Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Mulheres de Hoje Figuras do Feminino no Discurso Analítico facebook.com/lacanempdf Mulheres de Hoje Figuras do Feminino no Discurso Analítico Org. Marcela Antelo 1ª Edição POD Petrópolis KBR 2012 Edição de texto Noga Sklar Revisão Elisa Monteiro Tradução Aléssia Fontenelle, Cristina Maia, Daricélia Brito, Elisa Monteiro, Ellen Freitas, Júlia Jones, Marcela Antelo, Maria Bernardette Soares de Sant’Ana Pitteri, Maria Cristina Maia Fernandes, Maria Luiza Rangel de Moura, Marta Inês Restrepo, Paola Salinas, Pedro Almeida Liberato, Roberto Dias, Rogério Barros, Victor Abreu Oliveira, Wilker França. Editoração KBR Capa Celeste Hampton Copyright © 2012 Escola Brasileira de Psicanálise Todos os direitos reservados aos autores. ISBN: 978-85-8180-070-7 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br atendimento@kbrdigital.com.br 55|24|2222.3491 150 - Psicologia Email: ebp@ebp.org.br Diretoria da EBP Cristina Drummond - Diretora geral Ondina Maria Rodrigues Machado - Diretora-secretária Lilany Vieira Pacheco - Diretora-tesoureira. Conselho da EBP Marcus André Vieira (Presidente) Fátima Sarmento, Luiz Fernando Carrijo da Cunha, Marcelo Veras, Maria do Rosário Collier de Rêgo Barros, Ram Avraham Mandil, Rômulo Ferreira da Silva, Rosane Vieira da Cunha da Fonte, Sergio Passos Ribeiro de Campos e Simone Oliveira Souto. Textos recolhidos pela Comissão Científica do XIX Encontro do Cam- po freudiano no Brasil, 23 e 24 de novembro de 2012 em Salvador, Bahia, Brasil, organizado pela Seção Bahia da Escola Brasileira de Psi- canálise. O Conselho Editorial agradece profundamente a cada um dos autores sua amável autorização para publicação dos respectivos artigos, assim como a imprescindível colaboração dos tradutores. Uma menção espe- cial deve ser feita ao inestimável trabalho da revisora Elisa Monteiro. Conselho editorial Marcela Antelo (Organizadora) - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Mestre em Filosofia Política Contemporânea pela Universidad Na- cional de Mar del Plata/ Universidade Federal da Bahia (2008). Ana Lúcia Lutterbach Holck - AME, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Douto- ra em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000). Pós-doutorado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Fernanda Otoni de Barros Brisset - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política pela Universi- dade Federal de Minas Gerais (2009). Maria Josefina Sota Fuentes - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psi- cóloga, Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, Brasil (2009). Elizabete Siqueira - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Maria Elisa Delecave Monteiro - Analista praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga. Liège Goulart - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Univer- sidade Federal de Santa Catarina. Lêda Guimarães - Analista Praticante, membro da AMP/EBP, Psicóloga, Uni- versidade Federal da Bahia. | 9 | Sumário Nota da organizadora • 11 Apresentação • 13 Parte 1 Escritos • 15 Alicia Calderón de la Barca Joan Rivière e o segredo do feminino • 17 Antônio Teixeira O feminino entre o fascínio e a difamação • 21 Aurélie Pfauwadel Não é queer quem quer! • 29 Chiara Mangiarotti Mistérios do amor • 33 Unica do amor à distância • 43 Claudio Godoy Bissexualidade • 51 Claudio Zlotnik Zaha Hadid • 55 Cristina Duba Feminino e o feminismo - Notas sobre Simone de Beauvoir e J. Lacan • 57 Daniela Fernandez Lisístrata: o poder da castração • 67 Daphné Leimann “Pina”, de Wim Wenders • 71 Elisa Alvarenga As mulheres analistas • 75 Elizabete Siqueira Só com seu gozo • 81 Marcela Antelo (Org.) | 10 | Esmeralda Miras O silêncio das mulheres • 85 Gérard Wajcman Papo de garotas • 91 Gisèle Ringuelet O riso de Helena • 99 Graciela Musachi Seria a mulher mais angustiada que o homem? • 105 Gustavo Dessal À luz da sombra: breve apontamento sobre “Os mortos”, de James Joyce • 109 Como as mulheres amam no século XXI • 113 Mulheres como homens e vice-versa • 119 Procuram-se homens: os interessados que se apresentem em qualquer esquina • 121 Inma Guignard-Luz O masoquismo feminino segundo Hélène Deutsch • 133 Judith Miller Um novo sintoma da mulher? • 141 Lizbeth Ahumada O pai e as mulheres: algumas versões • 143 Luis Solano A loucura de ser mulher • 153 Luis Tudanca As mulheres de ontem e de hoje • 171 Marcela Antelo Corpo-a-corpo com Medusa • 177 Marcus André Vieira A girar • 185 Márcia Rosa As burcas de Clérambault, ou mais além da nudez da rainha • 189 Maria Josefina Sota Fuentes Nota preliminar ao tema do gozo feminino no século XXI • 193 Marie-Hélène Brousse O amor no tempo do “todo mundo dorme com todo mundo” - O saber de Christophe Honoré • 195 Mario Goldenberg A utilidade de crer • 203 Mulheres de Hoje | 11 | Ondina Maria Rodrigues Machado Lacan feminista ou o feminino em Lacan • 211 Sérgio de Campos Fragmento nãotodo • 217 Silvia Salman Os fundamentos neuróticos do desejo do analista • 219 Uma erótica da mascarada • 225 Shula Eldar A entrada na feminilidade • 229 A face de Deus: suporte do gozo feminino • 235 Elas e ele • 237 Vilma Coccoz Encantos da impotência: servidão amorosa ou docilidade mortificante? • 239 Parte 2 Resenhas • 247 Alicia Arenas O estatuto da feminilidade em nossos dias • 249 Ana Lydia Santiago Os homens e as mulheres • 251 Ana Martha Wilson Maia As máscaras d’Ⱥ mulher – A Feminilidade em Freud e Lacan • 255 Angélica Cantarella Tironi O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico • 261 Carmen González Táboas Mulheres: chaves místicas medievais no Seminário 20 de Lacan • 265 Carolina Rovere Como uma mulher faz um homem gozar? • 269 Claudia Murta Feminilidades • 273 Françoise Haccoun As enamoradas: viagem aos confins da feminilidade • 275 Gustavo Stiglitz Comentário sobre O outro corpo do amor: o oriente de Freud e Lacan • 283 Marcela Antelo (Org.) | 12 | Jésus Santiago As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino - Prefácio • 287 Marcus André Vieira Mulher abismada, mulher em abismo • 295 María Graciela do Pico Mulheres em movimento - Eróticas de um século a outro • 297 Mercedes de Francisco Mães, anorexia e feminilidade • 305 Patricia Heffes Mulheres, uma por uma • 309 Ram Mandil Prefácio a Patu, a mulher abismada de Ana LúciA Lutterbach Holck • 311 Silvia Tendlarz As mulheres e seus gozos • 315 | 13 | Caros leitores, Apresentamos a vocês este livro Mulheres de hoje: Figuras do fe- minino no discurso analítico. Não é um livro como outro qualquer. Um singelo fonema a ele se acrescenta como suplemento, e declara dessa forma, tratar-se do feminino: e-book. Trata-se de um livro para um encontro, XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (Salvador, 23 e 24 de novembro de 2012), e ele próprio é um encontro. Um encontro entre as questões que animavam a comissão científica e os ensaios de colegas do Brasil e de outros cantos da orientação lacaniana no mundo, que pudessem abrir sulcos no con- tinente negro e bem dizer sobre as mulheres que existem: as mulheres de hoje, suas maneiras de amar, de gozar e de adoecer, a relação com suas mães, com seus pais, com seus filhos e com seus parceiros; seus segredos, suas loucuras, suas máscaras, suas angústias e seus poderes; a feminização do mundo, o declínio do viril, a retirada dos homens, o en- cantamento com a impotência, sua facilidade com as crenças; mulheres artistas, figuras lendárias, divas fatais. Como se ama no século XXI, com quem se dorme, o que implica ser queer, o que é ser bissexual, circular de burca, gozar de deus ou amar à distância. Abismar-se. Eróticas. Na segunda parte, escolhemos uma série de notícias, resenhas ou fragmentos de livros publicadosao redor do feminino cujas leituras pudessem nos preparar para o debate. Registramos aqui o agradecimento a todos os colegas que nos cederam amavelmente seus textos, assim como os que os traduziram, estabeleceram e revisaram. Sem a aposta do diretor do Encontro, Marcelo Veras, da Comissão Organizadora e da Diretoria da Escola Brasileira de Psicanálise, que souberam reconhecer o entusiasmo com o ineditismo da nossa propos- Marcela Antelo (Org.) | 14 | ta de e-book, isso não seria possível. Finalmente, quero agradecer especialmente à editora do bo- letim Outras Palavras, Tânia Abreu e toda sua equipe, que acolheram muitos desses textos entre suas páginas virtuais, preparando-nos para o Encontro. Marcela Antelo Organizadora | 15 | Apresentação A diretoria da Escola Brasileira de Psicanálise buscou, em sua gestão 2011-2013, dar ênfase ao lugar privilegiado que a letra e o escrito têm em psicanálise: são parte de nossa formação e através deles transmiti- mos nosso saber, um saber que é construído pela experiência de cada um e que trocamos com nossos pares, em nossa comunidade de traba- lho. Por isso, penso poder afirmar que os livros são, para nós psicana- listas, objetos a. Estão em nossas bibliotecas particulares, escolhidos e guardados um a um. E os manuseamos diariamente. E por não ser a teoria psicanalítica da ordem do intuitivo, pas- sando pelo corpo de cada sujeito, nós lemos e relemos os textos de Freud e de Lacan, e também daqueles que nos ajudam a fazer essa leitura. À frente de todos esses leitores, temos os caminhos da nossa orientação traçados por Jacques-Alain Miller, não sem os colegas da Associação Mundial de Psicanálise, com os quais os compartilhamos. Os livros, como objetos, têm sua história; e muitos deles guar- dam a pulsação de seu processo de elaboração. A diretoria da Escola Brasileira de Psicanálise apostou na transmissão da psicanálise através dos escritos e buscou publicar livros com temas que interessam e fazem trabalhar nossa comunidade, com textos de muitos colegas de nossa Es- cola. Eles dão testemunho de nossa elaboração e têm sido pretexto para discussões e conversas que presentificam o Um de nossa Escola. Agora temos a oportunidade de trazer a público, pela primeira vez, também um e-book, objeto curiosamente distinto dos que manu- seamos e que faz uso das possibilidades e ofertas do mundo digital. É uma nova aposta, uma nova oportunidade de dar lugar a esse desejo de sustentar, presentificar e transmitir, de todas as maneiras possíveis, a psicanálise em nosso mundo. A psicanálise existe a cada vez que damos Marcela Antelo (Org.) | 16 | consistência e lugar a seu discurso. Os textos aqui reunidos fizeram parte da pesquisa que sustentou o trabalho de preparação para o XIX Encontro Brasileiro da Escola Bra- sileira de Psicanálise e que teve como tema “Mulheres de hoje: figuras femininas no discurso analítico”. Foram organizados pela coordenadora da comissão científica do Encontro, Marcela Antelo, a quem agradece- mos o empenho e dedicação que tornaram este objeto possível e dispo- nível para nós. É um livro que reúne textos que nos ajudam a continuar a in- vestigação sobre o tema do feminino em psicanálise e, seguramente, vai contribuir para a preparação do simpósio de Miami, “O que Lacan sabia sobre as mulheres”, que ocorrerá em maio-junho de 2013. A cada um desejamos um bom uso deste objeto. Nosso voto é que esta primeira edição a incluir um e-book faça série. Não para subs- tituir nossos livros, mas para dar a eles, mais do que nunca, a chance de continuarem a existir. Cristina Drummond Lilany Pacheco Ondina Machado Parte 1 Escritos | 19 | Joan Rivière e o segredo do feminino1 Alicia Calderón de la Barca (AMP/ELP - Barcelona)2 “Lê-se uma biografia quando se conta com documentos suficientes para testemunhar o que se acredita ser uma vida”, disse Lacan no Semi- nário XVII. A breve biografia de Joan Rivière que Athol Hughes cons- truiu foi elaborada, fundamentalmente, com base em longas conversas que manteve com sua filha e alguns documentos e cartas. Fornece algumas luzes, mas também sombras. Grande parte da documentação se refere às cartas entre Joan Rivière e Freud que estão depositadas na Sociedade Britânica de Psicanálise, e sobre elas pesa uma proibição que se manteve até 2000. Para abordar o tema do seu final de análise, me apoiarei nessa biografia e na que seu amigo Vincent Brome escreveu sobre Ernest Jo- nes. Tomarei três eixos: — o drama subjetivo de sua existência; — os dados lacunares de sua análise; — as consequências que deles deduzo. A pergunta a responder é: “Como se articulam suas construções teóricas com a saída da análise?” Dos dados da biografia destacarei seu lugar como a mais velha de três irmãos e seu amor ao pai, um advogado 1 CALDERON DE LA BARCA, Alicia. “Joan Rivière y el secreto de lo femenino”. In: Uno por Uno 36, Buenos Aires: Revista Mundial de Psicoanálisis, 1993. 2 Tradução Ellen Freitas (IPB - Bahia). Marcela Antelo (Org.) | 20 | com inclinações intelectuais. No prólogo do livro, Hanna Segal assinala como traço fundamental o gosto de Rivière pela escrita. Seu tio — um irmão do pai, professor de línguas clássicas em Cambridge e que ela compara a Freud pela fascinação que exercia em seu círculo — a introduz no grupo de Bloomsbury. O motivo de sua vinculação ao grupo foi sua inclinação para a arte e o desenho. Aos 17, passa o ano todo na Alemanha, onde aprende o idioma. Sua posterior capacidade para uma elegante tradução para o inglês en- tusiasmou Freud. De seus interesses iniciais, destacarei sua participação nos encontros da Sociedade de Investigação Psicológica, onde conhe- ceu James Strachey, e seu acentuado interesse pelos “desenvolvimentos psicológicos no romance”. O motivo de sua vinculação com o grupo de Bloomsbury foi sua inclinação para a arte e o desenho. Também partici- pou ativamente do movimento sufragista. Após a morte de seu pai, em 1909, quando contava 26 anos, co- meçam suas diversas enfermidades. Apesar de sempre ter tido doenças de origem obscura, é, no entanto, a partir desse momento, quando sua filha tinha dois anos, que ocorre um desmoronamento, com sucessivas internações. Um de seus documentos proibidos é justamente um diário que vai de 1905 a 1917. Mas, pelo que pude reconstruir a partir de al- gumas cartas que ela escreveu a Jones em 1918, é possível supor que em 1910 tratou-se de uma tentativa de suicídio, “desmoronamento” que ela relaciona à morte do pai e a um episódio amoroso. Esses são os antecedentes de seu primeiro pedido de análise a Ernest Jones, em 1916. Foi movida por motivos de índole pessoal e não pela intenção de ser psicanalista. Sabemos da paixão transferencial ocorrida nessa análise que transcorreu entre 1916 e 1920, com uma in- terrupção durante todo ano de 1918, pela profusão de cartas trocadas. A interrupção foi devida a diversas enfermidades, dentre elas a tubercu- lose. Também nesse período se sucedem suas ameaças de suicídio, con- sideradas como uma repetição do que havia ocorrido oito anos antes. Nessas cartas, o engano do amor de transferência se traduz como a relação com um “objeto atormentador”, e nelas passa sucessiva- mente da censura pelo tratamento recebido à declaração apaixonada de amor, até chegar à interpretação do desejo de seu analista. Diz: “Permita que eu te analise, considero fora de qualquer dúvida que sua mulher é Mulheres de Hoje | 21 | minha substituta”. No ano seguinte, reiniciará essa análise que, para seu analista, será impossível reconduzir. Nesse ínterim, começara a receber pacientes, tornando-se também membro-fundador da Sociedade Britâ- nica de Psicanálise. O encontro com essa histérica decidida é excessivo para Jones; por outro lado, desde outubro de 1918 o Outro está barrado: “Você não pode ser condenado, minha conclusão é que você não pode ser leva- do a sério”. Em 1921 ela solicita análise a Freud. Também em 1921 há uma cartana qual Jones a apresenta a Freud, tentando justificar o que considera “o maior fracasso de sua vida de analista”. Ele acentua o que considera seus dois erros: “tentar ganhá-la para a causa analítica por sua inteligência e lucidez e a subestimação do incontrolável de suas emo- ções, seu gigantesco narcisismo e sua identificação masculina. Uma his- teria com transtornos de caráter, impossível de curar”. Mas, nessa mes- ma carta, Jones mostra seu fantasma: “ela dedicou-se a me torturar sem descanso, com considerável sucesso”. Joan Rivière conhecera Freud pessoalmente no Congresso de 1920, e também já iniciara a tarefa de tradução das Obras completas. Em 1921 é, além disso, nomeada Membro do Comitê de Nomenclatura, do qual faziam parte o próprio Freud, Anna, Jones e os Strachey. Em um trabalho escrito um ano depois da morte de Freud, ela comenta sua íntima impressão de seu encontro com ele. Fala de sua re- serva, força e dignidade, e de seu humor encantador, que reassegurava “que os deuses do Olimpo também são mortais”. Durante todo ano de 1922, Rivière se analisou em Viena com Freud seis dias por semana, análise que começa com a imposição de Freud para que Jones dê um lugar a ela na Revista Internacional, justa- mente o cargo que Jones ambicionava, o de Editor Tradutor — “como compensação”, disse Freud, “por ter complicado a análise dela com sua conduta inconsequente”. Também esclarece a Jones que ela tem, desde tenra idade, um alto e severo Ideal do eu e que é necessário dar-lhe uma oportunidade. Mas Joan também tem queixas em relação a Freud, “que lhe dava preferência como tradutora e não como paciente“. Em seu último texto, de 1958, “Um traço do caráter de Freud”, faz uma descrição do que ela pensava a seu respeito como escritor e como analista. Diz que, como escritor, utilizava um estilo no qual a es- Marcela Antelo (Org.) | 22 | trutura de argumentação visava convencer. Em contrapartida, pessoal- mente, não tinha a menor intenção de influenciar, nem de ensinar e nem sequer, inclusive, de curar — o que, para ela, implicava um para- doxo. E relata um episódio analítico: após trazer uma explicação teórica que ocorrera a ela, Freud disse: “escreva, escreva isso, coloque isso pre- to no branco, é a maneira de lidar com isso, dar-lhe existência fora de você”. Nos anos seguintes, ela se dará conta da importância criativa do trabalho. Como resultado de sua análise, Joan Rivière testemunha como mulher e como analista. Em 1929, e como contribuição original à polêmica sobre a fase fálica, ela contesta Jones e sua classificação da sexualidade feminina. Nesse exemplo de uma mulher intelectual que, após falar em público, tem o sintoma de seduzir certos homens substitutos do pai, mostrando- -se nessa dialética entre ter e ser o falo, ela fala de si mesma; de sua posição subjetiva, deduz e inventa um significante novo, a mascarada feminina. A tese forte de Joan Rivière é que entre a feminilidade verda- deira e a falsa não há nenhuma diferença, ou seja, a feminilidade é a pró- pria mascarada — proposta que, por certo, resulta totalmente estranha à moldura kleiniana na qual Rivière a fundamenta, e que marca uma ruptura com o discurso em que se apoiava. Em 1934, Joan faz um comentário sobre os últimos artigos de Freud sobre a feminilidade e critica sua pergunta acerca do enigma da mulher. Ela diz: “Existem satisfações e segredos nas mulheres. Qual o segredo da mulher? Ela o carrega consigo e não precisa de um pênis (...). Tudo o que Freud nos diz do complexo de castração na mulher é verdade, mas não passa da metade da história da mulher (...)”. Seu artigo sobre a mascarada é uma forma de testemunhar sobre o “nem tudo é fálico”, já que a própria mascarada é o segredo do femini- no, e, nesse sentido, implica um franqueamento do plano da identifica- ção, uma forma de cingir o vazio, uma suplência à ausência de signifi- cante dentro do campo do Outro. | 23 | O feminino entre o fascínio e a difamação3 Antônio Teixeira (AMP/EBP) O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas damas para o enlace epitalâmico; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização... (Mário de Andrade, Macunaíma – “Carta pras Icamiabas”) “Chamemos, por definição, heterossexual aquele que ama as mulhe- res, seja qual for o seu sexo próprio”, proclama Lacan, em “L’Étourdit” (LACAN, 2001: 467). Se existe portanto disjunção dos sexos em relação à escolha de objeto, desde esse ponto de vista, essa diferença deve ser pensada segundo uma fórmula que diz respeito menos à distinção em- pírica dos predicados sexuais do que às categorias discursivas do Mes- mo e do Outro (heteros). No intuito de elucidar o que significa atribuir o sentido do Mesmo ao sexo masculino, reservando ao lado feminino a dimensão do Outro sexo, caberia inicialmente destacar a noção de Alteridade em sua relação com o tema do Mesmo. Propomos, para esse fim, designar pelo nome de Mesmo o que se reconhece como elemento 3 Versão ligeiramente modificada da conferência publicada originalmente sob o tí- tulo “Do Mesmo ao Outro sexo”. In: A soberania do Inútil . São Paulo: Annablume, 1997, pp. 33-42. Marcela Antelo (Org.) | 24 | esperado no interior do universo do discurso (no sentido em que excla- mamos, em nosso vernáculo, “é isso mesmo” diante de algo que confir- ma nossa expectativa), reservando o nome de Outro para os elementos cujo surgimento se desencadeia dessa sequência, e apontam para fora do limite desse universo. O leitor já deve ter notado que essa via nos permite pensar, entre outras coisas, o desencadeamento psicótico nos termos do empuxo ao Outro sexo. E, de fato, a noção freudiana de perda da realidade (Realitäts- verlust) na psicose adquire aqui seu pleno valor se tratarmos a noção de Realidade nos termos de um encadeamento do Mesmo. Só reconhe- cemos algum fenômeno como pertencente à realidade em razão de sua regularidade empírica, ou seja, quando podemos encadeá-lo no atributo do Mesmo. Quando falamos de uma perda de realidade, na psicose, a realidade assim perdida é algo cuja consideração tende a se impor para o sujeito, a despeito do seu desejo, ao modo de um encadeamento sig- nificante necessário, de sorte que toda situação caprichosa, na qual este encadeamento necessário se desfaz, traduz-se, para o sujeito, como o sentimento de angústia que acompanha a perda da realidade. O problema é que todos nascemos sob os auspícios de um su- jeito invariavelmente caprichoso — a mãe, que, embora nem sempre o queira, permanece sendo mulher até segunda ordem. Sucede pois que a mãe, longe de se contentar em prover as necessidades naturais de sua cria, deleita-se horas a contemplá-la e depois desaparece, sem que a criança saiba ao certo o porquê. Ao contaminar, com o capricho do seu desejo, o sistema das necessidades vitais da criança, a mãe cria a de- manda de amor, incitando o sujeito a captar o que ele significa para ela nos signos desencadeados por esse algo a mais, por essa outra coisa que não se deixa apreender no encadeamento significante do Mesmo. Será preciso a entrada, em regime de exceção, daquele que priva o sujeito do desejo caprichoso da mãe para que se possa reencadear a realidade como Universo do Mesmo, regido pelo Nome-do-Pai. Por se encontrar originalmente marcada pela falta do índice fálico do Mesmo, a mulher jamais se verá dotada do justo padrão que lhe advém, como ocorre no caso do homem. Há sempre uma falta e um excesso que nela se expri- mem em discordância com as totalizações. A estrutura do ter se repercute assim sobre a apreensão subjetiva Mulheres de Hoje | 25 | do ser, conforme nos lembra Jacques-Alain Miller (MILLER, 2002: 11): “Se o todo vale como Um e confere, a quem se inscreve neste Um-niver- so, o valor de identidade do Mesmo, no sentido freudiano da Psicologia das Massas,aquele que do Todo se encontra excluído se manifesta na forma da diferença inassimilável por suas regras de composição”. Tal é, pois, o signo que Lacan atribui ao feminino, cujo ser se funda fora da lei (LACAN, 1966: 31). Ao trazer consigo a brecha da Alteridade no Uni- verso do Todo, a mulher rompe justamente com a sequência que obede- ceria à expectativa do Mesmo em todo exercício social de controle. Se disso deriva a percepção do feminino como um ser essencialmente não confiável e caprichoso, cuja impossibilidade de regulação serve de tema para a “École des femmes” de Molière, em sua versão cômica, o poema trágico por sua vez dela faz — desde Antígona de Sófocles às heroínas de Paul Claudel — a salvaguarda mais confiável da singularidade que não se enquadra no Universo do Todo, da dignidade ímpar que não se inscreve como unidade de nenhuma coleção. Isso, no entanto, não quer dizer que a posição feminina não se circunscreva, ao menos em parte, no campo delimitado pelo Um. Existem igualmente razões para se atribuir à mulher um certo apego ao limite que se reconhece nas virtudes da temperança e da sensatez. É instrutivo ler, caso tenham paciência, o melodramático romance O feijão e o sonho, de Origines Lessa. Ali se encontra a descrição exemplar de uma tendência nitidamente feminina para a contenção do Mesmo, numa direção, portanto, absolutamente contrária a essa dimensão do desvario de que falávamos até aqui. O termo “la bourgeoise”, que desig- na, na língua francesa, a mulher do trabalhador, diz respeito justamente a essa função, tradicionalmente atribuída à esposa, de ser provedora dos limites e do comedimento que regulam a estabilidade do lar (MILLER, 2002: 14)4. “La bourgeoise” tem, aliás, seu equivalente chauvinista em nossa língua pátria, como se nota na expressão do marido contraria- do com a obrigação de chegar mais cedo em casa para prestar contas à “patroa”. Tanto aqui como do outro lado do Atlântico, a “bourgeoise” ou a “patroa” se configuram como guardiãs prudentes do Mesmo, sempre prontas a reterem o idealismo incauto do homem para trazê-lo de volta 4 A referência a esse termo, em Lacan, encontra-se em O Seminário, livro 19: ... ou pior, na lição de 17 de maio de 1972. Marcela Antelo (Org.) | 26 | à dura realidade. Tem seu interesse, todavia, notar que tais expressões se refe- rem, invariavelmente, à mulher na condição de casada. É porque, se para aquele que se posiciona como homem, o limite que faz a margem do Um encontra-se desde sempre estruturado pelo índice fálico; para a mulher, comenta Jacques-Alain Miller a partir de um artigo de Hans Sachs, esse índice não é dado pela estrutura. Ela deve zelar por esse li- mite justamente porque ele não lhe é estruturalmente dado. Trata-se de um limite que a mulher adota de maneira contingente no encontro com o homem que a ama, desde que ela acorde importância a esse amor. Tal lhe parece ser o caso de Brigitte Bardot, que de destacada mulher de esquerda, no momento em que vivia com um eminente advogado do partido socialista francês, passou a emitir teses ignóbeis de ultradireita sobre a desigualdade das raças desde que esposou um líder da Frente Nacional (MILLER, 2002: 19). Não existe, nesse sentido, um Universal feminino a ser articu- lado ao Universal masculino. Trata-se antes de uma oposição entre o Universal e algo que não se universaliza,5 cujo limite só pode ser tomado de empréstimo. Talvez não seja casual que a língua alemã aplique ao substantivo “mulher” o artigo nominativo neutro (das Weib), normal- mente empregado para designar a criança (das Kind) ou o animal (das Tier), como se o gênero feminino participasse da mesma ausência de diferenciação simbólica que a cultura atribui a esses últimos seres. Pois se considerarmos que o emprego do artigo nominativo neutro acusa, em seu uso gramatical, a indeterminação do substantivo que ele desig- na6 — exemplarmente verificável na referência à coisa como “das” Ding, antes de ela se diferenciar em seu emprego simbólico como “die” Sache —, chama atenção o fato de que a mulher só adquira a dignidade do artigo nominativo “die” enquanto esposa de um homem, na forma de “die” Frau, historicamente complementado pelo sobrenome do marido. É para não permanecer como pura alteridade indeterminada que ela busca, no encontro contingente com um homem, o limite do Universo como via de construção de uma identidade possível. 5 Cf. J. LACAN, “Le savoir du psychanalyste”, lição inédita do dia 3 de março de 1972. 6 O mesmo se dá, na língua inglesa, com o pronome “it”. Mulheres de Hoje | 27 | Mas, seja como for, por mais que a mulher tente se “mesmar” junto ao homem, o limite que ela assim constitui precisa ser continua- mente refeito. Diversamente do Universo masculino, cujo limite está desde sempre constituído pelo elemento de exceção que nele não se dei- xa explicitar, o lado feminino, por não dispor dessa exceção fundadora, obriga aquele que ali se encontra a uma tarefa contínua de construção e explicitação desse limite.7 Disso se segue que o limite feminino, por não ser estrutural, traz sempre o aspecto de um contorno artificialmente composto. Carente da estabilidade do Mesmo, a mulher, enquanto Ou- tro, irá se servir, dentre outros recursos, do artifício cosmético como en- quadre suplementar do seu ser. Tal aspecto, ao qual Lacan já aludia em 1958, a propósito da mascarada (LACAN, 1966: 732), encontra-se fina- mente observado por Baudelaire, no artigo sobre a mulher que precede seu “Elogio à maquiagem”. Aos olhos de Baudelaire, o fascínio feminino não se deixa explicar unicamente pelo equilíbrio natural do seu corpo. O suplemento que adorna a mulher, longe de se acrescentar a ela, faz parte do seu próprio ser: “a mulher compõe uma totalidade indivisível com seu traje; não se pode separá-la de sua indumentária, sob o risco de perdê-la inteiramente” (BAUDELAIRE, 1980: 809).8 Todo artifício de composição do Mesmo traz consigo, no en- tanto, a suspeita de sua contaminação pelo Outro. A invenção que o artifício comporta, em sua tentativa de homogeneizar o Outro, é per- cebida como um simulacro do Mesmo em razão de sua metamorfose constante. Por esse motivo, o suplemento cosmético elogiado por Bau- delaire, que nele vê um elemento indissociável do sexo feminino, é o mesmo fator que vem expor a mulher à difamação. Ele será duramente 7 O Deus da ciência moderna constitui, como se sabe, esse elemento de exceção que funda a noção moderna de uma Mathesis universalis. Salvo o próprio Deus, todos os fenômenos do Universo podem ser tratados cientificamente. Disso decorre que as tentativas de explicitar a exceção, expondo os motivos de Deus, põem invaria- velmente a perder a consistência deste Universo, conduzindo a impasses que dizem respeito justamente ao lado feminino. É o caso do bispo de Berkeley que, ao justifi- car a criação do Universo pelo desejo que sentia o Todo-poderoso de ser admirado pela criação, faz de Deus uma mulher coquette. A esse respeito, leia-se REGNAULT, F. “De deux dieux”. In: Dieu est inconscient. Paris: Navarin, 1985. 8 Para um desenvolvimento mais amplo do tema, leia-se o excelente mémoire de N. CHARDIER, Pourquoi les femmes se font-elles belles?, St. Denis, 1996-97, especial- mente o sub-item 4.3.1: “Le maquillage entre masque et voile”, pp. 79-81. Marcela Antelo (Org.) | 28 | criticado por Platão em seu ataque ao sofista Górgias, num diálogo em que Sócrates compara a atração produzida pelo cosmético à persuasão obtida através da retórica. Por ser alheio à ordem do Mesmo, ou seja, sem universalidade própria, o cosmético toma de empréstimo um efeito estético estrangeiro (heteros) que corrompe a beleza própria das formas naturais (Górgias, 465d).9 Dessa aversão ao heteros resulta, na república homossexual de Platão, que o artifício da maquiagem será desqualifica- do como uma prática de simulacro, não regida pela ideia do bem e da verdade. Seu efeito consiste na realização de umexcesso que se distancia da natureza, produzindo a ilusão do belo no lugar da beleza autêntica. Há por conseguinte uma difamação que se atribui, por razões de estrutura, à condição feminina, condensada por Lacan num célebre jogo de homofonia: “La femme, on l’a dit femme”. Vale destacar aqui o quanto a difamação do feminino encontra-se ligada à ideia de uma in- fração pelo excesso impossível a circunscrever no Universo da norma. Pois se é na ausência do limite do Universo que se coloca o feminino, a mulher vem testemunhar justamente a experiência de um gozo exces- sivo, não regulado pela norma fálica. Isso a leva por vezes a difamar-se a si mesma, como ilustra a cólera de Hera, que puniu Tirésias com a cegueira por ele ter afirmado, por sua experiência própria, que a mulher experimenta uma volúpia maior do que o homem durante o ato sexual. Digamos então que ser heterossexual desde a posição mascu- lina, como se ilustra em sua versão baudeleriana, significa tomar por causa de desejo a singularidade do heteros, cuja dimensão faz de cada ser feminino um caso único e inclassificável. A prova de amor que ali se oferece consiste nas tentativas de inventar a forma que possa conter, mediante metáforas sempre renovadas, o estigma do excesso que afe- ta a mulher. Mas a mulher não desconhece, por sua vez, o circunspeto Platão que habita cada lírico Baudelaire. Para escapar à difamação inse- parável de seu fascínio, ela procura fazer do homem um homossexual, no sentido em que visa se mesmar no desejo masculino (LACAN, 1975: 29).10 Ela quer que ele a queira não mais como heteros que o fascina e perturba, mas na identidade do homo que, em torno dele, ela constrói 9 Cf. N. CHARDIER, “Mascarade féminine et demande comestique”, op. cit., p. 46. 10 Cf. igualmente REGNAULT, F. “Je rougis, je pâlis à sa vue”. In: La Cause Freu- dienne n° 40. Paris: E.C.F., 1999, p. 66. Mulheres de Hoje | 29 | para si. É mais seguro ser a respeitável bourgeoise de um ensimesmado marido do que a musa inspiradora — por tantas vezes execrada — do amante apaixonado. A histeria, no entanto, dá provas da indestrutibilidade do desejo que singulariza, expondo constantemente a bourgeoise (no sentido de die Frau) às vicissitudes da mulher (no sentido de das Weib). É o que mostra o impasse representado pelo sofrimento das senhoras histéricas, na época de Freud, diante das tentativas de uniformização do compor- tamento geradas pelas ciências disciplinares. Ali onde o saber do mestre encontrava, no esquema classificatório, a norma de regulação do Mes- mo, a histeria traria à tona o desejo que se manifesta na forma de um padecimento inclassificável, não agrupável por nenhum tipo de saber. De sua associação quase constante com a condição feminina, a histeria será, então, percebida ora como mistério que fascina, ora como alvo de difamação. É o que já se lê desde o Timeu de Platão, para quem os sinto- mas histéricos derivariam do comportamento indócil do útero que, nas mulheres, age como um animal errante (Timeu, 91c), associando assim a histeria à animalidade feminina não domesticada pela cultura. Mas o mesmo padecimento histérico desqualificado por um Meynert, que nele vê uma impostura dirigida a ganhos secundários, será celebrado com o tema da “beleza convulsiva” por um André Breton. Existe pois um impasse do pensamento face a esse cintilante enigma do Outro sexo, que se traduz num movimento pendular constante entre fascínio e difamação. E, ao que parece, não há meios para sairmos dessa oscilação indefinida, se não abandonarmos a convicção relativa à potên- cia reguladora do Mesmo na figura do Um. É preciso enfim, como sugere Lacan em “...ou pior”, parar de suspirar pelo Um. É preciso parar de acreditar no poder segregador do Um que somente prescreve, em seu Universo, quem dele faz parte como unidade do Mesmo, na medida em que proscreve quem dele se exclui como alteridade que não cabe em sua coleção. No lugar de afirmar que “o Um é”, como ocorre na prescrição ontológica do Mesmo pela metafí- sica, cabe apenas dizer que “há do Um” (Y a d’l’Un). Ou seja: que o Um, longe de ser naturalmente dado, ocasionalmente se produz enquanto efeito contingente do agenciamento do ser por um discurso que poderia Marcela Antelo (Org.) | 30 | muito bem jamais ter existido, como é o caso do discurso metafísico.11 Fazer crer que “o Um desde sempre é”, como potência normativa do ser, corresponde tão somente à impostura ideológica que tenta nos conduzir a aceitar a ordem imposta como uma organização natural das coisas no mundo. Ali onde a histeria interrogava o mestre terapeuta com sua doença inclassificável, como Lacan exibe na parte superior do matema do discurso da histérica ($ → S1), a psicanálise só pode extrair um saber sobre o inconsciente (S2) no momento em que, no lugar do fascínio e da recusa, Freud abandonou a prescrição e inaugurou uma escuta. Se a aurora da psicanálise coincide com o ocaso da hipnose, é porque foi preciso que a histérica deixasse de acreditar em Freud como mestre para tomá-lo também, na suposição amorosa do saber, como causa ou- tra do seu desejo avesso à uniformidade das representações. Somente então o Um perdeu o seu poder segregador para se multiplicar, como “y a d’l’Un”, na forma sumamente contingente dos S1 que se depositam como produto do discurso psicanalítico. Não se trata, pois, de propor que a histérica seja largada no mundo em sua singularidade outra, como pura divisão subjetiva. Isso não mais seria do que outra versão desastro- sa do fascínio pela histeria. Cabe apenas dar-lhe a possibilidade de tecer um meio de representação próprio no espaço social do discurso em que ela se abriga. E que dessa representação ela não seja mais a serva, na estrita medida em que dela pode se servir. 11 A referência aqui utilizada é do Seminário 19:... ou pior, do dia 15 de março de 1972. Para maiores esclarecimentos dessa difícil passagem, é recomendável a leitu- ra de A. BADIOU: “Lacan – a antifilosofia e o real como ato”. In: Letra Freudiana, no 22, R. J., Revinter, 1997, p. 8 e sq. | 31 | Não é queer quem quer!12 Aurélie Pfauwadel (AMP/ECF)13 Queer é o adjetivo da moda da última década. Tornou-se um quase sinônimo de bacana: dizemos “isso é queer”, como dissemos em outros tempos “isso é cool!”, ou “está in”, para os menos ligados entre nós. Mas queer é um muito mais chic e demoníaco, uma palavra americana com ares de escândalo e de transgressão, e o giro foi feito: o significante queer passou tal e qual para a língua francesa, e serve para designar tudo o que parece um pouco extravagante — das manifestações artísticas de van- guarda aos modos de vida subculturais, basta, no limite, enfiar um par de sapatos ligeiramente exuberantes para se tornar queer. O seriado de sucesso do TF1 “Queer, cinco especialistas ao vento”,14 no qual os especialistas em fatos e coisas em voga reatualizam uma lista de has-beens [velharias, fora da moda] à deriva, contribuiu certamente para esse fenômeno de moda. “O queer é tendência”, e a pro- va é que o significante queer tornou-se um argumento comercial, do tipo que deixa nosso cérebro inteiramente disponível. E os mais sortu- dos, os que têm TV a cabo, já terão dado uma olhadela na excitante série americana “Queer como Gente“,15 que narra a vida truculenta de gays e lésbicas em Pittsburgh. Quem for um pouco melhor informado pensará que queer é 12 Artigo publicado originalmente em Le diable probablement, automne-hiver, nu- méro 1, Paris: 2006, pp. 11-14. http://www.lediableprobablement.com/numeros/ pdf/01.pdf 13 Tradução Julia Jones (IPB - Bahia). 14 “Queer, cinq experts dans le vent”. 15 “Queer as Folk”. Marcela Antelo (Org.) | 32 | simplesmente um sinônimo de gay ou lésbica. E é nesse ponto que a tradução se torna indispensável: queer quer dizer “suspeito”, “bizarro”. Originalmente, era um insulto, tão ofensivo quanto “sale pédale” em francês [pederasta]. No final dos anos 1980, essetermo estigmatizante foi recuperado de maneira afirmativa pelos mesmos indivíduos que ser- vira para marginalizar. Essa reapropriação estratégica pelos “anormais” de todos os horizontes permitiu à época uma concepção radicalmente nova da relação entre lutas políticas e identidades, assim como formas de militância até então inéditas (Act Up ou Queer Nation). Todos aqueles que são excluídos da população “normal” (bur- guesia branca heterossexual) em função de sua sexualidade, do seu meio ou de sua cor, são, por definição, queers, “anormais”. O movimento queer buscava inicialmente separar-se da identidade comunitária gay e lésbica e de suas reivindicações integradoras a fim de promover um dis- curso não-identitário e antiassimilacionista. Acabou encarnando uma distância crítica a respeito das coações normalizadoras em geral. É lamentável constatar que, através desses numerosos desliza- mentos de sentido, a utilização do sintagma queer em francês perdeu suas implicações políticas originais, e hoje se limita a etiquetar os cli- chês moderninhos, lamentável porque as lutas políticas queer, que se inspiraram largamente nas análises de Michel Foucault quanto aos “mi- cropoderes”, são de uma criatividade preciosa. E porque, por trás da vul- garização empobrecedora do “queer”, os queer and gender studies, áreas de pesquisa bastante vivas nos Estados Unidos, apenas obtiveram na França um débil eco.16 Talvez não tenha sido um acaso que o queer tenha apenas co- nhecido essa forma superficial de fascinação, que o termo tenha ficado preso às lógicas fashion e comerciais. O jogo das reversões e a polivalên- cia tática dos discursos querem isso: assim como os queers se apropria- ram de um termo inicialmente estigmatizante, também sua bandeira foi recuperada pelo discurso do consumo e do lazer. Mas essa recuperação normativa da subversão queer se explica 16 A “teoria” queer é por definição muito heterogênea. Seus teóricos mais conheci- dos são: J. Butler, P. Califia, M. Foucault (como inspirador), T. de Lauretis, G. Rubin, E. Sedwick, M. Wittig. Sobre o assunto queer, ver também: Homos, de L. Bersani, Saint-Foucault de D. Halperin e Théorie queer et psychanalyse, de J. Saez. Mulheres de Hoje | 33 | certamente também pelo que existe, no fundo, de realmente normati- vo no discurso queer, ou seja, a visão de uma sexualidade amplamen- te controlável. Através desses múltiplos deslocamentos de sentido, um elemento que pertenceu originalmente ao movimento queer persiste de fato, e pode dar conta do devir deste termo: a maneira pela qual os queers articulam sexualidade e política. Que a sexualidade não dependa somente da esfera íntima e pri- vada, e se encontre presa às múltiplas redes de poder, isso parece cla- ro, se pensarmos com Michel Foucault que ela se encontra no coração do “biopoder” característico de nossa época. A crise da Aids o atesta suficientemente, mas pensamos também nas legislações e políticas de- mográficas que a visam, nos controles dos quais ela se torna objeto ou no peso das normas sociais. Quer se aceite isso ou não, certas questões sociais são irremediavelmente políticas e sexuais. O movimento queer supera essa simples constatação de imbri- cação e insiste na significação política das próprias práticas sexuais. Se- guindo a linha de M. Foucault, certos teóricos queer afirmam que as práticas sexuais rejeitadas como “fora das normas” ou “desviantes” po- dem ser consideradas como técnicas de resistência contrárias aos dis- positivos de normalização sexual (a heteronormatividade, a imposição de identidades sexuais, a genitalização obrigatória do prazer). O corpo e seus prazeres são concebidos como tribunas de lutas políticas. O sexo queer dispõe de um potencial transformador, a partir do qual é possível experimentar novos prazeres, elaborar relações inéditas entre os indiví- duos e inventar processos culturais e políticos subversivos. Na sua luta contra as identidades sexuais, o movimento queer recusa a ideia de que as práticas sexuais e prazeres possam ser catalo- gados de acordo com as categorias psicológicas ou pressupostos psica- nalíticos — “o” perverso, “o” fetichista, “o” masoquista —, ou constituir a expressão de um desejo inconsciente. Nem causalidade psíquica, nem explicação teórica: as diversas práticas sexuais estão à disposição de to- dos. Cada um pode usar sua sexualidade de maneira lúdica e estratégica ao mesmo tempo, segundo o contexto social e histórico. Eis aí, sem dúvida, o que agrada tanto no queer, mas que explica igualmente a recuperação, finalmente tão pobre, daquilo que reinvidica- mos, essa concepção livre e lúdica da sexualidade. Marcela Antelo (Org.) | 34 | Que a sexualidade nada tenha de “natural” e que as identida- des sexuais decorram em boa parte do imaginário, podemos dar como certo. Que seja preciso despsicologizar o prazer, também. Que as cate- gorias clínicas, como todas as categorias, não dão conta do real singular do gozo, isso sem dúvida alguma. Mas, justamente, se é conveniente estar atento ao real do gozo singular, no qual reside um ponto de vis- ta antinormativo pouco consequente, então uma objeção se impõe: o gozo sexual e suas modalidades não estão à disposição consciente do sujeito!17 E a concepção queer de uma sexualidade plástica é, na realida- de, portadora da norma utópica, supostamente válida para todos, de um gozo nômade e maleável à disposição, pelas virtudes de um saber-gozar mestre de seu objeto. O leitmotiv queer sobre a “invenção” e a “autocriação” revela os pontos débeis desse discurso. Sua teoria da sexualidade é impensada- mente otimista, sendo desprovida de toda dimensão negativa ou mortí- fera — o que é bem curioso num movimento que surgiu em plena crise da Aids — e sua retórica do “uso” político da sexualidade supõe a figura, pelo menos contestável, de um sujeito inteiramente mestre e possuidor de seus prazeres. Paralelo à oposição às normas sociais que excluem as sexualida- des desviantes e à reivindicação queer de uma sexualidade desenfreada, encontramos o mesmo pressuposto nos dois discursos antitéticos: a su- posição de que seria possível controlar livremente sua sexualidade e seu gozo, seja para reprimi-los ou exaltá-los. Certamente não se trata aqui de dizer a uns e outros se devem achar bom ou não resistir às normas sociais que realmente os estigmati- zam, mas sem dúvida alguma não somos assim tão livres para “politizar nossa sexualidade”, e nem para comprar aquele famoso par de sapatos extravagantes! 17 Entre o naturalismo e o construcionismo queer, uma terceira via se impõe para pensar a sexualidade: a que leva em conta o “real” do gozo. MISTÉRIOS DO AMOR18 Chiara Mangiarotti (AMP/SLP – Veneza)19 O que exatamente a psicanálise tem a ver com as emoções que os filmes transmitem? A emoção, que vem do latim motus, movimento, é a expressão somática de um sentimento que o emotus, sujeito emocionado, manifesta. Nas palavras de Alexander Kluge, o cinema é “imortal e mais antigo que a arte fílmica. Baseia-se no fato de que compartilhamos, publicamente, algo que nos comoveu”. O objeto que move a psicanálise é o mesmo que move o cinema: as emoções que o cinema evoca, com raiz no desejo, no amor, na sexualidade e na morte, também são o escopo da psicanálise. Os filmes — como histórias contadas não apenas com palavras, mas também com imagens e tudo o mais envolvido em sua composição — talvez sejam a forma mais moderna de mito. Os filósofos frequentemente usam mitos, que podemos traduzir como narração, como forma alternativa de argumentação para o logos, ou racionalização, simplesmente porque tornam mais fácil explicar alguma coisa. De maneira semelhante, o psicanalista aborda os filmes, não para interpretá-los, mas, pelo contrário, para jogar luz num ponto específico da doutrina psicanalítica. Os filmes mobilizam nossas emoções, podem nos surpreender e perturbar; frequentemente nos conduzem a um reino especial: das Unheimliche, o inquietantementeestranho — um dos nomes da angústia, que, segundo Lacan, é o único sentimento que não engana, porque nos aproxima do objeto que causa nosso desejo. É o caso de ”Mulholland Drive” [“Cidade dos Sonhos”], de 2001, no qual o diretor David Lynch nos conduz aos bastidores da indústria cinematográfica hollywoodiana para nos mostrar o que não funciona no sistema das estrelas do cinema, nos mostrar os furos em suas imagens perfeitas. Qualquer um que veja o filme pela primeira vez, ou o rejeita completamente ou não entende nada de fato, e ainda assim permanece fascinado. ”Mulholland Drive” teve origem no projeto-piloto para uma série de TV que nunca foi feita. Lynch misturou as cenas e acrescentou os últimos trinta minutos. E é interessante perguntar por quê. O que ele fez foi isto: levou uma história até um ponto-chave e então a repetiu e transformou. Os principais personagens, Betty e Rita, são duplicados e assumem nomes novos, Diane e Camilla. A mesma coisa acontece com o resto do elenco. Todas as situações, locais e nomes são repetidos e reenquadrados. Lynch usa a mesma estratégia que as novas tecnologias disponibilizaram aos usuários: em termos simples, eles podem zapear, podem intervir na sequência linear do filme, parando e repetindo o que e quando quiserem. O espectador, como demonstrou Laura Mulvey, a proeminente teórica da Teoria do cinema feminista, pode manipular e destruir a clássica fluidez e movimento do cinema. O “cinema desacelerado” não só controla a narração, mas também permite ao espectador possuir a imagem da estrela e gozá-la como nunca. Pode fetichizá-la. Zapeando para frente e para trás, pode enfatizar o efeito automaton do personagem, no qual há uma mistura desconfortável de vida e morte. O espectador comanda a estrela, de certa maneira uma marionete, realçando a natureza inanimada da figura humana no cinema. O ato do espectador é inquietantemente estranho porque revela a ausência do tema no qual o filme se baseia, algo que geralmente ignoramos. Em ”Mulholland Drive”, o próprio Lynch assume esse papel. Ele usa exatamente esse mesmo mecanismo, traduzindo em imagens o que a manipulação do espectador revela: o caráter de automaton das estrelas. Ele usa essa técnica para mostrar o making of de uma estrela: o meio não pode ser separado do sujeito escolhido. O personagem principal em “Mulholland Drive” é Diane Selwyn. Ela chega a Hollywood vinda de Deep River, Ontario, aspirando tornar-se uma grande estrela de cinema. Mas as coisas não saem exatamente como planejou. Diane faz o teste para o papel principal do filme de Bob Brooker, “Sylvia North Story”, mas não causa boa impressão no diretor, que dá o papel a Camilla Rhodes. A história continua: as duas mulheres se tornam amigas e amantes, e Camilla ajuda Diane a conseguir alguns papéis secundários. No entanto, o projeto de Diane, o sonho que a levou a Hollywood, fracassou. Ela se encontra privada da identidade da atriz que queria ser, mas consegue recuperá-la amando Camilla e se identificando com ela, alguém que tem o que ela perdeu. Camilla, no entanto, estraga o show. Decide deixar Diane e o faz brutalmente, convidando-a para uma festa na qual anuncia seu noivado com o diretor Adam Kesher. Parece até mesmo gostar de assistir Diane contar sua triste história à mãe de Adam. O jantar acontece em uma casa em Mulholland Drive, uma estrada sinuosa que rodeia as colinas de Los Angeles na qual é impossível saber o que está por trás de cada curva e da densa vegetação que esconde as casas das estrelas. Diane chega à festa em uma limusine. Nesse lugar inquietantemente estranho que dá nome ao filme, Diane perde tudo: não sabe mais quem é, ou por que está em Los Angeles. A única coisa que quer fazer é vingar-se de Camilla contratando alguém para matá-la. O ódio que sente por Camilla, que teve o poder de reduzi-la a nada, desencadeia um delírio e a leva a um acting-out. Seu sonho de ser atriz tornou-se um pesadelo e ela uma assassina, que contratou alguém para matar sua amante. Comecei a contar-lhes a trama pelo fim, que retroativamente explica o resto do filme, tornando-o compreensível. Tendo Diane se comprometido com esse crime irreparável, sua perda é ainda mais desesperada: ela é destruída pela dor de ter mandado matar o que lhe era mais caro. Sua vítima foi seu próprio eu ideal exteriorizado. Matando Camilla, matou a si mesma e não há alívio. Diane quer retornar no tempo, para quando era apenas uma garota que queria ser estrela de cinema; quer trazer Camilla de volta à vida. Poderia haver forma melhor de fazê-lo do que dormir e sonhar? O sonho de Diane não é apenas um sonho para contradizer a realidade, é uma forma de reconstruir a si mesma como sujeito. O filme começa com um sonho no qual Diane assumiu o nome de Betty. Betty é uma jovem radiante, que acaba de ganhar um concurso de Jitterbug, a dança representada no início do filme por silhuetas se movendo contra o fundo violeta. Imediatamente após a cena da dança, o foco fecha sobre um travesseiro rosa e se pode ouvir alguém respirando muito pesado. A câmera parece então penetrar no travesseiro e cair em um buraco escuro. O sonho de Diane começa. No sonho de Diane, Camilla não está propriamente morta. Sofreu um terrível acidente em que perdeu a memória, acidente que acontece exatamente na mesma Mulholland Drive onde Diane foi traumatizada pelo anúncio do noivado de Camilla e perdeu tudo. Esta Camilla parece uma boneca quebrada. Em relação ao que dissemos sobre o automaton, o corpo da mulher que escapou do carro em chamas é caracterizado pelo automatismo: parece uma marionete ligada a fios invisíveis, uma espécie de Barbie com controle remoto e cabelo despenteado. Anda de salto alto, com passos incertos através da folhagem que desce em direção à imensa metrópole de Los Angeles. Diane a encontra escondida na casa de sua tia e a salva. Betty chega a Hollywood completamente voltada para o futuro. O casal idoso que Betty parece ter conhecido no avião tem certa semelhança com a Rainha Elizabeth e seu marido Philip. No pingue-pongue de referências cruzadas entre temas, pessoas e coisas, Lynch parece aludir ao drama de uma outra Diane, que morrera alguns anos antes. No final do filme, o casal idoso sentado no taxi com sorrisos perturbadores vai se tornar aterrorizador. As referências do filme a “Crepúsculo dos Deuses” (o nome “Sunset Boulevard” na placa de rua) e “Psicose” (Betty encontra Camilla no chuveiro) refletem a insensatez de Betty e Diane. Betty pergunta à hóspede inesperada no chuveiro o seu nome, mas a mulher não sabe responder. Perdeu a memória e assume sua identidade a partir da outra. É como uma criança que, vendo a si mesma refletida no espelho pela primeira vez, se identifica com a figura por trás dele. Esse é um conceito básico de autoidentificação, como explicado no famoso estádio do espelho de Lacan. O que vemos de fato no filme é uma mulher diante de um espelho que reflete a imagem de Rita Hayworth no filme “Gilda”. Imediatamente depois, ela diz que seu nome é Rita: Camilla se identificou com a diva do filme. Como Clotilde Leguil escreveu em sua análise do filme, Gilda representa o mito par excellence da femme fatale. Mas por trás da figura de Gilda, há Rita Hayworth que, no final da vida, sofrendo de Alzheimer, claramente não se lembrava de ter interpretado Gilda. O sonho passa rapidamente do mito para a realidade, de Gilda para Rita Hayworth envelhecida, afetada pela amnésia e rejeitada pelos estúdios de Hollywood. A mulher que estivera no acidente confia a Betty que perdeu a memória: “Eu não sei quem sou”. O sonho não apenas faz com que se realize o desejo de Diane de descobrir o que ela perdeu de fato, mas também a coloca na estrada para a descoberta de sua própria verdadeira subjetividade. A forma com a qual o filme é editado cria imagens que assumem o valor de verdade subjetiva, imagens que são indecidíveis. Com indecidíveis quero dizer que não se pode dizer se são verdadeiras ou falsas. Aqui também, de acordo com a análise do cineasta Guy Debord pelo filósofoGiorgio Agamben, é a repetição que restaura a possibilidade daquilo que foi, torna possível abrir mais uma vez “uma zona de indecidibilidade entre o real e o possível, enquanto o aprisionamento da imagem a retira de um contexto narrativo”. Estas duas técnicas de edição — repetição e aprisionamento — transformam a imagem em uma zona de indecidibilidade entre o que é verdadeiro e o que é falso. É um método através do qual Lynch desenvolve uma poética do mistério. As imagens em ”Mulholland Drive” são indecidíveis, um enigma, como a imagem do amor que tanto nos captura e fascina. É através dos mistérios do amor que Diane Selwyn nos leva a questionar a sociedade do espetáculo, na qual tudo é quantificável em dólares e centavos, onde qualquer um que não seja mais produtivo ou vendável é imediatamente rejeitado. Retornando à cena que estávamos analisando, o pôster do filme estrelado por Hayworth diz: “Nunca houve uma mulher como Gilda.” Então Camilla não era Gilda porque a superestrela não existe, e quem Diane matou, a mulher que a havia deixado e traído seu amor pelo amor de um homem, tampouco era uma superestrela. No sonho de Diane, o amor entre um homem e uma mulher sempre falha, como acontece, por exemplo, na cena em que a esposa de Adam Kesher o expulsa de casa. Entre parênteses: Diane já havia se vingado de Adam Kesher numa cena anterior ao seu sonho, na qual ele perde o controle de seu filme para os irmãos Castigliani, membros da Máfia que querem dar o papel a Camilla Rhodes! Na cena de seleção de elenco com Bob Brooker, o ator que é parceiro de Betty insiste em interpretar a cena com uma proximidade opressiva. Na mesma sequência, o diretor dá aos atores ordens enigmáticas: “Não é uma competição. Não aja/ atue ou represente como se fosse real até que se torne real.” Como disse Clotilde Leguil, essas ordens assumem significado em relação ao amor e não ao cinema. Após a primeira seleção de elenco, quando Diane deu tudo de si e não foi escolhida, desistiu de amar os homens e apaixonou-se por Camilla. Mas o amor não é uma competição entre mulheres para capturar a atenção de um homem. E nunca é boa ideia dar tudo de si quando se está fingindo amar no cinema, mas sim guardar seu amor para a vida real. O desejo que não foi satisfeito na vida real, o de ser vista, admirada e escolhida por um homem, é realizado no sonho. Dessa vez, no entanto, a seleção de elenco com Bob Brooker toma um rumo diferente. Diane consegue atrair o olhar de Adam no set, e depois vai embora. Deixa o homem para se encontrar com Rita e procurar o segredo da feminilidade no amor entre duas mulheres, tornando-se amante de Camilla. Mas a pulsão de morte é ainda mais forte que o desejo de amar e ser amada. O sonho produz a repetição do trauma. Diane acompanha Rita até o que se presume ser seu antigo endereço, o endereço de Diane Selwyn. Este nome havia surgido para Rita quando viu o nome Diane no crachá da garçonete no restaurante Winkie’s. Depois de encontrar o telefone nas páginas amarelas, Diane liga, mas Camilla não reconhece como sua a voz da secretária eletrônica. De fato não é, é a voz de Diane, a assassina de Camilla Rhodes. O que Diane está procurando? No início do sonho, ela está tentando capturar a atenção de um homem, um Pigmaleão que a transformará em uma grande estrela como Gilda; então ela deixa Rita para ir à seleção de elenco. Mais tarde, no entanto, deixa o set para retornar a Rita. Por trás de Gilda, há Rita, que para ela representa uma resposta à feminilidade, à famosa pergunta que Freud foi incapaz de responder: “O que quer a mulher?” Na invenção de uma estrela, os véus caem um após o outro: por trás de Gilda, há Rita Hayworth, por trás de Hayworth, a Rita que perdeu a memória, e assim sucessivamente até chegar a Diane Selwyn. A questão se desloca da identidade de uma mulher para a de Diane. Quem é Diane Selwyn? Ao invadir a casa de Diane, Betty e Rita encontram a resposta: Diane é um cadáver em putrefação. Nessa cena horrenda, Diane encontra a representação de sua própria morte. Esse será, na verdade, o epílogo inelutável da história, porque no dia em que Diane deu ao assassino contratado a foto de Camilla Rhode, ela selou sua própria sentença de morte. Essa cena real, que se passa no restaurante Winkie’s, corresponde à cena do sonho na qual Rita e Betty estão no Winkie’s e a garçonete está usando o crachá com o nome Diane. Aqui, no entanto, o crachá da garçonete diz Betty. Na análise do filme, deixamos Betty e Diane no momento em que haviam descoberto o cadáver de Diane. Como se pode escapar de algo tão terrível? Como Jacques Lacan afirmou: “A beleza é o último véu sobre a morte”. O sonho usa a beleza em seu aspecto sublime, um êxtase erótico entre duas mulheres para encobrir aquele horror. O sonho contrapõe o relacionamento fadado ao fracasso entre um homem e uma mulher e o relacionamento bem-sucedido entre duas mulheres. Se a pulsão escópica está sempre ligada ao cinema, aqui, especialmente, a beleza das imagens fascina, e nos motiva a assistir o filme. A beleza desse filme é criada pela beleza das atrizes, que incitam a pulsão voyeurística do espectador em cenas de erotismo sáfico. A beleza do filme, no entanto, não é harmoniosa. Pelo contrário, ela nos incomoda. Somos capturados pelas imagens e, ao mesmo tempo, suspensos na questão que os personagens adoram repetir: “O que está acontecendo?” O diretor usa a beleza para filtrar o inquietantemente estranho, que vela e desvela, suscitando compaixão, mal-estar ou mesmo angústia. O sonho ainda não chegou ao fim. O sonho das duas mulheres é interrompido pelo pesadelo de Rita, no qual ela murmura palavras misteriosas: “Silencio, silencio, no hay banda, no hay orquesta.” Rita se lembra de um clube chamado Silêncio, e elas decidem ir até lá. Essa derradeira parte do sonho responde à pergunta de Diane sobre o enigma do amor. No Silencio, uma anfitriã repete as mesmas palavras sibilinas que Rita havia murmurado: “no hay banda, no hay orquesta.” Com Clotilde Leguil, podemos interpretar essas palavras da seguinte maneira: não há forma de orquestrar o amor, não existe esse negócio de harmonia perfeita, nem entre um homem e uma mulher, nem entre duas mulheres. A busca de um objeto de desejo termina no silêncio, na ausência de qualquer objeto concreto. A frase “no hay banda” é repetida em todas as línguas porque a finalidade dessa busca é sempre a mesma em qualquer língua: o objeto de desejo de Diane, objeto que Diane não tem, é o objeto que falta a qualquer um. A música do amor é uma questão de sorte, não pode ser programada, não é orquestrada de forma alguma. Quando compreende isso, Betty começa a tremer violentamente: onde Betty-Diane pensou que encontraria algo, não há nada. O segredo do amor que ela achava ser possuído por Camilla — sua amada escolhida — não existe. Esse segredo, como a ideia de um amor no qual dois se tornam um, não existe. Nesse ponto, Rebekah Del Rio entra em cena cantando a canção melancólica “Llorando por tu amor”. Escutando a canção, as duas mulheres começam a chorar, unidas pela emoção. Observem a peruca loira de Rita, que a faz parecer com Betty, acentuando a ideia de fusão entre dois seres equivalentes. Mas por que choram de fato as duas mulheres, senão pela morte de Diane Selwyn, a mulher que acreditava na música do amor, na versão harmônica do amor para orquestra? A cantora cai no palco, mas sua voz continua cantando, completamente destacada de seu corpo. Rebekah caiu, como fazem os semblantes, revelando o objeto voz. Essa é uma noção lacaniana. A voz não é a voz que normalmente escutamos, mas uma voz que é destacada de seu local de emissão, como acontece, por exemplo, em alucinações auditivas. No filme, o clube Silencio é o ponto de distorção no qual esse estranho objeto sem substância aparece. O objeto sem substância está no cerne do ser, um objeto diferente de todos os outros inúmeros objetos disseminados pelo filme. Para evitar despertar para a angústia, Diane precisa elaborar um plano. Betty encontra uma caixa azul emsua bolsa, o mesmo azul da chave que Rita encontrou em sua bolsa após o acidente. A chave é triangular e se encaixa diretamente na fenda triangular da caixa azul. Diane continua a acreditar que há um segredo para o amor e está convencida de que Rita tem a chave. As duas mulheres voltam para casa e quando Rita pega a chave que, presumidamente, destranca o segredo de sua bolsa, Betty foge novamente para evitar tornar-se, mais uma vez, Diane Selwyn. Quando Rita, que permaneceu sozinha, abre a caixa, tudo fica negro. Agora Diane pode despertar de seu sonho para entrar no pesadelo que sua vida se tornou. Diane acorda com sua cabeça no mesmo travesseiro rosa no qual, como Alice caindo no poço, o sonho começou. O caubói que está batendo à sua porta ainda é um personagem de seu sonho, aquele que marcou um encontro para conhecer Adam Kesher no curral, onde ele o coage a contratar Camilla Rhodes. A mulher que vemos de costas, deitada na cama com uma camisola preta, é Camilla, e depois é Camilla morta, com hematomas escuros na pele. Na cena imediatamente anterior, Diane está na mesma posição com uma camisola de cor creme. Na realidade, Diane foi acordada por seu vizinho batendo na porta, trazendo-a de volta à esqualidez de seu apartamento. A chave azul pousada sobre a mesa é o sinal que o assassino deixou para dizer que o trabalho foi feito. Na realidade, é a chave da morte, o oposto da chave que, em seu sonho, deveria ter revelado o segredo do amor. Diane tem uma alucinação com a presença de Camilla: “Camilla, você voltou”. De roupão, sobe no sofá com uma xícara de café na mão, e a descobrimos deitada no sofá com Camilla de short, a xícara de café agora um copo de uísque. Diane voltou ao momento em que Camilla a deixou. De volta à realidade, Diane não terá outra alternativa senão fazê-la sair com um tiro de pistola, vítima de sua própria crença no amor absoluto. O casal de idosos que, todo sorrisos, havia desejado boa sorte a Diane em sua chegada a Los Angeles, transformou-se em silhuetas que deslizam sob a porta de seu apartamento, ficando cada vez maiores, perseguindo-a e ameaçando-a, forçando-a a se suicidar. Saíram da caixa azul, que tinha acabado no lixo e fora pega pelo monstro de cara marrom. É o mesmo monstro que vimos no início do filme, descrito pelo homem que havia marcado uma consulta com seu psicanalista no Winkie’s para contar-lhe seu pesadelo com o monstro. Essa cena inicial vira de cabeça para baixo o relacionamento entre sonho e realidade em relação ao que acontece com Diane. O homem conta o sonho ao seu analista e o monstro aparece na realidade, aludindo ao pesadelo que se tornou a vida de Diane, velado pelo sonho que estamos assistindo. Retornando ao casal de idosos, eles encarnam a imagem perseguidora dos pais. Essa imagem objetifica Diane, levando-a a jogar a si mesma fora, a fazer de si algo descartável. Ela é apenas outro pedaço de lixo entre muitos no filme, o lado oposto dos inúmeros objetos representados. Esse lixo alude ao destino descartável dos bens de consumo e do próprio sujeito em um mundo governado pelo dinheiro, igualmente presente nos maços de dólares que enchem a bolsa de Rita no início do filme, com os quais Diane pagará o assassino. Concluindo, não há receita para o amor, que apenas pode crescer da falta e sua aceitação. Cada um de nós pode tentar fazer essa possibilidade existir através de nossas próprias palavras singulares. Nessa tentativa, poder-se-ia dizer, cada um falha de sua própria maneira quanto à possibilidade de capturar o amor, fazendo-o existir além da contingência. Mas, diferentemente de Diane, trata-se de falhar de uma boa maneira, com uma invenção que tome o lugar dessa impossibilidade. UNICA DO AMOR À DISTÂNCIA20 Chiara Mangiarotti21 Unica Zürn é uma artista hoje esquecida, cujos livros são quase impossíveis de encontrar tanto na língua em que foram escritos, o alemão, quanto nas principais traduções para o francês e italiano. Meu primeiro encontro com a obra de Unica foi nos anos 1980, desenhos, anagramas e trechos de seus escritos na revista Lapis. Seu trabalho me marcou bastante, ficou gravado em minha memória e em meu coração por muitos anos, até quando escrevi sobre ela em um livro publicado há exatamente um ano, junto com dois colegas, Céline Menghi e meu marido Martin Egge, Invenções na Psicose, Unica Zürn, Vaslav Nijinsky, Glenn Gould,22 um livro que fala de artistas loucos que, cada um a seu modo, fizeram da arte um alicerce para sustentar suas próprias existências. E é justo sob essa perspectiva que quero falar hoje à noite. Unica Zürn, escritora, poeta, desenhista e pintora, nasceu em Berlim em 1916. Um fato marcou a sua vida e foi crucial para a sua dimensão artística: seu encontro com Hans Bellmer, artista com quem se mudou para Paris e que a introduziu no meio surrealista, iniciando-a na arte, nos “desenhos automáticos” e na técnica dos anagramas. Em Paris, Unica viveu com Hans um laço inseparável de dezesseis anos, interrompido unicamente por suas internações psiquiátricas. Desde uma primeira recuperação em Berlim, onde foi declarada esquizofrênica, Unica se submeteu a numerosos tratamentos até o dia de sua morte. Em 1970, após ser liberada de uma clínica onde parecia ter recuperado suas forças, durante uma visita à casa de Bellmer, que, gravemente doente, tinha decidido que os dois não poderiam mais viver juntos, Unica se jogou pela janela. Tinha 54 anos. Unica Zürn narrou a história de sua infância em Primavera Obscura, e continuou seu testemunho autobiográfico em O homem no Jasmim, no qual relata a história de sua doença. O que gostaria de tentar comunicar a vocês esta noite é que toda a produção literária de Unica é autobiográfica, no sentido de que, através da escrita, assim como da arte, buscou uma solução artística para a sua existência. Não é que Unica tenha sido uma artista apesar de sua loucura, mas, sim, propriamente, por causa dela. A esse propósito gostaria de citar o relato da amiga e tradutora Ruth Henry, que escreveu: Sempre, durante os nossos colóquios dos últimos anos, se fortaleceu em mim a convicção de que cada palavra escrita por Unica (...) é autobiográfica. Às vezes o documento parece um texto poético, mas somente porque Unica viveu poeticamente (...). Ela transformou o elemento destrutivo, a doença, em elemento positivo, em uma obra. (HENRY, 1980: 225-228) Na obra de Unica, desenhos e manuscritos formam um corpus dificilmente separável de temas, ideias, pessoas e acontecimentos estreitamente ligados à sua experiência de vida, conferindo às suas produções um estilo inconfundível. Os desenhos, habitados por figuras ambíguas que evocam uma metamorfose contínua entre o reino humano, o animal e o vegetal, são muitas vezes penetrados pela escrita, como vemos em alguns anagramas e textos em prosa como A casa das doenças. Nos manuscritos, os mesmos incontáveis acontecimentos autobiográficos e eventos da sua mente e corpo se repetem assumindo formas diversas, como os jogos de incorporação entre Ela e Ele e os diversos nomes que Ele assume: o homem branco, o homem no jasmim, o mago, o seu inimigo mortal, H.M., H.B., na saudade impossível do encontro com a Imagem, que poderá alcançar somente na morte. A imagem fundamental é a invenção originária de “o homem branco” e “o homem no jasmim”, a partir dos quais a autora desenvolverá a teoria do amor à distância, tema central de toda a sua produção literária. Unica nos conta como ele nasceu no início de O homem no Jasmim: a protagonista, que naquele momento teria seis anos, depois de atravessar um espelho entra em uma pequena casa onde encontra, em cima da mesa, um pedaço de papel em branco; vê um nome escrito no papel, mas não consegue lê-lo a tempo, porque desperta do sonho e busca abrigo na cama da mãe: “E cai sobre a menina amedrontada uma montanha de carne quente que aprisiona o espírito impuro dessa mulher, e ela foge para sempre da mãe, da mulher, da aranha! É profundamente ferida.” A mãe se apresenta para ela como um real nu, horrendo e invasivo,que o psicanalista Jacques Lacan chamou Jouissance: um gozo ilimitado, não humanizado pelo simbólico, um gozo que nada tem a ver com o prazer, mas que, ao contrário, é pura pulsão de morte, que podemos também chamar das Ding, A Coisa, termo que Lacan resgatou de Freud. Da imagem materna que Unica nos apresenta, forte e onipotente, podemos deduzir a ausência daquela instância que tem a função simbólica de separar a criança do gozo mortífero, colonizando-o e tornando-o humano através da linguagem. No caso de Unica, a instância simbólica fundamental que em psicanálise chamamos Nome-do-Pai nunca existiu, foi foracluída. É o que acontece na psicose: o sujeito torna evidente essa ausência ao fabricar para si uma instância de suplência da função simbólica fundamental, através de um artifício particular. A invenção de Unica é a imagem do homem no jasmim. Com esse propósito, gostaria de ler um breve texto que descreverá perfeitamente essa imagem, cujo título é “MistAKE”, que Unica Zürn em 1970, poucos meses antes de suicidar-se, dedicou ao professor Lacan, que realizava o seu seminário a poucos metros do quarto de Unica na clínica Sainte-Anne onde ela estava hospitalizada. Quando começou? Desde muito, muito tempo. Começou na idade de seis anos; Começou quando pensou pela primeira vez na palavra AMOR AMOR! Era um homem desconhecido O homem magro. O homem branco. O homem paralisado. O homem com os olhos azuis. O homem que fala pouco. Se falar, fala com doçura. O homem na poltrona, na frente de uma casa branca. O homem que não a toca O homem que se chama amor. E aos seis anos se casa com ele. O homem do pensamento. O homem que é presente — por todas as partes — desde sempre A imagem do amor Começa aqui. Seguramente. O homem no jasmim é o parceiro que vem em sua ajuda, que intervém para separá-la do gozo mortífero da Coisa materna: é paralisado, para afugentar qualquer perigo de aproximação; é distante e passivo para não se transformar em perseguidor. Ele a ama, mas não goza dela. Através dessa visão, a pequena Unica tenta encontrar uma primeira solução para a sua existência. No livro O homem no Jasmim, depois de atravessado o espelho, a protagonista encontra no pedaço de papel em branco um vazio de identidade — a ausente identificação sexuada como consequência da ausente inscrição simbólica. O homem no jasmim é a invenção que lhe dá um nome, Unica, o nome que o sujeito mais tarde escolherá para si. A eleição, como seu parceiro, de um objeto distante, inacessível e despersonalizado é o que lhe dá o estatuto de Única do amor. Através do amor, ela encontra uma ancoragem, se sustenta, adquire um nome próprio. Lacan o formulou para Joyce. Em seu seminário “Joyce o sinthoma” afirma que Joyce criou um nome para si que o imortalizou na história universal da literatura através da própria obra, e com ela se fabricou um Nome-do-Pai artificial. Com Joyce, Lacan até mesmo troca a grafia de sintoma, que de symptôme se transforma em sinthome, de acordo com a escrita do francês antigo. Com isso, Lacan pretende ressaltar a função do sinthoma do qual Joyce nos oferece um exemplo de seu “uso” na escrita, da qual soube fazer arte. Porém, O homem no jasmim de Unica é um baluarte imaginário que não conseguirá defendê-la dos encontros com a realidade da sua vida de mulher adulta. Quando a distância de segurança for infringida, o homem no jasmim se transformará e assumirá, no delírio, uma conotação perseguidora. Para recuperar alguns dados biográficos fundamentais: Unica abandona a escola em 1932, aos dezesseis anos, e encontra trabalho na Ufa-Film, primeiro como estenodatilógrafa e depois como dramaturga e cenógrafa de filmes publicitários. Em 1942, se casa com o comerciante Erich Laupenmühlen, dezenove anos mais velho que ela. No ano seguinte nasce a filha Katrin, e em 1945, o filho Christian. Quando descobre que o marido a traía, decide abandoná-lo. A guarda dos filhos é dada ao pai e Unica ganha a vida como escritora de contos, histórias leves e alegres para os feuilleton dos jornais berlinenses. Como escritora, cria para si realmente um novo nome: Unica, como é atestado no seu documento de identidade no qual, em 1954, ao nome Nora Bertha Ruth (o último nome é aquele pelo qual era efetivamente chamada) se soma Unica e também sua nova profissão: escritora. Como ela mesma afirma: “Por alguns anos me transformei naquilo que queria: uma escritora”. O encontro com Bellmer conclui o período marcado por essa solução. Sua produção escrita que se segue será permeada pelo exercício da lembrança. Unica encontra Hans Bellmer em 1953, em um vernissage realizado na galeria Springer. Bellmer, como o marido anterior, era um homem muito mais velho que ela. Unica se apaixonou à primeira vista. Bellmer estava trabalhando em um livro que reunia fotografias da sua famosa boneca, produto de uma pesquisa que, a partir da analogia entre o inconsciente do corpo e as manifestações da psique escondidas na linguagem, conduziram o artista a uma elaboração “anagramática” do corpo feminino, no qual os membros eram decompostos, trocados, recombinados. Como notou um amigo de Bellmer, a boneca que ele havia criado antes de conhecer Unica tinha a cara dela. O encontro com Bellmer provoca uma complementaridade que se revelará fatal para Unica. Bellmer é um artista que, em sua obra gráfica, busca revelar os mistérios do corpo da mulher, tornar suas bonecas um “fetiche”. Para ele, Unica ocupava fantasmaticamente o lugar de objeto complemento do gozo, uma posição insustentável devido à estrutura psicótica de Unica, porque a colocava em uma situação de passividade, de objeto a ser gozado. Um aborto em 1955 parece ter sido o elemento decisivo que prepara o terreno para o desencadeamento psicótico de 1957, durante uma forte depressão de Bellmer ao final de 1959 após a morte de sua mãe, e contribuirá, em 1960, para um rompimento temporário da relação entre eles, seguido da sua primeira recuperação forçada em Berlim. O ano de 1957, como ela mesma escreve, é um ano importante, sobretudo pelo encontro com o homem no jasmim que ela acredita ter visto na figura de Henri Michaux. Escreverá sobre esse encontro: trata-se do “primeiro milagre da sua vida”. A impressão é tão violenta que “depois daquele dia, muito, muito lentamente, começa a perder a razão”, mesmo quando acrescenta que “ele não sabe de nada, e não fez nada para que ela adoecesse”. E ainda afirma que sua reação não tem relação com um possível amor voltado para aquele que “suporta” a figura do homem no jasmim: “Nem acredita que isso tenha algo haver com o amor. Ao invés disso, um susto insano experimentado ao encontrá-lo, esse encontro que a visão do homem no jasmim tinha preparado com tanta exatidão.” A aparição do homem no jasmim na realidade anula a distância e invalida a sua construção fantasmática, transformando-se em delírio. Esse encontro malvado não é, entretanto, a sua causa, mas sim a resposta do delírio ao desencadeamento da psicose. Esta, porém, não acontecera de uma vez só, mas começara anteriormente, pouco a pouco, na sua vida com Bellmer. Unica não pode operar uma escolha, para ela impossível, entre ser a mulher do homem Bellmer e ser a artista que ela tentou ser por toda sua vida. Escreve que “Anagramas e desenhos são, ao lado dos meus trabalhos domésticos, minhas ocupações. Fazer livros é para mim uma grande felicidade. Livros para mim, ou talvez mais tarde eu os dê aos meus filhos. Escrevo histórias anagramatizadas dentro dos desenhos. É muito bonito” — equipara a sua atividade artística aos trabalhos domésticos, não para diminuí-la, mas para ressaltar a necessidade cotidiana. Também Janet Frame, escritora neozelandesa, autora de Um anjo na minha mesa, depois de passar anos terríveis em hospitais psiquiátricos e conseguir fazer da escrita um sinthoma totalmente completo, considerava essa atividade no mesmo nível dos trabalhos domésticos, ainda que mais importante. Abre-se uma importante questão: a dificuldade suplementar que uma mulher pode encontrar para construir a própria
Compartilhar