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A filosofia da física (Sklar)

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LAWRENCE SKLAR 
 
 
 
 
 
 
 
 
A FILOSOFIA DA FÍSICA 
 
 
 
 
 
TRADUÇÃO 
PEDRO GALVÃO, PAULA MATEUS E DESIDÉRIO MURCHO 
 
 
 
REVISÃO CIENTÍFICA 
ANA SIMÕES E PAULO CRAWFORD 
FACULDADE DE CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA 
 
 
 
Título original: Philosophy of Physics 
(Westview Press, Colorado, 1992) 
 
 
 
 
Para Pat e Ruby 
 
 
 
3 
 
Índice 
Agradecimentos ......................................................................................................................................... 5 
1 Introdução: a filosofia e as ciências físicas .......................................................................................... 6 
A relação entre a ciência e a filosofia ................................................................................................................... 6 
Física moderna e filosofia ...................................................................................................................................... 7 
Filosofia da física e filosofia em geral ................................................................................................................ 10 
Objectivo e estrutura deste livro ........................................................................................................................ 12 
2 Espaço, tempo e movimento ............................................................................................................... 13 
Problemas filosóficos tradicionais do espaço e do tempo ............................................................................... 13 
Questões sobre o conhecimento ......................................................................................................................... 13 
Questões sobre a natureza da realidade ............................................................................................................. 16 
O debate entre Newton e Leibniz ....................................................................................................................... 18 
Do espaço e do tempo ao espaço-tempo ........................................................................................................... 23 
As origens da teoria da relatividade restrita ...................................................................................................... 23 
O espaço-tempo de Minkowski ........................................................................................................................... 27 
Espaço-tempo neo-newtoniano ........................................................................................................................... 32 
A gravidade e a curvatura do espaço-tempo .................................................................................................... 33 
A gravidade e a relatividade .............................................................................................................................. 33 
Geometria não euclidiana .................................................................................................................................. 35 
O uso das geometrias não euclidianas na física ................................................................................................. 37 
Espaço-tempo curvo e gravidade newtoniana .................................................................................................... 40 
Resumo ............................................................................................................................................................... 41 
Como sabemos qual é a verdadeira geometria do mundo? ............................................................................ 41 
Mudanças nos pontos de vista sobre o conhecimento da geometria .................................................................. 41 
O convencionalismo de Poincaré ....................................................................................................................... 43 
Réplicas a Poincaré ............................................................................................................................................ 44 
Opções realistas ................................................................................................................................................. 46 
Opções reducionistas ......................................................................................................................................... 49 
Réplicas realistas complementares..................................................................................................................... 50 
Pontos de vista pragmatistas .............................................................................................................................. 52 
Resumo ............................................................................................................................................................... 52 
Que tipo de ser tem o espaço-tempo? ................................................................................................................ 53 
Tempo e ser ........................................................................................................................................................ 54 
Considerações relativistas .................................................................................................................................. 55 
Substantivismo contra relacionismo ................................................................................................................... 56 
A proposta de Mach e a relatividade geral ........................................................................................................ 58 
Ainda a relatividade geral e o debate entre substantivistas e relacionistas ....................................................... 60 
Relações de espaço-tempo e relações causais .................................................................................................... 63 
Topologia e estrutura causal .............................................................................................................................. 65 
Serão as características do espaço-tempo redutíveis a características causais? ............................................... 66 
Resumo ............................................................................................................................................................... 68 
Leituras complementares .................................................................................................................................... 68 
3 A introdução da probabilidade na física ........................................................................................... 70 
«»A probabilidade e a explicação estatística segundo os filósofos ................................................................ 70 
Probabilidade: a teoria formal ........................................................................................................................... 70 
Interpretações objectivistas da probabilidade .................................................................................................... 71 
Interpretações subjectivistas da probabilidade .................................................................................................. 73 
 
4 
Explicação estatística: explicação, lei e causa ................................................................................................... 75 
Explicações que invocam probabilidades........................................................................................................... 77 
Explicação e redução ......................................................................................................................................... 80 
Da termodinâmica à mecânica estatística .........................................................................................................82 
Termodinâmica ................................................................................................................................................... 82 
A teoria cinética do calor ................................................................................................................................... 83 
A abordagem ergódica da mecânica estatística ................................................................................................. 87 
O problema da irreversibilidade e as tentativas para o solucionar ............................................................... 90 
A caracterização do equilíbrio ........................................................................................................................... 91 
A aproximação ao equilíbrio .............................................................................................................................. 94 
Algumas abordagens não canónicas do problema ............................................................................................. 95 
Algumas abordagens canónicas do problema .................................................................................................... 97 
O problema das distribuições de probabilidade iniciais .................................................................................. 101 
Cosmologia e irreversibilidade ........................................................................................................................ 104 
Resumo ............................................................................................................................................................. 106 
O problema da «direcção do tempo» ............................................................................................................... 107 
Leituras complementares .................................................................................................................................. 113 
4 A imagem quântica do mundo ......................................................................................................... 115 
A base experimental da teoria dos quanta ...................................................................................................... 115 
Primeiras tentativas de interpretação da teoria: o princípio da incerteza................................................... 120 
A interpretação do formalismo: probabilidade, interferência e medição ......................................................... 120 
A interpretação de Copenhaga ......................................................................................................................... 124 
O princípio da incerteza ................................................................................................................................... 127 
O que é a medida na teoria dos quanta? ......................................................................................................... 129 
O problema da medida ..................................................................................................................................... 129 
A solução de Bohr e as suas críticas ................................................................................................................ 132 
Soluções idealistas ........................................................................................................................................... 134 
A medida como uma interacção física .............................................................................................................. 135 
A interpretação de Kochen e as interpretações estocásticas ............................................................................ 138 
Interpretações de «múltiplos mundos» ............................................................................................................. 139 
Lógicas quânticas ............................................................................................................................................. 141 
Resumo ............................................................................................................................................................. 144 
O problema das variáveis ocultas e do determinismo .................................................................................. 146 
Determinismo e indeterminismo ....................................................................................................................... 146 
Argumentos contra as variáveis ocultas ........................................................................................................... 147 
A inseparabilidade dos sistemas ...................................................................................................................... 153 
O argumento de Einstein, Podolsky e Rosen .................................................................................................... 153 
O teorema de Bell ............................................................................................................................................. 156 
Resumo ............................................................................................................................................................. 160 
Leituras complementares .................................................................................................................................. 162 
5 Reflexões sobre a interdependência entre a filosofia e a ciência .................................................. 163 
Referências .............................................................................................................................................. 167 
Glossário inglês-português ...................................................................Error! Bookmark not defined. 
 
5 
Agradecimentos 
 Numa obra deste género, concebida para fazer o levantamento do estado corrente da disci-
plina, as fontes de influência intelectual são tantas que não podem ser mencionadas numa sec-
ção de agradecimentos. As leituras sugeridas no final dos três grandes capítulos indicarão ao 
leitor onde encontrei as fontes de muitas ideias importantes da filosofia da física. 
 A discussão com muitas pessoas, ao longo dos anos, ajudou-me a pôr as minhas ideias em 
ordem com respeito aos tópicos aqui apresentados. Jim Joyce e Bob Batterman ajudaram-me 
imenso e aprendi muito com John Earman, Clark Glymour, David Malament, Paul Horwich e 
Michael Friedman. 
 Michele Vaidic foi uma ajuda inestimável na organização do manuscrito. Spencer Carr e os 
dois consultores da Westview Press ajudaram-me imenso a melhorar o anterior esboço do ma-
nuscrito, sobretudo no que diz respeito ao estilo e à organização. A revisora Marian Safran foi 
uma ajuda muito apreciada na tarefa de trazer o manuscrito à sua forma final. 
 A investigação que contribuiu para o capítulo 3 foi apoiada em parte pela National Science 
Foundation, cuja ajuda agradeço reconhecidamente. Devo ainda agradecimentos à Universida-
de do Michigan, relativos a uma bolsa que me ajudou a liquidar parte dos custos da preparação 
do manuscrito. 
Lawrence Sklar 
 
6 
 
1 
Introdução: a filosofia e as ciências físicas 
A relação entre a ciência e a filosofia 
 A demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo longo e gradual 
no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação da natureza das coisas consistia numa 
mistura entre o que hoje seria visto como filosofia (considerações gerais das mais vastas sobre a 
natureza do ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele) e o que hoje seria considerado co-
mo próprio das ciências particulares (a acumulação de factos da observação e a formulação de 
hipóteses teóricas gerais para os explicar). Se olharmos para os fragmentos que nos restam das 
obras dos filósofos pré-socráticos, encontraremos não só tentativas importantese engenhosas 
para aplicar a razão a questões metafísicas e epistemológicas vastas, mas também as primeiras 
teorias físicas, simples mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza da matéria e os 
seus aspectos mutáveis. 
 Na época da filosofia grega clássica já podemos encontrar uma certa separação entre as duas 
disciplinas. Nas suas obras metafísicas, Aristóteles faz claramente algo que hoje seria feito por 
filósofos; mas em muitas das suas obras de biologia, astronomia e física encontramos métodos 
de investigação que são hoje comuns na prática dos cientistas. 
 À medida que as ciências particulares, como a física, a química e a biologia, foram aumen-
tando em número, canalizando cada vez mais recursos e desenvolvendo metodologias altamen-
te individualizadas, conseguiram descrever e explicar os aspectos fundamentais do mundo em 
que vivemos. Dado o sucesso dos investigadores das ciências específicas particulares, há muito 
quem pergunte se ainda restará algo para os filósofos fazerem. Alguns filósofos pensam que 
existem áreas de investigação que são radicalmente diferentes das que pertencem às ciências 
particulares, como, por exemplo, a investigação sobre a natureza de Deus, sobre o «ser em si» 
ou sobre qualquer outra coisa do género. Outros filósofos tentaram de várias maneiras encon-
trar uma área remanescente de investigação em filosofia que estivesse mais próxima dos desen-
volvimentos mais recentes e sofisticados das ciências naturais. 
 Segundo uma perspectiva mais antiga, que foi perdendo popularidade ao longo dos séculos 
sem nunca desaparecer inteiramente, existe uma maneira de conhecer o mundo que nos seus 
fundamentos não precisa de depender da investigação observacional ou experimental própria 
do método das ciências particulares. Esta perspectiva foi influenciada parcialmente pela exis-
tência da lógica e matemática puras, cujas verdades firmemente estabelecidas não parecem de-
pender, para que estejam garantidas, de qualquer base observacional ou experimental. De Pla-
tão e Aristóteles a Leibniz e aos outros racionalistas, passando por Kant e pelos idealistas, e 
mesmo até ao presente, tem persistido a esperança de que, se fôssemos suficientemente inteli-
gentes e perspicazes, poderíamos estabelecer um corpo de proposições que descreveriam o 
mundo e que, no entanto, seriam conhecidas com a mesma certeza com que dizemos conhecer 
as verdades da lógica e da matemática. Poderíamos acreditar nessas proposições independen-
temente de qualquer apoio indutivo obtido de factos específicos observados. Se dispuséssemos 
de um corpo de conhecimento como esse, não teríamos atingido o objectivo procurado durante 
séculos pela disciplina tradicionalmente conhecida por «filosofia»? 
 Segundo uma perspectiva mais recente, o papel da filosofia não é o de funcionar como fun-
damento ou extensão das ciências, mas como sua observadora crítica. A ideia é a de que as dis-
ciplinas científicas particulares usam conceitos e métodos. As relações entre os diversos concei-
tos, embora estejam implícitas no seu uso científico, podem não ser explicitamente claras para 
nós. O papel da filosofia da ciência seria assim o de clarificar essas relações conceptuais. Uma 
 
7 
vez mais, as ciências particulares usam métodos específicos para fazer generalizações, a partir 
de dados da observação, em direcção a hipóteses e teorias. O papel da filosofia, segundo esta 
perspectiva, é o de descrever os métodos usados pelas ciências e explorar as bases de justifica-
ção desses métodos, isto é, compete à filosofia mostrar que os métodos são apropriados para 
encontrar a verdade na disciplina científica em questão. 
 Mas será que podemos diferenciar a filosofia e a ciência, a partir de qualquer uma destas 
perspectivas, de uma maneira simples e directa? Muitos especialistas sugeriram que não. Nas 
ciências específicas, as teorias por vezes não são adoptadas devido apenas à sua consistência 
com os dados da observação, mas também com base na sua simplicidade, força explicativa ou 
outras considerações que pareçam contribuir para a sua plausibilidade intrínseca. Quando cons-
tatamos isto, começamos a perder confiança na ideia de que existem dois domínios de proposi-
ções bastante diferentes: aquelas que são apoiadas apenas por dados empíricos, e aquelas que 
são apoiadas apenas pela razão. Muitos metodólogos contemporâneos, como Quine, estariam 
dispostos a defender que as ciências naturais, a matemática, e até a lógica pura, formam um 
contínuo unificado de crenças sobre o mundo. Todas elas, defendem estes metodólogos, são in-
directamente apoiadas por dados da observação, mas todas contêm também elementos de apoio 
«racional». Se isto for verdade, não será a própria filosofia, vista como o lugar das verdades da 
razão, uma parte do todo unificado? Isto é, não será também a filosofia apenas uma componen-
te do corpo das ciências especializadas? 
 Quando procuramos a descrição e a justificação apropriada dos métodos da ciência, parece 
que estamos à espera que os resultados específicos das ciências particulares entrem de novo em 
cena. Como poderíamos compreender a capacidade dos métodos da ciência para nos conduzir à 
verdade se não estivéssemos em condições de mostrar que esses métodos têm realmente a fiabi-
lidade que lhes é atribuída? E como poderíamos fazer isso sem usar o nosso conhecimento sobre 
o mundo, que nos foi revelado pela melhor ciência de que dispomos? Como poderíamos, por 
exemplo, justificar a confiança da ciência na observação sensorial se a nossa compreensão do 
processo perceptivo (uma compreensão baseada na física, na neurologia e na psicologia) não 
nos assegurasse que a percepção, tal como é usada quando se testam as teorias científicas, é re-
almente um bom guia da verdade sobre a natureza do mundo? 
 É ao discutir as teorias mais gerais e fundamentais da física que a imprecisão da fronteira en-
tre as ciências naturais e a filosofia se torna mais manifesta. Dado que elas têm a ambição ousa-
da de descrever o mundo natural nos seus aspectos mais gerais e fundamentais, não é surpre-
endente que os tipos de raciocínio usados ao desenvolver estas teorias altamente abstractas pa-
reçam por vezes estar mais próximos dos raciocínios filosóficos que dos métodos usados quan-
do se conduzem investigações científicas de âmbito mais limitado e particular. Mais adiante, à 
medida que explorarmos os conceitos e os métodos usados pela física quando esta lida com as 
suas questões fundamentais mais básicas, veremos repetidamente que pode estar longe de ser 
claro se estamos a explorar questões de ciência natural ou questões de filosofia. Na verdade, 
nesta área da investigação sobre a natureza do mundo, a distinção entre as duas disciplinas tor-
na-se bastante obscura. 
Física moderna e filosofia 
 Será útil ter uma visão preliminar de algumas das maneiras como os resultados da física 
moderna afectaram questões filosóficas. Isso pode acontecer quando um estudo teórico em físi-
ca alarga aquelas que se pensavam ser as fronteiras do seu domínio de investigação. Considere-
se, por exemplo, a cosmologia actual. O Big Bang é o modelo mais amplamente aceite da estru-
tura do nosso universo à escala do muito grande. Neste modelo, traça-se a evolução do universo 
actual ao longo do tempo, em direcção ao passado, e as dimensões espaciais do universo con-
traem-se nessa direcção de recuo no tempo. Aparentemente, podemos compreender grande 
parte da estrutura e dinâmica presentes do universo se o concebermos como algo que se expan-
diu de uma maneira explosiva a partir de uma singularidade ocorrida no passado, há um tempo 
finito. Isto é, parece que num certo momento do passado (que decorreu, quando muito, há al-
 
8 
gumas dezenas de biliões de anos atrás) toda a matéria do universo estava concentrada «num 
ponto» do espaço (ou melhor, o próprio espaço estava concentrado dessa forma). 
 No entanto, é óbvio que um modelo do universo como este suscita perplexidades que pare-
cem ultrapassar os modosde procurar respostas a que estamos habituados quando discutimos 
problemas de causalidade à escala astronómica. Se podemos ligar o estado actual do universo à 
singularidade inicial por meio de uma sequência retrospectiva de causas e efeitos, que podere-
mos fazer depois para continuar o processo científico de pergunta-resposta em busca da expli-
cação causal da existência e natureza desse estado inicial singular? Não é claro, pura e simples-
mente, que tipo de resposta explicativa poderemos oferecer para uma questão como «Por que 
razão se deu o Big Bang e por que razão se deu daquela maneira?» É como se já não tivéssemos 
espaço para respostas explicativas do tipo a que estamos habituados. A cadeia do raciocínio 
causal regressivo, que vai de um estado a um outro estado anterior, que se postula como causa 
suficiente, parece parar no único Big Bang inicial. 
 Isto não quer dizer que não se possa imaginar qualquer coisa como uma explicação da ocor-
rência e natureza do Big Bang, mas apenas que neste ponto parece que os modos de pensamen-
to científico habituais têm de ser complementados com modos de pensamento que o filósofo 
conhece bem. O que está em questão é a própria natureza da nossa exigência de explicação e o 
tipo de resposta a essa exigência que será de esperar. Este é o ponto em que a física e a filosofia 
parecem fundir-se, ficando as questões específicas sobre a natureza do mundo inextrincavel-
mente enredadas com questões, de um género mais metodológico, sobre quais são exactamente 
os tipos de explicações e descrições do mundo que é legítimo esperar da ciência. 
 Certas mudanças na nossa imagem física do mundo exigem uma revisão radical da nossa 
concepção do mundo, o que dá origem a outra pressão para «filosofar» na física contemporâ-
nea. Quando tentamos acomodar os enigmáticos dados da observação que as novas revoluções 
científicas nos impuseram, depressa descobrimos que a viabilidade de muitos dos conceitos que 
mais valorizamos para lidar com o mundo depende da presença de certos aspectos estruturais 
da nossa imagem do mundo. Em alguns casos, nem nos apercebemos da existência desses as-
pectos, até eles serem colocados em questão pelas novas teorias físicas revolucionárias. No en-
tanto, quando esses aspectos da nossa imagem teórica se tornam duvidosos, os conceitos que 
deles dependem deixam de poder funcionar para nós como antes, e temos de rever os nossos 
conceitos; mas uma tal revisão conceptual é exactamente o tipo de coisa que nos impõe uma in-
vestigação tipicamente filosófica sobre o próprio significado dos conceitos que temos usado 
desde sempre, e sobre as revisões de significado necessárias para acomodar a nova compreen-
são conceptual do mundo. 
 Considere-se, por exemplo, a revisão do nosso conceito de tempo que a teoria da relativida-
de restrita implica. Por razões que iremos explorar mais tarde, a adopção desta teoria faz-nos 
dizer muitas coisas sobre o tempo que poderiam parecer manifestamente absurdas. Dois acon-
tecimentos que ocorrem ao mesmo tempo para um «observador» podem, segundo esta teoria, 
não ser simultâneos para outro observador que esteja em movimento em relação ao primeiro. A 
própria ordem temporal de alguns acontecimentos (daqueles que não são causalmente conectá-
veis entre si) pode apresentar-se invertida para observadores diferentes. No entanto, o nosso 
conceito anterior de tempo presume, quase inconscientemente, que o que é simultâneo para um 
observador é simultâneo para todos, e que se o acontecimento a se deu antes do acontecimento 
b, este é um facto «absoluto» para qualquer observador. 
 A natureza da nova teoria do espaço e do tempo, ao trazer consigo os seus conceitos revolu-
cionários, impõe-nos uma reconsideração ponderada do que terá produzido o nosso aparato 
conceptual e os nossos pressupostos teóricos anteriores. Essa reconsideração leva-nos a tentar 
determinar cuidadosamente o que na nossa concepção anterior se fundamentava na experiência 
e o que nela se pressupunha sem garantia ou justificação; e as viragens revolucionárias im-
põem-nos o dever de investigar com cuidado a maneira pela qual os conceitos dependem da es-
trutura teórica de que fazem parte, e como podem as mudanças nessa estrutura exigir-nos legi-
timamente uma renovação conceptual. Como veremos quando passarmos da teoria da relativi-
dade restrita para a teoria da relatividade geral, precisaremos de estruturas ainda mais inova-
doras para o espaço e para o tempo. Torna-se possível apoiar a possibilidade, no mínimo, de 
mundos nos quais, por exemplo, um dado acontecimento está, num sentido perfeitamente coe-
 
9 
rente, no seu próprio passado e futuro. Este tipo de mudança conta claramente como uma revo-
lução conceptual. A compreensão precisa de como tais revoluções conceptuais podem ter lugar, 
e do que acontece exactamente quando têm de facto lugar, é o tipo de problema apropriado à 
investigação filosófica. A filosofia integra-se agora na teorização da física. 
 Outro exemplo deste tipo de revolução científica conceptual que exige que a reflexão filosó-
fica faça parte da ciência comum relaciona-se com o impacto da mecânica quântica nas nossas 
noções tradicionais de causalidade. A ideia de que cada acontecimento pode ser explicativa-
mente associado por meio de leis a alguma condição anterior do mundo estava pressuposta em 
muita da nossa ciência. Este pressuposto foi em muitos aspectos um princípio orientador na 
procura de explicações científicas cada vez mais abrangentes para os fenómenos da experiência. 
Se um acontecimento parecia não ter causa, isso só podia ser um reflexo da nossa ignorância, do 
facto de ainda não termos encontrado a causa cuja existência era assegurada pelo princípio ge-
ral de que «todos os acontecimentos têm uma causa». 
 No entanto, como veremos, muitos especialistas têm sustentado que já não se pode ter o 
princípio como verdadeiro no mundo descrito pela mecânica quântica. Que tipo de teoria nos 
poderia dizer que no mundo existem acontecimentos sem causa, acontecimentos relativamente 
aos quais a procura de uma causa determinante subjacente será garantidamente infrutífera? A 
resposta não é nada simples. O fracasso da causalidade universal que a mecânica quântica im-
plica faz parte de uma revolução conceptual muito mais profunda que nos foi imposta por esta 
teoria. Na verdade, dos especialistas que investigaram cuidadosamente estes problemas poucos 
acreditam que qualquer imagem do mundo já construída fará justiça aos factos que a mecânica 
quântica diz que encontraremos no mundo. Ideias básicas sobre o que constitui a «realidade ob-
jectiva», por contraste com a experiência subjectiva que temos dela, tornam-se problemáticas à 
luz desta teoria assombrosa. Uma vez mais (e isso é tudo o que se pretende fazer notar), a natu-
reza revolucionária dos dados da experiência e das teorias construídas pela física moderna para 
os integrar impõe-nos o tipo de investigação crítica e cuidada sobre o papel desempenhado (por 
vezes apenas implícita e inconscientemente) por certos conceitos fundamentais nas nossas teori-
as anteriores. Além disso, essa mesma natureza revolucionária exige uma investigação filosófica 
cuidada do modo como a revisão das teorias acarreta uma revisão da estrutura conceptual. No 
contexto das revoluções conceptuais, os tipos de pensamento e raciocínio comuns nos contextos 
filosóficos tornam-se uma parte integrante da ciência. 
 A filosofia também tem sido integrada na prática científica da física moderna por meio da 
intromissão na teorização científica de um tipo de crítica epistemológica que antes só se encon-
trava na filosofia. A física mais antiga apoiava-se em pressupostos sobre os dados legítimos em 
que se devem basear as inferências que culminam nas teorias físicas, e sobre as regras legítimas 
que nos permitiriam passar de sumários de dados observados para hipóteses generalizadas e 
teorias postuladas. Aos filósofos deixavam-se habitualmente as perplexidades sobre os pressu-
postos implicitamenteadmitidos na ciência, assim como a tarefa de elucidar a sua natureza e 
examinar a sua legitimidade. Mas na física mais recente os especialistas passaram a ter necessi-
dade, como parte da sua prática científica, de explorar estes temas básicos sobre as razões que 
temos para aceitar e rejeitar hipóteses. O trabalho de Einstein na teoria da relatividade e de Bohr 
na mecânica quântica é particularmente revelador desta nova tendência epistemológica. 
 No seu influente artigo sobre a teoria da relatividade restrita, por exemplo, Einstein confron-
ta várias dificuldades observacionais e teóricas da física existente que são extremamente enig-
máticas. A sua abordagem desses problemas fundamenta-se numa discussão extraordinaria-
mente original e brilhante da questão seguinte: «Como poderemos determinar, em relação a 
dois acontecimentos espacialmente separados, se estes ocorrem ou não ao mesmo tempo?» Esta 
exploração das bases empíricas e inferenciais dos nossos pressupostos teóricos legítimos conduz 
Einstein ao núcleo fundamental da sua nova teoria — a relatividade da simultaneidade face ao 
estado de movimento do observador. Embora Einstein derive dos seus postulados básicos al-
gumas consequências observacionais surpreendentemente novas e fundamentalmente impor-
tantes, muitos dos seus resultados previstos estavam contidos na teoria anterior de Lorentz; 
mas, mesmo relativamente a estas consequências, a investigação de Einstein constitui um avan-
ço de importância fundamental. Do ponto de vista da sua nova perspectiva, as fórmulas antigas 
adquirem um significado totalmente diferente. É crucial notar que esta nova perspectiva se ba-
 
10 
seia num exame crítico e filosófico das bases empíricas das nossas inferências teóricas. Surpre-
endentemente, como veremos mais adiante, no próprio coração da outra teoria fundamental de 
Einstein sobre o espaço e o tempo (a teoria da relatividade geral) reside um exame crítico e epis-
temológico muito parecido com o das teorias anteriores. 
 A mecânica quântica oferece-nos outro exemplo central de como a crítica epistemológica de-
sempenha um papel crucial na física moderna. A questão da natureza do processo de medida, o 
processo pelo qual um sistema físico é explorado por um observador externo para determinar o 
seu estado, torna-se fundamental para uma compreensão do significado das fórmulas funda-
mentais da mecânica quântica. Desde os primórdios desta teoria, as questões sobre o que é ob-
servável desempenharam um papel conceptual importante. Mais tarde, as tentativas para com-
preender consequências curiosas da teoria, como o chamado «princípio da incerteza», exigiram, 
uma vez mais, um exame crítico sobre o que podia ser determinado em termos de observação. 
Em última análise, as tentativas para compreender o enquadramento conceptual fundamental 
da teoria levaram Niels Bohr a afirmar que a nova teoria física exigia uma revisão extraordina-
riamente radical das nossas ideias tradicionais sobre a relação entre o que sabemos sobre o 
mundo e o que nele se verifica. A própria noção de uma natureza objectiva do mundo, inde-
pendente do conhecimento que temos dele, foi alvo de crítica no programa de Bohr. Mais uma 
vez, ideias que antes só eram comuns no contexto da filosofia tornaram-se parte da física. Na 
filosofia, a negação da objectividade e as afirmações a favor de várias doutrinas relativistas ou 
subjectivistas têm uma longa história. 
 A interacção entre a filosofia e a física não começou com estas teorias do século XX. Como ve-
remos, os problemas filosóficos estavam entrelaçados com o desenvolvimento inicial da dinâ-
mica (especialmente em Isaac Newton). No século XIX, os debates filosóficos desempenharam 
um papel crucial no desenvolvimento da nova teoria molecular e atómica da matéria. Outros 
debates de carácter filosófico foram importantes para estabelecer a base conceptual da teoria do 
electromagnetismo, com a sua invocação do «campo» como uma componente fundamental do 
mundo físico. Mas a física moderna alargou as suas investigações às próprias fronteiras do 
mundo. Ao fazê-lo, enfraqueceu os dispositivos conceptuais adequados para lidar com questões 
mais limitadas. A física, na sua tentativa de fazer justiça aos fenómenos enigmáticos e inespera-
dos revelados pelas técnicas experimentais modernas, exige uma revisão radical de conceitos 
nunca antes colocados em questão. As novas teorias tornam necessário um exame das bases 
empíricas e inferenciais que estão por detrás dos seus pressupostos. Assim, a física teórica re-
cente tornou-se um palco onde os modos filosóficos de pensar são uma componente essencial 
do progresso na física. É este entrelaçamento entre a física e a filosofia que iremos explorar. 
Filosofia da física e filosofia em geral 
 Acabámos de passar em revista algumas das razões que tornam a filosofia importante para 
quem se interessa pela natureza das teorias físicas. Pode ser útil explicar também por que razão 
o estudo dos fundamentos das teorias físicas e dos seus aspectos filosóficos é útil para os filóso-
fos que não estejam especialmente preocupados com a natureza da física. Gostaria de sugerir 
que os problemas investigados pelos filósofos da física e os métodos que usam para abordar es-
ses problemas podem também trazer alguma luz às questões filosóficas mais gerais. 
 Os filósofos da ciência estão interessados em questões como a natureza das teorias científi-
cas, saber como explicam estas os fenómenos do mundo, quais são as bases empíricas e inferen-
ciais destas teorias, e como esses dados empíricos podem ser vistos como algo que apoia ou de-
sencoraja a crença numa hipótese. Podemos ganhar em perspicácia ao abordar estes problemas 
mais gerais no contexto de teorias específicas da física contemporânea. O vasto alcance das teo-
rias e a sua natureza altamente explícita proporcionam um contexto onde muitos problemas da 
filosofia da ciência geral, que de outro modo seriam bastante vagos, se tornam mais «fixos» 
quando centramos a atenção nessas teorias físicas específicas. 
 Como essas teorias apresentam um elevado grau de formalização, o lugar nelas ocupado por 
conceitos cruciais encontra-se estabelecido de uma maneira simples e clara. Questões sobre o 
significado de conceitos cruciais, sobre a sua eliminabilidade ou irredutibilidade, sobre as suas 
 
11 
relações definicionais, etc., ficam assim sujeitas a um exame rigoroso. É mais difícil conduzir es-
se exame em relação a conceitos mais «vagos» de ciências menos bem formalizadas. Como ve-
remos também, a relação entre a estrutura teórica e os factos observacionais a partir dos quais 
esta é inferida é particularmente clara em muitos casos da física formal. Nas teorias sobre o es-
paço e o tempo, por exemplo, o próprio contexto da teorização científica pressupõe noções bas-
tante definidas sobre o que pode contar como «factos acessíveis a uma inspecção observacional 
directa», que deverão fornecer toda a base empírica da teoria. Deste modo, questões como a de 
saber se a totalidade desses factos poderá seleccionar apenas um concorrente teórico viável, 
apoiando-o mais do que a todos os seus rivais, são tratadas de uma maneira esclarecedora, ma-
neira essa que não é possível no contexto geral da ciência. Neste último contexto, não existe 
uma noção clara dos limites da observabilidade nem uma delimitação clara da classe das alter-
nativas teóricas possíveis a ter em consideração. Se explorarmos, no contexto das teorias fun-
damentais da física, problemas como o da eliminabilidade ou não eliminabilidade dos conceitos 
teóricos, ou o de saber até que ponto os factos observacionais impõem limites às escolhas teóri-
cas, teremos uma maneira de lidar com estes problemas metodológicos gerais: olhamos para ca-
sos específicos que dão uma clareza especial às questões filosóficas. As ideias adquiridas nesta 
área mais formalizável e delimitada podem beneficiar aqueles que se ocupam de problemas 
mais gerais. 
 Estas considerações podem de algum modo sergeneralizadas. Os filósofos interessados nos 
problemas gerais da metafísica, epistemologia e filosofia da linguagem descobrirão que abordar 
questões desses domínios, tal como estão exemplificadas em casos particulares e concretos da 
teoria física, lançará luz sobre as maneiras apropriadas de lidar com questões gerais. Não po-
demos progredir muito na compreensão das estruturas específicas das teorias físicas parciais 
sem usar os recursos fornecidos por aqueles que abordam os problemas mais gerais e funda-
mentais da filosofia. Além disso, não podemos progredir decisivamente nessas áreas mais ge-
rais sem ver como os métodos e soluções gerais se comportam quando se aplicam a casos espe-
cíficos. E os casos específicos dos fundamentos filosóficos das teorias físicas fundamentais são, 
também aqui, bastante apropriados para testar pretensões filosóficas gerais. 
 Devemos dar um pouco de atenção a um último assunto relacionado com este. Encontramos 
frequentemente na bibliografia sobre o tema afirmações muito ousadas segundo as quais a física 
contemporânea resolveu conclusiva e decisivamente debates filosóficos muito antigos. «A me-
cânica quântica refuta a tese de que todos os acontecimentos têm uma causa» é um exemplo 
frequente. Por vezes, surpreendentemente, ambos os lados de um debate filosófico afirmam que 
uma teoria resolve um problema a seu favor. Assim, tem-se defendido que a teoria da relativi-
dade geral resolve decisivamente o problema da natureza do espaço; mas há quem defenda que 
ela refuta o substantivismo, enquanto outros sustentam que ela resolve o debate a favor dessa 
doutrina! Estas afirmações ousadas e injustificadas são enganadoras, pois os problemas são 
complexos e os argumentos são por vezes frustrantes na sua subtileza e opacidade. Nestas cir-
cunstâncias, as pretensões a uma vitória decisiva de qualquer tipo devem ser encaradas pelo 
menos com algum cepticismo. 
 Temos de ter um cuidado especial em relação às conclusões filosóficas derivadas de resulta-
dos da física. Por analogia com o princípio GIGO das ciências da computação (garbage in, garba-
ge out — «entra lixo, sai lixo»), chamaremos a este o princípio MIMO: metaphysics in, metaphysics 
out — «entra metafísica, sai metafísica». Não há dúvida que qualquer tese filosófica deve ser re-
conciliada com os melhores resultados disponíveis da ciência física, nem tão pouco que o pro-
gresso da ciência tem produzido um antídoto útil para muito dogmatismo filosófico, mas ao 
considerar o que a física nos diz sobre questões filosóficas devemos ter sempre o cuidado de 
perguntar se a própria teoria física incorpora pressupostos filosóficos. Se descobrirmos que es-
ses pressupostos foram incorporados na própria teoria, devemos estar preparados para exami-
nar cuidadosamente se essa maneira de a apresentar é a única maneira de acomodar os seus re-
sultados científicos, ou se poderão haver outros pressupostos que nos levariam a derivar con-
clusões filosóficas bastante diferentes, caso a teoria os incorporasse. 
 
12 
Objectivo e estrutura deste livro 
 Para terminar, vou apresentar algumas considerações sobre o objectivo e a estrutura deste 
livro. A investigação cuidada e sistemática de qualquer um dos grandes problemas da filosofia 
da física é uma tarefa demorada e difícil. Um domínio dos conteúdos das teorias fundamentais 
da física contemporânea requer um estudo prévio de um corpo de matemática vasto e difícil, já 
que as teorias se formulam frequentemente na linguagem poderosa e abstracta da matemática 
contemporânea. À formação matemática acresce ainda o estudo dos elementos específicos da 
física. Além de tudo isto, a investigação filosófica requer uma formação firme em muitos aspec-
tos da filosofia analítica contemporânea: na metafísica, na epistemologia e na filosofia da lin-
guagem. 
 Tentar fazer inteira justiça a qualquer um dos problemas centrais da filosofia da física numa 
obra introdutória deste tipo está, obviamente, fora de questão. O objectivo é antes o de propor-
cionar ao leitor um mapa das áreas de problemas centrais deste domínio. Este livro centra-se 
naquelas questões que, do meu ponto de vista, se apresentam como as mais importantes da filo-
sofia da física. Muitos outros tópicos interessantes quase não serão considerados, e alguns não 
serão mesmo abordados, com o objectivo de dirigir a atenção tanto quanto possível para as 
questões mais cruciais e centrais. 
 Relativamente aos tópicos abrangidos, ofereço um esboço ou sinopse dos aspectos funda-
mentais das teorias físicas que estão em interacção mais profunda com a filosofia. A minha es-
perança é oferecer uma abordagem dos problemas suficientemente concisa e clara de modo a 
orientar o leitor interessado pelos caminhos, por vezes labirínticos, dos debates centrais. Os ca-
pítulos 2, 3, e 4 são complementados por um guia bibliográfico anotado. O leitor interessado em 
seguir com algum pormenor os temas esboçados no texto encontrará nessas secções de referên-
cias um guia para os materiais de formação básica em matemática, física e filosofia, assim como 
um guia para as discussões contemporâneas mais importantes sobre o problema em causa. Não 
se pretende que as secções de referências sejam um levantamento exaustivo da bibliografia so-
bre qualquer dos temas considerados (uma bibliografia por vezes muito extensa), mas antes um 
guia selectivo dos materiais mais úteis para conduzir o leitor mais além de um modo sistemáti-
co. 
 Embora tenha tentado incluir nas secções de referências materiais acessíveis ao quem não 
tem uma vasta formação em matemática e física teórica, não excluí aqueles cuja compreensão 
requer uma formação nessas áreas. O material que exige uma formação bastante modesta desse 
tipo (ao nível intermédio de uma licenciatura, digamos) está assinalado com (*). O material que 
exige uma familiarização mais vasta com os métodos e conceitos técnicos está assinalado com 
(**). 
 As três áreas principais que vamos explorar neste livro são a do espaço e do tempo, a das te-
orias probabilísticas e estatísticas do tipo «clássico» e a da mecânica quântica. Isto vai permitir-
nos examinar muitas das actuais áreas de problemas mais enigmáticas e fundamentais da filoso-
fia da física. Uma outra área principal só será considerada casualmente, embora seja responsá-
vel pela introdução de muitos problemas extremamente interessantes que só em parte têm sido 
explorados. Trata-se da teoria geral da matéria e da sua constituição, tal como é descrita pela 
física contemporânea. Questões que surgem quando se postula o campo como um elemento bá-
sico do mundo, ou que emergem de problemas da teoria da constituição da matéria, ou dos mi-
croconstituintes da hierarquia que nos conduz das moléculas e dos átomos às partículas ele-
mentares (e talvez mais além), ou da teoria fundamental sobre as próprias partículas elementa-
res, só serão focados de passagem quando lidarmos com as três áreas de problemas centrais 
acima indicadas. 
 
13 
2 
Espaço, tempo e movimento 
Problemas filosóficos tradicionais do espaço e do tempo 
Questões sobre o conhecimento 
 Os grandes filósofos da Grécia antiga colocaram-se perante o problema de compreender o 
que é ter conhecimento sobre o mundo. Quais, perguntaram eles, são os fundamentos e os limi-
tes da nossa capacidade para conhecer o que realmente se verifica no mundo que nos rodeia? 
Como seria de esperar, o projecto de tentar distinguir o conhecimento genuíno da simples opi-
nião começou com um exame das crenças vulgares sobre o que uma pessoa racional comum 
pode considerar como conhecimento bem fundamentado. 
 É claro que existiam muitas crenças particulares comuns acerca da existência e natureza de 
objectos individuais do mundo, encontrados na vida quotidiana. Mas existiriam além disso 
verdades gerais acerca do mundo que pudessem também ser conhecidas, verdades acerca de to-
dos os objectos ou características de um dado tipo? 
 Algumas verdades gerais pareciam poder ser estabelecidas por generalizaçãoa partir da ex-
periência quotidiana. Parecia assim que se podia inferir, a partir da observação, que as estações 
do ano iriam seguir perpetuamente o seu curso habitual. As pedras caíam, o fogo subia, os seres 
vivos reproduziam-se e acabavam por morrer depois de um processo de maturação: estas e 
inúmeras outras verdades gerais faziam parte do inventário comum de crenças. No entanto, a 
reflexão crítica mostrou que a observação, estando sujeita à ilusão e ao erro perceptivo, não era 
frequentemente de confiança, e que as crenças gerais inferidas a partir da experiência se revela-
vam muitas vezes insustentáveis quando surgiam novas experiências. Além disso, as verdades 
inferidas pareciam carecer de exactidão e precisão, excepto em esferas limitadas da experiência 
observacional, como a astronomia, onde se observava uma regularidade mais perfeita e contí-
nua do que aquela que se encontrava na experiência das coisas terrestres vulgares. 
 Todavia, ao procurar verdades gerais acerca da estrutura fundamental do mundo, os gregos 
tinham também à sua disposição as teorias dos primeiros grandes filósofos especulativos. Entre 
as muitas teorias gerais grandiosas que foram propostas, estava a de que todas as coisas são fei-
tas de um pequeno número de substâncias básicas, a de que a mudança deve ser explicada pela 
reorganização de átomos imutáveis, a de que o mundo é fundamentalmente imutável, ou, pelo 
contrário, a de que está em fluxo constante. Mas, embora estas teorias fundamentais do univer-
so fossem empolgantes e profundas, pareciam carecer do tipo de apoio experimental que pode-
ria convencer um céptico a aceitá-las como verdadeiras. É certo que os seus autores argumenta-
vam a seu favor, invocando às vezes verdades gerais básicas derivadas da observação, e afir-
mando outras vezes que podiam estabelecer doutrinas pelo processo do raciocínio puro. No en-
tanto, nenhuma doutrina teve aceitação universal, isto é, não existiu nenhuma doutrina cuja 
verdade pudesse mostrar-se por meio de dados indisputáveis. 
 Mas depois havia a geometria. Aí parecia estar disponível um corpo de asserções cujo signi-
ficado era completamente claro, asserções acerca da natureza do mundo que eram exactas e 
precisas, e que podiam ser indubitavelmente conhecidas como verdadeiras. Como exemplos 
dessas verdades, temos a de que duplicar o comprimento de um lado de um quadrado multipli-
ca a sua área por quatro, e a de que o quadrado do comprimento da hipotenusa de um triângulo 
rectângulo é a soma dos quadrados dos comprimentos dos outros dois lados. Estas e outras 
afirmações da geometria tinham a clareza e o carácter indubitável que não se encontravam em 
nenhum outro tipo de asserções acerca do mundo. 
 
14 
 Esse carácter indubitável existia porque as proposições da geometria podiam ser demonstra-
das, um facto que tinha sido descoberto pelos gregos algum tempo antes do grande período da 
filosofia grega clássica. As proposições podiam ser derivadas por meio de raciocínios puramen-
te lógicos a partir de primeiros princípios, axiomas ou postulados, que à mente sensata pareci-
am auto-evidentes. Os raciocínios usados garantiam intuitivamente que nunca conduziam de 
uma verdade a uma falsidade. Começava-se com verdades óbvias, como a de que dois pontos 
fixam uma e apenas uma linha recta que os contém a ambos, e a de que a soma de iguais com 
iguais dá iguais. Por meio de uma cadeia de raciocínios na qual cada passo era uma transição de 
uma proposição para outra, que conduzia de forma auto-evidente de verdades a outras verda-
des, podia-se assim chegar por fim a uma conclusão cuja verdade ficava então indubitavelmente 
garantida. Estas eram as verdades acerca da complexa estrutura geométrica do mundo. 
 Esta característica da geometria — a sua capacidade para nos dar um conhecimento da estru-
tura do mundo certificado por inferências indubitáveis que partem de verdades também indu-
bitáveis, simples e básicas — era tão impressionante que todos os outros tipos de conhecimento 
hipotético pareciam aos filósofos, no máximo, uma espécie de conhecimento de segunda catego-
ria. O conhecimento baseado nos sentidos estava sujeito aos tipos comuns de erros dos sentidos 
— erro perceptivo e ilusão —; e o conhecimento que tinha origem em saltos de generalização 
realizados a partir das informações específicas das sensações sofria de uma dupla desvantagem: 
a possibilidade de erro sensorial e a possibilidade de as nossas inferências generalizadoras po-
derem elas próprias conduzir-nos da verdade à falsidade. Ao passo que as inferências puramen-
te lógicas, que nos conduzem de postulados básicos a teoremas geométricos, pareciam intuiti-
vamente preservar a verdade, as regras para ultrapassar a experiência dos sentidos e alcançar 
afirmações gerais acerca da natureza pareciam não ter uma tal garantia intuitivamente certifica-
da. 
 Para muitos especialistas, as crenças fundadas na observação sensorial e as inferências reali-
zadas a partir delas tornaram-se apenas um preliminar útil ao estabelecimento do conhecimento 
genuíno pelo método «geométrico». Os filósofos defenderam durante muito tempo o ideal se-
gundo o qual poderemos, se formos suficientemente inteligentes, acabar por construir um edifí-
cio de conhecimento que abranja todos os campos de investigação — a física da natureza, a psi-
cologia da mente e até mesmo os princípios básicos da moral que regem as verdades sobre o 
bem e o mal, a rectidão e a sua ausência —, descobrindo em todos estes campos os seus verda-
deiros princípios básicos auto-evidentes, comparáveis aos axiomas da geometria. Poderíamos 
então derivar desses primeiros princípios todas as verdades de cada área, do mesmo modo que 
os teoremas da geometria se seguem, apenas pela lógica, dos postulados geométricos básicos. 
 Com o papel cada vez maior desempenhado pela observação e pela experimentação na fun-
damentação da ciência que surgiu depois da revolução científica, e com a incapacidade de for-
mular uma «geometria» da natureza e da moral, os especialistas começaram a mostrar-se cépti-
cos quanto à adequação do modelo geométrico relativamente à estrutura do conhecimento cien-
tífico. Ao invés, os modelos de conhecimento baseados na observação e nas generalizações rea-
lizadas a partir dela tornaram-se mais atraentes, pelo menos para a maior parte dos filósofos. 
 David Hume sugeriu que não pode existir, de facto, um conhecimento genuíno sobre o 
mundo fundado em auto-evidências intuitivas e em derivações lógicas. Um tal conhecimento 
infalível, sugeriu Hume, só poderia ser um conhecimento de proposições «vazias», proposições 
verdadeiras apenas em virtude da definição dos seus termos (como a proposição de que ne-
nhum solteiro é casado). Todas as proposições genuínas com conteúdo só poderiam ser conhe-
cidas, se é que o podiam, confiando nos sentidos e por meio de generalizações realizadas a par-
tir deles que nos conduzissem a crenças acerca das relações causais que ocorrem no mundo. 
Hume negou, em particular, a própria possibilidade da metafísica, o ramo da filosofia onde se 
procura estabelecer, com base apenas em raciocínios puros, verdades profundas e gerais acerca 
da natureza do mundo. 
 A réplica de Immanuel Kant a Hume foi especialmente importante. Embora concordasse 
com a rejeição céptica de Hume da maior parte da metafísica tradicional, Kant reservou uma 
pequena porção dela, que consistia em asserções genuinamente com conteúdo, estabelecidas 
sem referência à observação nem à experimentação. Que tais verdades com conteúdo podiam 
ser conhecidas pela razão pura, argumentou Kant, era comprovado pela existência dos dois ra-
 
15 
mos da verdade matemática pura: a geometria e a aritmética. Ambas as disciplinas consistiam 
em verdades de que nenhuma pessoa racional podia duvidar, e que tinham sido estabelecidas 
apenas pela razão pura. No entanto era óbvio, pensava Kant, que as verdades destas disciplinas 
não eram «vazias». Não faz parte do significado de «triângulo» que a somados ângulos interio-
res de um triângulo seja de 180º, no mesmo sentido em que faz parte do significado de «soltei-
ro» que um solteiro não seja casado. 
 Kant sustentou que existiam tais verdades com conteúdo, que podiam ser estabelecidas pela 
razão, porque reflectiam a estrutura do dispositivo perceptivo e cognitivo da nossa mente, com 
o qual compreendíamos a natureza do mundo. Kant afirmou que uma pequena parte da metafí-
sica tradicional, que incluía asserções como «todos os acontecimentos têm uma causa», parti-
lhava com a geometria e com a aritmética esta característica que consistia em ter conteúdo genu-
íno e mesmo assim poder ser conhecida sem se apoiar na observação nem na experimentação. 
Para os nossos propósitos, o aspecto importante das teses gerais de Kant é o papel que a geome-
tria nelas desempenha. Ainda que seja vã a esperança numa física, psicologia ou ética fundadas 
em raciocínios puros, não continuará a teoria do espaço — a geometria —, a par da aritmética, a 
ser um corpo de conhecimento que não se funda em generalizações realizadas a partir da ob-
servação de factos particulares, fornecidos pelos sentidos? 
 Nos anos que se seguiram a Kant, muitos especialistas tentaram justificar a afirmação de 
Hume de que a correcção de todas as asserções que fazem afirmações informativas genuínas 
acerca do mundo só pode ser exibida por meio do confronto com os dados da experiência ob-
servacional. O estatuto problemático da geometria e da aritmética recebeu bastante atenção, 
uma vez que, se Hume tivesse razão, as disciplinas matemáticas podiam ter o mundo por objec-
to ou ser conhecidas por meio da razão pura, mas não ambas as coisas. Alguns especialistas ten-
taram mostrar que essas disciplinas só podiam manter o seu estatuto cognitivo sem referência à 
experiência observacional porque careciam de conteúdo genuinamente informativo. Foi esta a 
motivação de várias tentativas para mostrar que as verdades matemáticas resultavam da lógica 
pura, combinada com a definição de um vocabulário puramente lógico de termos matemáticos. 
 Outros especialistas procuraram antes manter o conteúdo genuinamente informativo das ci-
ências matemáticas, rejeitando a afirmação kantiana de que elas poderiam ser estabelecidas por 
um tipo de raciocínio puro que as tornaria, contrariamente às ciências vulgares, imunes ao con-
fronto com a observação enquanto teste último de credibilidade. John Stuart Mill, por exemplo, 
defendeu que mesmo as proposições da aritmética eram estabelecidas pelo processo de genera-
lização a partir de resultados de observações particulares. Poderia parecer que as leis básicas da 
aritmética teriam uma espécie de certeza auto-garantida, mas isto era uma ilusão: derivávamos 
as leis da aritmética da nossa experiência sensorial. Esta experiência, contudo, era tão comum e 
estava de tal modo presente que éramos conduzidos ao erro de pensar que as leis da aritmética 
não necessitavam de qualquer confirmação empírica. De facto, pensava Mill, tal como as leis da 
física e da química, as leis da aritmética só poderiam ser estabelecidas por meio de generaliza-
ções realizadas a partir da experiência empírica. 
 Certos especialistas em teoria do conhecimento reflectiram sobre o modo como as nossas 
crenças formam uma rede complexa de asserções, algumas das quais são invocadas sempre que 
está em questão a razoabilidade de acreditar em algumas das outras. Concederam também 
atenção ao grau com que as nossas crenças têm de estar fundadas em princípios de inferência, 
como o de aceitar como razoável a teoria mais simples que conseguirmos imaginar que esteja de 
acordo com os dados empíricos relevantes. Estes especialistas defenderam também que estes 
princípios parecem inteligíveis e justificáveis apenas quando pressupomos um conjunto previ-
amente existente de crenças que por momentos permaneçam incontestadas, e mostravam-se 
cépticos quanto à utilidade de qualquer distinção rígida entre proposições que podem ser co-
nhecidas pela razão pura e proposições que só podem ser conhecidas com base nos dados da 
experiência. De facto, muitos especialistas mostravam-se cépticos quanto à possibilidade de se-
parar as nossas crenças em dois grupos, tal como Hume pretendera fazer: aquelas que são ver-
dadeiras por convenção (ou por definição, ou pelo simples significado dos termos) e aquelas 
com conteúdo informativo genuíno. 
 Nesta perspectiva, todas as nossas crenças fazem parte de uma teia contínua de crenças teó-
ricas. Cada proposição contém elementos convencionais e elementos factuais. Segundo estes fi-
 
16 
lósofos, uma proposição só é confrontada com a experiência sensorial quando está associada a 
um vasto corpo de crenças aceites. Uma proposição só pode ser testada pela experiência ou con-
firmada por ela enquanto parte de uma estrutura teórica geral. É este corpo de crenças aceites, 
afirmam, que fundamenta os nossos princípios de inferência científica legítima. 
 Neste livro não procuraremos explorar estas opções em profundidade. Em vez disso, abor-
daremos mais adiante o impacto das mudanças sobre o papel da geometria na matemática e na 
física, mudanças essas que influenciaram e foram influenciadas pelo problema mais geral dos 
fundamentos das crenças científicas legítimas. Fizemos já notar que a existência precoce da ge-
ometria como corpo ideal de conhecimento verdadeiramente científico fez muitos filósofos limi-
tarem o conhecimento genuíno àquele que pode ser estabelecido por meio de derivações lógicas 
rigorosas, realizadas a partir de postulados primeiros auto-evidentes e indubitáveis. A desco-
berta e a exploração, realizada pelos matemáticos, de alternativas à geometria euclidiana famili-
ar — que durante muitos séculos tinha prevalecido como a única geometria matemática —, e a 
posterior aplicação das geometrias alternativas recentemente descobertas a teorias físicas desti-
nadas a descrever o mundo real, exerceram uma influência determinante sobre os filósofos que 
procuravam resolver os problemas levantados pelo conflito que surgira entre Kant e Hume, e 
que fora alimentado por outros. Esses problemas diziam respeito ao fundamento último das 
nossas crenças científicas sobre o mundo, e ao grau com que essas crenças respondiam aos da-
dos particulares da observação e da experimentação. 
Questões sobre a natureza da realidade 
 A geometria é a ciência que descreve o espaço. Mas que tipo de coisa é o espaço? Ou melhor, 
como poderemos integrar a espacialidade do mundo na nossa concepção geral sobre os tipos de 
coisas e propriedades que existem? É óbvio que a espacialidade é um dos aspectos mais gerais e 
fundamentais do mundo tal como é dado e tal como interpretamos a sua natureza por meio de 
inferências realizadas a partir do que é dado. Na nossa linguagem e prática comuns usamos, 
sem qualquer problema, noções espaciais — como a de distância, a de espaço como contentor e 
a de continuidade e descontinuidade espaciais — ao lidarmos com estruturas importantes que 
regem o comportamento do mundo material que nos rodeia; mas quando tentamos reflectir so-
bre o que é o espaço em si e por si mesmo ficamos perplexos. 
 Talvez nos ocorra em primeiro lugar que o espaço é uma espécie de «contentor» da matéria 
do mundo. Pensamos que todas as coisas existem no espaço, aliás, num e num só espaço englo-
bante, que contém todas as coisas materiais do mundo. Mas mesmo esta noção de «contentor» 
causa perplexidade, já que parece que o espaço contém objectos em virtude da coincidência es-
pacial destes com partes do próprio espaço. Um objecto ocupa uma porção de espaço na qual 
reside. Esta é certamente uma forma de estar contido diferente daquela que tem um objecto que, 
digamos, está contido numa caixa. 
 Ocorre-nos com naturalidade a ideia de que podemos imaginar um mundo destituído de to-
das as coisas materiais, mas tendo, mesmo assim, algum tipo de realidade. Seria um espaço va-
zio à espera de ser preenchido, ou parcialmente preenchido, por pedaços de matéria. Esta ideiade espaço como uma espécie de entidade — o contentor permanente e imutável das coisas ma-
teriais comuns que podem surgir e desaparecer, e cuja natureza pode mudar — está presente, 
provavelmente, no discurso que Platão profere no Timeu acerca do espaço como o «receptáculo» 
do ser material. 
 Mas que tipo de coisa peculiar é o próprio espaço, essa entidade fantasmagórica? É certo que 
nos sentimos autorizados a falar do «espaço vazio entre as estrelas», ou mesmo a imaginar o es-
paço totalmente vazio de um mundo no qual toda a matéria tivesse sido, de alguma forma, des-
truída por magia. Mas que tipo de coisa é esta a que queremos chamar «espaço vazio»? Será um 
objecto único particular, do qual os espaços, tal como o espaço de um quarto, são partes, da 
mesma forma que uma fatia de pão é uma parte de um pão inteiro? Esta coisa, o espaço, tem ca-
racterísticas como, por exemplo, as que são descritas pelas verdades da geometria. Contudo, as 
nossas intuições dizem-nos que o próprio espaço é demasiado diferente da matéria vulgar, de-
masiado insubstancial para contar realmente como uma coisa do mundo, a par das coisas vul-
gares que nele existem. Mas de que outro modo poderemos ver este assunto? 
 
17 
 Aristóteles falou de «lugar». É difícil decifrar o que tinha Aristóteles ao certo em mente, mas 
parece que concebia o lugar como a fronteira ou limite de um pedaço de matéria. O movimento 
é a mudança de lugar, algo que ocorre quando um objecto troca uma superfície que o limita por 
outra. Mas significará isto que o espaço é algo adicional que não se reduz à matéria que nele 
existe? Percebe-se que Aristóteles tenta evitar tal conclusão, mas fica sem saber que outro es-
quema conceptual há-de colocar no seu lugar. Veremos já de seguida a principal tentativa, feita 
por filósofos posteriores, de encontrar um esquema conceptual que faça justiça às asserções que 
desejamos afirmar sobre a existência de objectos no espaço, o facto de ocuparem um lugar, de 
serem capazes de mudar de lugar, e assim por diante, e que faça também justiça a noções intui-
tivas como a da possibilidade de um espaço que não esteja ocupado por matéria. Esta última 
proposta tentará também evitar o ultraje aparente de conceber o espaço como uma componente 
adicional do ser, que pode ter uma realidade independente da própria existência da matéria que 
o preenche. 
 Se o espaço levanta perplexidades, o tempo intriga-nos ainda mais. Mais uma vez, a nossa 
intuição diz-nos que tudo o que acontece no mundo acontece no tempo. Apesar de pensarmos 
por vezes que os nossos estados mentais subjectivos poderão não estar no espaço (onde estarão 
localizados, por exemplo, os pensamentos?), pensamos que mesmo os nossos pensamentos têm 
de ocorrer em algum momento do tempo. Temos a intuição de que existe um único tempo no 
qual acontece tudo o que acontece, e de que qualquer processo que tenha uma duração ocupa 
uma porção do tempo total do mundo. Parece também poder dizer-se, em relação ao tempo, 
que este é como um contentor, tal como o espaço. Nos processos que ocupam tempo, a sua du-
ração coincide com momentos do «próprio tempo». E julgamos que é possível imaginar perío-
dos de tempo em que não ocorrem acontecimentos materiais. Não podemos nós imaginar, afi-
nal, um mundo onde toda a matéria e as suas transformações tenham desaparecido, mas no 
qual o tempo continue a decorrer como sempre? 
 Mas se é estranho pensar no tempo como uma «coisa», muito mais estranho é pensar no 
tempo como uma «entidade» no sentido comum da palavra. Todavia, se o tempo pode conti-
nuar a decorrer mesmo que a matéria deixasse de existir, não deveríamos atribuir ao tempo al-
gum tipo de ser independente da existência das coisas vulgares do mundo e das suas mudanças 
vulgares ao longo do tempo? 
 Outras conexões entre a temporalidade e o ser deixam-nos ainda mais perplexos. Parece que 
pensamos que a própria existência das coisas vulgares está ligada ao tempo de uma maneira di-
ferente daquela que a liga ao espaço. Se uma coisa existiu no passado mas não existe agora, 
pensamos que, propriamente falando, ela não tem qualquer existência; e o mesmo é verdade em 
relação aos objectos futuros, que ainda não existem. Mas, como Santo Agostinho fez notar, o 
presente é um pequeno momento diáfano de tempo, o que nos faz perguntar como se pode em 
rigor afirmar que as coisas, dada a sua natureza temporal, chegam realmente a ter alguma exis-
tência. Ao contrário do espaço, o tempo parece ter um aspecto assimétrico. O passado e o futuro 
parecem-nos muito diferentes: o passado parece-nos uma realidade fixa, ainda que desapareci-
da, mas o futuro parece-nos algo que não tem, talvez, nenhum tipo determinado de ser até ocor-
rer. 
 Outros aspectos da temporalidade das coisas intrigaram de tal forma os filósofos antigos que 
alguns se mostraram completamente cépticos quanto à realidade do tempo e das mudanças que 
o acompanham. Zenão de Eleia formulou argumentos para tentar mostrar que as noções vulga-
res de tempo estão repletas de contradições. Como podia existir o movimento, por exemplo, se 
em cada momento particular um objecto estava em repouso no espaço que ocupava nesse preci-
so momento? Acontece que alguns dos argumentos de Zenão, destinados a revelar as contradi-
ções internas das noções de tempo e de movimento, seriam hoje considerados falaciosos. Con-
tudo, os dilemas que suscitou noutros argumentos proporcionam ainda hoje um ponto de par-
tida fecundo para discussões sobre alguns assuntos, como o que diz respeito aos esquemas con-
ceptuais correctos para lidar com as noções de espaço e de tempo como contínuos e com o con-
ceito de movimento. Alguns resultados importantes da filosofia, assim como o desenvolvimento 
da matemática correcta para lidar com o movimento, inspiraram-se em tentativas para resolver 
os enigmas levantados por Zenão. 
 
18 
 Aristóteles impressiona uma vez mais o leitor moderno com o seu discernimento, ainda que, 
de um ponto de vista moderno, o que tem para dizer possa ser interpretado de múltiplas for-
mas. Aristóteles concebe o tempo como algo distinto do movimento ou da mudança das coisas 
materiais, como algo que, tal como o espaço, não pode ser identificado com os objectos que es-
tão nele. Todavia, Aristóteles faz notar que sem o movimento ou a mudança não teríamos cons-
ciência da passagem do tempo. Assim, de uma maneira análoga à sua noção de lugar como a 
espacialidade dos corpos, distinto destes mas sem existir como uma entidade independente e 
separada dos corpos do mundo, Aristóteles fala do tempo como uma medida do movimento e 
da mudança. Mas fica ainda por esclarecer, então, o que é supostamente o tempo. É algo que 
depende das coisas e do seu movimento e mudança; todavia, não é nem o próprio movimento 
nem a própria mudança. O que será então? 
 Subjacente a grande parte da perplexidade suscitada pela natureza do espaço e do tempo, 
encontra-se a sua dupla função de proporcionar um palco tanto para o desenrolar dos fenóme-
nos físicos como para os conteúdos do que intuitivamente consideramos a nossa própria consci-
ência subjectiva ou privada. Os filósofos defenderam frequentemente que, ao passo que os ob-
jectos físicos e os seus processos decorrem no espaço e no tempo, os conteúdos mentais das nos-
sas mentes existem apenas no tempo. Todavia, parece-nos que algum modo espacial é apropri-
ado até para descrever, digamos, os conteúdos visuais dos nossos sonhos. O gato sonhado e o 
tapete sonhado podem ser irreais enquanto objectos genuínos, mas pode muito bem parecer-nos 
que o gato sonhado está no tapete sonhado de uma forma que consideramos pelo menos pare-
cida com a forma de um gato real estar num tapete real. Deste modo, até as nossas quimeras 
mentais parecem envolver algum tipo de espacialidade. 
 Além disso, é certo que os acontecimentos dos nossos sonhos ocorrem numa ordem tempo-
ral, mesmo que estejamos convencidos de que essa é uma ordem temporal de acontecimentos 
irreais. Todavia, também aqui parecemexistir algumas diferenças entre o espaço mental e a sua 
temporalidade. O espaço onde o gato sonhado e o tapete sonhado existem parece um «lugar 
nenhum» no que diz respeito ao espaço real. Parece ser um tipo de espaço separado do espaço 
das coisas físicas. No entanto, parece-nos que os processos oníricos ocorrem no mesmo tempo 
que abrange os acontecimentos físicos. O meu sonho do acidente de automóvel ocorreu depois 
de adormecer e antes de acordar, na mesma ordem temporal em que ocorreu o acontecimento 
de estar deitado na cama. Contudo, o espaço do acidente de automóvel ilusório não pode de 
forma alguma encaixar-se em qualquer lugar real, nem mesmo no espaço real da minha cabeça 
onde está localizado o mecanismo dos meus sonhos — o cérebro. 
 Como veremos, não há uma solução fácil para o problema de colocar num esquema coerente 
um modelo da natureza do tempo e do espaço que faça justiça às intuições que acabámos de 
passar em revista. A nossa descrição deve explicar em que consiste a natureza do espaço e do 
tempo. Que tipo de existência terão, e como estará a sua existência relacionada com a existência 
das coisas e dos processos mais comuns que ocupam espaço e têm lugar no tempo? Como fará 
esta natureza do espaço e do tempo justiça às nossas intuições acerca da espacialidade e tempo-
ralidade tanto dos acontecimentos físicos do mundo como dos conteúdos da nossa experiência 
subjectiva? Finalmente, qual será o aspecto da natureza do espaço e do tempo que nos dá acesso 
ao conhecimento que afirmamos ter sobre a sua natureza, um tipo de conhecimento que foi con-
siderado por alguns especialistas como o próprio modelo da certeza que podíamos ter acerca do 
mundo com origem unicamente na nossa razão pura? 
O debate entre Newton e Leibniz 
 No século XVII, a filosofia do espaço e do tempo tornou-se um tema central da metafísica e da 
epistemologia. A discussão atingiu um ponto elevado no importante debate entre Leibniz, o 
grande filósofo e matemático alemão, e Newton, o grande físico e matemático inglês. Neste de-
bate foram delineadas duas teorias opostas sobre o lugar do espaço e do tempo no mundo, e 
muitas das questões fundamentais relacionadas com o espaço e o tempo que vieram mais tarde 
a ocupar os filósofos receberam aí a sua formulação mais clara. 
 
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 Leibniz avançou uma concepção do espaço e do tempo que apresentava finalmente uma 
compreensão clara de como uma teoria podia, num tom aristotélico, negar ao espaço e ao tempo 
um tipo de existência independente da existência das coisas materiais comuns e dos aconteci-
mentos materiais, mas manter, mesmo assim, um lugar crucial na estrutura do mundo para o 
espaço e para o tempo. Na filosofia «profunda» de Leibniz, na sua verdadeira metafísica, nega-
se a existência per se da matéria, assim como a do espaço e do tempo. Para este Leibniz esotéri-
co, o mundo é constituído por entidades fundamentais de tipo mental, as mónadas, que existem 
totalmente isoladas umas das outras, não estando em interacção nem sequer em termos causais. 
Cada mónada contém na sua natureza uma imagem completa de todo o universo, o que explica 
como, sem interacção, as mónadas possam exibir uma evolução coerente ao longo do tempo. 
Temos de pôr de parte esta «profunda» e estranha visão leibniziana do mundo, que foi, no en-
tanto, defendida de forma engenhosa e importante. A sua visão menos profunda, exotérica, do 
espaço e do tempo ocupa um lugar intermédio entre o ponto de vista de que a matéria, o espaço 
e o tempo existem, e o ponto de vista monadológico final. 
 Nesta posição intermédia pode admitir-se a existência de objectos e de acontecimentos mate-
riais. O que são, então, o espaço e o tempo? Considere-se quaisquer dois acontecimentos, conce-
bidos como eventos instantâneos que ocorrem no domínio das coisas materiais. Os aconteci-
mentos têm uma relação temporal entre si, sendo o primeiro acontecimento posterior, simultâ-
neo, ou anterior ao segundo acontecimento. Podemos ir mais além ao definir uma relação quan-
titativa entre os acontecimentos, dizendo que o primeiro acontecimento está separado do se-
gundo por um intervalo de tempo definido, que pode ser positivo, nulo ou negativo. A ideia 
simples de Leibniz é a de que o tempo é apenas a colecção de todas estas relações temporais en-
tre acontecimentos. Se não existissem acontecimentos, não existiriam relações, e assim, neste 
sentido, o tempo não teria uma existência independente dos acontecimentos que nele ocorrem. 
Contudo, as relações entre os acontecimentos são uma componente real do mundo (nesta pers-
pectiva exotérica). Por isso, seria também enganador dizer que o tempo não existe realmente. 
 Se considerarmos todas as coisas do mundo num único instante de tempo, veremos as rela-
ções espaciais que ocorrem entre elas. Estão a certas distâncias umas das outras, e em certas di-
recções umas em relação às outras. O espaço é a colecção de todas estas relações espaciais entre 
os objectos do mundo num certo instante. Uma vez mais não existe qualquer contentor, qual-
quer espaço em si à espera de ser ocupado pelos objectos. Há apenas os objectos e as inúmeras 
relações espaciais que eles estabelecem entre si. 
 A analogia com as relações familiares pode tornar isto mais claro. Qualquer família consiste 
em várias pessoas que estão relacionadas entre si das maneiras habituais. A pode ser pai de B, C 
o primo direito de D, e assim por diante. De que é feita a realidade de uma família? Resposta: 
das pessoas da família. Mas é óbvio que as relações que essas pessoas têm entre si são caracte-
rísticas perfeitamente reais do mundo. Mas será que poderíamos conceber essas relações como 
algo que existe independentemente das pessoas? Será que poderia existir uma espécie de «espa-
ço relacional» que existisse em si e por si, e que estivesse à espera de ser ocupado por pessoas? 
Estas sugestões são manifestamente absurdas. Bem, diz Leibniz, o que acontece com o «espaço 
relacional» acontece com o espaço vulgar. Há coisas e há relações espaciais entre elas, mas não 
há qualquer contentor com existência independente, o espaço em si, tal como não há um «espa-
ço relacional» com existência independente. 
 Todos os acontecimentos que ocorrem no mundo mental ou material estão temporalmente 
relacionados entre si, e todos os objectos materiais estão espacialmente relacionados entre si. Es-
tas duas famílias de relações abrangem assim toda a realidade. Mas elas existem como uma co-
lecção de relações entre os acontecimentos substanciais e as coisas do mundo, e não como subs-
tâncias independentes. 
 Mas isto não é assim tão simples. Que diremos dos momentos do tempo em que nada acon-
tece? E das regiões do espaço que não estão ocupadas, onde não há nada? Deveremos limitar-
nos a negar a sua realidade? Leibniz sugere uma maneira de mantermos estas noções como legí-
timas e mesmo assim continuarmos a ser relacionistas. Considere-se o espaço vazio entre nós e 
uma estrela. Não há nada que mantenha com respeito a nós a relação espacial de estar a meio 
caminho entre nós e a estrela. Todavia, poderia haver algo que tivesse essa relação espacial com 
respeito a nós e à estrela. Podemos assim conceber os lugares desocupados como relações espa-
 
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ciais que algo poderia ter com os objectos do mundo, mas que de facto nada tem. O espaço é, 
afirma Leibniz, a colecção das relações espaciais entre as coisas «quanto à possibilidade». As-
sim, a família das relações contém tanto relações possíveis como relações efectivas. Poderemos 
mesmo pensar em recuperar a noção de espaço totalmente vazio. Mesmo que não existissem re-
almente objectos, poderiam existir — e, se existissem, teriam relações espaciais entre si. Assim, o 
espaço totalmente vazio, que os anti-relacionistas consideram uma noção inteligível, poderia 
tornar-se, para o relacionista, a colecção das relações possíveis (mas não efectivas) que os objec-
tos materiais possíveis (mas não efectivos) poderiam manter entre si, caso existissem tais objec-
tos.

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