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Huberto Rohden - Por Mundos Ignotos

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HUBERTO ROHDEN 
 
 
POR MUNDOS 
IGNOTOS 
Uma Viagem Fantasticamente Real 
Pelos Mistérios da Natureza 
 
UNIVERSALISMO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sumário 
 
Advertência 
Colóquios com a Alma da Natureza 
Meu Encontro com Alu 
Porque Brigavam Uzu e Ifi 
A Sociedade dos Cálices Vivos 
Entre Esqueletos Alvos e Negros 
Colóquio Noturno com Ignis e Lúcia 
Uma Alma em Quatro Corpos 
Vida de Trevas – Núpcias de Luz 
Aventuras Românticas de Dona Flora 
Reencontro com Calcal 
Amores Heróicos 
Lorantácea Fraudulenta e Samambaia sem Amor 
À Conquista da Luz 
Dispersar! 
A Feiticeira do Castelo Encantado 
Núpcias Mortíferas 
A Azáfama dos Barqueiros Vermelhos 
Polícia de Farda Branca 
O que Vi no Laboratório Ideal 
Ondas do Além 
Bandeirante do Infinito 
 
 
Advertência 
 
 
 
A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar 
é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e 
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior, 
porque deturpa o pensamento. 
Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição 
de uma existência para outra existência. 
O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado. 
Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores. 
A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila, 
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se 
escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa. 
Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer 
convenções acadêmicas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Colóquios com a Alma 
da Natureza 
 
Antes de abrires as páginas deste livro, toma a seguinte perspectiva. 
A Natureza é o imenso repositório dos altos pensamentos de um Ser de infinita 
potência, sabedoria e beleza. 
Existem, no seio da Natureza, realidades que eclipsam as mais fantásticas 
divagações dos poetas e as mais arrojadas concepções dos filósofos. O que 
certos livros dão como produto da imaginação, é pura realidade. E a realidade 
ultrapassa todos os limites traçados pelo engenho humano. Existem, de fato, 
esses mundos ignotos, palácios encantados, lâmpadas maravilhosas, fórmulas 
mágicas, chaves que abrem portas para regiões de infinitas surpresas... 
O que digo nas páginas deste livro, em forma de romance e personificação 
humana, é realidade histórica, como a ciência tem demonstrado e vai provando 
cada vez mais. Quem nunca se deu ao estudo dos mistérios íntimos da Natureza 
pensará que se trate de invenção arbitrária do autor, de simples devaneio 
poético; mas o cientista e conhecedor dos fatos sabe que o fundo de tudo isto é 
real, embora a forma que lhe dou seja roupagem fornecida por mim. 
Este livro, para ser compreendido, supõe, portanto, que o leitor tenha certa dose 
de noções de história natural; que saiba algo da vida das células, do jogo dos 
átomos, dos mistérios da luz, dos prodígios da energia solar, dos processos vitais 
do nosso organismo, das silenciosas maravilhas da flora e fauna, dos eventos 
pré-históricos do nosso planeta e da raça humana e, sobretudo, da íntima 
realidade do seu próprio Eu... 
O contato com a alma da Natureza, a compreensão do seu espírito, torna o 
homem melhor, mais calmo, mais sereno, mais amigo de seus semelhantes e 
mais admirador da grandeza da Inteligência Cósmica. 
Todos os grandes vultos da história foram sinceros amigos da Natureza. Alguns 
deles, como Francisco de Assis, viviam numa permanente embriaguez das 
inefáveis maravilhas do cosmos. 
Nesta viagem por mundos ignotos, para a qual convido o leitor, entraremos em 
ligeiro contato com a alma da Natureza, até onde esse contato com a grande 
Inteligência do Universo é possível à pequena inteligência do nosso cérebro. 
Acompanha-me, leitor, com a inteligência e com o coração, nesta viagem 
visionária – e perfeitamente real. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Meu Encontro com Alu 
 
– Bom dia, sr. gigante... 
Partia esta vozinha sutil do fundo duma pequena poça d’água, num dos ângulos 
do meu jardim. Corri os olhos em derredor, e não consegui descobrir o autor da 
inesperada saudação. 
– Bom dia, sr. gigante de ontem – repetiu a mesma vozinha misteriosa. 
– Quem é que fala? – perguntei, cada vez mais curioso. 
– Sou eu. 
– Quem é esse eu? 
– Eu, Alu. 
– Alu? Alu?... quem é Alu?... 
– Sou um protozoário, um ser unicelular, uma ameba como dizem vossos livros. 
– Uma ameba?... Mas, por favor, onde está você? 
– Aqui, no limo deste mar, entre dois rochedos verdes. 
Tirei um pouco do limo esverdeado da poça e coloquei-o sobre uma pedra. 
– Por favor, sr. gigante, não me deixe secar ao sol! senão morro! – gritou o 
serzinho invisível. 
– Diga-me, por obséquio, Alu, onde está você – insisti. 
– Que faz você com esse par de olhos enormes? – perguntou, algo irritada, a 
ameba. – Eu não tenho olhos e vejo você, e você com esses olhos colossais, 
não me enxerga? 
Depois de muito esquadrinhar, descobri, no meio do limo, uma gotinha 
gelatinosa, menor que a cabecinha dum alfinete de cor esbranquiçada, cinzenta. 
– Bom dia, Alu! – exclamei, desembaraçando o minúsculo unicelular do meio 
dumas folhas podres e examinando-o mais atentamente com o auxílio duma 
lente que fui buscar. – Desde quando vive você aqui no meu jardim? 
– Há uns 700.000.000 de anos – respondeu com fleuma a gotinha de 
protoplasma. 
– Como? há uns 700.000.000 de anos? 
– Mais ou menos. Naquele tempo era mais difícil calcular os anos, porque o sol 
não aparecia ainda tão visível como hoje. A atmosfera era toda ela um mar de 
nuvens que mal deixava coar uns raios solares. 
– Mas afinal de contas, que é que você chama “ano”? 
– O mesmo que vocês, homens, o tempo de uma a outra primavera. 
– E você quer fazer-me crer que já vive um 700.000.000 de anos? 
– Talvez mais. Possivelmente 1.000.000.000 de anos, como vocês dizem. 
– E você não falou agora mesmo em morrer? tem medo de um pouco de sol, e 
afirma que já existe há milhões de anos? 
– Compreenda-me, sr. gigante de ontem. Nós, os protozoários, só morremos 
quando nos matam, mas não morremos por nós mesmos. Somos imortais por 
natureza. 
– Você está doido, Alu! um ser primitivo como você seria imortal, quando até o 
homem, rei da Natureza, está sujeito à morte?... 
– Nós somos imortais, sr. gigante. Você, rei da Natureza, devia saber isto. 
Ameba não morre de morte natural. Eu, quando quero um filho, parto-me ao meio 
e somos dois – e cada um completa o seu corpo comendo e continua a viver e a 
criar filhos. Nada se perde. Nada morre. Assim é que nós somos imortais, meu 
gigante de ontem. 
Por que me chama “gigante de ontem”, Alu? 
– Porque o homem surgiu à face da terra apenas ontem, quando nós já 
estávamos aqui havia centenas de milhões de anos. Tínhamos preparado tudo, 
quando a terra começou a ser habitada por gigantes diversos, e, como último de 
todos, apareceu a raça dos homens. Você, naturalmente, ignora tudo isto... 
De repente, o corpo de Alu, que a princípio era esférico, mudou de forma. 
Alongou-se, projetando numa direção de como filamento gelatinoso, e todo o 
resto do corpo unicelular foi seguindo. 
– Que há? que está fazendo? – perguntei. 
– Psiu! um infusório! – respondeu Alu – um infusório gorduchinho! que rico 
petisco! 
Eu não via nada do tal infusório. Via apenas que a ameba se recurvava em torno 
de alguma presa, assumindo forma de ferradura. E logo depois voltou ao estado 
primitivo. 
– Apanhou? – indaguei. 
– Apanhei, sim. Eu sempre apanho tudo que quero. Engoli-o todinho. 
– Engoliu? mas você tem boca? 
– Boca? para quê? Nós costumamos comer e engolir tudo sem boca. 
– Mas, como? 
– Envolvemos a presa com todo o corpo, incorporando-aao nosso ser. E está 
comida e digerida. 
– Digerida? e você tem estômago? 
– Qual, estômago! não precisamos desse luxo. Digerimos com todo o corpo. 
– E como foi que você viu o infusório? se não tem olhos?... 
– Vi-o com todo o corpo. Vocês, homens, são uns seres tão atrasados que 
precisam de milhões de células para tudo que fazem – quantas células tem você 
em seu corpo gigantesco? 
– A ciência fala em uns 15.000.000.000. 
– Pois eu faço com uma única célula o que você faz com 15.000.000.000. Vocês, 
milionários celulares, não são mais felizes do que nós, pobres unicelulares. 
Resolvemos perfeitamente os problemas da vida com esta única célula – e não 
sucumbimos à morte como vocês, gigantes de ontem. 
– Os problemas da vida, Alu? É que vocês não têm problemas a resolver, nessa 
sua estupenda simplicidade... 
– Que é que vocês têm a mais? 
– Inteligência, vontade, ciência, amor, arte, religião, cultura – para resolver esse 
mundo de problemas precisamos dum organismo mais complicado, e até duma 
coisa que não é célula... 
O protozoário fez um gesto de pouco caso, mas, em vez de responder, como eu 
esperava, quedou-se, imóvel, por uns momentos. Inchou, alongou-se 
ligeiramente, contraiu-se de novo e, com espanto meu – partiu-se ao meio... 
– Que é isto, Alu? – exclamei – Está doente? vai morrer? 
– Não – respondeu calmamente a ameba – Criei um filho. Ei-lo aqui. 
Diante dos meus olhos nadavam duas amebas perfeitas, de tamanho normal, 
cada uma com seu competente núcleo central rodeado de albume e envolto em 
delicadíssima película. 
– É assim que vocês se reproduzem? 
– Assim mesmo. 
– Mas... desculpe a indiscrição... você é macho ou fêmea? pai ou mãe desse 
filhinho? 
Sorrindo com sobranceira e desdém a gotinha viva disse: 
– Nós, os protozoários unicelulares, senhores do universo há centenas de 
milhões de anos, não precisamos dessas complicações sexuais que vocês 
inventaram para sua desgraça, como ouvi dizer. Quando queremos um filho, 
comemos um bom petisco para criar forças, e dividimos em duas a nossa única 
célula, metade para cada um – e somos dois. Cada um torna a dividir-se – e 
somos quatro, e assim por diante. 
– Quantos filhos tem você, Alu? 
– Não sei. Ninguém o sabe. Muitos milhões. De um a outro sol, eu faço dezenas 
de filhos. Depende do ambiente e também dos infusórios ou outros bocados que 
apanho para criar forças. 
Pus-me a contemplar com crescente interesse aquele gruminho de protoplasma, 
no meio do qual nadava um pontinho cinzento, o núcleo, como dizem os livros. 
Esse centro é para a célula o que uma próspera capital é para um país. Procurei 
recordar o que ouvira nas aulas de história natural e lera nos livros: protoplasma 
é proteína. Mas proteína, que é, afinal de contas? Um mistério. Um complexo de 
enigmas... E, coisa estranha, não há vida orgânica onde não existe proteína. 
Será que a vida reside na proteína? Decorei esta fórmula química: proteína é 
composta de MgN4 C32 H30O CO2 CH3 CO2 C20 H39 – quer dizer que esta 
misteriosa substância é sumamente complexa, composta de tantas partes de 
magnésio (Mg), de azoto (N), de carbono (C), de oxigênio (O) e de hidrogênio 
(H). Outra fórmula diz: C72 H112 N18 SO22; entra nesta fórmula, como se vê, um 
novo elemento, o enxofre (S), e é eliminado o magnésio. O que parece essencial 
e indispensável é a presença de carbono, azoto, hidrogênio e oxigênio. Sem 
estes elementos básicos não há vida orgânica. São eles, parece, que constituem 
o palácio em que reside essa princesa encantada, sempre misteriosa, sempre 
invisível, mas sempre realmente presente. Não faltou quem identificasse a 
princesa Vida com esse seu palácio albuminoso. A ciência humana, tão 
orgulhosa das suas conquistas, tem de arriar bandeira ante essa gotinha de clara 
de ovo, que desafia toda a nossa sapiência. Não sabemos o que seja a Vida – 
sabê-lo-emos um dia? 
– Os homens – disse Alu, interrompendo as minhas divagações científicas – são 
muito inteligentes... 
– É verdade – confirmei, ufano. 
– Mas, de nós não sabem quase nada. E o pouco que sabem está mal expresso. 
Dizem que o nosso corpo unicelular consta de proteína, mas nunca ninguém 
disse o que é proteína. Usam umas palavras bonitas, mas não sabem o que elas 
significam. Dos nossos sentimentos então não sabem mesmo nada, nada... 
Neste teor continuou Alu a falar largo tempo. Senti-me quase humilhado com o 
que a ameba dizia, porque via que ela tinha razão. Por fim, perguntei à minúscula 
bolinha vítrea por que é que eles, os unicelulares, não haviam acompanhado a 
evolução do mundo orgânico, nesses milhões de anos; pois ostentavam ainda 
hoje a mesma simplicidade primitiva que tinham no princípio. Perguntei por que 
não tinham solucionado, como os outros seres vivos, o problema da vida pela 
divisão do trabalho, criando órgãos próprios para cada função: olhos para ver, 
ouvidos para ouvir, boca para comer, mãos para apreender, pernas, asas, 
barbatanas para se locomover, estômago para digerir, órgãos para a 
reprodução, etc. A ameba escutou pacientemente a minha erudita dissertação e, 
quando terminei, respondeu-me com ares de mistério: 
– Nós não evolvemos, porque obedecemos à vontade da grande Inteligência... 
– Que Inteligência? 
– A grande Inteligência que dirige os destinos da nossa vida. Milhares de irmãos 
nossos, a princípio unicelulares, evolvem e são hoje multicelulares, cidades de 
células – organismos, como dizem os homens – insetos, peixes, répteis, aves, 
mamíferos. As nossas células, quando se dividem, separam-se e formam seres 
independentes e autônomos. As células deles, porém, dividem-se e ficam juntas, 
formando uma sociedade celular, um Estado, uma República de células, onde a 
cada cidadão é designada determinada função em benefício do todo. Assim, 
pode cada célula, ou complexo de células, especializar-se na sua função 
peculiar, e nisto está o segredo da evolução e do aperfeiçoamento dos 
organismos superiores. 
– E por que vocês, unicelulares, não acompanharam esse processo de 
especialização dos órgãos e das funções? 
– Para que nossos irmãos pudessem viver e progredir. Trabalhamos para o todo. 
É ordem da grande Inteligência... 
– Não compreendo, Alu, 
– Pois não sabe você, homem sapiente, que não haveria evolução se não 
houvesse unicelulares como nós? Nós somos a base, o pedestal de todo o 
progresso no mundo orgânico. 
– Explique-se, Alu. 
– Nenhum organismo vegetal ou animal pode viver nem evolver sem o nosso 
concurso. Os unicelulares ajudam a preparar os alimentos para seus irmãos mais 
perfeitos. Mais tarde lhe explicarei isto, meu gigante de ontem, o papel que os 
seres mínimos desempenham no plano do universo. Você verá que nós, os 
protozoários unicelulares, somos os seres mais necessários ao mundo. Ai da 
flora, ai da fauna, se nós não existíssemos, com esta nossa feliz simplicidade! o 
mundo seria um deserto... 
Vi que Alu estava cansado e por isso o deixei a sós por esse dia, prometendo 
voltar em outra ocasião, para ouvir a sua interessante filosofia. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Porque Brigavam Uzu e Ifi 
 
Quando, no dia seguinte, voltei para junto da pequena poça d’água onde deixara 
Alu, ouvi perto de mim duas vozinhas agudas em acalorada discussão: 
– É mentira. Uzu, você não constrói nada. Você só sabe destruir o que eu 
construí... 
– Que ignorância, Ifi! Então, você não sabe que nós, as bactérias, somos tão 
necessárias como vocês? 
– Mas o papel da clorofila é obra positiva e construtora, e o de vocês é 
eminentemente destruidor. 
– Ora essa, Ifi! quisera ver com que material ia você arquitetar os tecidos 
celulares da sua planta se nós, as bactérias e os fungos, não lhe fornecêssemos 
material de construção! Só com os seus lindos olhos verdes? Se nós não 
reduzíssemos à matéria inorgânica, as substâncias que vocês, verdes 
grãozinhos das folhas,converteram em matéria orgânica, dentro em breve, 
vocês não encontrariam mais alimento para suas plantas. 
Olhei em derredor, e não vi nenhum dos autores dessa discussão. 
– Uzu é invisível – exclamou, de repente, uma vozinha sutil cujo timbre me era 
familiar. Depois de algum esforço, descobri, à beira da poça d’água, minha 
amiguinha gelatinosa, Alu, a ameba imortal. Cumprimentei-a, satisfeitíssimo. 
– Uzu é invisível? – perguntei, sem nada entender. – Quem é Uzu? 
– É uma bactéria cor de cinza, mas é tão miudinha que você não poderá vê-la, 
nem com mais um olho de vidro. 
– Que olho? 
– Aquele que você trouxe ontem para me enxergar. 
– Que tamanho tem você, Uzu? 
– Não tenho tamanho algum. Só tenho pequenez... 
– Ele é assim mesmo, esquisito – explicou a ameba. 
– Que pequenez tem você, Uzu? 
– Meu corpo é de uma única célula. 
– Que pequenez tem essa célula única? 
– Você, com olhos desse tamanho, não pode ver a minha pequenez. Eu não 
tenho nem a milésima parte dum milímetro, como vocês chamam o espaço entre 
dois riscos pretos das vossas fitas. 
– A milésima parte dum milímetro chama-se entre nós “micron”. 
– Pois eu não tenho um “micron”. 
– Você é o menor de todos os seres vivos, Uzu? 
– Oh não! tenho muitos primos e parentes bem menores que eu. Minha 
amiguinha Afta atravessa brincando os poros de um filtro de porcelana, que 
vocês inventaram para barrar a passagem a certos micróbios de que têm medo. 
Ao lado de Afta eu sou um gigante. Não consigo passar pelas malhas duma 
dessas redes. 
– Você já foi visto por algum homem? 
– Posso ser visto através dum sistema de vidros, que dão tamanho à minha 
pequenez. Amiguinha Afta nunca foi vista, mas parece que já foi fotografada por 
um homem de cabelo branco. 
– Que é que você faz neste mundo? 
– Ajudo a manter o equilíbrio do universo. 
– Que jactância, Uzu! que presunção é esta da parte duma bactéria? manter o 
equilíbrio do universo? 
– Mas é pura verdade, meu gigante de ontem. Se não fôssemos nós, os 
micróbios, o mundo todo seria um deserto, sem um vestígio de vida e beleza. 
Você sabe que os animais se nutrem de plantas ou de outros animais. Se não 
houvesse plantas não haveria comida para os animais. E, se não houvesse 
bactérias, não haveria comida para as plantas. Logo, pela nossa matemática, em 
última análise, somos nós os cozinheiros do universo e os responsáveis pela 
vida do mundo. 
– Não haveria alimento para as plantas sem o vosso concurso? mas as plantas 
sugam da terra substâncias minerais, ferro, nitrato de cálcio, de potássio, de 
fosfato, sulfato de magnésio, etc. e destas substâncias está saturado o solo 
terrestre. Que é que vocês têm com isto? 
– Ó sapiência humana! – exclamou Uzu e deu três cambalhotas, como fazia 
todas as vezes quando se sentia fortemente emocionado. Nada vi dessas 
cambalhotas, mas Alu, que me servia de locutor e intermediário entre o mundo 
visível e invisível, me deu notícia desse fato. Depois de algum tempo, prosseguiu 
o micróbio, procurando engrossar a voz, o que, naturalmente, não conseguiu: 
– É bem verdade que as plantas tiram do solo esses minerais, que, com o auxílio 
da luz solar, transformam em substâncias orgânicas. 
– Nos meus laboratórios – interveio Ifi. 
– Honra lhe seja – disse Uzu, com ironia. – Mas, se ninguém reconvertesse em 
matéria inorgânica essas substâncias orgânicas que sinhá Ifi fabrica nos seus 
laboratórios de clorofila, daqui a algum tempo não haveria mais substâncias 
minerais que as plantas pudessem assimilar, e elas morreriam de fome. O 
mundo todo viraria floresta de fungos e cogumelos, que se alimentam de matéria 
orgânica, porque não têm clorofila. Mas aqui estamos nós, a imensa família das 
bactérias para impedir a extinção da vida no universo. Apenas morre uma planta 
ou um animal, e logo nos apoderamos do seu organismo e decompomos o que 
a planta compôs, reconvertendo o orgânico em inorgânico, para que possa 
continuar sem estorvo o grande ciclo cósmico. Ao ar entregamos os gases que 
a clorofila lhe roubou, e à terra devolvemos os sais que as raízes da planta lhe 
arrebataram. E assim está tudo em ordem. Somos ou não somos os 
mantenedores do equilíbrio do universo, ó gigante de ontem? 
– Realmente, realmente – concordei. – O seu papel, sr. Uzu, é dos mais 
importantes. Pena que alguns dos seus primos sejam tão assassinos... 
– Assassinos? nós não temos intenção de matar ninguém, mas precisamos viver, 
e por isto penetramos no organismo de alguns gigantes, e eles sucumbem. Mas 
não é por mal... De resto, eu não mato ninguém. Crio um filho de meia em meia 
hora, e deixo viver a quem vive... 
– E, quando a bactéria não encontra ambiente para viver, que é que faz? morre? 
– Nem sempre. Nós só costumamos morrer quando devoradas pelos nossos 
inimigos. Por falta de ambiente, não. Neste caso, vamos dormir e só 
despertamos quando as coisas melhorarem em derredor de nós. 
– Dormir? e vocês dormem muito tempo? 
– Uns dois ou três anos de sono, é coisa normal para muitas bactérias da nossa 
família. Mas, em geral, só dormimos quando nos falta o que comer. 
– E, enquanto dormem, não comem? 
– Nada, nada. Encerramos dentro de nós mesmos a nossa vida querida, 
envolvemos tudo numa cápsula resistente, impenetrável – e esperamos... Neste 
estado de clausura ninguém nos mata. Um amigo meu caiu nas mãos dum 
homem, enquanto dormia no interior da sua cápsula. O homem o mergulhou em 
água fervendo e até o enterrou num bloco de gelo – e meu amigo não morreu. 
Se não estivesse encerrado na sua couraça morreria logo. Assim somos nós. 
– Diga-me, Uzu, com quem estava você discutindo, há pouco. 
– Com Ifi, um grãozinho de clorofila, muito maior que eu. Pensa que é grande 
coisa, porque tem casa própria e trabalha num laboratório solar. 
– Tem casa própria? 
– Sim, uma casinha de celulose, com paredes lisas e maciças. Célula, dizem os 
homens. No centro dessa casinha está o núcleo celular. Ao redor dele, uma 
substância viscosa. Ao longo das paredes internas estão umas pequenas 
esferas. 
– Sei, sei, os plastídios. 
– E dentro de cada uma dessas esferas está um grãozinho de clorofila. Ifi é muito 
inteligente. Apodera-se duns sais que as raízes e as fibras da planta veiculam 
para o seu verde laboratório; mistura esses sais com luz solar – e sai coisa 
diferente, que não é nem sal nem sol, é açúcar, é amido, que sei eu! 
– Substância orgânica. 
– Ifi é uma feiticeira, como você vê, ó gigante de ontem. O que ela faz é magia. 
É só ela que possui o segredo dessa magia. Eu seria amigo de Ifi, se ela não 
fosse tão pretensiosa e insolente. É uma criatura graciosa cheia de inteligência 
e mistério. Ela não gosta de mim, porque sou cinzento e, quando trabalho, encho 
o ar de gases malcheirosos, como ela diz. Que quer? É a profissão das bactérias 
decompor o que é composto, e isto não vai sem gases. 
Houve uma pausa. De repente, gritou Uzu com voz estridente: 
– Arreda, arreda! lá vou eu! 
– Lá vai o sujalhão – disse uma vozinha simpática. – Boa viagem, Uzu, e bom 
proveito! 
– Que foi? que aconteceu? 
– Ora, ora! – disse Ifi. – Que havia de ser? não vê você essa frutinha lá no meio 
do capim? 
– Estou vendo, sim. 
– Pois, o Uzu se atirou a ela, esse sujalhão. Só gosta de coisas podres. Milhares 
de camaradas dele fizeram a mesma manobra. Daqui a dias, você verá que não 
resta nada da frutinha. Eles devoram tudo. Reduzem tudo a terra imunda. 
– Terra boa para adubar o pé do seu ingazeiro – observei, carregando de 
propósito na palavra “seu”. 
– É verdade – concordou Ifi. – É preciso... Mas eu, que sou poetisa por natureza, 
pouco simpatizo com a profissão prosaica de Uzu e seus colegas. Sou uma 
grande apaixonada do sol, da luz, do calor, de todas as coisas puras e belas... 
Enquanto eu me ia retirando, chegavam-me aos ouvidos palavras melodiosas 
que diziam em cadência rítmica: 
– Adoro o sol...Vivo da luz... 
Amo o dia... 
Detesto a noite... 
Meu corpo é verde... 
Meus olhos são claros... 
Ressuscito à vida 
O que a morte matou... 
Cubro de verdores 
A face da terra... 
Semeio sorrisos 
Pelas flores do prado... 
Difundo alegria 
Por toda a parte... 
Cumprindo a ordem 
Da Inteligência Suprema... 
Aleluia!... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Sociedade dos Cálices Vivos 
 
– Quando, daí a uma hora, passei pelo jardim, ainda estava Ifi falando ou 
cantando. Quando não tinha com quem discutir, falava consigo mesma. 
De súbito, percebi um longo e doloroso suspiro, que terminou nestas palavras: 
– É... Você é feliz... 
– Que foi? quem falou? – perguntei a Alu, que ainda estava no mesmo lugar. 
– É a esquisitona da Vorticela – riu-se a ameba, o que fêz com que se dividisse 
em duas partes mais rapidamente do que de costume, criando mais um filho. 
– Vorticela? onde está essa criatura? 
– Colada naquela pedra. 
– Colada, por quê? 
– É costume dessa família de seres. A Vorticela não sabe bem se é planta ou 
animal, e assim faz política para os dois lados: Move-se como animal, e fica 
presa pelo pé como planta. Para mim, é animal, por sinal que até é parenta 
minha, coitada... 
Agucei a vista e logrei descobrir um pequenino cálice, da forma desses em que 
se tomam licores finos, e com um pezinho tão comprido e delgado que antes 
parecia um fio de cabelo. Guarnecia a boca do cálice um círculo de pêlos ou 
cílios, em perpétuo movimento. 
Estendi o dedo para tocar no pequenino cálice preso no comprido pedúnculo – 
e zás! enrolou-se ele em forma de espiral, encolhendo-se todo e levando consigo 
a minúscula taça ciliada. Daí a pouco, tornou a distender-se lentamente e 
começou a executar movimentos giratórios sobre si mesmo, na água em que 
vivia. 
– Que está fazendo, madame Vorticela? – perguntei. – Está tonta? 
– Tonta? não conheço essa doença. Estou procurando o que comer. 
– Esse sino é sua boca? 
– É minha boca e sou eu mesma. 
– Você é planta ou animal? 
– Que filosofia atrasada! não creio nessas distinções dos homens. Eu sou uma 
célula viva, e basta! 
– Por que tem você esses cílios ao redor da boca? 
– Para atrair a presa; pois a gente tem de viver. Agito os cílios, produzo um 
redemoinho na água, e o incauto freguês que se achar ao meu alcance 
desaparece no meu estômago. 
– Você tem estômago? 
– Sim, sou eu mesma. 
– Você passa toda a vida a sós? 
– Não, nós, as Vorticelas, somos seres extremamente sociais. Vivemos em 
colônias. Eu ainda não tenho sócio, porque sou nova. Olha para a esquerda. 
Olhei e vi duas Vorticelas presas na ponta de dois pezinhos que partiam de um 
único tronco comum. Mais além, havia quatro, e até oito cálices vivos 
sustentados pela ramificação de um único tronco básico. 
– Vida em família, não é? 
– Vivemos em família, sim. Mas cada um de nós é uma célula completa. 
– Uma célula só? 
– Sim, cada Vorticela é uma célula apenas. Gostamos da simplicidade e da vida 
independente. Mas é vantajoso ficarmos juntas no mesmo pé. 
– Por quê? 
– Porque assim, quando um apanha um petisco e engorda pode ceder parte da 
sua gordura ao colega que teve menos sorte na caça e emagreceu. Nós, 
Vorticelas, somos comunistas; mas não nos matamos uns aos outros, como 
vocês, homens. O nosso comunismo não é para explorar nossos semelhantes, 
é para nos ajudarmos fraternalmente uns aos outros. 
– E quando um de vocês morre, para onde vai? 
– Morre? morre? que é isto? 
– Quando um de vocês deixa de existir? 
– Nós só deixamos de existir quando somos devorados por nossos inimigos. 
– E não morrem de velhos? 
– De velhos? nós não ficamos velhos. Somos sempre novos. Quando adultos, 
nos dividimos em dois, jovens um e outro. Vocês, homens, não fazem o mesmo? 
– Não – respondi, um tanto vexado. – Nós, depois de adultos, envelhecemos e 
morremos, com ou sem filhos. 
– Que seres atrasados! – exclamou uma das Vorticelas desenrolando-se toda. 
– Diga, madame Vorticela – observei, para desviar a conversa do assunto ingrato 
– que é que você sabe do mundo? 
– Do mundo? Oh! a história do mundo está toda dentro de mim, dentro deste 
cálice. 
Neste momento, passou a pouca distância um bando de micróbios, dos mais 
gostosos, e a Vorticela, redemoinhando valentemente com toda a falange dos 
seus cílios bucais, apanhou logo meia dúzia dos incautos estróinas e deu-lhes 
condigna sepultura dentro de si mesma. 
– Apanhou? 
– Apanhei e engoli. Olhe como engordei. 
– Você é cruel, madame. Viver da morte dos outros... 
Em vez da resposta, ouviu-se uma risadinha geral de todas as Vorticelas em 
derredor. Compreendi o melindroso da minha situação... Casa de vidro... 
– A história do mundo? só a conhecemos nós, os unicelulares, porque somos da 
primeira origem das coisas. Assistimos a tudo que aconteceu, e até hoje não 
mudamos de forma e caráter. Todo o respeito à evolução! mas... a tradição não 
deixa de ter as suas vantagens. Nós somos o que éramos e, seremos o que 
somos. Mas, quem melhor sabe contar isto é Alu. Ó Alu, conta a este homem 
ignorante algo da história do mundo. Você é mais antiga do que eu e tem mais 
experiência dentro da sua gotinha do que eu no meu cálice... 
Sentei-me comodamente sobre uma pedra coberta de musgo aveludado, 
procurei esquecer tudo o que sabia pelos livros papiráceos, para ouvir o que me 
diria esse livro vivo feito de albumina e mistério. Identifiquei o meu espírito com 
a alma da Natureza e escutei o que me dizia o microscópico arquiteto do 
universo. Fechei os olhos para melhor me concentrar. 
E ante meu espírito, enquanto Alu falava, rolaram milhares, milhões, bilhões de 
anos, de séculos, de milênios. Vi o vácuo primitivo... Vi nascer nesse vácuo algo 
de real, algo de tão tênue e sutil que apenas por um triz parecia estar separado 
do irreal... Vi esse tenuíssimo algo agitar-se caoticamente – assim me parecia – 
à procura dum termo, duma forma, duma razão de ser. Disse-me Alu que aquilo 
era a alma do Universo que impelia o corpo sutil desse algo. Essa alma era 
inteligente. Penetrava todas as coisas do mundo, e fazia de toda desordem uma 
grande ordem, de todo caos um esplêndido cosmos... 
Quando, por fim, depois de muitos milhões de invernos e de primaveras – disse 
Alu – esse tênue algo disperso se conglobou em núcleos maiores, em 
gigantescas esferas cheias de luz e calor, então começou nos espaços cósmicos 
a grande festa nupcial... Luminárias fantásticas rasgaram as trevas eternas... 
Sóis flamejantes, em silenciosa carreira, acalentavam a noite gelada das 
imensidades sidéreas. Novos astros emergiam a cada instante da taciturna 
amplidão do universo. E, pela força tangencial do seu movimento, projetavam de 
si parcelas da própria esfera, enchendo duma deslumbrante epopéia de globos 
a infinita solidão do cosmos... 
Alu falava com arder e entusiasmo e com tão arrebatadora eloquência e poesia 
que me esqueci de mim mesmo e me quedei, estupefato ante aquele gruminho 
de plasma gelatinoso, em que palpitava uma parcela da alma do Universo, da 
grande Inteligência da Natureza... 
– E onde estava você, nesse tempo? – perguntei, numa ligeira pausa. 
– Eu estava presente a tudo. Não era ainda esta gota de albumina que agora 
sou, mas a minha alma já existia. 
– Sua alma, Alu? 
– Sim, aquilo que dentro de mim existe de invisível, de vivo, isso já existia nesses 
tempos remotos. Minha alma é uma centelha da alma do Universo, uma fagulha 
do grande incêndio cósmico, um sopro dessa imensa tempestade que se lança, 
perene, indefectível, através de todas as artérias da Natureza, por todas as 
latitudes e longitudes, por todas as altitudes e profundidades do Universo. Não 
existia este ser unicelular que contemplas ó gigante de ontem, mas existia Alu, 
o íntimo quê de meu ser vivo. Quando o Eterno creou o Todo, creou também 
esta partícula mínima do Todo. Meu corpoé uma onda minúscula do grande 
oceano, onda que hoje emerge das águas, e amanhã submergirá no vasto 
elemento – porém minha alma vive sempre por entre os fluxos e refluxos dos 
fenômenos transitórios, por entre mil vicissitudes de formas diversas. Morre o ser 
vivo – mas não morre a vida. A vida é imortal. Submerge aqui – emerge acolá, 
em perene ressurreição. Como as águas que do seio do mar se erguem, 
levíssimos vapores, tangidos pelas auras, se difundem pela vastidão da terra, 
sobre ela dessem e, céleres, retomam o ponto de partida, para recomeçar a 
grande viagem aérea e terrestre – assim são todos os seres do Universo. 
Percorrem o seu ciclo, assumindo formas várias, sempre animados pelo sopro 
cósmico que os tange e impele para onde quer a grande Inteligência... 
– Minha alma – prosseguiu Alu, baixando a voz e tremendo ligeiramente, como 
que a recordar algo de doloroso – minha alma acompanhou a parcela ígnea dum 
grande astro que do seu primitivo centro se desprendeu, e com ele voei pelos 
espaços sem limite. Milhões de vezes circunscreveu essa parcela sideral o seu 
antigo centro, como se dele não se pudesse separar, apesar de separada, 
sempre atraída e sempre repelida – inexplicável mistério... Por fim, perdeu o 
calor primitivo... Arrefeceu-lhe a superfície... Solidificou-se aos poucos... Ainda 
estavam suspensas na tépida atmosfera gigantescos mares de águas em forma 
de brancos vapores, e mal conseguia a luz coar através dessa espessa cortina 
– quando minha alma recebeu este corpo que vês... 
– Nasceste, Alu, não foi? 
– Como quiser. Eu já existia antes de nascer, existia como vida cósmica, vida 
amorfa, água geral do grande oceano da vida; mas não era ainda esta onda 
concreta que agora sou, não era ainda indivíduo definido e separado do vasto 
substrato das outras vidas indefinidas. Eu era vida, mas não era ser vivo, 
indivíduo vivente. Quando a grande Inteligência – honra lhe seja! – me deu este 
corpinho de plasma, esta célula, como dizem os homens, desde então sou o que 
sou – o protozoário, a ameba Alu... E assim viverei, até que minha alma 
abandone este corpo e volte ao seio do imenso oceano vital, até que a grande 
Inteligência revista minha alma dum novo invólucro individual... 
............................................................................................................................... 
Depois disto, houve em torno de nós uma quietude imensa, solene... O jardim 
em derredor parecia dormir o sono da eternidade... E meu espírito, muito a custo, 
conseguiu voltar de regiões longínquas e sagradas para a profana realidade da 
vida cotidiana... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Entre Esqueletos Alvos e Negros 
 
Corriam as férias escolares. 
Minha irmã veio passar uns dias em minha casa, à beira-mar. Cada manhã, dava 
eu uma lição de primeiras letras a meu sobrinho Hélio, que na reabertura do ano 
letivo começaria a frequentar escola primária. Traçava-lhe na ardósia, com um 
pedacinho de giz, os caracteres do alfabeto, para que essas 25 chaves mágicas 
de todo o humano saber lhe fossem menos estranhas quando as visse no 
quadro-negro da aula. O garotinho empunhava o giz como quem pega numa faca 
ou num espeto e procurava imitar os brancos mistérios que eu desenhara, bem 
grandes, sobre o negror da lousa. 
Lá no fundo, a pouca distância do nosso verde caramanchão, murmuravam 
baixinho as águas azuis do Atlântico. 
Numa dessas tépidas manhãs de dezembro, quando Hélio trocara a ardósia e o 
giz pela bola de couro e borracha e se divertia no relvado próximo – ouvi 
subitamente, vinda do fundo do salso elemento, uma vozinha sutil, antes 
adivinhada que percebida. Escutei, não com os ouvidos corpóreos, mas com o 
sentido íntimo da alma. E percebi o que entredizia a vozinha estranha: 
– Escrevem com esqueletos sobre esqueletos... 
– Com nossas ossadas brancas sobre as ossadas pretas das nossas boas 
amigas, as algas – acrescentou outra vozinha com discreta risada. 
– Quem é que escreve com esqueletos brancos sobre esqueletos negros? – 
perguntei com a alma do meu subconsciente, porque sabia que só assim é que 
a alma dormente da Natureza reagiria à minha interpelação. 
– Quem? ora, que pergunta! – respondeu a primeira vozinha. – Vocês, mistérios 
ambulantes... 
– Quem é que fala? – perguntei. 
– Calcal – respondeu o ser invisível. 
– Quem é Calcal? 
– Sou um foraminífero, como vocês dizem. 
– Ah! um protozoário, um serzinho microscópico que vive dentro duma couraça 
cheia de orifícios pelos quais projeta os pés, não é? 
– Pés? assim afirmam vocês, mistérios ambulantes; mas nós não temos pés... 
– Os braços, então. 
– Nem temos braços. Só temos corpo, que derramamos ora por estes ora por 
aqueles buraquinhos do nosso invólucro. 
– Sei, sei, Calcal. Você é uma gotinha gelatinosa que vive suspensa nas águas 
do mar. Quando morre... 
– Perdão! Entre nós não se morre. Não existe esse mau costume entre os 
foraminíferos. Só morremos quando somos mortos por alguém. A nossa vida 
emigra dum corpo velho e imigra para dentro dum corpo novo – é a isto que você 
chama morrer? 
– Pois bem, amigo Calcal, digamos: quando você sai da pele. 
– Perdão! não tenho pele. Para que esse luxo? Só tenho um arcabouço feito de 
cal e sílica, e por sinal que bem bonito. Já viu? Ah, é verdade! Vocês, homens, 
com esses olhos tão grandes, não enxergam as coisas pequenas, e nós somos 
muito pequeninos... 
– Mas, eu já vi e estudei debaixo do microscópio o vosso esqueleto, que é, de 
fato, obra-prima de arquitetura e estética. Parece um finíssimo trabalho de renda 
e filigrana. Mas, permita que voltemos ao nosso assunto de a princípio. Por que 
falou você em esqueletos alvos e negros? 
– Não atinou? não sabe que a ardósia em que você escreve é formada de 
ossadas, de resíduos de algas e sargaços? 
– Ah! é verdade. Esquecia-me. Esses organismos primitivos que vivem nas 
águas decompõem-se aos poucos e deixam cair os detritos escuros dos seus 
corpos desfeitos para o fundo do mar, onde vão formando sedimentos, que aos 
poucos se solidificam e dão em resultado camadas consistentes – esta pedra 
escura que chamamos ardósia. 
– E sabe você, mistério ambulante, quanto tempo leva a Natureza para formar 
no fundo do mar uma dessas camadas, da espessura dum dedo de homem? 
– Tempos enormes. 
– Muitos milhões de anos. 
– Pois, eu vi em Algonkin, nos Estados Unidos, camadas de ardósia de milhares 
de metros de espessura. Quantos bilhões de anos, de séculos, não devem ter 
corrido sobre essas pedras sedimentares! 
– E nesse tempo já vivíamos nós, os foraminíferos; somos contemporâneos das 
algas. O giz com que você escreve é presente nosso. Quando a nossa vida 
emigra dum corpo velho e imigra para dentro dum corpo novo, deixamos cair a 
nossa ossada vazia, que desce ao fundo das águas, onde forma vastas camadas 
estratificadas. 
– Vi litorais calcáreos de Dover. 
– Pois, tudo aquilo é feito de esqueletos nossos. 
– Li que grande extensão do Himalaia, uns 4.800 quilômetros, é constituída de 
pedra calcárea. 
– Formada de resíduos nossos. 
– Quase todo o Mar Mediterrâneo está cercado de gigantescas barreiras de 
rochas brancas e cinzentas. 
– Relíquias dos meus colegas e antepassados. Até os seus ossos e dentes, ó 
homem, são obra nossa. 
– Como assim? 
– Constam de partículas calcáreas, substância que nós e outros seres extraímos 
das águas. 
– Que está dizendo, Calcal? 
– Pois é como digo... Os resíduos dos nossos corpos alvos formam camadas 
calcáreas no fundo das águas. Convulsões terrestres fizeram subir muitas 
dessas rochas por nós fabricadas. Soterradas debaixo de outros elementos, 
foram estas substâncias levadas pelas nascentes e pelas águas pluviais para 
outras partes, mescladas com a terra, dissolvidas na água, absorvidas pelas 
plantas – e assim vieram a circular, pelas vias do sangue, dentro do organismo 
humano –elementos do nosso corpo calcáreo... 
– Quer dizer que até os meus ossos e dentes já foram partículas do seu corpo, 
amigo Calcal? 
– Meu ou de outros seres congêneres. 
– De maneira que dentro de mim circulam elementos que assistiram à alvorada 
do cosmos? 
– Perfeitamente. Nem há em seu corpo um só átomo que seja exclusivamente 
seu. Já foi de muitos outros seres, antes de ser de você. 
– Esses elementos são, pois, como que pedras de alvenaria ou tijolos que entram 
hoje nesta, amanhã naquela construção? 
– Justamente. Depois da sua “morte” – como vocês chamam essa metamorfose 
do ser vivo – esses mesmos elementos, decompostos na terra ou em outra parte, 
vão ser novamente absorvidos por outros seres, que deles construirão o seu 
edifício orgânico. 
– A sua filosofia, amigo foraminífero, me enche de tristeza... 
– Por que, mistério ambulante? 
– Porque... neste caso... eu não sou propriamente eu... Sou apenas um outro 
“tu”, um “tu” número dois, número três, número quatro, número cem, número mil, 
número milhão e assim por diante... 
– Não se entristeça por isto, ó homem! O seu Eu é integral e exclusivamente seu, 
e de mais ninguém. Muita e vária é a matéria – uma só é a sua alma de cada 
ser. A alma é que vivifica. A alma é que individualiza e personaliza o ser. Sua 
alma nunca foi nem nunca será de outrem. É sua. Toda sua. Sua e de mais 
ninguém. 
Calei-me, entregue a estranhas cogitações... 
Quando Hélio regressou do prado e me caiu como um pé de vento no 
caramanchão, voltei de chofre à realidade. Qual miragem desvaneceu-me da 
alma aquele mundo invisível – e tão real... 
Guiando a mãozinha inábil do garotinho, continuei a traçar com o alvo esqueleto 
dos foraminíferos grandes caracteres sobre o negro esqueleto das algas pré-
históricas... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Colóquio Noturno 
com Ignis e Lúcia 
 
Era intenso o inverno daquele ano. 
Naquela altitude de quase 2.000 metros amanhecera a campina toda branca de 
geada. A noite próxima prometia ainda ser mais fria, porque o céu brilhava numa 
transparência nunca vista, as estrelas eram limpidíssimas e a via-láctea 
fosforescia com grande nitidez. Eu conhecia esses prenúncios... 
Sentei-me ao pé da tépida lareira feita de cerâmica e deitei uma pazada de 
carvão sobre a brasa. Reclinado na cadeira de braços, tinha sobre os joelhos um 
caderno escolar em que alinhava os capítulos deste livro. 
Nessa noite, porém, quase nada escrevi. Estava tão cansado que logo adormeci, 
enquanto o fogo crepitava alegremente na lareira. 
No meio do carvão miúdo que eu lançara ao fogo havia um pedaço maior e mais 
duro. Quando o ardor se apoderou dele e lhe penetrou no interior, despertou a 
alma dormente do carvão de pedra. Ergueu-se em forma de linguinha rubra e 
pôs-se a lamber sofregamente em redor de si, como se estivesse com muita 
fome. 
E com muita fome estava ela, a alma ígnea do escuro carvão... 
– Onde estou? – perguntou a meia-voz a alma flamejante, olhando em derredor. 
– Não sei – segredou outra linguinha de fogo que ao lado da primeira se erguera. 
– Está tudo tão mudado... 
– Quando adormecemos – prosseguiu a primeira – estávamos rodeadas de 
imensas florestas, árvores que atingiam quase as nuvens do céu – e agora não 
vejo árvore alguma... 
– E aquele animal sentado aí, de corpo vertical, que será?... 
– Não é como os do nosso tempo, que tinham corpo horizontal e cabeça para o 
lado. Este tem a cabeça para cima... 
– Parece que foi ele que nos despertou do longo sono. Voltamos a ser luz como 
éramos antes que os raios solares nos encarcerassem nos tecidos celulares da 
madeira. 
– Se foi esse ser vertical que nos despertou do sono deve ser mais inteligente 
que todos os seres vivos horizontais do nosso tempo. Será que ele sabe falar? 
– Parece que não. Quando, acordei, estava ele se entretendo em lançar uns 
rabiscos pretos sobre umas lâminas brancas, sem dizer nada. Depois parou, 
fechou os olhos e ficou assim como está agora, meio morto. 
– Vou espiar o que esse estranho animal rabiscou nas lâminas brancas que tem 
sobre os joelhos. 
A linguinha ígnea nascida do grande pedaço de carvão ergueu o corpo oscilante 
e flexível a mais de meio metro de altura, de maneira que a cabecinha em forma 
de flecha ficava acima dos joelhos do dormente e iluminou com a sua alma lúcida 
as poucas linhas negras que eu lançara sobre o papel antes de adormecer. E 
disse à companheira: 
– Se esse animal tem inteligência, não deve ser grande coisa. Os desenhos que 
ele fez na lâmina branca não têm beleza alguma. Você se lembra, Lúcia, dos 
desenhos artísticos dos nossos corpos, quando éramos madeira? 
– Ah! que maravilha, esses desenhos, Ignis! Tenho saudade daqueles tempos... 
Os meus, em parte, ainda persistem no meu corpo de hoje, petrificado em escuro 
carvão. Naquele tempo, o meu corpo era cor de ouro e neve com uns traços 
longitudinais de sépia. Através das minhas artérias circulavam as seivas da 
árvore. Veio então aquele cataclisma que nos soterrou centenas de metros. Morri 
sufocada debaixo duma montanha enorme. Morreu-me a alma vegetal que viera 
da terra, mas continuou a viver em mim esta alma ígnea que recebi do sol. 
– E esta não morre nunca, parece. 
– Será que agora a nossa alma ígnea não está morrendo? vejo o meu corpo 
negro reduzir-se a cinzas... 
– Não, Lúcia, a nossa alma de fogo não pode morrer. Agora, depois de dormir 
muito tempo no seio da madeira e do carvão, ela despertou, e alma desperta e 
vígil não pode ficar presa dentro desse cárcere material. Tem de ser assim 
mesmo como é. 
– Mas, depois de sair daqui, Ignis, para onde vai ela? 
– Volta para os espaços celestes donde veio. E, algum dia, quando o sol quiser, 
tornará a entrar dentro da matéria, para dormir mais um grande sono. A nossa 
vida é assim, Lúcia, uma eterna circulação, dentro e fora da matéria. Dentro da 
matéria dormimos esse sono inconsciente das energias potenciais, e fora da 
matéria vivemos essa vida consciente das energias vivas e atualizadas. 
– A nossa vida é bela, não achas Ignis? 
– Bela, belíssima. O fogo é o que há de mais belo em todo o Universo. Possui 
todas as propriedades que um ser perfeito deve possuir. É luminoso. É ardente. 
É puro. É forte. É leve. É ágil. É imortal. É eterno. Por isto, o sol é de fogo, porque 
é a fonte de todas as perfeições da Natureza. Sabes que beleza o sol dá às 
plantas e aos animais? Todas as cores. Muita alegria. A plenitude da vida... 
Enquanto Ignis se exaltava cantando com entusiasmo a apoteose do misterioso 
elemento, contemplava Lúcia, pensativa, o semblante do animal dormente 
sentado na cadeira, com umas delgadas lâminas brancas sobre os joelhos. De 
vez em quando, as feições do dormente se contraíam de leve, como que num 
sorriso quase imperceptível. 
– Esse animal não dorme – disse a chama. 
– Dorme, sim – respondeu a outra. – Mas, parece que a alma dele está viva 
dentro desse corpo. É como nós: dorme, mas vive. 
– Vou ver de que são feitas aquelas lâminas brancas que ele tem sobre os 
joelhos. Não me parece estranha a substância. 
Antes que Ignis pudesse desaconselhar a companheira de executar o seu 
intento, esta já se inclinara sobre as tênues lâminas e começou a acaricia-las de 
leve com a pontinha da língua. 
– São de madeira lisa, lisa, lisa! da nossa madeira! – exclamou. 
Não terminara a frase, quando as folhas de papel estavam em chamas. 
Acordei, estremunhado. Lancei de mim o caderno e apaguei o fogo que 
começava a devorar o que eu escrevera. 
As duas chamas da lareira recuaram por momentos, agachando-se ao pé da 
parede de cerâmica. 
Tornei a sentar-me na cadeira, mais longe do fogo. Relembrei o que sonhara, e 
continuei a sonhar de olhos abertos. Minha alma, porém, continuava sintonizada 
pela onda rubra daqueles seres ígneos: pois só assim podia eu compreender- 
lhes a misteriosa linguagem. Quando Lúcia percebeuo estrago que causara, 
ergueu a cabecinha, tímida, e murmurou: 
– Desculpe, ilustre animal, o susto que lhe dei e o prejuízo que lhe causei... Não 
foi por mal... Eu... eu... 
– Está desculpada, flâmula amiga. 
– Obrigada. Meu nome é Lúcia... 
– O meu é Ignis – acrescentou a outra. 
– Eu sou homem, e não animal. 
– Homem? que é isto? – perguntou a maior das duas chamas. 
– Homem? que é isto? – repetiu a menor. 
– No nosso tempo não havia sobre a terra esse animal – desculpe! – esse... esse 
ser vertical chamado homem... 
– E de cabeça para cima, como nós – disse Lúcia, com certo orgulho. 
– É verdade, vocês, isto é, vossos corpos, nasceram uns 300.000.000 de anos 
antes do aparecimento do homem à face deste planeta. 
– 300.000.000 de anos? – disse Ignis cheia de pasmo. 
– 300.000.000 de anos? – repetiu Lúcia, arregalando os olhos de fogo. 
– E dormimos todo esse tempo? 
– Sim, minhas amigas ígneas, há uns... 300.000.000 de anos que quase toda a 
terra estava coberta de florestas imensas. A atmosfera era tépida e úmida, e 
disto gostam as plantas, 
– É mesmo – concordou Ignis. 
– É mesmo – repetiu Lúcia. 
– Até nos atuais pólos terrestres não reinava esse frio intenso de hoje. Chovia 
muito, porque o ar andava todo saturado de vapores d’água. Desenvolveram-se 
então fantasticamente as árvores, formando gigantescas selvas, de pólo a pólo. 
Mais tarde, em virtude de violentos abalos da crosta terrestre ainda não 
suficientemente solidificada, foram soterradas enormes florestas e, cobertas de 
montanhas, petrificaram-se aos poucos, no fundo da terra, dando em resultado 
o chamado carvão de pedra. Nessas camadas carboníferas ainda hoje se 
encontram troncos e galhos de árvores com a sua forma primitiva, mas reduzidos 
a pedra inerte, pedra feita de madeira. 
– Espantoso! – exclamou Ignis. – Como é que você, homem sublime, sabe de 
tudo isto, se a sua raça, como diz, nasceu 300.000.000 de anos depois desses 
acontecimentos? 
– Nós, os homens, possuímos inteligência, espírito, razão, que tem a faculdade 
de descobrir tudo isto. 
– E nós, minha companheira e eu, olhando os rabiscos que você lançara nessas 
lâminas brancas, achávamos que era um ser de pouca inteligência, porque os 
rabiscos eram feios... 
– Os rabiscos, isto é, as letras, servem apenas para fixar o nosso pensamento, 
mas eles não são o pensamento. Se fôssemos ainda mais inteligentes do que 
somos, não haveríamos mister servir-nos desses rabiscos; poderíamos ter na 
cabeça grande cópia de pensamentos ao mesmo tempo, sem necessidade de 
os fixar no papel. Há seres muito mais perfeitos e inteligentes do que nós, e 
esses seres não se servem de papel nem de adjutório material algum para fixar 
os seus pensamentos. O mais inteligente de todos os seres inteligentes é Deus, 
Autor de todas as coisas... 
Ao ouvirem a palavra “Deus”, as duas chamas de fogo se abateram 
repentinamente, rojando sobre o fundo da estufa, em sinal de reverência. Depois, 
reerguendo-se, conservaram-se por alguns minutos em atitude erecta, hirta, 
imóvel, como duas espadas rubras, prestando destarte culto de tácita adoração 
ao Soberano do Universo. 
– Deus! – murmurou Ignis, num ímpeto de amor. 
– Deus! – disse Lúcia, com solenidade. 
– Deus! – repeti eu, erguendo os olhos ao céu. 
Houve minutos de grande silêncio, interrompido apenas pelo discreto crepitar 
das brasas no fundo da lareira. 
Depois, aproximando-se de mim, perguntou Lúcia em tom confidencial: 
– Então, nós dormimos todo esse tempo – 300.000.000 de anos? 
– Mais ou menos. Dormiram muito. Sua alma solar ficou como que presa no 
castelo encantado da madeira e do carvão. Contam nossos poetas a história 
duma princesa que vivia num palácio cercado de muralhas altíssimas e 
defendido por feroz dragão. Pelas artes mágicas duma feiticeira foi a jovem 
submersa num sono profundo e misterioso, do qual só a poderia despertar um 
príncipe que escalasse as muralhas, matasse o dragão e depositasse um beijo 
de amor na fronte da princesa encantada. Passou-se um século, século de 
inúmeras tentativas infrutíferas para penetrar no misterioso castelo. Potências 
sinistras vedavam o ingresso. Até que, finalmente, um corajoso príncipe vindo 
de longe, munido de forças secretas, escalou as muralhas, matou o feroz dragão, 
depositou um beijo na fronte da princesa dormente – e ela acordou para a grande 
alvorada da vida, para a jubilosa primavera do amor. 
Assim contam nossos poetas. 
Essa história não é apenas ficção e fantasia; é pura realidade, minhas amigas 
ígneas. A princesa dormente é a energia solar, luz e calor, encarcerada no seio 
escuro da lenha, do carvão, em outras substâncias combustíveis. Nesse castelo 
encantado tem ela de dormir o seu misterioso sono secular, milenar, multimilenar 
– até que algum agente de fora a venha despertar dessa estranha letargia para 
a grande vigília, até que a energia latente e potencial se transforme novamente 
em energia ativa e atual, como era a princípio quando irradiou do sol – luz e 
calor... 
– E quem foi que nos despertou do sono para a vida real? – perguntou Lúcia. 
– No caso presente fui eu. Risquei um fósforo, toquei com a pequena chama a 
energia potencial do carvão, e essa energia dormente despertou para a vida da 
energia vígil. 
– Então és tu o nosso príncipe libertador! – exclamou Lúcia com tão rasgado 
gesto de simpatia que quase atingiu as folhas do meu caderno. Quis até abraçar-
me, mas tive tempo para impedir esse amplexo de amor que teria sido por 
demais doloroso para mim. 
– Viva nosso príncipe libertador! – bradou Ignis, lançando a cabeça e metade do 
corpo flexível para fora da estufa. 
Lúcia fez coro à irmã. 
Agradeci a entusiástica manifestação de amizade e prometi às duas chamas 
escrever este capítulo em sua honra. Estou cumprindo a promessa. 
Por volta da meia-noite, quando já havia na lareira mais cinzas que carvão, 
quando o sono se apoderava de mim e os corpos carbônicos de Ignis e Lúcia 
estavam quase consumidos por sua alma flamejante, despedi-me das luminosas 
e ardentes amigas, dizendo: 
– Adeus e boa-noite, amiguinhas de fogo! Quando as vossas almas solares 
estiverem outra vez sem corpo, difusas pelo espaço infindo, dai lembranças 
minhas a nosso grande amigo e pai, o Sol, e saudai Aquele de quem o sol é 
esplêndido símbolo – Deus... 
– Deus – segredou Ignis. 
– Deus – murmurou Lúcia. 
– Deus – repetiu minha alma. 
E fez-se grande silêncio, na lareira, na sala, dentro de mim – por toda a parte... 
 
 
 
 
Uma Alma em Quatro Corpos 
 
Passei aquele inverno todo num ambiente de estranha nostalgia... 
O colóquio noturno com Ignis e Lúcia me deixara na alma uma aura de suave e 
dolente saudade... Percebi com surpresa quanto me afeiçoara a essas amigas 
etéreas dos espaços cósmicos, que eu libertara da prisão material de longos 
milênios. Dia a dia, andava eu à sua procura. Onde estariam elas? Percorriam 
os espaços celestes em forma de raios solares, mas não havia meio de identificá-
las. De mais a mais, as nuvens e os nevoeiros lhes impediam a passagem. 
Toda noite, quando era intenso o frio daquele mês de julho, sentava-me eu ao 
pé da laranjeira, deitava lenha e carvão ao fogo, contemplava as linguinhas 
rubras, e escutava o discreto crepitar da sua alegria – mas não encontrava entre 
as numerosas flamas, pequenas e grandes, quem tivesse a alma de Ignis e 
Lúcia. 
Por que me parecia tão belo e poético o meu primeiro amor? Somente por ser o 
primeiro? Adivinhei que esse amor seria também o último, o único... 
Ignis era o perfeito ideal duma chama adolescente, duma graciosíssima filha 
solar: esbelta, esguia, flexível, ardente, cheia de mistério. Lúcia, com aquele seu 
arzinho de menina ingênua, com os seus entusiasmos francos e sinceros, 
difundia-me na alma um como que perfume sutil de intata pureza e sagrada 
reverência... 
Onde estariam elas? 
Sempre paraalém dessas nuvens cinzentas que toldavam o espaço e apagavam 
todos os sorrisos do sol... 
* * * 
Em princípios de agosto, após dois meses de repouso hibernal, começaram a 
brotar as roseiras, porque o sol começava a restabelecer o seu domínio sobre a 
terra, derrotando a última retaguarda do inverno. 
Numa dessas manhãs em plena convalescença, estava eu sentado no tosco 
banco de bambu, no jardim de minha casa, sonhando de olhos abertos. Ignis e 
Lúcia, que é feito de vocês? perguntava em silêncio minha alma – quando 
percebi com viva surpresa as seguintes palavras: 
– Ignis e Lúcia? São minhas amigas... 
– Quem é que fala? – exclamei. 
– Lalá. 
Olhei na direção donde partira o som, e vi uma borboleta com asas cor de tijolo 
debruadas de preto. Pousava tranquilamente sobre uma flor de aristolóquia, que, 
de contrabando, brotava junto à cerca do meu jardim. 
– Como? – estranhei. – Você conhece Ignis e Lúcia? essas lindas filhas do sol? 
– Ora, ora! – casquinou Lalá, com ares de leviandade, e, antes de prosseguir, 
enterrou a finíssima tromba espiralada no pequenino cálice da flor em que 
pousava. 
– Por favor, Lalá, diga-me, você conhece mesmo Ignis e Lúcia? 
– Se conheço! Pensa que eu estaria aqui se não fossem elas? Sem luz e calor, 
borboleta não voa. Foram também elas que conduziram minha alma, através de 
três noites, para este grande dia... 
E enterrava a delgada espiral nas flores da Zínia. 
– Três noites? que está dizendo, Lalá? não compreendendo a sua linguagem... 
– Sim três noites, meu sonhador, três noites imensas. A noite do ovo, a noite da 
larva e a noite da crisálida. Ou melhor, duas pleni-noites, e uma semi-noite... 
– Que linguagem misteriosa, Lalá! estou sem nada compreender. 
– Disse uma grande verdade, meu sonhador. Os homens nunca entenderam 
nada de nossa vida. Escreveram milhares de livros sobre nós, mas não sabem 
nada da nossa vida íntima. 
– Pelos modos, você é da escola dos irônicos, não é? 
– Dos místicos, se me faz favor. 
– Ah! logo vi... Estou sendo mistificado... 
– Não é isto, meu sonhador! Mística não é mistificação. Mística é uma vida na 
mais alta potência. Mística é mistério. 
– Mas... diga-me, que vêm a ser essas três noites, essas duas pleni-noites, e 
essa semi-noite? 
O leviano lepidóptero cor de tijolo e carvão compôs lentamente as quatro asas, 
duas pontudas e duas arredondadas, recolheu para dentro dum estojo invisível 
a graciosa espiral da tromba, e disse, olhando para mim com seus milhares de 
olhos facetados reunidos em dois hemisférios furta-cores: 
– Já lhe disse, meu sonhador em pleno dia, o que foram essas três noites da 
minha vida. Três noites são necessárias, na vida de toda borboleta, para que 
nasça o grande dia. Apareci neste mundo luminoso em forma dum minúsculo 
ovinho, que minha mãe, num tépido dia de sol, colou debaixo duma folha. 
Ovinhos em série, um ao lado do outro, em distância simétrica, lembrando 
pequeno favo de abelhas. Eram, todos eles, da cor da luz solar. O sol, que coava 
através da folha, envolvia em clarões esverdeados o meu primeiro berço. Mas, 
apesar da luz, era noite, porque eu dormia. E não podia acordar. Forças 
estranhas impediam que eu despertasse. Passado, porém, o tempo prescrito 
pela Natureza, rompi de repente a estreita clausura do ovo – e vi-me num 
deslumbrante prado esmeraldino. Era a face inferior desta folha de aristolóquia. 
– Por que precisamente esta planta? 
– Porque mamãe borboleta conhece as plantas e sabe que seus filhos não 
comem senão folha de aristolóquia. Os homens dizem que é planta venenosa, 
porque o sangue dela é um leite pegajoso que os animais desprezam. Se eu 
tivesse de procurar este prato saboroso, morreria antes de o encontrar. Mamãe 
borboleta, porém, tem asas e encontra tudo que quer. Pôs o meu berço na face 
inferior duma folha de aristolóquia, ao abrigo dos ventos e das chuvas, e ao 
alcance dos beijos do sol. Mamãe devia ser inteligente e boa; mas eu nunca a 
vi. Ao terminar a primeira noite da minha vida, ela, parece, já não existia... 
– E que fez você, Lalá, depois de sair da casquinha do seu ovo? 
– Fiz o que faz toda lagarta, da manhã até à noite: comer e digerir, digerir e 
comer. 
– Arre! que materialista que você é! 
– Materialista? eu sou a rainha da espiritualidade! Vivo nas alturas da pureza 
solar. Vivo de luzes, perfumes e néctar. 
– Desculpe, Lalá. Eu me referia a seu passado, e não ao presente. 
– Pois o passado de “é”, segundo sua língua, é “foi”. Fui materialista. Cumpri a 
minha missão. A única tarefa da lagarta é comer e digerir, não por amor a essa 
ocupação primitiva, mas para armazenar material de construção. 
– Material para quê? 
– Para a construção do edifício artístico que eu ia levantar. 
– Que edifício? 
– Este corpo de borboleta. Não vê você que é uma maravilha de arte e estética? 
O que eu, quando lagarta, fazia com as verdes folhas que comia não era senão 
desbastar ligeiramente a matéria-prima para a futura construção – assim como 
vocês, homens, arrancam das montanhas ou do fundo da terra blocos de pedra 
e os transportam para a oficina de alvenaria. Esses blocos, brutos e informes, 
não servem para paredes e colunas dum edifício de estilo e bom gosto; têm de 
ser primeiramente trabalhados por instrumentos vários, até que apresentem a 
forma desejada. Pois saiba você, meu sonhador, que vida de lagarta é apenas 
serviço de pedra bruta, extração de matéria-prima. Para nós, essa matéria-prima 
está nos tecidos celulares das folhas que trituramos. São as minas que nos 
fornecem material de construção. 
– E quem dá forma a esses blocos que você arranja? 
– Devagar! devagar! A pressa é inimiga da perfeição. Depois de algumas 
semanas de incessante comer e digerir, quando o meu corpo atingira quase o 
tamanho de seu dedo mínimo, comecei a sentir dentro de mim algo de estranho 
e indefinível, um misto de medo e tristeza, umas como saudades dum mundo 
que nunca vira... Deixei de comer, um dia, dois dias, e não sentia fome com todo 
esse jejum... Abandonei a companhia das outras larvas, minhas irmãs, algumas 
das quais estavam também imóveis e melancólicas. Sentia imperiosa 
necessidade de estar só. Retirei-me do cenário habitual da minha faina 
gastronômica, e fui caminhando, caminhando, sem saber para onde... Minha 
alma, porém, me guiava com segurança... As folhas da aristolóquia eram 
movediças e sempre agitadas pelos ventos... Eu tinha o desejo de encontrar algo 
de mais firme e sólido, algum cantinho sossegado onde pudesse morrer em 
paz... 
– Morrer? 
– Sim, a sensação que eu tinha era a de quem se dispõe a morrer. E, ao mesmo 
tempo, sabia eu – sabia? – não, entressabia, pressentia, adivinhava 
obscuramente que aquela morte era porta aberta para alguma vida 
desconhecida. Nos horizontes vespertinos do meu iminente ocaso pareciam 
correr tênues sorrisos de alvorada. O meu medo era uma longínqua esperança 
envolta em ansiosa expectativa... Dada a confiança que eu tinha na grande 
Inteligência da Natureza, entreguei-me sem reserva a seus cuidados... 
Depois de encontrar um cantinho sossegado, debaixo do galho duma laranjeira, 
suspendi-me, de cabeça para baixo, presa numa gotinha de goma que tirei da 
boca, e nessa goma me prendi com a outra extremidade do corpo... 
– Você fez isto, Lalá? enforcou-se?... 
– Se assim quiser chamá-lo, diga que me enforquei, mas de modo diferente e 
por motivos diversos do que vocês, homens, quando fartos da vida, se enforcam, 
de cabeça para cima. Eu não estava farta da vida, estava ansiosa e impaciente 
por uma vida mais plena e mais intensamente vivida do que a que eu vivera até 
então... Queria morrer para essa semivida a fim de viver uma pleni-vida... A isto 
me impelia a grande Inteligência da Natureza... 
– Que horror, estar suspenso assim debaixo dum galho, de cabeça para baixo, 
sem saber o que vai acontecer!... 
– Nada acontece o que acontecernão deve... Tudo faz parte dum plano eterno... 
Depois de assim suspensa sob o galho da laranjeira, perdi os sentidos. Lembro-
me apenas vagamente que fui encolhendo o corpo até ficar curto e grosso. A 
minha pele perdeu a cor amarelo-preta e cedeu a uma tonalidade escura, 
uniforme. 
Passaram assim uns dez dias, período de inexplicáveis mistérios. Eu de nada 
saberia se dentro de mim não vigiara a grande Inteligência da Natureza, que tudo 
dirige assim como deve ser, com grande sabedoria, arte e amor. 
– Conte, Lalá, o que aconteceu durante esse período. 
– Aconteceu o que sua pequena inteligência consciente não poderá 
compreender jamais, jamais... Sei que anda no meio dos homens um livro 
intitulado “Mil e Uma Noites”. Pois, o que esse livro diz ter acontecido em mais 
de mil noites, isto, e mil vezes mais, aconteceu comigo naquela única noite que 
decorreu entre a minha vida de larva e de borboleta... Abriram-se portas 
secretas... Acenderam-se lâmpadas maravilhosas... Fórmulas mágicas tornaram 
realidade o impossível... Houve resposta a grandes enigmas... Príncipes ignotos 
escalaram muralhas e penetraram em palácios encantados... E uma princesa 
dormente despertou para a vida, às carícias dum beijo de amor... 
– Mas como foi, Lalá, como foi? Ardo de impaciência por saber o que aconteceu, 
durante essa misteriosa noite... 
A borboleta desdobrou as quatro asas cor de tijolo e carvão e ergueu-se aos 
ares, com o silêncio e a leveza dum sopro de Deus. Pensei que se fosse embora, 
mas foi pousar sobre uma flor próxima, desenrolou a boca em espiral e sugou 
uma gotinha de néctar. Depois tornou a pousar onde estivera, e disse: 
– Almocei. E agora tenho forças para contar o que aconteceu naqueles dez dias 
da minha última escuridão. No segundo dia após a minha suspensão sob o galho 
da laranjeira, saí da pele. 
– Saiu da pele? 
– Sim, encolhi-me tanto, tanto, fiquei tão curta e grossa que – zás! arrebentou-
me a pele pelas costas. Agitei-me quanto pude naquele estado inconsciente, e 
consegui que a delgada película escura se desprendesse e caísse por terra, ao 
meio do capim que rodeava a laranjeira. 
– E você, onde ficou? 
– Eu? fiquei onde estava, suspensa debaixo do galho, presa por uma hastezinha 
preta, que era aquela mesma goma com que me prendera. O que lá ficou 
suspenso não era eu, a lagarta. Era um ser infinitamente lindo, gracioso e 
artístico... 
– A crisálida, não é? 
– É assim que está nos livros papiráceos dos homens. Crisálida, pupa, ninfa, 
casulo – que sei eu?... O que lá estava, de cabeça para baixo, era uma 
bonequinha verde-clara, tendo na parte superior um anel de ouro, e, na parte 
inferior, dois pontinhos dourados. A forma era indescritível, meio cilíndrica, 
parecida com uma bolota, terminando em cima num gracioso cone cuja ponta 
superior se prendia ao galho. 
– E que havia dentro dessa bonequinha verde? 
– Lá dentro estava eu, imagine! 
– Você estava lá dentro? com essas asas enormes? com essas pernas 
compridas? com essas lindas cores? 
– Tudo isto estava dentro da crisálida, mas em outro estado. A matéria e força 
de tudo isto. Durante aqueles dez dias, minha alma não teve um momento de 
descanso. Foi um trabalho intenso, intenso... Assim que se viu bem isolada e 
com todas as portas fechadas, apoderou-se logo da matéria-prima, daquele 
verde mingau que eu, quando lagarta, preparara das folhas da aristolóquia, e, 
discriminando os diversos elementos de construção, pôs-se a arquitetar o corpo 
da borboleta. Dentro do mingau havia de tudo para a construção do meu corpo 
definitivo: cabeça, tronco médio e traseiro; seis pernas articuladas; quatro asas 
com artísticos desenhos; um par de olhos facetados com milhares de retinas 
visuais; uma tromba espiralada atravessada por um canal e com um pequeno 
estojo para acondicionamento quando em repouso. 
– Tudo isto se achava dentro da crisálida? 
– Devia estar lá dentro, de algum modo. Do contrário, não podia sair. 
Durante aqueles dez dias, minha alma encerrada na auriverde bonequinha não 
fez senão preparar o meu futuro. Selecionou os elementos contidos naquela 
massa esverdeada, apurou, aperfeiçoou e distribuiu o material de construção 
para o meu corpo – ah, sr. homem! alma de borboleta é coisa inteligente, muito 
inteligente!... 
– Sei, sei. É a alma da Natureza, a grande Inteligência do Universo. Continue, 
Lalá. 
– Quando minha alma acabava de formar todas as partes, membros e órgãos do 
meu corpo, rompeu o invólucro da crisálida – e do interior saí eu... 
– Com essas asas enormes, Lalá? 
– Sim, com estas mesmas asas de seda e veludo; mas elas estavam 
cuidadosamente dobradas sobre si mesmas, moles e flexíveis como folhas de 
celofane. Assim que me vi fora da clausura, agarrei-me com quantas pernas 
tinha ao invólucro vazio e comecei a desdobrar lentamente as quatro asas, 
agitando-as ligeiramente para secarem; pois estavam ainda úmidas. Ah! que 
momento solene, aquele!... pelos milhares de olhos a dentro me entrou o mundo, 
um mundo de luzes e cores, coisas fantásticas que quase me deram vertigens... 
Eu não sabia nada disto... Mesmo a minha vida de lagarta não passara dum 
cárcere crepuscular... Duas noites e uma semi-noite... E agora esse dia imenso 
repleto de infinita claridade... Senti-me feliz, muito feliz... Sabia que estava na 
altura da vida, que mais alto não podia subir... Tive uma vontade imensa de 
comunicar a alguém a minha grande felicidade, porque ela já não cabia dentro 
de mim... Eu era pequenina demais para algo tão grande, como era aquela 
felicidade... Era muito maior que eu mesma... Não sei como essa felicidade não 
me fez estalar o corpo em mil fragmentos... 
Quando senti as minhas asas enxutas e firmes, agitei-as de leve – funcionavam 
sem o menor ruído – e vi-me suspensa no ar, nuns fiozinhos de luz... Que coisa 
linda é voar! pairar no espaço vazio inundado de luzes... Veio uma aragem e 
levou-me consigo – e eu me deixei levar, ébria de alegria, de gozo, de inefável 
delícia... A terra era verde, o céu azul, a atmosfera tépida – tudo lindo e 
encantador... Divisei ao longe um como clarão avermelhado e fui em direção a 
esse ponto. Dei com um canteiro cheio de flores. Tomei a primeira gota de néctar 
da minha vida, e vi que inúmeros seres iguais a mim adejavam pelos espaços 
transparentes e gozavam a vida como eu. 
Mais tarde, travei conhecimento com um companheiro, e tanto gostamos um do 
outro que resolvemos transmitir a outros seres a nossa grande felicidade. A 
felicidade é como a luz solar: não quer ficar dentro do sol, mas correr mundos e 
iluminar tudo que é escuro. Quando a nossa felicidade atinge a sua plenitude 
transborda para outros seres, e, quando esses não existem, dá-lhes existência 
para que possam ter parte em nossa excessiva felicidade... 
Calou-se por instantes Lalá, como que a recordar algo de imensamente querido 
e suave. Urna abelha com rebrilhos de ouro passou perto de nós, pousou por 
momentos sobre a mesma folha em que estava a borboleta, mas, levada pelo 
gênio irrequieto que caracteriza esses fabricantes de mel, logo tornou a 
desaparecer com forte zumbido. 
Lalá, parecendo antes falar a si mesma do que para ser ouvida por alguém, disse 
à meia-voz: 
Ovo, lagarta, crisálida, borboleta – 
Tudo isto sou eu... 
Uma alma em quatro corpos – 
E essa alma não cabe em si mesma... 
Vive fora de si – 
De tão feliz... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vida de Trevas – Núpcias de Luz 
 
Cri, crii, criii, criiiiiiiiiii... 
Assim vibravam os ares estivos em derredor... 
O pomar inteiro parecia repleto dessa estranha chieira, vibrante, estrídula, como 
o rufar de mil pequeninos tambores... 
Procurei localizar os invisíveis autores dessa música isocrônica, mas foi trabalho 
difícil, porque eles estavam colocados de tal maneira nos galhos das árvores que 
pareciam pedacinhos da cascacinzenta. E, para melhor despistar os seus 
numerosos inimigos, sabem modular estranhamente a força dos seus sons, 
parecendo estar ora perto, ora longe de quem os escuta e procura. 
Mesmo assim, consegui identificar um desses músicos alados – uma cigarra de 
estio... Quando se viu descoberta, calou-se e quis fugir. Hipnotizei-a, porém, 
rapidamente, com um olhar, e consegui que me contasse algo da sua vida. 
O seu nome era Tchi. 
Enquanto o estranho inseto falava, com vozinha melancólica, senti-me tomado 
de tão profunda emoção e tristeza que os olhos se me encheram de lágrimas... 
O que me disse o corpulento cicadídeo, de olhos enormes e asas transparentes 
como vidro, é tão estranho, tão dramático e trágico, que seria incrível se não 
fosse contado pelo próprio protagonista e vítima do fenômeno. 
– Por que é que você canta tão desesperadamente? – perguntei. – Não tem 
medo de rachar mais uma vez? não é que deixou a sua primeira pele, rachada 
pelas costas, colada nesse tronco?... 
– Canto, canto muito, canto sem parar – respondeu a cigarra – porque viver é 
cantar. Passei em silêncio 17 anos, no fundo da terra... 
– Que está dizendo, Tchi? você passou 17 anos1 no fundo da terra? foi enterrado 
vivo e não morreu?... 
1. É a ninfa da Cicada septemdecim, que leva 17 anos de vida subterrânea. Outras levam 13, 
10 anos ou menos. A vida que lhes conhecemos, à luz solar, é apenas o período final da 
evolução, em formas sexuadas, para fim de reprodução. No seu estágio subterrâneo a cigarra é 
assexual. 
– É como digo... 
– Mas... afinal de contas... você não nasceu há pouco mesmo, numa noite de 
luar? Que vem a ser esta casquinha? não é o seu berço?... 
Isto dizendo, apanhei a levíssima máscara de quitina que estava presa ao tronco 
da árvore e tinha exatamente a forma do corpo da cigarra, abstração feita das 
asas, que faltavam na máscara. Estava rachada nas costas, por onde saíra Tchi. 
– Saí dessa casquinha, é verdade – respondeu o inseto. – Mas, antes de sair 
daí, vivi muitos anos no fundo escuro da terra. Nasci agora para a luz e o amor... 
– Você é cigarra há muito tempo, Tchi? 
– Cigarra como hoje, não. Eu era uma larva ou ninfa. Com as duas pernas 
dianteiras, terminadas em pás, abria longos túneis através do solo. 
– Que é que você comia? 
– Sugava a seiva das raízes que encontrava na minha passagem. Esta árvore é 
muito suculenta. Minha mãe fez bem em pôr nela os ovinhos... 
– Os ovinhos? não compreendo, Tchi... 
– Há 17 estios, minha mãe pôs algumas centenas de ovinhos sob a casca dum 
dos galhos desta árvore. Para este fim é que há fêmeas entre nós... 
– E você, o que é? 
– Eu sou macho. Você já ouviu uma cigarra fêmea cantar? Sou macho pela 
primeira e única vez na vida. 
– E até agora, que coisa era você? 
– Não era macho nem fêmea, era neutro, no fundo da terra. Quando caí das 
alturas do galho, em que minha mãe desovara, já tinha forma de larvinha branca. 
Caí, enterrei-me logo e comecei a cavar a vida como pude. Somos seres 
subterrâneos e não aéreos, como pensam os homens... 
– Ora, ora! Eu também vivia nessa ilusão. Pensava que as cigarras fossem os 
mais aéreos e diurnos de todos os insetos – e vocês são noturnos e 
subterrâneos... 
– Nós, de solitários e subterrâneos que somos habitualmente, nos fazemos 
aéreos em caráter transitório, somente para nos casarmos... 
– Que está dizendo, Tchi?... 
– É como digo. No fundo da terra não podemos casar, porque somos assexuais. 
– E fora da terra, quanto tempo vocês vivem? 
– Uns 40 a 50 sóis. 
– Apenas uns 40 a 50 dias de sol, depois de milhares de dias de trevas – que 
horror! que sorte trágica a vossa!... E você, que idade tem? 
– De vida luminosa tenho apenas dezesseis sóis; de vida tenebrosa, mais de 
seis mil sóis... Sóis que não vi... 
– Quer dizer que você, quando nasceu, já era velho? 
– É exato. Nós, quando nascemos para a festa do amor, somos os mais velhos 
de todos os insetos da terra. Ao menos, não me consta que outro inseto viva 17 
anos como nós. 
– E sua companheira? 
– Minhas companheiras? são muitas. 
– Por que não cantam? 
– Porque não têm tambores. 
– Tambores? 
– Sim, nós, os machos, temos um par de tambores na parte lateral do corpo. 
– E por que você faz tanta música, o dia todo? 
– Para divertir as amigas. E também para me vingar de tantos anos de silêncio. 
Acha você que não deve cantar de sol a sol quando viveu mudo em sombria 
solidão milhares de sóis que sobre a terra passaram sem que você os visse? 
– Oh! certamente, certamente, amigo Tchi!... 
– Quase todos os insetos gozaram desses milhares de sóis, menos nós. Não 
temos licença de sair dos nossos túneis antes de completar o ciclo que a grande 
Inteligência nos marcou... 
– E agora?... 
– Já lhe disse, agora quero viver algumas semanas de amor, de luz, de música... 
– Algumas semanas apenas... 
– Apenas, apenas... Mas... é bem possível que morra antes, hoje mesmo... Cri, 
crii, criii, criiiiiiiiiii... 
* * * 
Pouco depois deste diálogo com Tchi, percebi que, num galho vizinho, estava 
pousada outra cigarra, ocupada em alojar umas centenas de ovinhos 
microscópicos debaixo da casca, servindo-se para isto de um ovipositor em 
forma de lança. 
– É uma das minhas companheiras – explicou Tchi, numa ligeira pausa da sua 
estridente música, acrescentando: – Daqui a pouco vai morrer... 
– Morrer, por quê? 
– Porque, depois de pôr o último ovo, estará exausta. E, também, para que viver 
ainda, se cumpriu a sua missão? 
– E você, amigo Tchi? 
– Vou viver mais um pouco, mas sinto que não chegarei ao sol de amanhã. 
– Morrer? Mas não disse que as cigarras viviam algumas semanas? 
– Podemos viver algumas semanas, no máximo. Mas, se ela morrer, também 
morrerei. 
– Ela? 
– Sim, ela, a mais querida das minhas amigas. 
Não acabara Tchi de falar, quando a companheira se desprendeu do galho e 
tombou, inerte, ao chão. De súbito, perpassou-lhe pelo lindo corpo mais um 
rápido estremecimento – e depois ficou imóvel para sempre... 
Tchi, quando viu morta a mais querida das suas amigas, deu meia volta sobre o 
galho em que pousava, e, reunindo todas as forças, rufou com veemência os 
pequeninos tambores, enchendo os ares duma melodia monótona e triste, e 
parecia derreter sua alma nas notas plangentes dessa soluçante elegia... 
Um pardal pousou duas vezes no galho, à procura da cobiçada presa, mas o 
inseto, pressentindo o perigo, soube com tanto jeito modular a sua música, 
variando os pianíssimos e os fortíssimos, que despistou completamente o 
emplumado rapineiro. É que não queria morrer assassinado, e, sim, expirar 
espontaneamente, consumido de amor e de tristeza... 
De repente, amigo Tchi desprendeu-se do galho e foi cair ao pé da árvore, a dois 
palmos da companheira, onde, num arranco supremo, rufou mais uma vez os 
pequeninos tambores – e silenciou para sempre... 
............................................................................................................................... 
E, daí a pouco, recomeçariam seus filhos a estranha odisséia subterrânea de 17 
anos de solidão e de trevas – seguida de algumas semanas de luz e de amor... 
 
 
Aventuras Românticas D. Flora 
 
Era tão inebriante e afrodisíaco o perfume das florzinhas em derredor de mim 
que caí numa espécie de sono ou torpor – e me vi transportado a mundos 
fantásticos. Fantásticos, porém reais. 
Ninguém supunha tanta malícia naqueles estames cor de ouro rodeados dum 
círculo de alvíssimas pétalas – e, no entanto, foram elas, essas pequeninas 
feiticeiras, que me embriagaram e arrebataram ao reino das grandes maravilhas. 
Será que a laranjeira sabia dessas artes das suas encantadoras filhinhas cor de 
ouro e neve?... Tão ingênuas pareciam elas... 
Assim que fechei os olhos corpóreos, abriram-se-me de par a par os olhos da 
alma... É sempre assim... As coisas mais belas só as enxergo de olhos

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