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HUBERTO ROHDEN ISIS HISTÓRIA DE UM ESTADO COSMOCRÁTICO DA INSETOLÂNDIA CONTADA POR ALGUNS DE SEUS HABITANTES UNIVERSALISMO Sumário Advertência Leitor Amigo Prefácio para a Segunda Edição Isis e sua Gente Sintonizando os Nervos A Infância de Iris Mortandade, Revolução e Protestos Surge uma Cidade Cor de Neve 50.000 Virgens Heróicas Êxodo Rumo a Mundos Ignotos Vôo Nupcial. Amor Mortífero Encontro com um Parente Antipático Elixir de Vida e Juventude O que Zumbeca Disse a Isis A História Trágica de Momuca O que Isis me Disse sobre Cosmocracia e como Adormeceu para Sempre Advertência A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, porque deturpa o pensamento. Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição de uma existência para outra existência. O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer convenções acadêmicas. Leitor Amigo O que vais ler nas seguintes páginas é objetivamente exato e real. Apenas a forma romanceada é aditamento do autor. A Natureza é um grande livro que Deus desdobrou aos olhos do homem, para que o lesse, interpretasse e compreendesse. No estágio atual da sua evolução, o homem, em geral, considera a Natureza simplesmente como objeto de exploração e proveito individual. O homem espiritualmente adulto, porém, sabe que a Natureza é infinitamente mais do que isto. Sabe que ela é um grande Símbolo, cujo Simbolizado só se desvenda ao homem na razão direta que ele se identifica com o Autor da Natureza. Para o homem profano, os seres da Natureza são como as letras, maiúsculas e minúsculas, de um livro aberto ante os olhos de um analfabeto: o que ele vê não passa de um caos de caracteres de formas várias, enigmáticas, sem nexo nem sentido. O homem espiritual, porém, o verdadeiro iniciado, deixou de ser analfabeto e lê deliciosamente as grandes verdades veiculadas pelas letras, pequenas e grandes, de todos os seres da Natureza; para ele, o mundo deixou de ser opaco e se tornou cristalinamente transparente, e, através dos símbolos materiais, o iniciado percebe espontaneamente o simbolizado espiritual. Para o homem espiritual, a Natureza é um grande devocionário, através do qual ele presta o seu culto a Deus, de mãos dadas com seus irmãos e suas irmãs menores, na linguagem poética e profundamente verdadeira de um dos mais avançados leitores desse grande livro, Francisco de Assis. Leitor amigo. Conhece e ama o Deus do mundo – e conhecerás e amarás o mundo de Deus! Prefácio para a Segunda Edição O Dr. Warwick Estevam Kerr, uma das maiores autoridades científicas em apiologia que o Brasil conhece, formado em genética pela Universidade de São Paulo, após receber um exemplar da primeira edição deste livro, escreveu “ao poeta das abelhas” uma carta, da qual extrai os seguintes tópicos: “Comecei a ler Isis às 19 horas e 30 minutos, e só larguei quando cheguei àquelas três letrinhas da página 136 (fim). Achei o livro maravilhoso, cheio de ternura, linguagem elegante e leve, e sem dúvida está contribuindo decisivamente para despertar nos brasileiros um maior interesse na observação das nossas abelhinhas. Está, pois, o prezado Professor Rohden de parabéns pela excelente obra que produziu. Aliás, eu não esperava outra coisa de quem escreveu “Pascal”, “Agostinho” e traduziu “O Novo Testamento”. Como a aceitação de Isis deve ser muito grande, penso que o senhor, dentro de pouco tempo, terá de fazer uma nova edição. Pensando assim, e sabedor de que o senhor é pessoa muito acessível, resolvi enviar-lhe algumas sugestões para a sua próxima edição. As sugestões são todas de molde a corrigir algumas idéias, para que o livro, que é uma perfeição literária, seja também uma perfeição científica. Escusado é dizer que prazerosamente aceitei e aproveitei para a presente edição todas as sugestões do grande mestre. Além do mais, surgem, de ano a ano, tantas novidades e descobertas no terreno da apicultura, que um livro como este tem de ser constantemente adaptado. Ao insigne mestre e distinto amigo, meus cordiais agradecimentos. A abelha é de todos os insetos o mais estudado pela ciência internacional. Existe imensa literatura, em todas as línguas, sobre a simpática Apis mellifera. Periodicamente, se realizam congressos, nacionais e internacionais, sobre este inseto. Em 1969, durante toda a primeira semana de agosto, assisti ao 22.º Congresso Internacional de Apicultura, realizado em Munique, Alemanha, onde 3.500 apicultores e cientistas, representando 40 países, focalizavam, sob todos os aspectos, esse maravilhoso himenóptero. O alarme em torno da abelha africana, que, desde 1956, intimidava os nossos apicultores, já cedeu a um novo surto de euforia e de entusiasmo, pelo menos entre os apicultores, que já fizeram as pazes com a agressiva e tão produtiva abelha africana ou africanizada. Ultimamente, a Apis mellifera foi novamente focalizada em todos os países do mundo, por causa da misteriosa “geléia real”, certamente o maior vitalizador que a natureza já produziu. Infelizmente, mercadores sem escrúpulos, desacreditam grandemente a geléia real, como também o próprio mel, que estão sofrendo as mais vergonhosas falsificações. Paralelamente à geléia real, também o “mel polinizado” está entrando na alimentação do homem. O pólen é o pozinho que as abelhas retiram dos estames das flores e usam para alimentar a sua prole. Recolhidos dos favos e misturados devidamente com o mel, representa o “mel polinizado” uma grande fonte de saúde e energia na dieta natural do homem. Quaisquer informações a esse respeito podem ser obtidas com a Editora deste livro. Isis e sua Gente – Arrede, arrede! – Quem é? que há? – Arrede! se não, apanha uma ferroada! Olhei em derredor e vi um pontinho preto a traçar rápidos círculos ao redor da minha cabeça e brandindo furiosamente o venenoso dardo. Recuei alguns passos da colmeia; mas o audaz agressor continuou a perseguir-me com tenacidade. Por fim, atirou-se duas vezes contra meu rosto, no manifesto intuito de me cravar na pele a terrível arma. – Não faça isto! não faça isto! – bradei-lhe em tom sugestivo, ao que o miúdo inseto foi pousar em uma folha de laranjeira próxima, olhou para mim, algo perplexo, e disse com desdém: – É isto mesmo... São covardes, esses gigantes... – Covarde, não, minha amiga – respondi amavelmente. – Não tenho medo do seu ferrão, mas tenho pena de você... – Pena de mim?... não vejo por quê... – Sim, tenho pena de você, abelhinha estouvada. Se você me der uma ferroada terá de morrer. – Qual, morrer! aquilo é num instante. Você não seria capaz de me esmagar tão depressa... – Não é isto, abelhinha. Eu não ia matá-la por causa de uma ferroada, nem que fossem dez. Sou amigo do povo das abelhas, que considero os insetos mais inteligentes e simpáticos do mundo. Mas você teria de morrer por causa da ferroada mesma... – Ora, ora!... Já dei tanta ferroada, e não morri até hoje. Há pouco, uma lesma gosmenta, atrevida como essas creaturas são por natureza, invadiu a nossa cidade: apesar dos veementesprotestos da sentinela, e tivemos de matá-la a ferroadas. No décimo dia da minha vida entrei em luta com uma vespa malandra que vinha roubar o nosso mel. Apesar de armada também ela, morreu com uma tremenda ferroada que lhe dei entre os anéis do abdômen. – Mas... eu não sou lesma nem vespa, minha valente abelhinha. Lesmas e insetos não têm pele elástica como nós. Do corpo deles pode você sem dificuldade retirar o seu arpéu; da nossa pele, não, porque é dilatável, e lhe trava a arma, que se arranca do seu corpo levando consigo parte das vísceras – e você morre do ferimento... A abelha olhou-me, um tanto incrédula, com aqueles dois lindos hemisférios de olhos facetados, e, mudando o timbre da voz, disse: – Meu nome é Isis, da raça das abelhas caucásicas. – Isis, que belo nome! – exclamei fazendo também a minha apresentação. – E de raça caucásica? pelo nome, eu diria que fosse egípcia. – Os meus antepassados, pelo que consta dos anais do nosso povo, eram naturais do Cáucaso. Eu sou brasileira. Mas há quem diga que não somos de puro sangue caucásico. Estes três anéis dourados do meu corpo vieram de outra parte. – Pelo que entendo da sua raça, acho que seus lindos anéis dourados lhe vieram da Europa, talvez da Itália. Isis deu um giro completo sobre a folha da laranjeira, alongando e encurtando o elegante abdome para que eu pudesse ver os anéis amarelados de que falava e de que parecia muito orgulhosa. Depois, com certa faceirice, acrescentou: – Quem sabe se estes anéis não vieram do Egito?... – É bem possível. Até no interior de uma das velhas pirâmides foram encontrados vestígios de uma casa de abelhas, de tipo diferente das que hoje conhecemos; possivelmente, seus antepassados... – Se construíram uma cidade no vão de uma daquelas pedras, não devem ser de raça muito antiga. Talvez algumas centenas de milhares de primaveras... – Por quê? – Porque, em tempos antigos, nós não costumávamos morar no oco de pedras ou árvores, como hoje em dia. – Onde é que moravam? – Suspendíamos a nossa casinha debaixo de algum galho, como usam até hoje os nossos primos, os marimbondos. Isis proferiu baixinho estas últimas palavras, e percebi que se arrependia de ter chamado “primos” os marimbondos, porque essa raça de himenópteros é geralmente detestada como bandidos e creaturas sem consciência, embora, cá entre nós, eles tenham uma função importante para a lavoura. Fiz que não tinha percebido a desairosa referência, e perguntei. – Como? vocês suspendiam a sua colmeia debaixo de um galho? – A nossa colmeia, não; a nossa casinha. Nesses tempos remotos, fabricávamos apenas uma chapinha horizontal, com células na parte inferior, presa num galho por uma haste de resina solidificada. Sobrevieram, porém, grandes frios a todo o mundo, e fomos obrigadas a refugiar-nos no oco das árvores e das pedras, para escaparmos à morte. Nesse tempo horrível, como ouvi contar, havia flores só durante umas poucas dezenas de sóis, e logo voltava o longo período de neve e gelo. No breve tempo de calor éramos obrigadas a recolher a maior quantidade possível de néctar e pólen para ter o que comer no tempo do frio, provisão para as nossas irmãzinhas e para nós mesmas. Foi nesses tempos que transformamos a nossa primitiva casinha de chapa horizontal em vastos celeiros e armazéns de provisões. Nossa mãe resolveu também multiplicar o número de filhas, porque havia muitos berços vazios à espera de nenês. Era necessário esse grande número de abelhas para que houvesse operárias no tempo das flores. Mais tarde, quando os tempos melhoraram, conservamos o costume de construir as nossas casas no interior das árvores e das pedras. É mais seguro, assim. Esse mundo está cheio de ladrões e salteadores que andam à procura dos nossos celeiros. Assim, escondidinhos, e só com uma pequena entrada, é mais fácil defender os nossos castelos, não acha você? – Se acho, Isis! Ouvi até dizer que vocês têm sentinelas especiais que, dia e noite, ficam de plantão à entrada do castelo, é verdade? – Naturalmente. Eu mesma, quando nova, fiz parte dessa sentinela. Foi nesse tempo que matei aquela vespa e ajudei a dar cabo da lesma. – Quando nova? e você é velha agora? – Estou com vinte e cinco sóis. – E quanto tempo espera vi ver ainda? – Outro tanto. – Só? – Nós, as operárias, vivemos uns quarenta a cinquenta sóis, se tanto. – Apenas quarenta a cinquenta dias? – É quanto chega. Cada dia, em tempos nomais, nascem milhares de irmãzinhas, que nos vêm substituir no trabalho. – No trabalho? quer dizer que vocês só vivem para o trabalho? – O nosso grande prazer é trabalhar. Vivemos do trabalho e para o trabalho – e morremos também de trabalho... – Para que é que trabalham? – Para a nação. Para a rainha, para as irmãzinhas, para todos os que fazem parte da nossa cidade, hoje, amanhã, para todo o futuro... – E não trabalham para si mesmas? – A grande Inteligência da Natureza sabe o que faz. Obedecemos às suas leis. É a nossa grande felicidade. Nisto passou perto de nós outra abelha, traçou dois círculos sobre a cabeça de Isis, ao que esta, com um gentil “desculpe”, levantou vôo e desapareceu no espaço. Sintonizando os Nervos Depois da inesperada partida de Isis, fiquei-me a observar um fenômeno estranho que se desenrolava a meus olhos. Milhares de abelhas traçavam, diante da colmeia, círculos horizontais e verticais em todos os sentidos, de todos os tamanhos, abrindo-os cada vez mais, até atingirem as grimpas dos eucaliptos circunvizinhos, até passarem por cima dos cumes dos montes em derredor. Depois voltavam à colmeia e tornavam a fazer as mesmas evoluções. E assim durante todo aquele dia. Nenhuma abelha fazia menção de colher néctar e pólen das flores que, a pouca distância, as convidavam com grande insistência de cores e perfumes. Esqueci-me de dizer ao leitor que, no dia anterior, havia eu comprado a um menino roceiro essa colmeia, e, depois das oito horas da noite, a transportara, bem fechadinha, para o meu sítio, onde ela está agora e onde fiz o inesperado conhecimento com Isis, minha primeira amiga caucásica. Na tarde do dia imediato a essa transferência estava eu, ao pé da colmeia, a contemplar as estranhas evoluções dos himenópteros, sem saber a que vinha tudo aquilo. Por que não trabalhavam? por que não visitavam as flores que sorriam em derredor? por que não empreendiam as suas costumadas excursões melíferas? De mais a mais, que era feito de Isis? por que partira tão bruscamente? estaria zangada comigo? teria eu a sorte de reencontrá-la um dia? Difícil seria esse encontro, se de mim dependesse... Para mim, eram aquelas milhares de abelhas todas iguaizinhas umas às outras. De súbito, ouvi forte zumbido perto de mim, que parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo – e lá estava minha amiga Isis, quase no mesmo ponto onde a conhecera de manhã. Vinha acompanhada de outra abelha, que tinha o corpinho todo coberto de uma penugem dourada, macia como veludo, ao passo que o corpo de Isis era meio pelado, parecendo por isto mais escuro que o da companheira. Só mais tarde cheguei a saber que essa penugem velatínea é o característico das abelhas novas que ainda não lutaram com a aspereza das intempéries lá fora. Cheio de alegria saudei minha amiga caucásica, que me apresentou sua colega, dizendo: – Iris, minha irmãzinha de 13 sóis. A novatinha fez um gesto tão ingenuamente encantador que me esqueci de fazer a minha apresentação, o que Isis supriu com muita solicitude. – Que é que vocês estão fazendo? – perguntei às duas, cheio de curiosidade, referindo-me às estranhas evoluções aéreas da abelhada. – Estamos sintonizando os nervos – respondeu a mais velha. – Sintonizando os nervos, que vem a ser isto? – Tomando orientaçãoe perspectiva. – Tomando orientação e perspectiva?... não compreendo nada disto... – Logo vi. Esses gigantes bípedes não sabem quase nada de nós; só escrevem livros sobre nós. O caso é que, na última noite, houve grande terremoto em nossa cidade. E hoje estamos aqui, sem saber onde. Sentimos uns solavancos medonhos. Tentamos sair, mas encontramos a porta barrada... – Eu quase nada percebi – disse Iris – porque perdi os sentidos e tinha certeza de ter morrido. Toda a cidade rolou por cima de mim. – Depois de algum tempo – prosseguiu Isis – cessou o terremoto, e nossos guardas verificaram que a porta da cidade estava aberta. Mas, como era noite, nada viram do claro; só viram o escuro. Hoje de manhã, quando voltou o claro, vimos que tudo estava mudado. Desapareceram as montanhas e as árvores, nossas conhecidas. Até a grande planície de água que havia perto da nossa cidade e em que muitas das nossas irmãs perderam a vida, havia desaparecido. – Era deste tamanho – acrescentou Iris abrindo as asinhas o mais que podia. – Aqui é tudo estranho para nós – continuou a abelha mais velha. – Por isto, não podemos recomeçar o nosso trabalho habitual antes de tomarmos orientação e perspectiva. Se saíssemos assim, à-toa, nunca mais conseguiríamos reaver o caminho de casa. Abelha perdida é abelha morta. – Que está dizendo, Isis? pois não há tanta flor por aí e tanto néctar nas flores? como é que uma abelha morreria de fome cá fora? – Ela não morreria de fome... – De que, então?... – De solidão e de tristeza. Nós nascemos para a sociedade e, se nos faltar a companhia das nossas irmãs, morreremos de saudades e de melancolia... – É isto mesmo – confirmou Iris, passando as pequeninas antenas pelos grandes olhos de opala, o que lhe dava uns arzinhos de graça infantil. – Hoje é meu primeiro vôo de abelha adulta, e Loluca disse-me: Iris, a sociedade é vida, a solidão é morte!... Estava eu mortinho por saber quem era Loluca, mas a história da tal “sintonização dos nervos” não me dava sossego. Pedi pois, ulteriores explicações, e Isis, com aquela clareza e simplicidade toda sua, disse-me: – Sintonizar os nervos é afiná-los pela luz polarizada. – Luz polarizada? – perguntei. – Sim, essa maravilhosa luz do céu, que apanhamos com os nossos olhos facetados. Guiamo-nos também, em nossos vôos, pelo ângulo do sol. – Iris, você fala como gente grande! – exclamei sem compreender bem o que ela queria dizer. – Gente grande? sou muito pequena, e não sou eu que falo. Fala em mim a grande Inteligência do Universo. Houve momentos de silêncio; entreouvi que Isis dizia a outra abelha em tom de censura: “Quando você fala a homens não deve usar palavras difíceis; eles só sabem pensar com sua pequena inteligência; pouco sabem da grande Inteligência.” Interrompi essa conversa a meia-voz, dizendo: – Vejo que vossa rainha é um ser dotado de grande experiência e sabedoria. – Nossa rainha? – repetiu Iris com grande reverência – Nossa rainha é dirigida pela grande Inteligência, como nós. Ela atravessou o período glacial e conhece todas as coisas de dentro. – O período glacial? o inverno? Mas como? a vossa cidade não é de poucos meses? – A nossa cidade e todas nós somos de poucos meses, mas a nossa rainha é de tempos remotos. Foi soberana de uma cidade enorme cheia de tesouros, mas deixou tudo isto a sua filha e saiu com uma parte da população para fundar um novo reino, que é este que agora temos. Nossas irmãs mais velhas que saíram com ela já morreram todas. Nós nascemos nesta cidade. Meu Deus, pensei de mim para mim, quantos mistérios! Esses pequenos insetos falam de fenômenos ignotos como se fossem coisas sabidas de nós, os seres “inteligentes” deste planeta. Vi que teria de aprender muito das minhas amiguinhas aladas. Quanta coisa para investigar! Expliquei às duas que nós, os homens, tínhamos uma agulha metálica que apontava invariavelmente para o norte. Riram-se a valer desta nossa invenção e não podiam compreender porque é que o homem necessitava de uma agulha metálica para perceber as correntes magnéticas sul-norte, quando, no entender delas, os nervos vivos prestariam muito melhor serviço do que um pedaço de metal inerte. Com muito custo, e vergonha não pequena, tive de Ihes explicar que os nossos nervos são por demais obtusos para perceber a atuação dos fluídos magnéticos do espaço. – Os nossos nervos – prosseguiu Isis – sentem essas correntes, e, depois de devidamente afinados e adaptados, nos orientam com toda a segurança, de maneira que nos é fácil encontrarmos, em qualquer parte do mundo, o lugar da nossa cidade. A estranha mudança da nossa casa obriga-nos a sintonizar os nervos pelo novo ambiente; pois amanhã e mais tarde temos de voar longe, muito longe... – Disse-me Loluca – prosseguiu Iris – que esta sensibilidade não é privilégio nosso. Nossas primas, as formigas, também a possuem. Até muitas aves a têm e voam longe, longe, dia e noite, e não se perdem no espaço, porque são guiadas pela mesma força que nos orienta. – Ah! é por isto que as abelhas estão traçando esses círculos no ar... – Mas é só por hoje. Amanhã vamos recomeçar o trabalho no meio das flores. – E eu também vou! – exclamou Iris vibrando entusiasticamente as asinhas transparentes e fortes que se ajustavam admiravelmente ao elegante corpinho de linhas aerodinâmicas. – Você nunca saiu de casa? – perguntei. – Para longe, nunca. – Que é que fez até hoje? nesses 12 dias de vida?... – Trabalhos domésticos. Hoje é meu primeiro dia de abelha adulta. Ah! que delícia!... As flores... a luz solar... o verde das campinas... Lagos de néctar... Montanhas de pólen... O perfume da resina... Como é bom ser abelha!... Estava eu com um mundo de perguntas a arder-me na língua, quando se ouviu forte zumbido da parte da colmeia, e as duas, como um par de balas vivas, desapareceram no ar. Ainda julguei perceber uma vozinha a dizer “Loluca está chamando”, mas as minhas amiguinhas caucásicas já haviam sumido no interior da colmeia. Sentei-me numa pedra e tornei a embeber-me na contemplação das evoluções aéreas das abelhas, dizendo de mim para mim: Sintonizar os nervos... Correntes magnéticas... luz polarizada... Loluca... Trabalhos domésticos... Meu primeiro dia de adulta... Que vem a ser tudo isto? Que fez Iris nesses 12 dias de vida infantil? Decididamente, eu tinha de investigar esses mistérios... E essas abelhinhas tinham de ser minhas mestras e mentoras através de mundos ignotos... A Infância de Iris Baldadamente procurei, na manhã seguinte, encontrar-me com Isis e Iris. Era tão grande a azáfama do incessante vai-vem à entrada da colmeia que nada ao certo se podia distinguir. Centenas de abelhas entravam e saiam de minuto em minuto, umas com as corbelhas das pernas trazeiras abarrotadas de pólen amarelo e branco, outras, aparentemente sem carga alguma. Estas últimas, porém, levavam o papo cheio de néctar, que, durante a viagem aérea, começava a transformar-se em verdadeiro mel. Pois deve o leitor saber que o néctar das flores não é mel, no sentido comum da palavra. Para que esse licor flóreo se transforme em substância melífica, deve a abelha engoli-lo primeiro, adicionar-lhe algo da sua própria substância e, depois desidratá-lo devidamente. Só assim, transformado, e depois vomitado pelo himenóptero, é que é verdadeiro mel. Para este processo possue a abelha um reservatório especial, que não é o estômago, mas uma espécie de papo ad-hoc. Não se enoje o leitor! Nada mais limpo e decente do que esse líquido perfumoso segregado pela mais linda creatura da flora e transformado pelo mais asseado de todos os seres da fauna entomológica. O processo da fabricação da cera é bem mais complicado, como logo veremos. Vendo que, à entradada colmeia, não havia esperança alguma de encontrar as minhas amiguinhas caucásicas, encaminhei-me à horta próxima, onde diversas leguminosas estavam em flor e eram visitadas por notável quantidade de abelhas, algumas das quais eram escuras como as da minha colmeia, outras mais claras, meio douradas, e que certamente vinham de cortiços vizinhos. Admirei a perfeita paz e harmonia que reinava entre todas elas, de colmeias várias e raças diversas. Mesmo umas vespinhas espartilhadas andavam preguiçosamente, como que flanando, sobre algumas flores, petiscando, aqui e acolá, uma gotinha de néctar, que logo engoliam, como é de praxe entre essas creaturas egocêntricas, sem cuidados de família numerosa nem vasta organização social isto com referência a certas espécies. Também algumas dúzias de irapuãs pretas como diabinhos, andavam a fazer colheita de secos e molhados, carregando estes no papo, e aqueles nas cestinhas das pernas. Se o leitor não sabe ainda, saiba agora que a abelha, lá fora, é “comunista”, mas cá dentro é “capitalista”. Lá fora, na natureza, tudo é de todos e cada um tem o direito de se apoderar do que quiser e puder; mas, depois de transformados e armazenados na colmeia esses produtos da natureza, a abelha os defende ferozmente como produtos do seu labor próprio. Onde, porém, havia o mais intenso comércio apiário era nas estrelas azuis de um grande pé de chicória em flor. Não sei o que as abelhas encontram de precioso nessa flor, que não tem perfume nem parece ter lugar apropriado para reservatórios de néctar, nem se lhe descobre pólen em grande quantidade. No entanto, todos os dias, já antes do nascer do sol, era esse céu estrelado um intenso zum-zum de abelhas, sobretudo daquelas que os entendidos chamam apis mellifera e que são as nossas conhecidas abelhas de ferrão. Aproximei-me do pé de chicória, na vaga esperança de lá encontrar uma das minhas amigas. Depois de muito olhar e pesquisar, vi que lá estava Iris com seus 13 dias de vida. Saudou-me rapidamente – e desapareceu. Daí a poucos momentos reapareceu, mas não me foi possível travar conversa com ela. Tão grande era o júbilo com que ela celebrava a sua estreia de “abelha adulta” que parecia literalmente ébria do gozo de trabalho. Com incrível rapidez e habilidade sugava, do fundo das estrelas azuis, as minúsculas gotinhas de doce licor, e, cheio o papo, disparava como bala de fuzil para entregar a preciosa carga à uma de suas irmãzinhas mais novas que ainda se ocupavam com trabalhos domésticos, esperando também o 13.º dia da sua vida. Numa dessas idas e vindas, viu-se Iris atrapalhada por uma mamangaba preta- azulada que vinha também buscar alimento nas flores da chicória. A mamangaba é, por assim dizer, o elefante no mundo dos himenópteros. Enorme, pesado, desajeitado, munido de um par de formidáveis mandíbulas, que parecem duas foices, atira-se esse monstro alado, com zumbido dissonante, às flores, que vergam ao seu peso e quando, devido a seu tamanho, não consegue entrar em um cálice, ataca-o pelo lado de fora perfurando-o a fim de atingir o depósito de néctar, coisa que nenhuma abelha decente faria. Quando Iris viu pela primeira vez, bem perto de si, a mamangaba, levou um susto; mas logo se lembrou das palavras de Loluca: Não mostrar medo! mostrar medo é dar coragem ao outro! exibir coragem é incutir medo ao outro! E assim a corpulenta mamangaba, embora munida de um ferrão muito mais forte que o de Iris, portou-se com perfeita decência ao lado da pequena competidora. No dia seguinte chuviscava. Alguns pés de gladíolos vergavam ao peso da longa fila de lindos cálices oblíquos, cor de rosa rajados de sépia, umedecidos pela garoa. Quando me dispunha para escorar uma das pencas, vi no interior do cálice uma abelha igual às da minha colmeia – e com grande alegria reconheci minha jovem amiga Iris. Saudei-a, jubiloso, mas ela mal respondeu, e, com movimentos vagarosos, foi se aproximando da borda da flor, olhando, sonolenta, para o espaço turvo. – Está doente, Iris? – perguntei. – Não. Estou toda encarangada... com esse frio e essa umidade... A chuva surpreendeu-me aqui... Eu não sabia disto... Estou sem fazer nada... Se pudesse trabalhar em casa... Há tanto que fazer... Mas essa chuva, essa chuva... – Oh! não se incomode, Iris. Eu vou levá-la para casa. Mas conte-me primeiro a respeito de sua infância, aqueles 12 dias de trabalhos domésticos a que aludiu. A abelhinha passou as pernas trazeiras pelas asinhas diáfanas experimentando-lhes a elasticidade. Estavam perfeitas, apesar da excessiva umidade atmosférica. Também era um par de asas novas, novinhas... Depois empertigou-se, esfregou ligeiramente com as antenas os dois hemisférios dos olhos, tomou um gole de néctar e disse: – Você não imagina como é horrível passar uma noite sem companhia. Não consegui dormir, de tanta solidão... Que terá pensado Loluca?... – Afinal de contas, quem é Loluca? – É uma das nossas educadoras. Foi ela que me ajudou a roer a tampinha do meu berço e me puxou para fora. Eu já tinha aberto boa parte da célula e respirava com facilidade, com a cabeça de fora. Quando Loluca roeu o resto da portinhola conseguimos tirar o meu corpo todo. Depois ela me lambeu de todos os lados, porque eu estava pegajosa de cera desses 21 dias de berço. – 21 dias de berço? – Sim, nós, as operárias, levamos 21 dias justinhos dentro da caminha onde mamãe pôs o ovo de que nascemos. Primeiro somos um pequeno ovo, um pontinho branco-azulado, e nada mais, colado, bem empezinho, no fundo do alvéolo. No segundo dia começamos a inclinar-nos, e no terceiro estamos deitadas de chato no fundo da célula, sobre a camada de alimento que vamos comer. – E quem pôs esse alimento no berço? – Nossas irmãs mais velhas. Mas só depois que nossa mãe pôs um ovo no fundo da célula. Também, para que dar vida a quem não pode viver? No quarto dia, o ovo deixa de ser ovo e vira larva, que se vai curvando, e endireitando de novo, até ao nono dia, quando enche quase o vão da célula, sempre com a cabeça voltada para a porta. Acabou-se o alimento. – E agora? – Daí por diante a nenezinha já não precisa de comida. É só dormir e crescer, durante doze dias. – Mas como pode crescer se não toma alimento? – A larva, nos primeiros nove dias, comeu bastante para poder jejuar doze dias. O que ela comeu lhe vai dando corpo agora. Você conhece nossas amigas, as borboletas? – Se conheço! – Borboleta viva? – Vivas e mortas. – Matou alguma? – Não, mas na minha cidade há gente que negocia com borboletas mortas. ou antes com as lindas asas delas. – Que horror! que selvageria!... Pois, quanto às borboletas vivas, você sabe que a borboleta vem da crisálida? – Sei, sei... – E sabe que a crisálida não come e, contudo, trabalha sem cessar para formar o corpo da borboleta? – A lagarta é que comeu. – Comeu de sobra para que a crisálida possa construir, em silêncio, do material armazenado, o corpo da borboleta. – E que corpo maravilhoso têm elas! que asas! que cores! que boca tão graciosa! Mas, Iris, deixemos em paz as borboletas. Conte-me a sua própria história. – Pois, como dizia, no nono dia a larva da abelha deixa de comer e recolhe-se ao sono. Para que ninguém lhe perturbe esses dias de crescimento, suas irmãs adultas passam um cortinado de cera pela entrada do berço. – E a nenezinha, não sufoca com a célula fechada? – Não ouviu o que eu disse! a célula não está fechada com uma porta de cera maciça, como as do mel, mas apenas com um cortinado de fiozinhos todo crivado de pequenos orifícios, para que a pequena possa respirar à vontade. Logo no dia seguinte ela se transforma em ninfa. – Que é isto? – A ninfa vem depois da larva; já tem feitio de verdadeira abelha, mas ainda sem asas. No vigésimo primeiro dia, a ninfa, já abelha completa,alada, roe o cortinado de fiozinhos e põe a cabecinha de fora, esperando que alguma das parteiras venha ajudá-la para sair do berço. Loluca e muito jeitosa... – São as abelhas velhas que servem de parteiras? – Não, são as nossas irmãs mais novas, poucos dias mais velhas que a abelha nascitura, que a tira do berço de cera. As nossas irmãs mais velhas trabalham fora, na colheita de néctar e pólen. Também, as mais novas conhecem melhor este ofício de ajudar as outras. – Conhecem melhor, por serem mais novas? – De certo. Pois se elas mesmas nasceram poucos dias antes, como não saberiam ajudar outras a nascer também? – Tem razão, Iris. Eu pensava com a minha cabeça, e não com a sua. Nós, homens, quando nascemos não sabemos nada. Só muito aos poucos é que aprendemos o que outros homens, mais velhos, nos ensinam. E alguns nem mesmo assim aprendem. Mas com vocês a coisa é diferente. Vocês nascem sabendo tudo, e não precisam aprender nada. – Nós também aprendemos, mas só aprendemos aquilo que já sabemos. – Em língua humana se chamaria a isto um paradoxo ou uma contradição; mas sei que na vossa língua a coisa não é assim. Continue, Iris, continue a contar- me a sua história. – As abelhas novas, depois de nascer, fazem, durante doze dias, serviços caseiros. Não têm permissão de sair para longe buscar néctar e pólen. – É mamãe que vo-lo proíbe? – Não. É a grande Inteligência da Natureza que nos dá esta ordem. Mamãe não dá ordens a nenhuma das suas filhas. Cada uma sabe o que tem de fazer. Quando saímos do bercinho, as nossas asas ainda são fracas, e o nosso corpo muito mole. O primeiro serviço que prestamos é o de ajudarmos nossas irmãzinhas a sair da célula, pois a toda a hora estão saindo algumas. Outras limpam a casa carregando para fora detritos ou pozinhos que encontrarem. Asseio e higiene é a grande lei da nossa raça. Todas sabem disto, menos os zangões... – Que está dizendo, Iris? – Sim, os zangões, que são nossos irmãos, não sabem nada disto. Felizmente, são poucos, e nem sempre existem. – Nem sempre existem? – Existem só quando devem existir, e deixam de existir quando não têm mais que fazer. Entre nós, só vive quem tem serviço. – Para onde vão eles? morrem? são mortos? – Disto lhe falarei em outra ocasião, se quiser. Agora lhe estou contando a minha própria vida. Não gosta? – Oh, sim, Iris, estou gostando imensamente. Continue, continue!... – Durante esses doze dias da nossa infância somos também encarregadas de distribuir os alimentos às recém-nascidas. Elas aprendem logo a comer, porque já o sabem. Temos de produzir também cera, que é trabalho penoso e demorado. Em tempo chuvoso, como este de hoje, aumenta notavelmente o serviço doméstico das abelhas novas, porque o mel que entra vem mesclado com muita água, e temos de evaporá-lo devidamente; do contrário não se conserva bom nas células. Compete às abelhas mais novas fazer essa evaporação. – Vocês têm ventiladores lá dentro da colmeia? – Temos, sim. São as nossas asas. Centenas de abelhas põem-se sobre os favos de células de mel ainda abertas e vibram intensamente as asas. O vento leva embora a água em excesso e o mel fica bom como o outro. Quando necessário, engolimos o mel, esquentando-o, e engolindo-o novamente até ficar bom. É então fechado hermeticamente com uma tampinha de cera e guardado para mais tarde. Também em dias de grande calor temos de vibrar as asas para fazer frescura na cidade. – Barbaridade! que infância trabalhosa que vocês têm, Iris! – O trabalho é a nossa maior delícia. Não é assim entre vós? – Sim, quando adultos, nós também trabalhamos com gosto; mas, em pequeno, só damos trabalho aos outros, e isto durante muitos anos. Iris olhou-me, e, entre espantada e incrédula, com os seus 30.000 olhos facetados encerrados em dois hemisférios de opala, e prosseguiu tranquilamente em sua narrativa: – Cada vez que uma abelha campeira entra na cidade com um carregamento de néctar e pólen, uma das irmãs domésticas recebe a provisão e coloca-a no competente lugar. Assim, as campeiras não perdem tempo, e podem logo voltar para as fontes e buscar novo carregamento. A concorrência é grande, de todos os lados. Rapidez é tudo. Com sol a pino não há néctar. Há muito, de manhã, perto do meio-dia, e um pouco à tarde. Quem chega primeiro de manhã tira mais. A nossa vida é breve. Temos de viver muito em pouco tempo. – Tenho pena de sua infância, Iris... – Pena, por quê? – Infância toda passada na escuridão, sem ver essa maravilhosa luz solar... – Oh não! Nós, em pequenas, cuidamos de nossas irmãzinhas nascituras, ou recém-nascidas. Depois, saímos todos os dias, mas é só até à água mais próxima. – Água, para quê? – Precisamos de buscar água para muitos trabalhos, de que lhe falarei em outra ocasião. Nós, as abelhas novatas, somos encarregadas pela grande Inteligência de buscar água. É de menor responsabilidade do que o serviço das campeiras, mas não é sem perigo. Muitas morrem neste trabalho... – Apanhados pelos bem-te-vis? Iris não respondeu à minha pergunta. Imóvel, com as minúsculas antenas arriadas como duas bandeiras a meia-haste, parecia perdida em lutuosas reminiscências... Pobre da Mirtes, suspirou por fim, baixinho... Morreu no primeiro dia da vida lá fora. – Quem era Mirtes? – perguntei, condoído. – Minha vizinha de berço – respondeu Iris entre dois soluços – Já nos conhecíamos antes de nascer. Entre mim e ela havia apenas uma película de cera muito fina, quase um nada. Isto é, além do delgado casulo em que cada uma de nós estava envolta após o período larval. Nascemos no mesmo instante. Loluca roeu as tampinhas das nossas células, como se fosse uma só. Mirtes era linda, linda. Mais forte que eu. Numa dessas manhãs, depois de tomarmos um bom gole de mel e fazermos alguma limpeza caseira, Mirtes convidou-me para um vôo de aguada. Encontramos logo uma enorme planície de água. Mirtes, estouvada, ébria de luz, voou rentinha à lisa superfície. Eu fiquei mais alto, desconfiada daquele mistério, que me parecia perigoso. De repente, minha amiguinha bradou: “Iris, Iris! lá no fundo está voando outra Mirtes, de barriga para cima!...” Logo depois um grito de dor – e um silêncio profundo, profundo... Mirtes desaparecera nas águas... – Afogada? – Devorada... Logo que ela caiu na água, e ainda boiava bem na superfície, acudi para salvá-la, mas de repente veio das profundezas um monstro horrível, escancarou uma boca enorme – e Mirtes desapareceu no abismo... ............................................................................................................................... Fez-se silêncio profundo em derredor de nós e dentro de nossas almas... Até o céu acompanhou a nossa tristeza, chorando abundantes lágrimas de cristal sobre a terra e as plantas em volta... A própria alma do Universo parecia suspender a respiração para não perturbar a sacralidade do nosso sofrimento... Essa dor comum me fez ainda mais amigo do povo das abelhas do que eu era antes. Parece mesmo que só amamos realmente alguém depois de sofrermos com ele. É como se dois elementos duros e justapostos um ao outro se derretessem no ardor de um grande fogo e se fundissem em uma única substância, que não é nem Eu nem Tu, mas Nós... – O que nos consola – disse, por fim Iris, reanimando-se – é que só morre o ser vivo, mas não a vida. A vida é imortal. Morreu Mirtes, mas a sua vida está com a grande Inteligência, imortal, sempre-viva... A abelhinha continuou a falar neste sentido por muito tempo, e eu quedei-me, quase extático, em face do que ouvia. Resolvi escrever um livro sobre a vida imortal dos seres mortais. Por fim, regressando das alturas do enlevo místico para o plano da vida quotidiana, disse Iris: – Não voar em linha reta! repetia Loluca todos os dias. É perigoso! – Perigoso,por quê? – perguntei. – Perigoso para as novatas, de vôo menos firme e rápido. Para as campeiras traquejadas na luta, pouco perigo há na linha reta. As abelhas novas têm de voar em zigue-zagues ou em serpentinas. – Mas por quê? – Você não sabe que há muitas aves por toda a parte? Ainda há pouco, você falou no bem-te-vi. Mas não é só ele que gosta de nós... – Pois, não é bom que as aves gostem das abelhas? – Bom? bom? é o que há de pior! ser gostado por um pássaro é um desastre! – Compreendo, compreendo. Elas gostam de vocês com o bico e com o estômago, e não com o coração... – Lá no mundo dos homens não é assim também? – Muitas vezes. Há entre nós muito amor devorador. Mas, afinal de contas, vocês não têm uma arma terrível, o ferrão? – Qual, ferrão! Serve na luta contra outros insetos, mas o bico dos pássaros é tão duro que não entra ferrão algum. Antes de darmos a primeira ferroada já estamos esmagadas. A salvação está na força das nossas asas e na habilidade de voar em zigue-zague ou serpentina, que ilude o perseguidor. Iris olhou para o céu, e disse: – Está melhorando. Vou buscar resina. Temos lua minguante. O tempo é propício. – Resina, para quê? Que é que vocês fazem com resina dentro da colmeia? – Muita coisa. Desta vez é para cobrir o corpo de uma lesma que está começando a empestar a cidade. – Que está dizendo, Iris? uma lesma? e vai cobri-la de resina? – Sim, ontem entrou na cidade mais uma dessas creaturas pegajosas, e tivemos de matá-la. Com besouros e aranhas a gente se arranja; arrastamo-los para fora. Mas esses fregueses gosmentos estão a tal ponto colados no chão que ninguém os tira daí. Nem mortos podem ser removidos. Nem sei o que essa gente vagarosa vem buscar em nossa cidade. Não comem mel nem cera. Possivelmente, querem devorar os nossos nenezinhos... – E que vão fazer agora com o cadáver da lesma? – Vamos mumificá-la, cobrindo-a com espessa camada de resina impermeável, a fim de isolá-la do ambiente. Senão, ficaria tudo empestado. – É espantoso, Iris! E você vai fazer isto? – Não, isto é tarefa das novatas. Eu sou abelha adulta. Mas vou buscar resina. Lá no alto daquele morro deve haver da dita. Adeus! Antes que eu pudesse formular uma pergunta sobre aquilo da “lua minguante”, já estava Iris a boa distância, rumo ao cume de um monte coberto de mata. Cheio de curiosidade dirigi-me à colmeia, espiei cautelosamente – e pasmei em face do que via. Centenas de abelhas novas – eu já as conhecia pela cor mais clara e abundante penugem do corpo – estavam ocupadas em desdobrar espessa camada de resina cheirosa sobre um montículo alongado que devia ser o corpo da desditosa lesma, morta e semi-enrolada sobre si mesma. A princípio, tive a idéia de intervir no trabalho dos himenópteros lançando para fora da colmeia aquele trambolho. Prevaleceu, porém, a curiosidade de presenciar o trabalho de mumificação e sepultura da parte dos miúdos insetos. Grande número de abelhas, das campeiras, vinha entrando sem cessar com minúsculas parcelas de resina – própolis, lhe chamam os apicultores – extraída de certas árvores. Entregavam o material às jovens engenheiras e desapareciam instantaneamente. Depois de meia hora, nada mais se via do corpo do molusco. Apenas um montículo escuro assinalava o lugar do jazigo perpétuo da intrusa. Esperei por Iris mas não a vi regressar. Teria ela sido vítima de algum acidente?... Havia tantos pássaros nos arredores... Mortandade, Revolução e Protestos Dia trágico, aquele!... Quase que perdi a minha cidade apiária... E, mais do que isto, a amizade de Isis e Iris, minhas queridas amigas caucásicas... Já lhes conto como foi. Era impossível deixar as abelhas na velha caixa em que as havia comprado a um menino da roça. A caixa era muito estreita e meio podre, emborcada sobre um pedaço de tábua que lhe servia de fundo. Resolvi, pois, dar-lhes nova residência. Fabriquei, segundo todas as regras da arte, uma caixa espaçosa, moderna, com os competentes quadros móveis. Pronta a nova caixa, procedi à difícil manobra da transfusão do conteúdo. Protegido por uma máscara de filó preto e com as mãos cobertas de luvas de couro, abri o velho caixote, e, a despeito de formidáveis protestos de milhares de abelhas, passei rapidamente toda a abelhada, com sua mãe para a nova residência. Grande parte das abelhas, porém, agarrou-se freneticamente aos favos de mel, devorando o que podiam, na certeza de que esse cataclismo lhes roubaria todas as provisões armazenadas e as deixaria na miséria. Por isto, tive de quebrar completamente a caixa velha, e, com o auxílio de umas boas nuvens de fumaça – de que esses insetos têm um medo enorme – e uma vassourinha de penas consegui que o resto largasse os favos e resolvesse fazer companhia às outras e à rainha. Infelizmente, não me foi possível transferir para a nova residência os favos de incubação cheios de ovos, larvas e ninfas. Eram de construção tão irregular esses berçários, devido à estreiteza da caixa, que não os pude recolocar na caixa nova na mesma posição em que estavam, e, mudando-lhes a posição certa, morreriam as larvas. Resolvi, por isto, inutilizar os celulários de incubação e fervê-los para aproveitar a cera. Depois de apanhar a cera dourada, tive a infeliz lembrança de colocar o resto diante da colmeia, para que as abelhas recolhessem a cera e a aproveitassem para construir a nova cidade. Nesse tempo vivia eu na profunda ignorância de que as abelhas usassem cera velha. Daí a 15 minutos, vi os ares repletos de abelhas a doidejarem com zumbidos ferozes, e à entrada da colmeia estava enorme bloco das mesmas, que engrossava de segundo em segundo. Faltavam apenas a rainha e sua corte. Mas a chamada do bloco à entrada era tão insistente que a soberana não teria resistido por muito tempo ao impetuoso apelo da nação em peso; pois o que o povo apiário estava fazendo era, evidentemente, um convite para uma fuga geral. – Crueldade! – Infâmia! – Desaforo! – Estupidez! – Vamos embora daqui, depressa, depressa! – Lugar mal-assombrado! Todas estas, e outras vozes que não entendi, se cruzavam confusamente nos espaços. De relance, percebi de que se tratava. A princípio pensava eu que a colmeia estivesse fazendo manobras de enxameio, como costumam fazer quando parte da população, aderindo à velha soberana, se vai embora para fundar nova cidade. Neste momento, apareceu Isis, toda esbaforida, clamando umas palavras que, a princípio, não pude entender no meio da balbúrdia geral. Por fim, distingui isto: – Que horror! tire esses cadáveres de nossas irmãzinhas!... – Que aconteceu, Isis? – Tire daí esses cadáveres! depressa! senão, vamos todas embora!... Compreendi tudo. Mais que depressa, agarrei a cestinha com os corpos das larvas e os resíduos de cera e joguei tudo ao barranco do arroio próximo. Ainda por meia hora continuou a revolução apiária. Pouco a pouco, porém, se acalmaram, desistiram das suas furiosas evoluções aéreas e resolveram voltar à colmeia, mas ainda vibrantes de indignação e horror. O vasto zumbido prosseguiu por largo tempo, assim como continua o movimento e ruído das ondas do mar, depois de cessar a tormenta. Quando, porém, depois de muito pesquisar nos arredores, se convenceram de que já não havia vestígio da horrorosa carnificina, comunicaram à rainha que estava tudo em ordem, e esta resolveu não sair. Deve ter sido um grande alívio para ela, porque ela estava nos seus melhores tempos de jovem mãe e prestes a dar à luz algumas milhares de filhas. De resto, também a nova cidade, embora ainda vazia, era uma beleza e em nada comparável à cidade antiga, destruída, com suas ruas estreitas, tortuosas, sem possibilidade de ulterior expansão. A cidade nova que eu lhes deraera limpa, espaçosa, munida, além disto, de dez magníficos caixilhos, cada um já com a competente lâmina de cera moldada presa na barra horizontal de cima e que serviria de início aos novos favos. Tanto luxo e tanta previdência, é certo, nunca tinham sido vistos por minhas amigas, desde eras remotíssimas. Estava eu observando a alviçareira vazante daquele enorme espalhafato, quando reapareceu Isis e disse-me à queima-roupa, ainda trêmula de emoção: – Por todas as flores do universo! como é possível que um homem cometa semelhante monstruosidade?... – Desculpe, Isis – balbuciei – mas aquela caixa podre era imprópria para... – Não, não é isto! não me refiro à destruição da nossa cidade. Nenhuma destruição é capaz de nos fazer desanimar. Refiro-me àquele espetáculo macabro que você armou à entrada da nossa residência. Colocar-nos à porta da cidade os espectros de milhares de irmãzinhas nossas assassinadas? E esperar de nós que fôssemos lamber a cera desses cadáveres? Que idéia faz você de nós?... Eu não sabia o que replicar. Depois de alguns momentos, acrescentou Isis, como que falando a si mesma: “É verdade, os homens nada entendem dos mistérios da nossa vida íntima... Escrevem muitos livros sobre nós, acham que somos muito inteligentes, mas nada sabem dos sentimentos do nosso coração...” Pedi a Isis que apresentasse à rainha as minhas desculpas, juntamente com a promessa de contribuir o mais possível para apronta reconstrução da cidade. A abelhinha esboçou um sorriso triste e céptico, como que a pensar: De que modo havia esse homem de contribuir para a reconstrução da nossa cidade?... Eu, porém, para mostrar a minha boa vontade, coloquei à entrada da nova colmeia duas tigelas, uma cheia de mel, e a outra com açúcar diluído em água. As abelhas avançaram de roldão sobre o mel, que aliás era delas mesmas, e o levaram embora em poucos minutos. Depois, vendo que nada mais havia que lamber do bom, dirigiram-se ao menos bom e foram tomar conta do açúcar, de que não ficou vestígio. E assim se encerrou pacificamente esse incidente quase trágico. Surge uma Cidade Cor de Neve O dia que se seguiu à transfusão das minhas abelhas para a nova residência e à tremenda revolução acima descrita, foi de grande silêncio e quietude. Esperava eu ver toda a nação apiária numa grande azáfama, num incessante vai-vem de campeiras, para reconstrução da cidade destruída. Sabia eu que as abelhas são por natureza madrugadoras; mas já andava alto o sol, e quase não havia movimento à entrada da colmeia. Apenas um pequeno grupo de guardas que, como sempre, estavam de plantão, rondavam lentamente da direita para a esquerda, de cima para baixo, vigiando a entrada da cidade. Que estariam fazendo as minhas ricas abelhas? estariam dormindo? chorando a catástrofe do dia anterior? ou teriam fugido todas, imperceptivelmente, em sinal de protesto contra a horrorosa carnificina da sua prole? Mas, neste último caso, não haveria sentinela à porta do reino. Só há guardas onde há rainha, e onde há rainha há súditos. Dei um giro pela horta e pelo jardim do meu sitiozinho, a ver se encontrava nas flores alguma abelha da cor das minhas. Quase nada! as poucas que havia eram de outras colmeias, de raça “italiana”, mais claras que as minhas, fartamente morenas, quase pretas. Onde estariam Isis e Iris? Esperei até à tarde, na certeza de que num dia tão lindo como esse não deixariam as minhas incansáveis operárias de recolher mel e pólen. Não vi nada. Intrigado com essa estranha inatividade, voltei à colmeia, e, muito cautelosamente, levantei a tampa, solta e independente do resto da caixa e dos quadros móveis. Suspendi cuidadosamente um desses quadros – e dei um grito de estupefação! Suspendi outro – a mesma surpresa! A maior parte dos dez quadros que integravam o conjunto dos futuros berçários e celeiros, apresentava um fenômeno indescritível. Que é que havia? Dentro do vão de cada quadro estava suspensa uma pesada cortina escura, em forma de um triângulo invertido, feita de reluzentes bagas, os corpos de milhares de abelhas, em quase completa imobilidade. A fila de cima prendia-se firmemente ao caixilho em toda a extensão da linha horizontal; a segunda fila, um pouco menos larga, estava presa nos corpos da de cima, e assim por diante, em sentido descendente, até que a ponta do triângulo atingisse quase a parte inferior do caixilho. Cortina igual havia na maior parte dos outros quadros. – Que é isto? – perguntei, espantado, mas não tive resposta. Possivelmente no meio daqueles cachos vivos de bagas escuras se encontravam também os corpos de algumas das minhas amigas recém-nascidas, mas quem as poderia descobrir? O silêncio era absoluto. Nem o mais ligeiro vibrar de asas. – Que friiio! feche a casa! – murmurou alguém no meio da multidão imóvel. – Assim é impossível fazer cera – acrescentou outra à meia-voz. Fechei a tampa, cautelosamente, e perguntei a um dos guardas o que significava aquilo. Olhou-me ele com uns olhos enormes, como quem não compreende o que se diz. Repeti a pergunta, ao que ele respondeu secamente: – Ora, estão fazendo cera. – Fazendo cera, mas de quê? – De quê? de que havíamos de fazer cera senão de nós mesmas? – Esse é o gigante que nos roubou tudo – disse outro guarda, acrescentando baixinho em tom rancoroso – Mereceria um milheiro de ferroadas... se não fosse animal de sangue quente... – Não me levem a mal o que fiz – expliquei-lhes – Foi pelo bem do vosso povo. Naquela caixa imunda e podre não havia lugar para uma nação grande e próspera, e cada ano teriam de emigrar diversos enxames com parte da população. Nesta nova residência espaçosa cabem folgadamente 50.000 abelhas com todo o conforto. – Isto lá é verdade – concordou o primeiro dos guardas – Nunca tivemos casa tão espaçosa e limpa como esta. Mas, pelos modos, você não sabe nada da nossa vida e atividade... – Sei... um pouco... – Mas ignora uma das coisas mais importantes... – A saber? – Que nós, para fazer cera, temos de ficar imóveis e bem juntinhas umas às outras, ao menos pelo tempo de um sol e de uma escuridão. – Tem razão, eu ignorava isto. Pensei que vocês fabricassem a cera com o pólen das flores. Entreolharam-se as duas com ares significativos, mas não responderam. Se pudessem sorrir teriam sorrido da minha ignorância de homo sapiens. Por fim, a que primeiro falara comigo se apresentou dizendo que se chamava “Silvia”. A outra, sempre de cara fechada e desconfiada, não quis dar o seu nome, mas a companheira, sempre gentil e alegre, apresentou-a com o nome de “Cirila”. Tive o pensamento de perguntar por Isis e Iris, mas suprimi esse desejo e insisti com as duas novas amigas – embora uma não se mostrasse nada amiga – que me explicassem o mistério da origem da cera. – A cera – Disse Sílvia – é produzida pelas nossas irmãs mais novas. Aparece em forma de umas palhetas brancas, segregadas por umas bolsas que as novatas têm entre os anéis do abdome. Para que estas palhetas brancas apareçam é necessário que nossas irmãs engulam bastante mel e depois fiquem por muito tempo imóveis e produzam calor pela reunião de numerosos corpos. Quando começam a aparecer as escamas brancas, a vizinha as apanha do corpo da companheira e as leva para o alto onde estão os alicerces da cidade. E a cidade vai crescendo, crescendo, até embaixo. Em tempos normais, só uma parte da população está encarregada de produzir cera, mas hoje quase todas estão ocupadas neste trabalho; pois ficamos sem cera alguma, depois do cataclisma de ontem. Ou pensa você que havíamos de deitar o mel pelas ruas da cidade, assim sem mais nem menos? e onde poria nossa mãe os ovos para suas filhinhas se não houvesse berços? Amanhã terá ela grande número de berços...– Amanhã? tão depressa?... – Nosso trabalho é rápido... Sílvia interrompeu bruscamente o fio da conversa e, em companhia de Cirila, se atirou à entrada da colmeia, onde aparecera uma creatura com cara de ladrão. O intruso desapareceu nos ares perseguido pelas duas valentes guardas, que tardaram a regressar, parecendo empenhadas em uma luta de grandes dimensões. * * * Daí a dois dias, fui abrir a caixa, cautelosamente – e deparou-se-me um espetáculo encantador. Suspendendo um dos quadros móveis, tive ante os meus olhos uma maravilha de indescritível beleza e perfeição. Na barra superior do caixilho, onde eu prendera a lâmina de cera moldada, estava suspenso, em continuação dessa faixa, um favo triangular, alvo como a mais pura neve das montanhas, e de paredes tão delgadas que chegavam a ser ligeiramente translúcidas. Parecia um sonho de fadas, um sopro de leveza imaterial. E que maravilha as paredes e a forma das células! Cada alvéolo constava de seis paredes laterais, cujos pontos de encontro formavam outros tantos ângulos, sendo quatro ângulos de cada célula iguais entre si, enquanto os dois restantes, o de cima e o de baixo, um pouco mais fechados, também iguais entre si, mas diferentes dos quatro primeiros. Todos os alvéolos obedeciam rigorosamente à mesma forma e bitola. O fundo de cada um desses graciosos hexaedros terminava em um prisma triangular, ajustando-se perfeitamente ao fundo de outra célula construído do outro lado do favo, em sentido oposto; pois todos os favos têm duas faces com base comum. Depois de algum tempo verifiquei com estranheza que as linhas laterais dos alvéolos hexaédricos não corriam em sentido rigorosamente horizontal, como eu supunha, mas acusavam ligeira inclinação para cima. Perguntei a Isis, que felizmente reaparecera, pela razão dessa singular disposição oblíqua das células, ao que ela me respondeu, sorridente: – Imagine você, se colocássemos os celeiros em sentido inteiramente horizontal, que aconteceria? Escorreria o mel antes de amadurecer e poder ser fechado. – E, se colocassem os favos em posição horizontal, ficando os alvéolos em sentido vertical? – Ora, ora! neste caso, só poderíamos aproveitar a parte superior do favo, e teríamos de construir um fundo plano, chato, desgracioso, e ainda por cima impróprio para as células do berçário, pois as extremidades do ovo e da larva são arredondadas, e não chatas. A única forma e disposição razoável para as células é esta que a Inteligência Cósmica nos inspirou, há muitos milhões de primaveras. A disposição dos nossos favos também favorece muito a ventilação e limpeza da cidade. A posição horizontal dos favos cortaria as correntes aéreas que vêm de fora – e quem pode viver sem ar? Até as nossas irmãzinhas iriam morrer asfixiadas antes de nascer... Tudo isto dizia Isis com a precisão e segurança de um erudito professor de matemática e geometria a lecionar ciências exatas aos alunos de uma Escola Politécnica. Ao suspender um dos lindos favos, cujos alicerces estavam no alto, lembrei-me do que o livro do Apocalipse diz da “cidade santa de Deus”, cujos fundamentos se acham nas alturas do céu e que descem às baixadas da terra... 50.000 Virgens Heróicas Num desses dias tive enorme surpresa. Havia eu adquirido mais duas colmeias e colocado ao lado da primeira. Certa manhã, lá pelas 10 horas, quando o sol já tinha evaporado a última umidade das campinas, mas ainda não estava excessivamente quente, vi, à entrada de uma das últimas caixas, umas dúzias de abelhas de outro feitio e tamanho que as que eu conhecia. A anatomia do seu corpo robusto não apresentava as magníficas linhas aerodinâmicas das minhas amigas, Isis, Iris, Sílvia e Cirila, e outras conhecidas. As asas desses grandalhões não se ajustavam firmemente ao corpo, mas estavam semi-abertas, formando ângulo com o abdome. Toda a sua aparência e modo de andar tinha um quê de frouxo, indisciplinado e grosseiro, contrastando desagradavelmente com a atitude distinta e o corpinho teso, compacto e firme das obreiras. Soube mais tarde que esses senhores eram verdadeiros sibaritas, passando o dia todo a vadiar e a comer. Nenhum deles sabia o que fosse trabalho. Nem os trabalhos caseiros, a que as obreiras novas se dedicavam com grande solicitude nos 12 dias da sua infância, mereciam o menor interesse a esses encorpados comilões. Às vezes, uma das abelhinhas novas forcejava largo tempo por sair do alvéolo em que se desenvolvera; os grandalhões contemplavam com fleuma e apatia a faina da nenezinha, mas nenhum deles se dignava a roer o resto da tampinha de cera para desobstruir a saída, quando esse trabalho lhes teria sido facílimo. Pior ainda, além de não fazerem nada e comerem muito, esses vadios deixavam por toda a parte os seus excrementos, até sobre os brancos favos em construção e na imediata proximidade da rainha. Atrás de cada um desses granfinos mal-educados andava constantemente uma das abelhas caseiras, ainda em período de trabalhos infantis, para fazer a competente limpeza; do contrário, acabaria o interior da cidade numa pavorosa imundície, porque esses analfabetos em asseio e higiene eram em número de diversas centenas. Tudo isto, e muito mais, cheguei a saber mais tarde, e de um modo que agora não posso explicar. – Quem são esses senhores de asas semi-abertas? – perguntei a uma das guardas que estava de plantão à entrada da colmeia número dois. A guarda olhou-me, entre espantada e compassiva, deu meia volta e desapareceu no interior da caixa. Será que não entendeu a minha linguagem?... ou teria medo de mim?... Neste momento deparei casualmente com minha amiga Sílvia, que, como de costume, estava de guarda à entrada da primeira colmeia. Pedi que me explicasse o mistério daquelas grandes abelhas desalinhadas. Parece que falei com certo desdém. porque Sílvia, depois de me ouvir em silêncio, desandou- me um olhar repreensivo; por fim disse com grande reverência: – Esses são os zangões, as abelhas masculinas. – Zangões? e por que não os há nesta colmeia? – Vai haver... quando o tempo chegar... – Para que servem esses vadios? – Vadios?... vadios... Não há abelha vadia.! – Desculpe, Sílvia, mas eu não compreendo... – Logo vi que você não compreende nada da nossa vida. – Quantos zangões há numa colmeia? – Algumas centenas. Depende... – E por que não trabalham? – Nossos irmãos masculinos trabalham tanto quanto nós. – Trabalham, como? – O trabalho deles é diferente do nosso, mas não é menos importante. Se não fossem eles – adeus, operarias!.... – Explique-me isto, Sílvia, por favor. – Nós servimos ao nosso povo vivendo e trabalhando – eles lhe servem dando vida e morrendo. Ai de nós se viessem a faltar os machos! a cidade inteira estaria votada ao extermínio!... – Mas, diga-me, Sílvia, não é verdade que vocês, operárias, matam cada ano centenas de zangões? – É verdade, matamos os renitentes, após o vôo nupcial da nova rainha, e deixamos morrer de fome os restantes. – E isto você chama amor e fraternidade? – Perfeitamente. – E os zangões são do mesmo parecer? – Todos eles. – Estão de acordo em que sejam mortos por vocês? – De pleno acordo. Nenhum deles desejaria continuar a viver quando a sua vida já não tem razão-de-ser. Matá-los quanto antes é ajudá-los a cumprir a sua missão. Aqui entre nós, tudo é bem organizado. Vive-se por uma grande missão. – Que missão? – Depois do vôo nupcial da rainha a missão do zangão terminou, e por isto é justo que sua vida termine também. Entre nós não há vida sem finalidade. Nós, operárias, também deixamos de viver depois que deixamos de trabalhar. A nossa missão é trabalhar. Com uns cinquenta sóis, estarei exausta, com as asas rotas, as energias gastas – e vou morrer na solidão... – Na solidão? não vai morrer no meio de suas companheiras,na cidade? – Nunca nenhuma abelha honesta cometeria semelhante indecência! Só se a morte a surpreendesse sem aviso prévio. Cada uma de nós sabe morrer a sós. Necessitamos da sociedade para viver e trabalhar, mas para morrer só precisamos da solidão. Imagine, que trabalho para nossas irmãzinhas terem de arrastar para fora, cada dia, centenas de cadáveres! – Centenas, cada dia? – Sim, cada dia nascem centenas de abelhas, e morrem outras centenas. Até milhares. Nossa mãe põe, geralmente, 2000 ovos por dia. Toda operária tem suficiente bom senso para sair da cidade quando pressente o fim da vida. Voa longe, longe, até onde lhe permitam as asas rotas, pousa numa folha, ouve a voz da grande Inteligência – e morre... A nossa cidade está sempre em festa. É um sorridente berçário de vida em perpétua sucessão e perene juventude, e não um triste asilo de seres decrépitos, nem uma necrópole de defuntos... Para nascer necessitamos do auxílio de nossos semelhantes, mas para morrer cada uma basta a si mesma. – Compreendo, compreendo, Sílvia... Morrer em profunda solidão, depois de uma vida ao serviço dos outros, é belo, e heróico, é sublime... Mas... ser morto, como os zangões, em plena juventude, isto me parece triste e revoltante... – Nosso povo não conhece semelhantes sentimentalismos. Quem perde a sua razão-de-ser e velho e decrépito, ainda que acabe de nascer. Ser jovem é ter uma grande tarefa a cumprir, uma razão-de-ser, um trabalho a prestar pelos outros. Quando os zangões fecundam a nova rainha, em seu glorioso vôo nupcial, eles morrem imediatamente, porque a sua vida seria um contrassenso, daí por diante. E também todos os outros zangões têm de morrer, porque a sua vida ulterior seria um absurdo, uma imoralidade... A nossa mãe, apesar das muitas primaveras que viu, é sempre jovem enquanto põe ovos e produz vida nova. Mas, no dia que deixasse de pôr ovos e crear vida nova, seria velha... Oh! Momuca!... oh! Momuca!... Sílvia estremeceu repentinamente, e, se tivesse podido chorar, teria derramado torrentes de lágrimas, dos seus lindos olhos de opala escura. Mas, abelha não pode chorar, e esta falta de lágrimas é, talvez, para ela, uma grande tragédia interior. O pranto dá certo alívio, assim como um vulcão fica mais tranquilo depois de expelir do seu interior grande quantidade de lava ígnea... Depois que minha amiga se refez da sua grande comoção, cheguei a saber quem era Momuca e qual a grande tragédia da sua vida. É tão triste essa história que não me animo, por ora, a contá-la aos leitores deste livro. Talvez que, mais tarde, num dia de muita nuvem e nenhum cantinho azul no céu, ou numa noite de ventos uivantes, eu me anime a narrar o drama dessa infeliz abelha, cuja memória perdura de geração em geração, na cidade apiária. Creio que nunca aconteceu coisa mais triste e trágica no mundo das abelhas, desde as eras mais remotas. É deveras estranho! essas mesmas abelhas, indiferentes à morte de centenas de zangões e estóicas em face da sua própria morte, sentem-se abaladas até ao âmago da sua natureza pela desgraça de uma rainha ou mãe de tribo. Pois deve o leitor saber que Momuca era uma jovem rainha, mas que teve de ser morta por seu próprio povo, porque, apesar de fêmea perfeita e normal, não estava em condições de perpetuar a espécie, como é de obrigação de cada mãe. Nunca se chegou a saber ao certo porque é que ela não podia pôr ovos de que nascessem operárias, apesar de ter realizado corretamente o seu vôo nupcial, de ter sido corretamente fecundada por uns zangões também corretos em tudo. Dizem algumas das abelhas mais sábias que Momuca, ao regressar do seu glorioso vôo nupcial e antes de entrar na colmeia, foi apanhada no ar por um bem-te-vi, que estava prestes a sepultá- la nas profundezas do estômago, quando sentiu terrível ferroada na raiz do bico (é que ele apanhara a jovem abelha muito na raiz sensível, e não na ponta córnea do bico); dizem que, em consequência desta ferroada, o terrível rapineiro criou juízo e largou a vítima, a qual conseguiu salvar-se no interior da colmeia. Mas, quando começou a pôr ovos, como era de seu dever, verificou- se que, em consequência dos maus tratos sofridos, todos os ovos que ela punha eram ovos virgens, não fecundados, e destes, como é sabido, só nascem zangões. Quando as antigas operárias se convenceram da desgraça, resolveram eliminar a rainha, conforme a ordem da grande Inteligência, porque não podiam permitir que a nação toda acabasse em zangões... Mas, como disse, deixarei para outra ocasião a narração completa e pormenorizada dessa história trágica, como morreu a linda Momuca, e como, depois de orfanadas, conseguiram as abelhas escapar a total extermínio... Para declinar de tão ingrato assunto e afugentar as nuvens de tristeza que ensombravam a alma da amiga Sílvia, pedi que me dissesse mais alguma coisa sobre a vida das operárias. – Quantas abelhas campeiras há, por via de regra, em uma cidade bem constituída? – perguntei, com os ares neutros de um repórter de imprensa. – Umas 50.000. Algumas cidades chegam além. Mas isto depende da fecundidade da mãe, do espaço de que dispõem, como também da colheita de mel e pólen. Quando o espaço é pouco, não convém que a mãe ponha muitos ovos. Mesmo assim, parte do povo resolverá, na próxima primavera, emigrar e fundas cidade nova. Se ainda assim há falta de espaço, sai novo enxame, até dois ou três conforme as necessidades. Cada enxame com a sua rainha. – Mas, há tantas rainhas para cada ano? – Há tantas quantas forem necessárias para garantir a prosperidade de cada enxame. Colônia sem mãe é colônia morta. Nossa mãe sabe dantemão quantas rainhas novas têm de fazer para os tempos próximos. Uma para cada grupo. E com o primeiro grupo sai ela mesma. – Sílvia, você está dizendo tanta coisa nova de uma vez que a minha inteligência de homo sapiens se engasga e não pode engolir tudo isto ao mesmo tempo. Diga-me isto, devagar, aos bocadinhos. Antes de tudo, vossa mãe faz quantas rainhas ela quer? – Naturalmente. – Como é que ela faz essas rainhas? – Ela põe no fundo de uma célula especial, maior que as outras e com forma de casca de amendoim, um ovo fecundado, e manda dar-lhe comida regia. – Quer dizer que esse ovo que ela põe é igual a todos os outros? – Não, não é igual aos ovos não fecundados, donde saem os zangões. É ovo fecundado. Só do ovo fecundado é que sai fêmea. – Como é que ela pode pôr ovos fecundados e ovos não fecundados? – É segredo dela. Depois do vôo nupcial ela se fecunda a si mesma, quando quer, porque agora é macho e fêmea. O certo é que ela põe o ovo que quer, e, como precisa de muitas fêmeas para operárias, e de poucos machos, para a fecundação da próxima rainha, é claro que põe muitos ovos fecundados e poucos não fecundados. – Quer dizer que você, Sílvia, podia ter nascido rainha? – Nasci rainha, como todas as minhas irmãs. Mas não cheguei a ser rainha. – Por que não? – Porque, em pequena, não recebi comida régia. Nem minhas irmãs receberam. Só aquela que depois saiu rainha de verdade é que recebeu esse alimento. – Que mistério é esse de comida régia, capaz de fazer rainha? – Comida régia é uma secreção viscosa, branca, meio ácida, produzida pelas glândulas internas das abelhas novatas. O ovo que, desde os seis primeiros dias da sua existência, receber deste manjar misterioso se desenvolverá em fêmea completa. Se o não receber nesse período, só dará fêmea incompleta incapaz de ser mãe. – Mas, afinal de contas, que efeito produz sobre o organismo essa comida? – Faz desenvolver os ovários, que, nas outras abelhas, atrofiam, por falta de alimento adequado. O alimento comum só desenvolve os órgãos de que necessita a operária para o seu trabalho específico. Espantoso, espantoso! murmurei de mim para mim, olhando para a minha interlocutora comgrande reverência e terror. Nem parecia ser simples abelha... A meus olhos assumia aquele serzinho minúsculo forma estranha, proporções fantásticas... Parecia-me como que a encarnação de uma divindade que enchesse todas as latitudes e longitudes do cosmos e residisse em cada célula, em cada átomo, em cada eléctron do mundo microscópico... Não, aquilo não era uma abelha, era a própria alma do Universo cristalizada num pequeno organismo, obediente às ordens dessa inteligentíssima entidade invisível... Senti-me tomado de grande simpatia por todas as manifestações da Inteligência Cósmica, fosse qual fosse a forma ou o feitio da sua manifestação, pedra, planta, inseto, ave, peixe, animal, homem, anjo – cada um desses seres era um brado, mais ou menos forte, desse estupendo Algo ou Alguém que se ocultava por detrás dos multiformes fenômenos da Natureza... – Admiro as abelhas – disse, enfim, voltando a mim e encarando Sílvia. – Vocês são um povo de heróis e de heroínas. – Cada um está satisfeito com o papel que lhe coube – replicou ela, impassível. – Nossa mãe vive para crear vida nova – filhos e filhas. Nossos irmãos vivem e morrem para garantir a existência de seres femininos – operárias virgens e rainhas mães. Nós vivemos para alimentar a todos – mãe, irmãos e irmãs. – Quanto tempo conta viver ainda, Sílvia? – Não conto viver. Pode ser que viva uma semana. Isto não me preocupa. – Não acha triste morrer o indivíduo para que a espécie possa viver? – Filosofia infeliz! – suspirou ela, meneando a cabeça e fazendo lembrar uma professora quase desiludida de fazer seu aluno compreender o abc. Depois, voltando-se a mim, disse com precisão e insistência: – Saiba, ó homo sapiens, que não morre o indivíduo para que viver possa a espécie. A vida é imortal. O indivíduo não morre, não perde a sua vida. Ele continua a viver vida perfeita e individual no oceano imenso da vida que enche o Universo – assim como a onda, depois de sumir no seio do mar, continua a ser, nascendo e renascendo, em perpétua vida e eterna ressurreição... Fechei os olhos... E tive a impressão de ouvir cantar o hino da Vida Universal... A apoteose da Vida Cósmica... Êxodo Rumo a Mundos Ignotos Que é isto?... A que vem esse enorme zum-zum? Porque doidejam essas abelhas no ar, com tanto nervosismo? Que aconteceu? Nada aconteceu ainda, mas algo está para acontecer... Vai haver um grande êxodo apiário, de uma das colmeias que adquiri ultimamente. Já está superpovoada. Houve ordem de emigração em massa. Está-se processando a divisão do reino... – Lá vem ela! lá vem ela!... – disse uma abelha a meu lado. – Ela, quem? – perguntei, cheio de curiosidade. – A velha rainha da tribo. – A velha? mas não é a rainha nova que vai sair? – Não, quem vai sair é a velha. A nova é que vai herdar o reino. Assim é de praxe entre nós. Estava eu ainda meio céptico ante o que via e ouvia, quando verifiquei a presença da velha soberana, que, desde o seu vôo nupcial, não via a luz do sol, vivendo naquela noite eterna da colmeia, unicamente ocupada com a propagação da espécie. Mas pode haver mais vôos nupciais sucessivos, se for necessário, contanto que seja nos primeiros 15 dias de vida. Esses rápidos amplexos, na luminosa vastidão do espaço, são suficientes para fazer a rainha mãe de centenas de milhares de filhos, ou antes, de filhas. Quando a rainha emigrante deixa as sombras da colmeia e se vê circundada repentinamente por uma imensa onda de luz, sente-se, por instantes, como que atordoada. Pousa no alvado da colmeia para habituar os olhos àquele deslumbramento, e vibra ligeiramente as asas, a ver se, depois de tão longa inatividade, ainda obedecem aos músculos do tronco de quitina escura. Funcionam com perfeição, embora não seja mais aquela vibração espontânea e dinâmica do dia das suas núpcias, quando se arremessava, triunfante, a centenas de metros de altura, a ponto de perder quase de vista o delirante bando de seus loucos amantes. Os graves deveres da maternidade lhe modificavam o organismo e os hábitos. A sua prole monta a centenas de milhares de indivíduos, muitos dos quais, naturalmente, já morreram, uma vez que a operária tem apenas cinco ou seis semanas de vida. Depois de alguns ensaios prévios, convenceu-se de que aquelas asas, apesar de um tanto emperradas pela longa inércia, estavam em condições de lhe transportar o pesado corpo até certa distância. Desferiu vôo, e foi pousar em um dos ramos mais baixos dum pé de mangueira. Imediatamente, milhares de súditos fiéis, decididos a emigrar com a soberana, se aglomeraram em torno dela, ao ponto de a fazerem desaparecer totalmente no interior de um enorme cacho escuro a fervilhar de corpos e asas. E lá se deixaram elas ficar, horas e horas a fio, aparentemente inativas, mas realizando importante trabalho de reconhecimento. Poucas horas antes desse êxodo, havia nascido a nova princesa herdeira. Enorme foi a agitação que cercou o berço da recém-nascida. Todas sabiam que naquele serzinho vacilante estava o futuro da nação. Era chegado o momento crítico e angustiante em que duas fêmeas completas e perfeitas se encontrariam dentro da mesma cidade, no meio de um povo rigorosamente monocrático – e duas fêmeas completas quer dizer duas rainhas – situação insustentável por muito tempo. O aparecimento de uma nova princesa real na colmeia equivale sempre a uma espécie de “estado de sítio”, que, em breve, acabaria em guerra declarada e morte de uma das fêmeas. Por via de regra, porém, prevalece o instinto de ordem e harmonia sobre os impulsos momentâneos de violência anarquizante: a rainha-mãe emigra antes do advento da rainha-filha. Sentimentos estranhos e desencontrados digladiavam-se na alma da velha soberana, quando se dispunha a abandonar a cidade e entregar tudo a sua filha. Aquele reino tão bem organizado, os ricos favos de mel, os depósitos de pólen e de mel, e, acima de tudo, aqueles milhares e milhares de delicados nenezinhos, a dormirem ainda tranquilamente nos berçários de cera – tudo isto teria de ser abandonado de um momento a outro... E a rainha emigrante se lança a um futuro incerto, obscuro, talvez hostil, recomeçando sem nada, sabe Deus onde e em que circunstâncias!... Troca uma opulenta e bem provida cidade pela dolorosa desnudez de algum tronco oco, pela estreiteza incômoda de alguma fenda de rochedo ou por algum imundo cupinzeiro vazio... Não leva do seu grande reino uma só gotinha de mel nem um pedacinho de cera... A içá, rainha da formiga saúva, quando sai em busca de um novo lar, leva pelo menos, da cidade abandonada, um bocado de fungo, que planta no fundo da sua galeria subterrânea para reiniciar a costumada fungicultura; mas a emigrante das abelhas, além de não ser jovem como a recém-casada saúva, não pode levar coisa alguma do seu querido reino. Tem de confiar, cega e incondicionalmente, na providência da Natureza. Entretanto, todas sabem que assim é que deve ser – e estão dispostas a arrostar corajosamente as dores e incertezas do futuro... * * * Enquanto o negrejante cacho vivo está pendurado no ramo da mangueira, é intenso e contínuo o vai-vem das escoteiras do enxame migratório. Todas as regiões circunvizinhas, a quilômetros de distância, são rapidamente esquadrinhadas. Nenhuma cavidade de tronco ou rocha, nenhum cupinzeiro vazio deixa de ser devidamente inspecionado, a ver se serve para nela instalar uma cidade celular. De tempos a tempos, regressa um grupo de batedoras com a notícia de ter descoberto um local nestas e naquelas condições, tamanho tal, localizado em tal ou tal ponto, olhando para o leste ou oeste, sul ou norte. Imediatamente, uma divisão de engenheiros peritos, especializados em assuntos urbanísticos, ergue vôo e vai inspecionar o local descoberto,
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