se notoriamente repreensível qualquer atitude inovadora. Introduzir alguma novidade no mundo poderia significar uma ameaça à integridade da existência, que busca sempre conectar-se com as suas “origens” – ou seja, os deuses e a natureza divinizada. Isso significa que essas sociedades em que predomina o tempo cíclico apresentam possibilidades de modificação bastante limita- das, pois a mudança tende a significar uma degradação do mundo original (incluindo o próprio homem). O eterno retorno consiste, portanto, em um modo de consciência do tempo em que prevalece a sua imagem como um círculo – que não apre- senta um início e um fim absoluto. O círculo indica que cada instante do tempo retornará e é ela mesma é uma repetição, sendo este o sentido fun- damental do tempo. Essa ideia surgiu justamente da percepção dos fatos e processos naturais, como representam os exemplos já citados da alternân- cia das estações e dos dias e noites. Nesse sentido, o tempo é um reflexo dos processos do mundo natural, que obedecem a uma ordem eterna e constante. E o homem, enquanto um ser indissociavelmente ligado à natu- reza, encontra-se também incluído nessa mesma ordem temporal/natu- ral. Assim, traduzindo os fenômenos da natureza em termos temporais, o resultado é uma forma de conceber e representar o tempo que é melhor sintetizada como um círculo. Há vários indícios históricos que sustentam essa nossa reflexão. Por exemplo, os instrumentos que essas sociedades “primitivas” desenvolve- ram para contar o tempo, como o relógio solar e o calendário. Apenas para reforçar o que já vimos no capítulo anterior: esses instrumentos, por mais “rudimentares” que possam parecer aos olhos de hoje, não deixam de ser uma forma de tecnologia construída para lidar (e contar) com o tempo. Podemos perceber que ambos os instrumentos apresentam, por um lado, uma estrutura claramente circular, e por outro, buscam dar conta do ritmo da vida natural: no caso do relógio são os dias e as noites, e no caso dos calendários, as estações do ano. História e Meio Ambiente – 40 – Figura 2.2 – Exemplo de um calendário indígena Fonte: Suyli (1996). Acompanhando a passagem do sol a partir de sua sombra para contar as horas, e medindo a sua posição no céu para saber se era o tempo certo da semeadura ou da colheita, os seres humanos cons- truíram uma compreensão sobre o tempo profunda e indissociavel- mente ligada aos ritmos da natu- reza, do qual ele necessariamente faz parte também. O tempo cíclico tem, portanto, a sua “evidência” no mundo natural, não se tratando, portanto, de uma abstração vazia. Passemos então para a repre- sentação linear sobre o tempo. Fonte: Universidade de Basel (2014). Figura 2.3 – Relógio solar egípcio, o mais antigo já encontrado pelos arqueólogos – 41 – Os muitos tempos da natureza Esta, ao contrário do eterno retorno, compreende o tempo como um fluxo com início e fim absolutos. Muitos estudiosos, dentre os quais o mesmo Gourevitch, identificam a origem dessa concepção de tempo na tradição judaico-cristã, que afirmou a criação do mundo (como está no Livro do Gênesis) e o fim do mundo (o Juízo Final) como dois momentos separados e distintos do tempo. O tempo consiste nessa linha que vai de um ponto ao outro, e tudo que escapa dessa linha consiste em um “fora do tempo”, ou seja, na eternidade de Deus. O tempo cristão é, portanto, o tempo linear em que se dá a sucessão dos fatos e acontecimentos. Esse tempo obedece a uma ordem fixa, indo do passado ao futuro, do Gênesis ao Juízo Final. O tempo linear também encontra suas “evidências” no mundo natu- ral. Por exemplo, minha existência individual está sempre circunscrita no espaço entre meu nascimento e minha morte, o mesmo acontecendo com todos os demais seres vivos. A descrença na reencarnação dos humanos impede que o nascer e o morrer sejam vistos como acontecimentos que voltarão a se repetir para a mesma alma. Nessa perspectiva, portanto, existem origens e fins absolutos, e o tempo deve obedecer a essa mesma “arquitetura”. Ao contrário do círculo, que não distingue o início do final, o tempo assim concebido se apresenta como uma linha, em cuja extensão se dá todos os acontecimentos da vida humana e natural. Este último ponto é importante para esclarecer que seria um erro pen- sar que, onde existe o tempo cíclico, não poderia haver o tempo linear. Essas representações do tempo não são necessariamente autoexcludentes. Por um lado, nas sociedades contemporâneas ainda utilizamos os instrumentos de feição cíclica, como os relógios e calendários. Também utilizamos certas expressões como “ciclos econômicos”, para designar uma experiência do tempo circular. Por outro lado, mesmo nas sociedades ditas “primitivas”, a experiência da vida fornecia elementos que lhes permitiam elucidar a suces- são e a separação dos tempos, como demonstra a consciência de sequên- cia de gerações (os antepassados, contemporâneos e descendentes). Assim, ambas as formas de representar o tempo coexistem, porém em graus varia- dos, sendo que uma acaba predominando e subordinando a outra. Ao longo de toda a Antiguidade Tardia e da Idade Média, a represen- tação linear/cristã do tempo foi se tornando cada vez mais dominante. O História e Meio Ambiente – 42 – que dizer, então, do caso da modernidade? Claramente foi a representação linear que acabou predominando, visto que a cosmovisão moderna é em larga medida herdeira da tradição judaico-cristã. Mas a modernidade não apenas recebeu passivamente essa herança, visto que ela introduziu novos sentidos – e que ainda hoje está aberto e a pleno vapor, como veremos mais adiante com o debate entre os conceitos de progresso e de sustentabilidade. Vale a pena começar lembrando que o próprio termo “moderno” tem como um de seus significados originais o “novo” e a “novidade”. Em vez de considerar como mais importante a permanência e a continuidade, a visão de mundo moderna valoriza a mudança e a inovação. Ir à busca da novidade é o que caracteriza o espírito moderno. E isso vale tanto para o plano do pensamento científico e filosófico, como também para o plano prático da vida material – como demonstra de maneira cristalina o avanço tecnológico que discutimos no capítulo anterior. A valorização da inovação significa também a centralidade do “homem”, pois é ele o verdadeiro sujeito da mudança, ou seja, somente ele é capaz de intervir no mundo para introduzir o novo e abrir caminho para a sua própria realização. O mundo natural, por outro lado, não pode- ria introduzir o novo por si mesmo, já que ele seria, segundo essa mesma cosmovisão moderna, um ser destituído de consciência e agência própria. Somente ao homem cabe essa propriedade de interferir e modificar o fluxo das coisas e, em princípio, nada o impediria de agir nessa direção. A natu- reza torna-se, também nesse sentido, uma mera paisagem passiva, a partir da qual o ser humano pode realizar a sua intervenção transformadora, sem reconhecer nela (ou seja, na natureza) qualquer limite legítimo. O tempo linear, ao contrário da visão anteriormente discutida, afirma a irrepetibilidade dos acontecimentos: o que se dá agora já é passado e assim permanecerá. O passadonão volta a acontecer, e o futuro é o espaço da imprevisibilidade e indeterminação. O futuro é diferente do passado. E é esse futuro que a humanidade deve se direcionar, pois nele reside a promessa de maior liberdade, riqueza e felicidade. Introduzir o novo significa, assim, acelerar o caminho rumo a esse futuro almejado. A valorização moderna da inovação consiste, em termos temporais, nesse desejo de encurtar a distân- cia entre presente e futuro, ou seja, a vontade de antecipar a chegada de um futuro necessariamente melhor e evoluído em relação ao presente. – 43 – Os muitos tempos da natureza Essas concepções de mundo e de tempo foram sendo construído ao longo de séculos, até resultarem no conceito de progresso, que só sur- giu durante o século XVIII com os pensadores iluministas. Desde então, o conceito difundiu-se e popularizou-se, tornando-se uma ideologia que pretendia explicar todos os aspectos da vida. Contudo, a ideologia do pro- gresso tem sido confrontada, sobretudo a partir de meados do século XX, com o conceito de sustentabilidade. Veremos na próxima seção os signifi- cados que envolvem essa questão e suas implicações para a relação entre tempo e natureza. 2.2 Progresso e sustentabilidade: duas visões concorrentes sobre tempo e natureza Assim como acontece como todos os conceitos relativos ao tempo, a ideia de progresso também encontrou base concreta na experiência his- tórica concreta. Com o conceito de progresso, o tempo linear não apenas reforça o seu sentido unidirecional (ascendente e evolutivo), como tam- bém esse sentido passou a ser secularizado, ou seja, o futuro de realização plena não é projetado no plano divino, mas no próprio mundo terreno. A perfeição poderia ser atingida pelo homem, graças à sua capacidade racio- nal única entre os demais seres. É essa capacidade racional que impele e autoriza o homem a se aperfeiçoar cada vez mais, garantindo-lhe assim um futuro sempre e necessariamente melhor. Para tanto, a natureza não desempenha nenhum papel autônomo de maior relevância, a não ser como fonte inerte de recursos. Talvez o maior exemplo seja o caso da evolução da técnica e da ciên- cia. Afinal, dificilmente podemos dizer que entre a Idade Média e a nossa atualidade, por exemplo, não houve realmente progressos e avanços tec- nológicos muito significativos. Como não dizer que entre os conhecimen- tos sobre a física não progrediram antes e depois de Newton? Ou que não há efetivamente um progresso técnico entre uma caravela do século XV e um navio a vapor do século XIX? O mesmo vale para muitos outros aspectos da vida humana, incluindo os meios de comunicação, a produção de energia, manipulação de materiais, a passagem das oficinas artesanais para as máquinas a vapor, etc. História e Meio Ambiente – 44 – Em todos esses casos, o conceito de progresso aplica-se de maneira bastante adequada. Ao longo da modernidade, seu campo de abrangência foi sendo cada vez mais ampliado e generalizando. De um conceito loca- lizado, o termo acabou abarcando toda uma visão de mundo, tornando-se uma ideologia cada vez mais difundida e influente. A ideia de progresso foi introduzida inclusive no domínio da natureza. O maior exemplo disso foi o surgimento da teoria evolucionista de Charles Darwin no final do século XIX. Esse célebre naturalista causou um verdadeiro terremoto nas concepções de mundo de sua época, ao propor que todos os seres vivos passam por um lento, mas constante processo de aperfeiçoamento pelo processo de “seleção natural”. Isso explicaria, segundo Darwin, o sur- gimento das diferentes espécies em um contínuo movimento evolutivo. Assim, o sentido temporal do processo de seleção natural aparece como uma linha ascendente, cujo sentido (direção e significado) é apresentado em termos de evolução, ou seja, de adaptação ao ambiente e “melhora- mento” da espécie, através do maior sucesso dos indivíduos melhor adap- tados ao ambiente ao longo da competição pela vida. O impacto das teorias darwinistas sobre a origem e evolução das espécies causou impactos profun- dos e duradou- ros, e ainda hoje é tema de calorosos debates. Podemos exemplificar isso com a ilustração a seguir, bastante conhecida e popu- larizada. Até hoje, ela serve como mote para muitos memes de internet! Ela foi criada origi- nalmente em 1965, e se intitula justa- Figura 2.4 – A ilustração original de A Marcha do Progresso, publicado em 1965 na revista Early Man e autoria de Rudolph Zallinger Fonte: Zallinger (1965). – 45 – Os muitos tempos da natureza mente The March of Progress, que em português significa literalmente “A Marcha do Progresso”. A intenção da imagem é justamente denotar que a evolução da espécie humana obedece a um sentido temporal progressivo. O evolucionismo significou, portanto, a introdução do tempo pro- gressivo na interpretação científica do mundo natural. Isso representou uma grande ruptura com as doutrinas anteriores, e trouxe implicações fun- damentais para o nosso entendimento sobre a natureza. Em outras pala- vras, a teoria evolucionista enxertou a imagem do tempo linear, unidire- cional e progressivo já na esfera do mundo biológico, submetendo a essa ordem do tempo os demais aspectos da vida natural que sugerem uma concepção cíclica. Dessa forma, opera-se uma espécie de inversão, uma vez que o tempo da natureza fora tradicionalmente representado por um círculo, como vimos antes. Assim, se nas sociedades “primitivas” ou “arcaicas” o tempo cíclico era predominante graças à vinculação íntima do homem com a natureza, na modernidade a progressiva separação e hierarquização entre ambos foi acompanhada pela afirmação do primado do tempo linear. A introdução da categoria “progresso” adicionou elementos importantes, pois o sujeito fundamental desse tempo progressivo é o “homem”, o único ser capaz de inserir voluntaria e conscientemente a novidade e, assim, acelerar o fluxo do “tempo natural” em direção ao futuro. Se a vida natural também está envolvida por um tempo de evolução, seu ritmo é demasiadamente lento, quase imperceptível. Só o homem pode agir no sentido de acelerar esse desenvolvimento evolutivo, e ele deve fazê-lo para e por si mesmo. Anteriormente vimos que essa cosmovisão moderna forneceu as bases para o enorme e cada vez mais acelerado progresso tecno-científico, mas também significou uma relação destrutiva e predatória com a natu- reza, que a nossa contemporaneidade tem sentido os reflexos e tomado cada vez mais consciência de ser um problema sério. Em suas origens modernas, o tempo progressivo não encontra na natureza nenhum limite ético significativo, na medida em que ele não reconhece a importância de “desacelerar” a intervenção humana no mundo para preservar o meio ambiente de modo a garanti-lo para as próximas gerações. O desenvol- vimento tecnológico, justificado como um fim em si mesmo, ampliou de História e Meio Ambiente – 46 – maneira espetacular a capacidade de a ação humana intervir e modificar os ciclos da natureza. Com a expansão cada vez maior da ideologia do progresso, a natureza foi sendo reduzida a um espaço passivo e inerte, uma simples fonte de recursos disponível ao homem em sua “liberdade” e “racionalidade”. A linha temporal do progresso sobrepujava, assim, o tempo cíclico dos processos naturais. Essa visão de mundo sintetizada pela categoria do progresso signi- fica muito mais do que um conjunto de ideias abstratas. Ela repercutiu de maneira decisiva na realidade histórica concreta. Por exemplo, o conceito de desenvolvimento econômico que resulta dessa visão de mundo não considera o limite ambiental como uma variável relevante, mas orienta-se apenas para a satisfação e a transcendência das necessidades materiais presentes. O desenvolvimento econômico, sobretudo a partir da década de
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