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Questoes_Inacabadas_Colonialismo_Islao_e portucalidade

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Questões Inacabadas: Colonialismo, Islão e 
Portugalidade∗
AbdoolKarim Vakil 
What’s a ghost? Unfinished business, is what. 
Salman Rusdhie 1
 
Que sabes tu de Portugal, dos seus valores, da sua história, das suas tradições 
milenárias? Como te identificarás tu com a Batalha de Ourique, com a glória 
de Salado, com a coragem do Lidador, com a valente ousadia de Afonso de 
Albuquerque, com a abnegação do Infante D. Fernando [?] 
Nos tempos de desconstrucionismo e de relativismo lúdico pós-
moderno que vivemos, retratados por uma geração de escritores portugueses 
que o reaccionarismo crítico de Miguel Real caracteriza pela incapacidade de 
levar a história, e particularmente a história de Portugal a sério – geração que 
já não tem “nenhum mouro por fossar”2 - a pergunta soará mais a pastiche ou 
a frase de romance histórico de “bengalada”3 do que a santo-e-senha de 
cidadania. Hoje é-nos quase impossível ler este rosário de Portugalidade ou 
ladaínha entoada nas páginas dos compêndios de história pátria para a 
educação de bons portugueses até 74 4, sem imaginar esta prosa como uma 
 
∗ Capítulo do livro Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo, 
coord. de Margarida Calafate Ribeiro e Ana Paula Ferreira, Porto: Campo das Letras, 2003, 
pp. 255-294. 
1 Salman Rushdie, The Satanic Verses, New York, Viking, 1988, p.129 [“O que é um fantasma? 
Uma coisa inacabada, só isso”, Os Versículos Satânicos, 9ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 2001, 
p.127]. 
2 Miguel Real, Geração de 90. Romance e Sociedade no Portugal Contemporâneo, Porto, Campo das 
Letras, 2001, pp.123, 131, 132;. 
3 Vide Elena Losada Soler, “Introdução”, in Edição Crítica de Eça de Queirós: A Ilustre Casa de 
Ramires, Lisboa, IN-CM, 1999, p.56 
4 Vide por exemplo os números 24, 30, 65, 102, 129-131 do popularíssimo album de cromos 
História de Portugal da Agência Portuguesa de Revistas, dir. de Mário de Aguiar, compilação 
de António Feio, ilustrações de Carlos Alberto, 16ª ed., Lisboa, Coimbra, Porto, Luanda, 
Lourenço Marques, Aguiar & Dias, 1970 (“segundo as Histórias de Portugal oficialmente 
aprovadas, de António G. Mattoso, Chagas Franco e Janeiro Acabado”, V. n.13, in Luís Reis 
Torgal, História e Ideologia, Coimbra, Minerva, 1989, p.382); ou o livro de História para a 4ª 
Classe do Ensino Primário Elementar da Editora Educação Nacional de Adolfo Machado, 
Porto, s.d., pp. 10, 18, 26-29, 44-45, 59-61. 
 1 
queirosiana página da Pátria do “Castanheiro Patriotinheiro” ou dalgum 
serão mais inspirado do Cenáculo Patriótico da Rua das Severinas. Porém, 
mais perto da verdade estaria algum avisado leitor que nestas linhas 
suspeitasse antes o tom daquele outro João Lúcio Castanheiro, o nacional-
tradicionalista arvorado em paladino pelos integralistas da Nação Portuguesa 5. 
Porque, de facto, é num discurso de nacionalismo integralista, como uma 
citação mais alargada do mesmo texto logo confirma, que se estrutura a 
interpelação formulada: 
[D]entro das tuas multiplas e traiçoeiras acções a mais repugnante é, sem 
dúvida, a de quereres transmitir a noção de que és “português”! Português? 
Tu, porco? Que sabes tu de Portugal, dos seus valores, da sua história, das 
suas tradições milenárias? Como te identificarás tu com a Batalha de 
Ourique, com a glória de Salado, com a coragem do Lidador, com a valente 
ousadia de Afonso de Albuquerque, com a abegnação do Infante D. 
Fernando, e mesmo com a tenacidade da valorosa jornada dos Reis Católicos 
que expulsou, por fim, a tua selvática e hedionda seita da peninsula Ibérica! 
Português, tu, pôrco! [...] 
Volta para a tua casa, pôrco! Volta para a estrumeira de onde vieste. Não tens 
lugar nem em Portugal nem em qualquer outro país da Europa. 
 
Trata-se na realidade de um excerto de uma vituperiosa carta enviada a 
um dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa 6, aviso, dentre ameaças 
reforçado, da ressunção daquela Cruzada levantada pelos Reis Católicos. 
Desde logo se intui que o maior agravo ao patriótico brio dos zelosos 
defensores da Pátria foi o de uma afirmação pública da identidade 
portuguesa dos muçulmanos portugueses: termo e reivindicação que 
constituem uma oxímora aberração no léxico do discurso identitário da 
tradição portuguesa. 
Nos termos da carta, Ourique, como batalha e hierofania, inscreve a 
nascença de Portugal no combate ao Islão e eleva a história pátria a 
instrumento da vontade divina; vínculo que, à luz do Santo Lenho, a 
milagrosa vitória do Salado testemunha e consagra. Gonçalo Mendes da Maia, 
o Infante Santo, e Albuquerque, por sua vez, erguem-se como três faces 
heróicas e exemplares, símbolos da história de uma pátria forjada pela 
 
5 “Anunciação”, Nação Portuguesa. Revista de Filosofia Política, nº1 (Abril 1914), p.2. 
 2 
Reconquista, sagrada pelo martírio e eternizada pela terrível e férrea audácia 
da expansão conquistadora no Índico 7. De Ourique ao Império, a história é 
passível de ser lida como uma Cruzada, ou por outras palavras, como um 
“campeonato de Cristo contra o Islão” como aquele “factor máximo da nossa 
história” que Paiva Couceiro já reduzira a lição para a formação dos novos 
Soldados Práticos da tradição 8. Oito séculos de história “portuguesa, logo 
católica”9 em acta lavrada pela rasura do passado islâmico. 
Que um discurso nacionalista, para mais de variante extremista, procure 
espelhar na construção da alteridade de uma minoria simbolicamente 
diferenciada, ex-colonizada, e agora enraízada no corpo da nação, a sua 
fantasia de uma identidade nacional purificada, una e coesa, pouca 
originalidade revela, e não justificaria por si só qualquer referência. Porém, o 
caso não deixa de ser interessante. Em primeiro lugar, porque a antinomia 
entre o Islão e a Portugalidade que estrutura este discurso é decalcada do 
próprio corpus canónico que enforma a tradição cultural portuguesa. 
Parafraseando António José Saraiva 10, a Cruzada é o mito estruturante da 
ideologia histórica da cultura portuguesa desde Os Lusíadas até ao 25 de Abril; 
 
6 Carta datada de 17 de Novembro de 2001 enviada em nome de uma organização anti-
islâmica em Portugal que não dignificarei aqui nomeando. 
7 Sobre o mito de Ourique e o seu peso no imaginário português vide Ana Isabel Buescu; 
“Vínculos da Memória: Ourique e a Fundação do Reino”, in Yvette Kace Centeno (coord.), 
Portugal: Mitos Revisitados, Lisboa, Salamandra, 1993, pp.9-50; sobre o Salado, Bernardo 
Vasconcelos e Sousa, “O Sangue, a Cruz e a Coroa— a memória do Salado em Portugal”, 
Penélope: Fazer e Desfazer a História, nº2 (Fevereiro 1989), pp.27-48; sobre D. Fernando, Paulo 
Drumond Braga, “O Mito do “Infante Santo””, Ler História, 25 (1994), pp.3-10, e o estudo de 
João Luís Inglês Fontes, Percursos e Memória: Do Infante D. Fernando ao Infante Santo, Cascais, 
Patrimonia Historica, 2000. Sobre a mitificação de Albuquerque, o “Prefácio” de Joaquim 
Veríssimo Serrão aos Comentários de Afonso d”Albuquerque, I, Lisboa, IN-CM, 1997, pp.v-xxvii, 
mais sucinctamente, Luís Filipe F.R. Thomaz e Jorge Santos Alves, “Da Cruzada ao Quinto 
Império”, in Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A Memória da Nação, 
Lisboa, Sá da Costa, 1991, pp.136-139, e no contexto da educação escolar durante o Estado 
Novo, a referência de Maria Cândida Proença, “A Escola e os Descobrimentos”, in M.C. 
Proença, L. Vidigal e F. Costa, Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), Lisboa, 
CNCDP, 2000, pp.71-2. A familiaridade e consagração do heróico episódio de “A Morte do 
Lidador” deve-se, claro, a Herculano nas suas Lendas e Narrativas e seu uso nas escolas. 
8 Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, Lisboa, 1936, pp.195-96.9 Oliveira Salazar, “Oitocentos Anos de Independência” [1940], Discursos e Notas Políticas, III, 
2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1959, p.256; “O meu depoimento” [1949], Discursos e Notas 
Políticas IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1951, pp.370-371. 
 3 
e a “essência católica da identidade nacional” mais particularmente, é o “mito 
ideológico estruturante” do “sistema de valores” do Estado Novo 11. Um 
segundo factor de interesse prende-se com a desconstrução dessa antinomia. 
Por um lado, pelo facto de a expressão “muçulmano português”, que 
consubstancia essa desconstrução, ter origem no interior do próprio sistema 
de valores do Estado Novo; e, por outro, pelo facto de a nova síntese narrativa 
da formação da nação, saída da revisão historiográfica do pós-25 de Abril, ter 
por base a superação da visão cruzadista da história portuguesa, e por 
símbolo precisamente a homóloga expressão “Portugal Islâmico”. Duma e 
doutra forma a tradicional antinomia, bem como os mitos que a estruturavam, 
ficam duplamente esvaziados. 
Muçulmanos Portugueses: genealogia de uma identidade 
Tomemos uma recensão bibliográfica de Jaime Magalhães Lima na 
Revista de Portugal, de 1890, como texto fundador de um certo discurso 
geopolítico português sobre o Islão, e sobre o Islão africano em particular, 
pelo que este deixa adivinhar dos contornos futuros de um discurso já em 
formação desde a década de 80 do século XIX. 
A escolha deste texto justifica-se quer pelo âmbito e prestígio da 
publicação onde se insere (por contraste com a maioria de semelhantes 
pareceres consignados em relatórios de circulação mais ou menos 
circunscrita), quer pela presciência profética que demonstra ao aventar que 
“[d]e todos os fenómenos religiosos do século XIX, o mais considerável será 
talvez o renascimento e o progresso do Islam no continente negro”12. Mas o 
 
10 António José Saraiva, A Cultura em Portugal: Teoria e História, Livro I: Introdução Geral à 
Cultura Portuguesa, 2ª ed.,Venda Nova, Bertrand, 1981, pp. 87, 119. 
11 Um dos “seis mitos ideológicos estruturantes”, em que, segundo Fernando Rosas, se 
resume o sistema de valores do Estado Novo, “Mitos e Realidades na História Portuguesa do 
Século XX”, Portugal na Transição do Milénio. Colóquio Internacional, s.l.: Fim de Século, 1998, 
pp.71-74. 
12 Jayme de Magalhães Lima, Revista de Portugal, vol. III (1890), pp.440-42. 
 4 
que verdadeiramente justifica a escolha é aquilo que nos seus comentários 
podemos antever como tópicos fundamentais do que viria a ser o discurso 
sobre o “Islão Negro”. O Islão que Magalhães Lima revela é o rival, até então 
insuspeitado, dos europeus na partilha de África, ou seja, uma potência 
igualmente estrangeira e igualmente colonizadora em África, com a 
agravante, do ponto de vista europeu, de o seu carácter rácico e 
correspondente estádio civilizacional (mais próximo, e portanto mais 
adequado para a tarefa de elevação dos povos primitivos), e a sua natureza 
contemporizadora, sincrética e sensualista, se revelar, de acordo com esta 
lógica, mais atraente aos povos africanos. 
Durante a Primeira Grande Guerra e, ao contrário do que se passou em 
Inglaterra e em França, o factor islâmico em si não suscitou especial cuidado 
pela parte das autoridades portuguesas, embora haja prova de existência de 
propaganda islâmica anti-aliada em língua portuguesa datada precisamente 
da mobilização do país para o conflito europeu13. No entanto, no contexto do 
pós-Guerra já a nova dinâmica do Islão – pensada agora em termos da crise 
moral e da perda de supremacia da Europa – não deixou de gerar algumas 
expressões de ansiedade. Delas são exemplo os artigos de Ayres de Ornelas 
sobre “As Consequências Coloniais da Guerra” e de Pedro Correia Marques 
sobre “A Decadência da Europa”, publicados na revista Portugália, em 1926 14. 
Se o ressurgimento do Islão — e, muito concretamente, a revolta anti-colonial 
de Ibn Abdul Karim no Rif, o sucesso do movimento autonomista consagrado 
 
13 Tenente El Hadj Abdallah, O Islam no exercito francez (Guerra de 1914-15), Constantinopla, 
1916 é um excelente exemplo da campanha de propaganda dirigida às populações das 
colónias francesas norte-africanas e aos mesmos nos campos de prisioneiros na Alemanha 
[sobre o texto francês de 1915 e sua repercussão V. Jacob M. Landau, The Politics of Pan-Islam: 
Ideology and Organization, ed. rev., Oxford, Clarendon Press, 1994; p.117 e Apêndice N, 
pp.358-59]. A sua tradução para português, em 1916, permite inferir que se pretendia visar 
também as populações muçulmanas das colónias portuguesas. Já a proclamação de Jihad 
contra os aliados, decretada pelo Sultão Otomano Mehmed V em Novembro de 1914, e 
extensiva às populações muçulmanas das colónias europeias (Vide Rudolph Peters, Islam and 
Colonialism: The doctrine of jihad in modern history, The Hague, Mouton, 1979, pp. 90-94) teve, 
segundo refere Jeff Haynes, circulação em Moçambique. Vide Jeff Haynes, Religion and 
Politics in Africa, London, Zed Books, 1996, p.36. 
14 Ayres de Ornelas, “As Consequências Coloniais da Guerra”, e Correia Marques, “A Europa 
em Decadência”, Portugália. Revista de Tradição e Renovação Nacional, nº4 (Janeiro 1926), 
pp.197-98 e p.226. 
 5 
pela independência do Egipto sob Saad Zaghlul e particularmente o triunfo 
Wahhabi e de Ibn Saud assinalado pela conquista de Meca — levou à 
alteração do mapa da balança de relações entre o mundo islâmico e a Europa, 
é, sem dúvida, na perspectiva dos autores, o facto desse ressurgimento ter 
tido lugar sob o “malefício wilsoniano” do princípio dos “direitos dos povos” 
que, como feitiço virado contra o feiticeiro, mais profundamente se revela a 
agonia da Europa. 
No mesmo sentido, a manifestação de correntes modernizadoras e 
nacionalistas islâmicas, desmentindo as velhas teses do imobilismo social do 
mundo muçulmano, põe igualmente em causa o monopólio do espírito em 
que assentava a aparente superioridade da civilização europeia. Na liderança 
islâmica de movimentos pan-africanos e anti-colonialistas que se deixa 
adivinhar, por último, pressentem os autores um novo imperialismo islâmico 
a par do bolchevique. Estes dois artigos são indubitavelmente de interesse 
pela acuidade que demonstram em relação ao mundo árabe e pela redefinição 
da imagem do Islão que comportam. O seu objecto, porém, é a crise político-
ontológica da Europa, e nenhuma referência é sequer esboçada quanto ao 
impacto ou possível relevância do ressurgimento islâmico no Portugal 
colonial. 
A metaforização do turco e do mouro – com recurso aos tópicos da 
ameaça oriental à civilização ocidental, da nova Cruzada e da nova 
Reconquista – no discurso português desde os anos vinte à Guerra Civil de 
Espanha, também leva a remeter o Islão para segundo plano, considerando o 
bolchevique como a verdadeira ameaça 15. Todavia, após a II Grande Guerra, 
os discursos indiciam uma nova inflexão: o seu sentido deixa de ser tão 
metafórico para passar a ser mais literal. Desde logo pelos títulos, e pelo tom 
alarmista, tanto quanto pelas respectivas conjunturas em que são 
pronunciados, os artigos de Eduardo Dias em 1946 e de António Sousa 
Franklin, dez anos mais tarde, são disso perfeitos exemplos. Em ambos, mais 
 
15 Sobre esta apropriação do topos da ameaça turca vide o meu “Vários Vascos da Gama”, in 
Diogo Ramada Curto (dir.), O Tempo de Vasco da Gama, Lisboa, Difel, 1998, p.358. 
 6 
uma vez, se sublinha que a causa da expansão portuguesa, cinco séculos atrás, 
fora a ameaça islâmica; mas num e noutro, o “perigo turco” e o “perigo 
vermelho” aparecem agora como doutrinas irmanadas, articuladas numa 
frente comumanti-colonial e anti-europeia; e, bem mais importante, também 
num e noutro o Islamismo aparece explicitamente identificado como a 
principal ameaça ao domínio português em África. 
Pela sua publicação na revista Rumo, o artigo de Dias pode ser lido em 
termos da linha programática da própria revista, centrada na reflexão sobre o 
“princípio da portuguesidade” e na “missão” de defesa da cultura 
portuguesa16. Já a importância atribuída aos “20 milhões de muçulmanos” na 
Rússia e a sugestão de possíveis desenvolvimentos de uma aliança anti-
imperialista ásio-soviética, reforçada através de uma alusão ao programa 
revolucionário do Congresso de Baku de 1920, de alguma forma remete para 
um feixe de preocupações de âmbito mais geral, gerado pelos prenúncios da 
Guerra Fria. Mas é a perspectiva orientalista do autor que confere alguma 
originalidade à temática do artigo. Abordando o “problema” da penetração 
islâmica na África Negra, Dias radica a análise política dos factos no quadro 
mais vasto duma interpretação histórico-teológica do Islão 17. De acordo com 
o autor, Mafoma nunca pretendeu fundar uma religião e, ainda menos, uma 
religião universal. O islamismo revela-se assim como um fenómeno político e 
ideológico. O “sinistro Jihade, a guerra santa, eufemismo que significa o 
extermínio implacável dos adversários” é, para este autor, “sem sombra de 
dúvida, sem contestação possível [...] a base própria e característica da 
constituição islâmica”; “numa palavra, o único elemento original do Islão”18. 
 
16 Vide “Apresentação— Rumo”, Rumo. Revista de Cultura Portuguesa, Ano I nº1 (Junho 1946), 
pp.8, 13 
17 Autor de uma obra panorâmica em três volumes que o próprio não hesitou em descrever 
como o “primeiro ensaio em língua portuguesa [...] sobre várias das complexas e arriscadas 
matérias concernentes ao problema do Islão” (Árabes e Muçulmanos, vol. I: A Lei e as Hostes de 
Mafoma, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1940, p.vii), e do voluminho complementar O Islão 
na Índia, Colecção Gládio-Estudos Religiosos e Filosóficos, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 
1942), Eduardo Dias deve a sua fama de “Orientalista” principalmente à divulgação de 
alguns clássicos da literatura árabe em português. 
18 Eduardo Dias, “Um Problema: o Islamismo e a sua penetração na África Negra”, Rumo, nº6 
(Novembro 1946), pp.232-243. 
 7 
Esta conclusão do autor, creditado como “erudito islamólogo”, continuaria a 
ser citada em Portugal, através das páginas do estudo geopolítico sobre o 
Islão que maior divulgação e circulação alcançou, desde fins dos anos 50 até à 
década de 70 19. No mesmo sentido, o enfoque alarmista virado para o 
contexto do islamismo nas colónias portuguesas encontra-se intimamente 
articulado com a justificação de uma imperiosa necessidade de fomentar os 
estudos islâmicos em Portugal, que passa a constituir outro dos refrões da 
época. 
Pela altura em que Sousa Franklin levantou como questão “A Ameaça 
Islâmica na Guiné Portuguesa”, a ameaça esboçada por Dias adquirira 
substância 20. O seu nome era Bandung. Semelhante à leitura de Dias e 
estruturado em termos de um desafio do Oriente ao Ocidente, o nó da 
questão para Franklin reside na identidade religiosa e civilizacional de 
Portugal. Enquanto que “[c]ada indígena atraído ao cristianismo é, pode 
dizer-se, um português” – de forma que a própria cristianização se torna 
instrumento de nacionalização (ou lusitanização, como o autor se lhe refere) – 
o muçulmano, sempre igual a si próprio, “repele quaisquer influências da 
nossa civilização”. De tão longa data sob a tutela portuguesa, ainda assim, 
como o autor explica desalentado, “os nossos islamizados da Guiné [...] não se 
consideram portugueses —como alguns tiveram a ousadia (aliás inconsciente) 
de me afirmar um dia— mas árabes”21. Pelo que ao problema imediato diz 
respeito, a questão situa-se a nível global na “salvaguarda da civilização 
cristã”, sendo portanto de ordem cultural 22. Nestes termos, a questão é 
antiga. Retomá-la mais pormenorizadamente permite também 
 
19 José Júlio Gonçalves, O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português, Estudos de Ciências 
Políticas e Sociais 10, 2ª ed., Lisboa, JIU, 1962, p.60; pp.117, 227-229. 
20 António George C. de Sousa Franklin, “A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa”, Lisboa, 
1956; Cf. no mesmo ano o artigo de Joaquim Correia da Costa, “A Ameaça Afro-Asiática”, 
Diário de Lisboa (2.10.1956), pp.12-13 e “O Perigo do Islão em África”, Boletim Geral do Ultramar 
[abr. BGU], Ano 32, nº378 (Dezembro 1956), pp.104-106. 
21 Ibid., p.17. 
22 Tanto assim, que a solução apresentada pelo autor é a da colonização da Guiné Portuguesa 
por elementos Cabo Verdianos. 
 8 
recontextualizar o discurso português sobre o Islão neste período duma forma 
um pouco diferente. 
Em Moçambique a questão islâmica prende-se, no período de 
colonização efectiva – das campanhas de pacificação e até fins do século XIX – 
com a questão da escravatura, em relação à qual o elemento religioso se 
esbate noutras considerações 23. Não obstante, as autoridades portuguesas 
foram tomando consciência, quer duma intensificação da penetração islâmica 
do interior, quer da islamização das populações. Mas na verdade, só a partir 
do início do século XX 24, ou mesmo mais tarde, sob o impacto das 
movimentações decorrentes da I Grande Guerra e no seguimento da efectiva 
 
23 Malyn Newitt, Portugal in Africa: The last hundred years, London, Hurst, 1981, pp.61-63; René 
Pelissier, História de Moçambique: formação e oposição, 1854-1918, vol.I, Lisboa, Estampa, 1987, 
p.317-18; Fernando Amaro Monteiro, “As Comunidades Islâmicas de Moçambique: 
mecanismos de comunicação”, Africana nº4 (Março 1989), pp.65-79; Aurélio Rocha, 
“Resistência em Moçambique: o caso dos Suaíli, 1850-1913”, I Reunião Internacional de História 
de África: Relação Europa-África no 3º quartel do século XIX, Lisboa, IICT-CEHCA, 1989, pp.581-
615; Malyn Newitt, A History of Mozambique, London, Hurst, 1995, pp.272-6, 437-8, Luísa 
Fernanda Guerreira Martins, “A Expedição Militar Portuguesa ao Infusse em 1880: um 
exemplo de ocupação colonial nas terras islamizadas do Norte de Moçambique”, A África e a 
Instalação do Sistema Colonial (c.1885-c.1930): Actas da III Reunião Internacional de História de 
África, Lisboa, IICT, 2000, pp.483-498; Edward A. Alpers, “East Central Africa”, in Nehemia 
Levtzion e Randall L. Pouwels (coords.), The History of Islam in Africa, Athens: Ohio 
Unividesity Press, 2000, pp.306-9, 314-15; Valdemir Zamparoni, “Monhés, Baneanes, Chinas e 
Afro-maometanos: Colonialismo e racismo em Lourenço Marques, Moçambique, 1890-1940”, 
Lusotopie (2000): Lusophonies asiatiques, Asiatiques en lusophonies pp.191-223. A título de 
exemplo, a própria questão da “carta de Meca”, cuja circulação em Moçambique, como na 
África Oriental Alemã, em 1908, focou a ansiedade das autoridades coloniais na dinâmica 
especificamente religiosa do Islão (Alpers, op.cit., p.314), radicava afinal em questões de 
poder e interesses locais (Vide Mervyn Hiskett, The Course of Islam in Africa, Edinburgo, 
Edinburgh University Press, 1994, p.169). Sobre o Islão na Ilha de Moçambique, vide Álvaro 
Pinto de Carvalho, “Notas para a história das confrarias islâmicas na Ilha de Moçambique” 
[1972/73], ed. por Eduardo Medeiros, in Arquivo. Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique 
nº4 (Outubro 1998), pp.59-66; Manuel Lobato, “A Ilha de Moçambique antes de 1800” e 
António Rita-Ferreira, “Ilha de Moçambique: Cidade de um Oceano”, Oceanos nº25 (Janeiro-
Março 1996), pp.10-26 e 30-44; Alpers, op. cit.. 
24 Por exemplo com o estudo de Ernesto Jardim Vilhena, governador do Niassa, sobre “A 
Influência Islâmica na Costa Oriental de África” [capítulo do seu Companhia do Niassa, 
Relatorios e memoriassobre os Territorios, pelo governador, 1905] publicado no Boletim da Sociedade 
de Geographia de Lisboa, 24ª série (1906), nºs 5, 6 e 7 – vide particularmente os seus comentários 
sobre o aspecto religioso da acção islâmica (pp.179-80, 201-3), e as considerações finais sobre 
a política a adoptar (pp.217-18); na mesma linha: Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa 
Pimentel, “No districto de Moçambique (1902 a 1904) Memorias, estudos e considerações, 
pelo ex-governador...”, Portugal em África, vol. 12 nº136-144 (Abril-Dezembro 1905), pp.735 e 
737; ou os comentários sobre educação islâmica e os obstáculos que esta levanta à influência 
portuguesa no relatório sobre educação e missões também de 1905 [in Pedro Massano de 
 9 
nacionalização administrativa do território recuperado das Companhias 
concessionárias, é que o Islão começa a merecer atenção enquanto fenómeno 
religioso, cultural e ideológico por parte dos portugueses. Pode-se dizer que 
esta atenção se deve a um maior, mesmo que não necessariamente melhor, 
conhecimento do Islão, bem como à problematização do fenómeno de 
imigração indiana. 
Um lado da questão prende-se directamente com a polarização das 
relações entre africanos, afro-maometanos e indianos, devido à identificação 
cultural das elites nativistas com o discurso da civilização portuguesa. Assim 
se entende a denúncia da arabização, perpetrada pelas escolas maometanas, 
levantada por José Cantine no Brado Africano de Lourenço Marques, e a sua 
exigência de que era “de absoluta necessidade a exterminação da civilização 
árabe na colónia de Moçambique. Em Moçambique deve haver uma única 
civilização, uma única língua— a língua portuguesa, usos e costumes 
portugueses, enfim civilização portuguesa”25. Do lado da administração 
portuguesa, a mesma preocupação com o carácter simultaneamente 
desnacionalizador e destabilizador do ensino corânico-árabe aparece 
formulada em relatórios oficiais de 1937, na sequência em parte de 
movimentações relacionadas com o conflito Italo-Abissino 26. 
Na Guiné, as mesmas preocupações transparecem nas palavras do 
Director dos Serviços e Negócios Indígenas, José Ponces de Carvalho, quando 
em 1929 sublinha que o “revigoramento da acção muçulmana, constitui um 
 
Amorim, Distrito de Moçambique- Relatório do Governador (1906-1907), 1908] cit. por Alpers, op. 
cit., p.309 
25 J. Cantine, “A Indigência Maometana em Moçambique” [editorial de O Brado Africano], 
reproduzido in Boletim Geral das Colónias [abr. BGC], nº100 (Outubro 1933), p.202. Com 
respeito a esta questão das relações entre o discurso nativista e nacionalismo africano, e o 
Islão, no contexto português, creio que seria deveras interessante um melhor conhecimento 
da viagem empreendida, sob passaporte português, pelo muçulmano originário de 
Moçambique, Ramadhani Mashado Plantan, a Lisboa em 1924 (seria antes 1923, por ocasião 
do planeado III Congresso Pan-Africano?), referida por Mohamed Said em The Life and Times 
of Abdulwahid Sykes (1924-1968): The untold story of the muslim struggle against British colonialism 
in Tanganyika, London, Minerva, 1998, p.177. 
26 Relatórios de A.E. Pinto Correia (Nacala) e Aristides Alves de Faria (Niassa) citados por 
Edward Alpers in “Islam at the Service of Colonialism? Portuguese strategy during the 
 10 
inludível perigo para as nossas exigências nacionalizadoras”27. A solução 
proposta assenta no princípio da acção nacionalizadora das Missões 
Religiosas Católicas, e é exactamente a mesma que fora defendida por Álvaro 
da Fontoura quando, prefigurando Sousa Franklin, levantou o problema no 
contexto do 1º Congresso da União Nacional em 1934 28. Tal como em 
Moçambique, também na Guiné a questão islâmica se enredava nas divisões 
de interesses entre muçulmanos e nativistas. Desde 1908 que as campanhas 
militares portuguesas, anteriormente apoiadas pelos Grumetes, tinham 
passado a depender dos Fulas e Mandingas islamizados e essa mudança de 
alinhamentos não deixou de se fazer sentir nas relações entre a administração 
colonial e os órgãos representativos das elites nativistas, como ficou evidente 
no encerramento da Liga Guineense pelas autoridades portuguesas 29. De 
uma forma talvez simplista, podemos colocar em contraste, por um lado, os 
islamizados, estrategicamente aliados com a administração colonial, mas 
culturalmente renitentes à sua influência e, por outro lado, as elites mestiças, 
identificadas com a cultura portuguesa e com o discurso civilizacional 
europeu e colonialista, mas críticas dos abusos desse colonialismo. Esta visão 
contrastada sugere dois aspectos. 
O primeiro aspecto diz respeito ao discurso cultural e à imagem do Islão 
e do muçulmano. O episódio em que o conflito pela definição dessa imagem 
mais se fez sentir junto da opinião pública portuguesa, foi sem dúvida o da 
presença em Lisboa dum grupo de Fulas, no contexto da “Aldeia Indígena da 
Guiné” realizada por ocasião da Grande Exposição Industrial Portuguesa em 
1932 30. A proposta inicial, elaborada na metrópole pelo Agente Geral das 
 
armed liberation struggle in Mozambique”, Lusotopie (1999): Dynamiques religieuses en 
lusophonie contemporaine, pp.166-67. 
27 José Peixoto Ponces de Carvalho, “Da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas”, BGC, 
nº44 (Fevereiro 1929), pp.183-84. 
28 Álvaro da Fontoura, “Missões religiosas nacionais e estrangeiras e influências 
desnacionalizadoras nas colónias portuguesas” [Teses apresentadas à sub-Comissão das 
Colónias], BGC, nº112 (Outubro 1934), pp.123-24; vide também, “Conclusões aprovadas pela 
Sub-Comissão: Sobre Missões Religiosas, pp.206-7. 
29 James Cunningham, “The Colonial Period in Guiné”, Tarikh, vol.VI, nº4 (1980), pp.32-37. 
30 Sobre este episódio vide o meu “Guinean Princes and Portuguese Pilgrims: Race, Religion 
and Politics in the forging of a Portuguese Colonial Culture”, comunicação apresentada ao 
 11 
Colónias, falava apenas de músicos mandingas e tinha sido concebida 
estritamente em termos de divertimento e exotismo. Foi por sugestão dos 
Serviços e Negócios Indígenas, e, por isso, obedecendo a uma lógica de 
interesses locais determinada pela relação de poderes no contexto da colónia, 
que o grupo de artesãos e dançarinos, afinal mandingas e fulas, passou a 
incluir quatro importantes régulos do Bafatá e o filho de um destes. 
Deixando de lado algumas facetas que se prendem mais de perto com o 
exotismo dos “reis pretos” na recepção popular dos régulos em Lisboa, e 
durante a digressão pelo Alentejo e Algarve, um dos aspectos mais salientes 
da retórica e coreografia dos momentos oficiais, tanto nos encontros com o 
Presidente da República e com o Ministro das Colónias como com os 
Munícipes do Sul, foi o tópico da lealdade dos régulos a Portugal, largamente 
felicitada por aqueles, e reiterada por estes. O momento alto e de maior 
cerimónia foi o da condecoração dos régulos. Em reconhecimento da sua folha 
de serviço nas campanhas militares da colónia, os quatro régulos foram 
agraciados com a medalha de prata dos Bons Serviços do Ultramar. A ocasião 
serviu ao Agente Geral para ensaiar o que podemos descrever como uma 
tentativa – inédita à data no discurso colonial português – de utilização dum 
texto corânico com vista à mobilização das elites muçulmanas da colónia. 
Ambicionando talvez aquela mística que Francisco Valoura mais tarde viria a 
retratar num conto, através da personagem do velho Tuaré que “confundia 
nas suas orações, o “Governo branco” e Alah!” 31, Garcês de Lencastre ter-se-
lhes-ia dirigido com as seguintes palavras: 
Ides regressar à Guiné. Podeis dizer, agora, o quehaveis visto, ao povo e aos 
marabus, para que eles o ensinem a todos quantos recitam a oração da tarde, 
‘La ill’Allah Mohammed ressul Allah Elkhbar [sic] — recitai este versículo do 
Alcorão. A terra pertence a Deus, que a deu de herança aos povos escolhidos, 
 
Colóquio “New Perspectives on Cultural Studies in Portuguese”, Institute of Romance 
Studies, Londres 19 Maio 2000, a ser publicado. 
31 Francisco Valoura, “Sangue no Bosque”, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa [abrv. BCGP], 
vol.VI nº24 (Outubro 1951), p.955. 
 12 
exprime êsse versículo; lembrai-vos, pois, de que, entre êsses, estão os 
portugueses. 32
Ora, é precisamente em reacção a esta política, bem como à fama e 
popularidade atingida pelos régulos junto dos portugueses da metrópole e, 
portanto, no contexto do conflito pela definição da imagem do Islão, que deve 
ser entendida a intervenção de Fausto Duarte através do texto de introdução 
ao seu Auá, romance premiado no Concurso de Literatura Colonial de 1934 e 
apadrinhado por Aquilino Ribeiro. Extremando a diferença abismal entre o 
fula islamizado e o negro africano, Duarte assevera que o islamismo tornou o 
fula “incapaz de se submeter inteiramente à civilização do ocidente ou ainda 
de reconhecer nela essa superioridade aceite pelo negro autóctone, melhor 
cooperador da nossa colonização”33. Situando-se numa linha de continuidade 
com um certo discurso sobre o Islão, Duarte introduz um outro elemento que 
terá grandes implicações: o da re-descoberta dos povos animistas como 
representantes da autenticidade africana. 
O segundo aspecto, determinado pelas relações de poder entre 
islamizados, nativistas e administração colonial, prende-se com a evolução de 
dois temas intimamente relacionados: por um lado, o discurso de valor 
militar, heroísmo e lealdade dos islamizados, cuja projecção pública ficou 
consagrada nas Exposições coloniais, e através do qual se procurou enraizar a 
consciência de serem “soldados de Portugal”34; e, por outro lado, o debate em 
torno dos régulos, no qual se joga a negociação de poder efectivo da 
administração portuguesa em regime indirecto. Não cabe aqui abordar a 
importância e desenvolvimento da atitude oficial perante estas questões no 
período em causa, que podem ser cotejadas a partir das referências nos 
 
32 Diário de Notícias, 8.11.1932, p.1; O Século, 8.11.32, p.8; Diário da Manhã, 8.11.32, p.3; Diário de 
Lisboa, 7.11.32, p.4. 
33 Fausto Duarte, “Introdução”, Auá. Novela Negra, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1934, 
pp.xix-xxi. 
34 Vide por exemplo, Hugo Rocha, “Uma Figura de Portugal Ultramarino: Mamadu Sissé, 
velho régulo da Guiné e tenente de segunda linha”, O Mundo Português, Revista de Cultura e 
Propaganda, Arte e Literatura Coloniais, vol. III, nº28 (Abril 1936), pp.147-152; João de Almeida, 
“A cooperação dos nativos na expansão e na defesa do Império”, in Primeiro Congresso Militar 
 13 
“relatórios” do Governador Carvalho Viegas 35. Pacificadas as colónias, fica 
gradualmente redefinida a memória das conquistas e pacificação em termos 
da narrativa branqueada épico-heróica e nacional-cristã da Exposição 
Histórica da Ocupação de 1937, que predominará essencialmente até à nova 
conjuntura de guerra dos anos 60. 
À luz do exercício de contextualização esboçado até aqui, mantendo 
embora como marcos cronológicos o pós-II Grande Guerra e o rescaldo de 
Bandung, podemos agora sugerir, em lugar dos textos de Eduardo Dias e de 
Sousa Franklin, duas outras intervenções que polarizam duas fases do 
discurso português sobre o Islão colonial no período até à redefinição dos 
anos 60. 
À conferência proferida por Manoel Maria Sarmento Rodrigues na 
Escola Superior Colonial, em Lisboa, a 20 de Novembro de 1947, cabe a 
atenção que merece a primeira comunicação inteiramente dedicada não 
apenas ao Islão, mas especificamente, como o título sugere, aos “Maometanos 
no Futuro da Guiné Portuguesa”36. Como Governador da colónia e 
responsável pela fundação dos seus estudos etnográficos, Sarmento 
Rodrigues tinha sobre a questão um profundo conhecimento e uma política 
apurada. Mas abordar a contribuição de Sarmento Rodrigues é, antes de mais, 
evocar um contexto: o da profunda transformação encetada pela política de 
desenvolvimento económico e social que o próprio simboliza 37, bem como 
todo o enquadramento institucional da política cultural por ele criada através 
 
Colonial (Julho 1934). Relato dos Trabalhos Realizados, Porto, I Exposição Colonial Portuguesa, 
1934, pp.35-56. 
35 Luís Augusto Carvalho Viegas, Guiné Portuguesa, 3 vols, Lisboa, 1936, 1939, 1941, em 
torno, por exemplo, da atribuição da Cruz de Guerra a Baró Baldé [vide a transcrição do 
artigo de Ferreira Martins do Diário de Notícias de 19.1.1938, in vol. II, pp.175-76], e das 
questões de sucessão nos regulados. 
36 Manuel Maria Sarmento Rodrigues, “Os Maometanos no futuro da Guiné Portuguesa”, 
BCGP, vol. III, (1948), pp.219-231; reprod. in No Governo da Guiné: Discursos e Afirmações, 
Lisboa, AGC, 1949, pp.347-63; e 2ª ed. (1952), pp. 363-81. 
37 Vide Carlos Cardoso, “A Ideologia e a Prática da Colonização Portuguesa na Guiné e o seu 
impacto na estrutura social, 1926-1973”, Soronda. Revista de Estudos Guineenses, nº14 (Julho 
1992), pp.39, 50. 
 14 
do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do seu Boletim e Monografias, 
biblioteca, arquivo, museu e missões científicas 38. 
A nova conjuntura de desenvolvimento, alicerçada sobre uma visão 
político-ideológica e de governação colonial acima do comum 39, conduziu a 
uma intensa intervenção administrativa no território e a uma 
instrumentalização da ciência etnográfica aplicada. Com a elaboração de uma 
grelha de conhecimentos classificatória étnico-religiosa 40, e a erradicação de 
autoridades medianeiras anteriormente aceites como “mal necessário”, nascia 
uma verdadeira política face ao islamismo na colónia. 
Uma face dessa política, que Avelino Teixeira da Mota destaca, refere-se 
especificamente aos regulados 41. Outra é a que, generalizando a partir da 
insistência de Sarmento Rodrigues sobre o “aportuguesamento de nomes”42 
na colónia, podemos designar de “política de aportuguesamento”. Creio que é 
com estes termos de referência que se deverá entender aquela que, tanto 
quanto me foi possível estabelecer, foi a primeira ocorrência do termo 
“muçulmanos portugueses”43. 
 
38 Vide o depoimento de Avelino Teixeira da Mota, in Sarmento Rodrigues, in memorian, 
Lisboa, Academia de Marinha, 1979, pp.19-28. 
39 Vide as várias contribuições, e particularmente as de Adriano Moreira e Joaquim Veríssimo 
Serrão, in Almirante Sarmento Rodrigues, 1889-1979: Testemunhos e inéditos, Lisboa, Academia 
da Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1999. 
40 Desde logo com a publicação por A. Teixeira da Mota do Inquérito Etnográfico organizado 
pelo governo da colónia no ano de 1946, Bissau, Publicação Comemorativa do V Centenário da 
Descoberta da Guiné, 1947; e do Censo da População de 1950, vol. I População Civilizada, Lisboa, 
JIU-CEPS, 1959; passando pelas monografias de António Carreira sobre os Mandingas da 
Guiné Portuguesa (1947), de José Mendes Moreira sobre os Fulas do Gabú (1948), e de Jorge 
Vellez Caroço sobre Monjur o Gabú e a sua História (1948); o ensaio de Artur Augusto da Silva 
sobre os Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas (1969); e os artigos etnográficos, sobre os 
ritos, tradições, vida religiosa e costumes jurídicos de fulas e mandingas, de Eduíno de Brito 
(1955, 56, 57,66, 67); da história dos fulas (a partir da análise do recenseamento geral de 
1960), e da expansão islâmica na Guiné, de António Carreira (1960, 66) no BCGP, etc. Cf. 
Clara Afonso de Azevedo Carvalho, Ritos de Poder e a Recriação da Tradição. Os Régulos 
manjacos da Guiné-Bissau, Dissertação de Doutoramento em Antropologia Social, Lisboa, 
ISCTE, 1998, pp.59-60, e, para um enquadramento mais geral, Rui Pereira, “Antropologia 
aplicada na política colonial portuguesa do estado Novo”, Revista Internacional de Estudos 
Africanos, nº4-5 (Janeiro-Dezembro 1986), pp.191-235. 
41 A. Teixeira da Mota, Guiné Portuguesa, vol.I, Lisboa, AGU, 1954, p.264. 
42 Sarmento Rodrigues, No Goveno da Guiné, 2ª ed., Lisboa, AGU, 1952, pp.120; 293, 
43 Sarmento Rodrigues, op. cit., 1949 [1947], p.362. A segunda ocorrência, se não estou em 
erro, deve-se a António da Silva Rego (que em 1955 dela já se aproximara numa referência 
 15 
No texto de Sarmento Rodrigues, como no de Eduardo Dias que o 
antecede, e no de Sousa Franklin que o repete, encontramos a mesma 
urgência face ao expansionismo do Islão e a mesma referência à ameaça do 
Crescente. Contudo, trata-se agora de uma ameaça reduzida ao facto cultural, 
o que revela o muçulmano como “implacavelmente estranho aos nossos 
costumes, à nossa vida, à coesão nacional”. A intervenção de Sarmento 
Rodrigues representa um momento de inflexão do discurso, marcado ainda e, 
principalmente, por uma grande ambiguidade. O Governador da Colónia não 
deixa de recordar os Mamadu Sissés, Lamine Injais e Abdules, que caracteriza 
de “bons, valentes e leais portugueses”, explicitando enfaticamente uma linha 
de acção que defende que: 
é tempo de chamar à nossa comunhão, com todas as forças da nossa actuação 
persuasiva, aqueles que dela foram afastados: os muçulmanos portugueses. 
Para que aqueles que tão devotados servidores da Nação têm sido, sejam 
cada vez mais portugueses pelo espírito e pelo coração! 44
Porém, conclui que é nos animistas, mais abertos à assimilação e à 
cristianização e, portanto, a uma “mentalidade portuguesa”, que reside o 
futuro da Guiné. Para que a expressão que cunhou viesse a exprimir 
verdadeiramente o reconhecimento de uma identidade cultural portuguesa e 
islâmica, certas condições teriam ainda que ser criadas nos anos 60. 
No discurso geopolítico do regime, o momento de Bandung ficou 
definido por Adriano Moreira. Ao tomarmos agora como marco as curtas 
referências ao Islamismo apresentadas nos seus textos-chave de 1956 – “As 
 
aos “valentes portugueses de Goa, cristãos, judeus e muçulmanos”, “As Missões Católicas 
perante os problemas do Anticolonialismo e do Nacionalismo” [1955], in Temas 
Sociomissionológicos e Históricos, Lisboa; JIU-CEPS, 1962, p.2), quando em 1956, mais uma vez 
por referência a Goa afirma que “os muçulmanos portugueses, como aliás os hindus, dão 
hoje salutar exemplo de solidariedade adentro da grande família lusitana”, Lições de 
Missionologia [1956], Lisboa, JIU-CEPS, 1961, p.414. A aplicação do termo por Silva Rego, 
embora na mesma linha de Sarmento Rodrigues, parte duma radicalização ideológica da 
“identidade perfeita entre a metrópole e o seu ultramar” que o próprio descreve da seguinte 
forma: “Se Angola é Portugal e se Moçambique é Portugal, segue-se que tudo quanto lá existe 
é português. Portugueses os habitantes e os animais, os rios, as serras, os vales, os montes. 
Português o ar que se respira [etc...] Nada, absolutamente nada, no ultramar nos deve parecer 
estrangeiro, exótico, estranho”, “Adaptação Missionária e Assimilação Colonizadora no 
Ultramar Português” [1958], in Rego, op.cit., 1962, p.37. 
44 Rodrigues, op. cit., 1949, p.362. 
 16 
Elites das Províncias Portuguesas de Indigenato” e “Colonialismo e 
Anticolonialismo”45 – mais uma vez não é tanto o caso individual em si, que 
estamos referindo, mas a perspectiva estruturada pela institucionalização de 
um discurso que tem a figura de Adriano Moreira como símbolo. No caso em 
questão, essa estrutura é constituída pelo Centro de Estudos Políticos e 
Sociais, a que Moreira presidiu desde a sua criação, em Fevereiro de 1956, e as 
suas séries de colóquios, estudos, e outras publicações46. O impacto no 
discurso sobre o Islão é imediato. As duas conferências do arabista José 
Domingos Garcia Domingues proferidas, a convite de Mendes Correia, na 
Escola Superior Colonial, em 1953 e 1954, tinha sido tudo quanto 
anteriormente se tentara em matéria de aplicação de conhecimentos 
especializados sobre o Islão à interpretação da situação colonial e da 
geopolítica do Islão. O que a leitura desses textos, acima de tudo, confirma é a 
pouca informação de que à data, mesmo um especialista, se podia valer em 
Portugal para o conhecimento concreto do islamismo nas colónias. Já a nível 
mais geral, as considerações e conclusões tecidas são as mesmas sempre 
repetidas: o espectro do pan-islamismo, a possível activação duma quinta 
coluna islâmica em território português, a necessidade de um levantamento 
exaustivo das populações islamizadas, o desenvolvimento de estudos 
islamológicos aplicados; e (esta sim, proposta menos vezes ouvida) a adopção 
de uma política islâmica portuguesa no sentido de captação das populações 47. 
O que distingue as intervenções de Adriano Moreira logo em 56 é, por 
um lado, a utilização do trabalho, entretanto publicado, de Teixeira da Mota 
sobre a Guiné Portuguesa, verdadeiro produto exemplar da escola de 
 
45 Adriano Moreira, “As Élites das Províncias Portuguesas de Indigenato (Guiné, Angola, 
Moçambique)”, [Garcia de Orta 6: 2 (1956)], in Ensaios, 3ª ed., Lisboa, JIU-CEPS, 1963, pp. 55, 
58-9; e “O Movimento Islâmico”, in Política Ultramarina, Lisboa, JIU-CEPS, 1956, pp.233-38. 
46 Sobre Adriano Moreira e o Centro de Estudos Políticos e Sociais, vide Óscar Soares Barata, 
“Adriano Moreira: Quarenta anos de docência e acção política”, in Estudos em Homenagem ao 
Professor Adriano Moreira, Lisboa, ISCSP-UTL, 1995, vol. I, pp.15-120. 
47 José D. Garcia Domingues, “Influência Árabo-Islâmica no Ultramar” [1953], Estudos 
Ultramarinos, vol. V (1955), fasc. 1, pp.259-80, e “Os objectivos do “Dar Al Islam” e os seus 
reflexos na África e no Oriente” [1954], Estudos Ultramarinos, vol. VI (1956), fascs.1-3, pp.173-
205. 
 17 
Sarmento Rodrigues e súmula da sua visão sobre o Islão 48. E, por outro lado, 
a inserção desse estudo relativo a uma realidade local, de base empirista, e 
historicamente documentada, num quadro mais alargado de análise 
geopolítica centrado numa visão teoricamente bem fundamentada, e 
ideologicamente comprometida com os valores do regime: ocidentalista, anti-
colonialista, lusotropicalista. É aqui que tem origem a visão “dos muçulmanos 
[considerados] como a ameaça absoluta” e, “sobretudo na Guiné e em 
Moçambique — como o inimigo absoluto”, de que fala com propriedade 
Alfredo Margarido 49. Na linha de análise desenvolvida por Moreira, mas sem 
que se aproxime sequer do mestre na capacidade de enquadramento e 
interpretação, ficam sobre o Islão as várias obras de José Júlio Gonçalves, de 
que O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português representa a versão mais 
completa e mais divulgada 50. Centrado numa análise sociologicamente 
reducionista do fenómeno religioso islâmico, e do chamado “Islão Negro” em 
particular, e em resposta ao “alarmante” expansionismo islâmico no Norte de 
Moçambique e na Guiné, Gonçalves advoga a necessidade de “neutralizar 
essa islamização deseuropeizante”. Propõe, para isso, a adopção tanto de 
uma estratégia activa de fomento de divisões entre as seitas muçulmanas, 
como a manutenção de uma atitude de passiva, mas atenta vigilância, 
relativamente a fenómenos de natureza política nasescolas corânicas. Para 
pôr em prática esta política, o autor sublinha a necessidade de criar estudos 
especializados sobre o Islão nas colónias portuguesas, de incentivar a acção 
 
48 A. Teixeira da Mota, Guiné Portuguesa, 2 vols., Lisboa, AGU, 1954. Moreira, op.cit., 1956, 
p.237 n.3 e 1963, p.58. 
49 Alfredo Margarido, “O Islamismo face ao Ocidente e mais Particularmente do Médio-
Oriente”, Finisterra, nº6, (Outono 1990), p.40. 
50 José Júlio Gonçalves, O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português (Estudos de Ciências 
Políticas e Sociais, 10), (Prémio Abílio Lopes do Rego da Academia das Ciências de Lisboa, 
1958), Lisboa, JIU-CEPS, 1958; 2ª ed., 1962; “O Islamismo na Guiné Portuguesa”, BCGP vol. 
XIII, nº52 (1958), pp.397-470; “As “elites” no Ultramar Português”, Colóquios de Política 
Ultramarina Internacionalmente Relevante, Lisboa, JIU-CEPS, 1958, pp. 87-110; “Projecção do 
islamismo na África ao Sul do Sahara”, Revista de Artilharia, 2ª série vol.56 nº411-412 
(Novembro-Dezembro 1959), pp.217-241; O Islamismo através dos Números, Lisboa, AGU, 
1960; O Islamismo na Guiné Portuguesa (Ensaio Sociomissionológico), Lisboa, 1961; Síntese 
Religiosa da África, Lisboa, 1961; “Estrutura Religiosa da Guiné Portuguesa”, in Política de 
Informação (Ensaios), (Estudos de Ciências Políticas e Sociais, 61), Lisboa, JIU-CEPS, 1963, 
pp.117-167. 
 18 
missionária católica, de combater a difusão do árabe e de acelerar o 
“aportuguesamento dos guineanos” e “a integração cultural, no Mundo 
Português, dos islamizados de Moçambique”. 
O passo mais importante na concretização de toda a lógica do Centro de 
Estudos Políticos e Sociais é finalmente dado com a publicação da portaria de 
Fevereiro de 1957, pela qual foi criada a Missão de Estudos das Minorias 
Étnicas do Ultramar Português. Instrumentalização de uma antropologia e 
missionologia aplicada, os relatórios das missões de estudo representam 
simultaneamente o exacerbar da consciencialização do “problema” islâmico, 
saído do pós-Guerra e de Bandung, e a superação dos seus termos de análise 
51. 
De certa forma, o conceito de Islão Negro, que nos serviu de ponto de 
partida do percurso que temos vindo a traçar, permite igualmente sintetizar 
(com base nos textos de Teixeira da Mota e José Júlio Gonçalves) o ponto da 
situação no momento de redefinição a que chegámos. O fenómeno que deteve 
a atenção dos comentadores e que enforma o problema a que procuraram dar 
explicação foi o do inegável expansionismo do Islão no continente africano. 
Um primeiro aspecto da resposta, que desde logo limitou e viciou os termos 
de relação, foi a redefinição do problema em causa como fenómeno de 
natureza étnica e social e não, propriamente, religioso. O que os neologismos 
“islamismo negro”, “islão africanizado” e “neo-islamismo” implicam não é 
apenas a diferenciação destes, por contraste com o “islão puro” da tradição 
textual, mas o seu rebaixamento entendido como abastardamento sincrético. 
O próprio sucesso expansionista esconde, como realidade mais profunda, a 
persistência do substrato animista e a superficialidade da islamização. Daí a 
insistência na utilização do termo “islamizados”, que caracteriza toda a 
 
51 Sobre os relatórios e o seu tratamento do Islão ver Donato Gallo, Antropologia e Colonialismo: 
O saber português, Lisboa, ER-Heptágno, 1988, pp.62-81; sobre as missões de Jorge Dias no 
Norte de Moçambique em 1956 e 58 ver Ana Barradas, “O pensamento colonial de Jorge 
Dias”, História n.s. nº30 (Abril 1997), pp. 39-40, e de forma mais equilibrada, Rui M. Pereira 
(1986), op.cit., e “Introdução à reedição de 1998”, in Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, I: 
Aspectos Históricos e Económicos, Lisboa, CNCDP-IICT, 1998, p.xxxix, e passim 
 19 
literatura sobre as populações muçulmanas das colónias 52. Um aspecto 
complementar, é o da caracterização das “técnicas caquéticas” dos agentes da 
islamização que, por um lado, reduz a conversão a motivos de ascenção social 
—sintetizado na noção do “prestígio do balandrau”53 — e que, por outro, 
passando pela denúncia da “cuidadosa exploração das fraquezas psicológicas 
dos negros”54, aponta para a sua defesa pelas autoridades coloniais. Por 
último, a ênfase sobre a explicação do sucesso expansionista do Islão reverte 
sobre as próprias condições propícias à islamização criadas pela pacificação e 
integração territorial das colónias, e sobre os erros da política portuguesa de 
administração indirecta, apoiada nos auxiliares muçulmanos 55, que urgia 
corrigir. 
Mas no fundo, a questão do “problema” colonial islâmico reside na 
percepção do islamismo como civilização, cultura, e bandeira 56, pelo que a 
conversão religiosa se traduz simultaneamente em barreira cultural: 
o indígena tem perfeitamente a noção de estar a ser influenciado e absorvido 
por duas religiões e duas culturas distintas, a religião cristã e a cultura 
portuguesa, e a religião maometana e a cultura árabe. O progresso da 
islamização na Guiné [e por analogia, podemos também dizer, em 
Moçambique] não constitui um problema religioso, porquanto pode vir a 
constituir um obstáculo crescente à maior integração do indígena na 
comunidade nacional. 57
Em face deste discurso, o reconhecimento da identidade do 
“muçulmano português” requer um processo que passa pela dupla aceitação: 
primeiro, do Islão e, particularmente, do Islão na África, como religião, e, 
segundo, do muçulmano como culturalmente português. Muito 
esquematicamente, podemos resumir esse processo por referência aos 
 
52 A título de exemplo, Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p.251; J. Vaz de Carvalho, “O 
Islamismo Negro” [Revista das Missões Ano IX nº2 (Março-abril 1956, reproduzido in], Revista 
do Gabinete de Estudos Ultramarinos nº11-12 (Janeiro-Abril 1956), p. 140; José Júlio Gonçalves, 
op. cit., BCGP (1961), p.450; Frederico José Peirone, A Tribu Ajua do Alto Niassa (Moçambique) e 
alguns aspectos da sua problemática neo-islâmica, Lisboa, JIU, 1967, pp. 183-84, 193; F. Rogado 
Quintino, “Entre Gente Temente ao Deus-Irã”, Ultramar nº32 (1968), p. 99. 
53 Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p. 256; Gonçalves, op. cit., 1961, pp. 25-27. 
54 Gonçalves, op. cit., 1961, p.37-41. 
55 Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p.256; Gonçalves, op. cit., 1961, p.43, 1962, pp.112-14. 
56 Expressão de Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p. 257. 
 20 
seguintes factores: a abolição do Estatuto de Indigenato; o novo contexto 
criado pela guerra colonial; a abertura teológica para com o Islão saída do 
Concílio Vaticano II; a adopção oficial do Luso-Tropicalismo; e a recuperação 
do passado islâmico num discurso de património cultural português. É no 
contexto estabelecido pelo entrecruzamento destes processos que se situa a 
formação da Comunidade Islâmica de Lisboa. 
A abolição do Estatuto de Indigenato, decretada por Adriano Moreira 
quando foi chamado por Salazar à chefia do Ministério do Ultramar em 1961 
58, obedeceu inquestionavelmente a pressões de ordem internacional, que se 
vinham fazendo sentir com cada vez maior acuidade sobre a questão colonial 
portuguesa e, em especial, às resoluções críticas aprovadas na Assembleia 
Geral das Nações Unidas de 14 e 15 de Dezembro de 1960 59. Mas o que essa 
conjuntura internacional favoreceu, e que o golpe de Botelho Moniz, na 
sequência do primeiro levantamento em Angola, provocou, foi de facto a 
institucionalização de uma de entre as várias correntes que se vinham 
esboçando em tensão no interior do regime: a de uma certa re-conversão 
actualizadora do discurso colonial português representada, por exemplo, por 
Sarmento Rodrigues, D. Sebastião Soares de Resende, e pelo próprio Ministro. 
Com o novo decreto as populações coloniais adquiriam o estatuto legal de 
cidadania. 
A revisão constitucionalde 1951, integrando o império na reformulação 
semântica da nação pluricontinental, nacionalizara — ou, mais literalmente, 
“portugalizara”— as colónias e as suas populações. De todo desprovida de 
consequências, a nova designação não deixou porém de pôr em circulação, e 
 
57 Ibid. 
58 Revogação do Decreto-Lei Nº39666 que promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das 
Províncias da Guiné, Angola e Moçambique— Decreto-Lei nº43893, de 6 de Setembro de 
1961, Lisboa, AGU, 1961. 
59 Cf. José Calvet de Magalhães, Portugal e as Nações Unidas. A Questão Colonial (1955-1974), 
Cadernos do Lumiar 6, Lisboa, IEEI, 1996. A existência da instituição do indigenato fora 
explicitamente citada como prova da diferença de estatuto jurídico das populações das 
colónias e da metrópole, e portanto em contradição da posição oficial portuguesa. Vide 
Fernando Martins, “A Política Externa do Estado Novo, O Ultramar e a ONU, Uma doutrina 
histórico-jurídica (1955-1968)”, Penélope, nº18 (1997), p. 197. 
 21 
de tornar corrente de ora avante, a adjectivização de portugueses nas 
referências aos “indígenas”, entre os quais se compreendiam os muçulmanos 
60. A abolição do Estatuto de Indigenato, dez anos mais tarde, tão pouco 
concedeu cidadania política às populações das colónias. Com a concessão de 
cidadania cívica, porém, o que ficou abolido, juntamente com os “requisitos 
para a aquisição da cidadania” estipulados pelo Estatuto 61, foi o príncipio de 
assimilação cultural identitária na cultura portuguesa — concepção esta que, 
desde a legislação de João Belo, de 1926, fazia confluir na noção de civilização, 
a língua e padrão de cultura portuguesas e a religião católica. Na 
desarticulação desta síntese o Decreto de 1961 vibrara o primeiro golpe. Em 
menos de um ano iria começar a reunir-se no Vaticano o movimento que 
desferiria o segundo. 
Seria acima de tudo a lógica da solução administrativa dos problemas 
suscitados pela transformação social das populações das colónias 62 e a nova 
dinâmica do contexto de Guerra, que ditaria a abertura pragmática para com 
os muçulmanos. Contudo, a condição porventura fundamental para a 
transformação do discurso português sobre o Islão foi a do reconhecimento da 
dignidade religiosa do muçulmano, e essa passou pela abertura doutrinal 
criada pelas resoluções ecuménicas do Concílio do Vaticano II. 
No período em causa, a visão teológica do Islão que enforma o discurso 
colonial português encontra-se paradigmaticamente representada no 
tratamento missionológico do islamismo por António da Silva Rego e 
Frederico José Peirone 63. Para Silva Rego no seu O Oriente e o Ocidente de 1939 
 
60 Vide a referência a Silva Rego citada na n.43. 
61 Vide Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. 
Decreto-Lei Nº 39:666, Lisboa, AGU, 1954, p.21. 
62 Para Michel Cahen o ponto de viragem situa-se precisamente com a formação da Comissão 
de Estudo dos Problemas de Ordem Social no Meio Indígena em 1959; Vide Michel Cahen, 
LӃtat Nouveau et la Diversification Religieuse au Mozambique, Lisboa, Centro de Estudos sobre 
África e do Desenvolvimento do ISEG-UTL (Documentos de Trabalho nº49), 1998, p. 25. 
63 A afirmação da representatividade destas posições não significa que outras atitudes, mais 
neutras, ou mesmo respeitosas, não antagónicas ou até de incipiente abertura e diálogo para 
com o Islão, não se fizessem manifestar em Portugal. Mas essas outras atitudes, poucas que 
foram, marcam posições assumidamente individualistas, excêntricas ou heterodoxas: 
Agostinho da Silva, por exemplo, na visão mais positiva de um Maomé essencialmente 
 22 
64, “o islamismo” —nos termos expressivos das frases que estruturam a sua 
abordagem— é “uma religião simplista por excelência, favorecendo os 
instintos animais do homem”, e propagada “à ponta da espada e do punhal 
homicidas”. Na sua visão, o Islão é mesmo a mais fácil das religiões. 
Considerando a “vida desregrada” e “moral laxa” de Maomé, “a vida 
maometana é um contínuo divórcio da moralidade”. Seguindo esta lógica, e 
uma vez que “a lei moral é uma entidade que não existe entre eles”, o Islão 
revela-se portanto “moral e filosoficamente um adversário temeroso da 
civilização europeia”65. Em síntese de síntese: “o Islamismo não resiste, nem 
pode resistir, a duas horas de pensamento sério”66. 
Igual concisão pode-se encontrar na refutação do Islão por D. Sebastião 
Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira, na sua Carta Pastoral de 1947 67. 
Plagiato, para mais adulterado, das fontes judaicas e cristãs, o “Islamismo não 
é, nem pode ser, uma verdadeira religião”68. “Maomé imoral e impuro”, 
“precursor dos provocadores da psicose da guerra, não podia ser mensageiro 
 
reformador apresentada no seu O Islamismo (Iniciação: Cadernos de Informação Cultural), 
Lisboa, edição do autor, 1942; e pelo próprio facto de divulgar alguns trechos do Alcorão, in 
Maomet [sic], Suratas de Meca (Col. Antologia: Introdução aos Grandes Autores), Lisboa, 
1943; o jornalista oficioso do regime, Francisco de Paula Dutra Faria num parenteses do seu 
relato da viagem do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel II, em Moçambique, vide “Com 
os Muçulmanos”, in Navegação de Paz e de Glória, Lisboa, AGC, 1945, pp. 105-119; Agostinho 
de Carvalho nos capítulos descritivos dos ritos e doutrina islâmica no seu Povos do Oriente: 
Parses e Muçulmanos na Índia. Seus Usos e Costumes, Coimbra, 1950, pp. 148-256; António de 
Cértima, com a tentativa de criar uma plataforma de diálogo mariânica, primeiro esboçada 
no artigo “O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica”, Diário Popular, 19.2.1952, pp. 1,8, cuja 
versão em francês publicada na revista Le Monde Arabe, do Cairo, mereceu o encómio de Louis 
Massignon, sendo mais tarde retomado como ensaio em O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica, 
Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1967; e, especialmente, Bento de Castro (pseudónimo de 
Constantino de Castro Loupo), com a sua tradução do Alcorão publicada em Lourenço Marques, 
ainda antes da abertura doutrinal proclamada por Paulo VI, em 1964; José Pedro Machado, cuja 
tradução (com excepção da primeira sura publicada no Paquistão em 1945 e 46), embora também 
já finalizada em 1964, só seria publicada em Lisboa em 1974. 
64 António da Silva Rego, “O Islamismo”, cap. III de O Oriente e o Ocidente, Ensaios, Lisboa, 
1939, pp. 42-59. Com dez anos de carreira missionária na Malásia Silva Rego trouxe à sua 
análise do Islão uma experiência directa de confronto com o mundo islâmico algo singular no 
panorama português. 
65 Rego, op. cit., 1939, pp. 42-43, 47, 57, 51. 
66 Id., p. 51. 
67 D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira, Falsos e Verdadeiros Caminhos da Vida, 
[Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1948], reproduzido como cap. IV in 
Profeta em Moçambique, Lisboa, Difel, s.d., “O Islamisno”, pp. 158-164. 
68 Resende, op. cit., p. 162. 
 23 
de Deus”69. A pastoral de D. Sebastião é toda movida pela urgência com que 
pressente para os seus diocesanos “a iminência do perigo de virem a caír nas 
malhas ardilosas dos sequazes de Mafoma”. Mas, ao perigo teológico inerente 
ao facto de “o islamismo deforma[r] o homem”, soma-se o perigo que ele 
representa para a nação: “Indígenas caídos no islamismo são quase perdidos 
para a Igreja, e oxalá o não sejam também para Portugal. Quem obedece a 
movimentos estranhos não é da casa” 70. 
Esta leitura do Islão, e o posicionamento perante os muçulmanos das 
colónias a ela inerente, representa uma visão institucionalizada a partir dos 
cursos de missionologiaque Silva Rego leccionou, desde a fundação dessa 
cadeira, na Escola Superior Colonial, em 1946. A sua projecção mais ampla 
ficou assegurada com a publicação das suas Lições de Missionologia 
desenvolvidas no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, numa iniciativa 
de Adriano Moreira. No texto da edição de 1962, é ainda substancialmente a 
mesma síntese do Islão apresentada pelo autor, em 1939, que se pode ler 71. 
Porém, passando em revista o tratamento do Islão nalguns textos de 
missionários, há que mencionar ainda os textos de Frederico José Peirone e de 
Albano Mendes Pedro 72. A importância deste último deve-se ao facto de, em 
 
69 Ibid., pp. 162, 263. 
70 Ibid., p.164. Por uma daquelas ironias de que os anais da história estão cheios, seria D. 
Sebastião que viria a ser apodado de traidor chegando mesmo alguns “elementos a soldo da 
PIDE”, aproveitando a ausência do Bispo em Roma por ocasião das jornadas conciliares do 
Vaticano II, a pintar as paredes da sua casa com o slogan “Morte ao Traidor e aos Vendidos”, 
Vide Gulamo Tajú, “D.Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira: Notas para uma 
cronologia”, Arquivo. Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, nº6 (Outubro 1989), p. 165. 
71 A. da Silva Rego, “o islamismo”, in Lições de Missionologia [1956], Lisboa: JIU-CEPS, 1961 
[1962], pp.399-414; vide também “O Catolicismo Perante Outras Religiões: 1. Perante o 
Islamismo”, in Alguns Problemas Sociológico-Missionários da África Negra, (Estudos de Ciências 
Políticas e Sociais 32), Lisboa: JIU-CEPS, 1960, pp.109-115. Sobre a carreira do autor vide 
Roberto Gulbenkian, Elogio do Prof. Doutor António da Silva Rego, Lisboa: Academia 
Portuguesa da História, 1987, pp.13-64. 
72 O caso do Padre Albino da Silva Pereira, cuja produção literária e doutrinária era assinada 
sob o nome de Lobiano do Rego, é demasiado complexo para tratar aqui. Cabe apenas referir 
que tratando o Islão sob uma perspectiva luso-tropicalista sui generis, a sua atitude redundou, 
na verdade, num feroz ataque ao Islão empreendido ao longo de várias obras, assim 
repudiando a via assumida pela Igreja no Concílio Vaticano II. Cf. Pátria Morena. À vista da 
maior epopeia Lusíada, Macieira de Cambra, LAIN, 1959, pp.77-83, 211-221; Apocalipse de 
Sagres, s.l., LAIN, s.d.; pp.290-292, 411-423; A ‘Declaração sobre a Liberdade Religiosa’ no tempo e 
no espaço da Nação Portuguesa. Comentário à primeira parte. Apêndice: Maomé na Estrada de 
 24 
paralelo com Silva Rego, Mendes Pedro ter contribuido com um dos dois 
relatórios de campo sobre o islamismo em Moçambique desenvolvidos no 
âmbito da Missão para o Estudo da Missionologia Africana 73. Em artigo 
publicado na revista da Academia Missionária de S. João de Brito, um ano 
antes do trabalho de prospecção no terreno, e noutro artigo posterior, baseado 
na lição proferida num curso de deontologia ultramarina no Instituto 
Superior de Estudos Ultramarinos, em que os elementos colhidos são usados 
para reflectir sobre a atitude a adoptar perante o Islamismo, idêntica posição é 
defendida sob dois aspectos complementares. O Islão é “escuridão e erro”; a 
sua doutrina e moral são inferiores; os muçulmanos de Moçambique são 
incultos e ignorantes da sua religião que só superficialmente praticam 74. Aos 
missionários compete, através do exemplo acima de tudo, o dever de 
cristianização; às autoridades compete pôr em prática uma política concertada 
de ensino do português 75. Da identidade e convergência de interesses de uns 
e outros dependeria o futuro de Moçambique. 
Também o missionário da Consulata, Frederico José Peirone 
desenvolveu trabalho de campo em Moçambique, ainda que de natureza mais 
etnográfica, mas concebido no âmbito de ciência aplicada da Missão para o 
Estudo da Missionologia Africana chefiada, uma vez mais, por Silva Rego. E 
também ele publicou artigos que atravessam um leque de revistas 
missionárias, missionológicas e de ciência colonial académica. Em contraste 
com Mendes Pedro, Peirone representa já uma diferença radical na atitude de 
relacionamento com o Islão que se exprime desde logo, por exemplo, na 
insistência sobre uma preparação intensiva do missionário com conhecimento 
 
Damasco, Braga, Livraria Pax, 1966, pp.41-49 e 93-122; Abominação Devastadora, Porto, Tip. do 
Colégio dos Orfãos, 1978, pp.27-29. 
73 Vide Gallo, op. cit., pp. 71-72 e 77-78. 
74 Albano Mendes Pedro, “Islamismo e Catolicismo em Moçambique”, Volumus. Revista 
trimestral de formação missionária, Ano XI nº4 (1959), pp. 193, 195, 207, 210-12. Idêntica opinião 
sobre a incultura geral do islamismo moçambicano fora já expressa em artigo publicado na 
mesma revista pelo Padre Porfírio Moreira Gomes da Missão de Moma (Nampula), “Festa 
nos arraiais de Alá”, Volumus, Ano X nº1 (1958), pp. 15, 17, 19-20. 
75 Ibid., pp. 206, 210-11; “Atitudes perante o maometismo na África Portuguesa”, Estudos 
Ultramarinos. Problemas Socio-Missionológicos. Revista trimestral do ISEU, nº1 (1961), pp. 43, 49-
55. 
 25 
do árabe e línguas africanas e, especialmente, da doutrina e dos textos 
islâmicos. Em vários dos seus ensaios, Peirone alude ao espírito dos trabalhos 
das sessões conciliares em curso, mas o que os seus textos revelam são 
precisamente os limites e também a ambiguidade dos anos imediatamente 
anteriores às resoluções saídas do Vaticano II. O ensaio sobre Cristo no Islão, 
que dá corpo à estratégia de desenvolvimento de uma Cristologia islâmica (já 
advogada em 1954 e ainda mantida em 1967), dá bem a medida do impasse. 
Publicado pela Junta de Investigações do Ultramar, em 1962, o texto parte da 
posição católica que vê o Islão como um erro 76, representando este como uma 
deturpação de fontes judaico-cristãs. Mas o que o estudo empreende é um 
trabalho cuidadoso de reconstrução do Cristo islâmico, com profundo 
conhecimento do Alcorão, como base para uma estratégia de missionação 
dialogante e tecida no interior do campo doutrinal do Islão 77. 
A medida da verdadeira revolução operada pelos outros “ventos de 
mudança” que sopraram de Roma, é dada pela acção e pelas intervenções de 
D. Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral. A sua “Carta Fraterna aos 
Muçulmanos”, divulgada em 1966, com vista às comemorações Marianas de 
Fátima do ano seguinte, proclama, sem a mínima ambiguidade, a irmandade 
de crença entre muçulmanos e cristãos, a filiação de ambas as comunidades 
num Deus único, com o mesmo paraíso por objectivo 78. A representatividade 
 
76 Frederico José Peirone, Cristo no Islão: Ensaio para uma Cristologia Islâmica, Lisboa, JIU, 1962, 
p. 12. Peirone publicara já sobre o mesmo assunto em 1954, mas o novo ensaio beneficiou do 
melhor conhecimento que o autor travou com o Islão em Marrocos após aquela data. 
77 Vide do autor, “A importância do estudo da língua e da cultura árabe para a missionação 
dos indígenas islamizados de Moçambique”, Garcia de Orta. Revista da Junta das Missões 
Geográficas e de Investigações do Ultramar , vol. IV (1954) nº3, pp. 371-381; “O Islão e a 
Conquista da África”, Volumus XI nº1 (1959), pp. 1-5; a entrevista sobre o Islão em 
Moçambique publicada no Diário de Moçambique de 18.9. 1962; “Correntes Islâmicas 
Moçambicanas”, Ultramar. Revista da comunidade portuguesa e da actualidade ultramarina 
internacional nº13-14 (Julho-Dez. 1963), pp. 43-53; A Tribu Ajua do Alto Niassa (1967), op. cit.. ; 
“Islão: a religião actual dos Ajuas”, Diário (Lourenço Marques), 1.2.1972. Pela mesma altura, 
António Losa desenvolve no seu Raizes Judaico-Cristãs do Islamismo (Braga, 1963), uma 
aproximação do Islão ao cristianismo com semelhante orientação. 
78 “Carta Fraterna aos Muçulmanos” [Coimbra, 1966], reprod.in Eurico Dias Nogueira, 
Missão em Moçambique, Vila Cabral, Diocese de Vila Cabral, 1970, pp. 70-81. Testemunho da 
mesma orientação ecuménica são as duas obras do pároco da Ilha e Cidade de Moçambique, 
Padre António Maria Lopes, A Igreja e o Islão em Diálogo, Cucujões: Escola Tipográfica das 
Missões, 1965 (com 2ª ed. corrigida e aumentada em 1967), e Palavras de Mólumo a Jesus Cristo 
 26 
do texto, enquanto genuína expressão de prática ecuménica, por um lado, e 
sua conformidade com o momento em termos de política colonial, por outro, 
fica claramente manifesta na divulgação que veio a ter não só em português e 
ajua em Moçambique, mas também em tradução francesa, distribuída pelas 
embaixadas e consulados franceses em países islâmicos, em árabe, e em 
italiano 79. Dois anos mais tarde, discursando sobre “A Ciência do Corão entre 
os Muçulmanos de Moçambique”, o padre missionário Porfírio Gomes 
Moreira podia já congratular-se pelo esforço em curso com vista a uma 
“integração efectiva, de alma e coração, da nossa comunidade islâmica num 
modo de ser português”80. 
O impacto da Guerra Colonial na concretização do duplo 
reconhecimento do Islão que temos vindo a referir, é posto em evidência em 
dois pontos explicitamente formulados no plano estratégico para a 
mobilização de apoio das autoridades e massas islâmicas de Moçambique, 
desenvolvido por Fernando Amaro Monteiro, no âmbito da acção psicológica 
de contrasubversão. Sendo o objectivo conquistar a simpatia dos 
muçulmanos, interessava criar a percepção de que “o Poder conhecia e 
respeitava o Islão como religião revelada”, e que “o Poder queria preservar a 
cultura dos muçulmanos”. O primeiro aspecto, exigia que se “lhe 
manifestasse público respeito e enfatisasse o direito de cidade”. O segundo 
procurar-se-ia fazer especificamente através da divulgação de “textos 
islâmicos fundamentais” em português 81. Deste modo, as autoridades 
 
[edição bilingue português/naharra], Cucujões, Escola Tipográfica das Missões, 1965, este 
último, de que tenho conhecimento apenas através da referência que lhe faz Filipe de 
Almeida d’Eça in Subsídios para uma Bibliografia Missionária Moçambicana (Católica), Edição do 
Autor, 1969, p.82. 
79 Vide D. Eurico Dias Nogueira, Episódios da Minha Missão em África, Braga, 1995, p. 34. 
80 Porfírio Gomes Moreira, “A Ciência do Corão entre os Muçulmanos de Moçambique”, in 
Actas do IV Congresso de Estudos Árabes e Islâmicos [1-8 de Setembro de 1968], Biblos, vol. XLVI 
(1970), p. 448; a leitura dos “Apontamentos Sobre o Islamismo” (IAN-TT, SCCIM caixa 71, 
451-330) facultados pelo autor a título particular à Região Militar, e particularmente as 
considerações tecidas sobre o erro em que procedem os que acreditam poder portugalizar o 
islamismo, permite, porém, algumas dúvidas sobre a genuidade da atitude aqui 
publicamente assumida. 
81 Fernando Amaro Monteiro, “Moçambique 1964-1974: As comunidades islâmicas, o Poder e 
a Guerra”, Africana, nº5 (Setembro 1989), pp. 86-87. 
 27 
portuguesas contribuíam para a criação de uma cultura religiosa islâmica de 
língua portuguesa, pelo que, efectivamente, se nacionalizava o Islão. No 
entanto, o traçar da origem e desenvolvimento desta estratégia a nível do 
discurso de relacionamento do poder com o Islão permite-nos sugerir uma 
interpretação mais polifacetada do processo. 
Em Agosto de 1959, o massacre de Pidjiguiti vinha contribuir de forma 
dramática como um factor catalizador do processo de consciencialização 
política na Guiné. Nesse mesmo ano, Silva Cunha, recém regressado da sua 
Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África, proferia uma 
conferência no Instituto de Altos Estudos Militares, na qual, focando o 
carácter problemático apresentado, quer pelos quadros islâmicos, quer pelos 
movimentos associativos da Província, remetia a solução para o plano do 
social e, implicitamente, para um enquadramento preemptivo das populações 
82. Em Fevereiro de 1961, ocorria o assalto à cadeia de Luanda e, em Março, a 
sublevação no Norte de Angola. 
Perante o clima que se vai adensando, dois pequenos acontecimentos 
deixam antever a nova fase que se avizinha e a complementaridade de 
estratégias que se desenham: a 4 de Maio tem início a construção da Mesquita 
de Bissau, que seria inteiramente custeada pelo Governo; a 25 de Maio o 
Governador Peixoto Correia recebeu, por ocasião da festa religiosa do Eid, 
uma delegação de muçulmanos fulas e mandingas, primeira de três 
manifestações de lealdade que lhe seriam concedidas nesse ano pelas 
populações muçulmanas. Em discurso rádio-difundido na província por 
autorização do Governador, o Cheik Serifo Aidera —mandinga natural do 
Gâmbia, em visita à Província— exorta os seus irmãos a agradecerem a tutela 
portuguesa, e a reconhecerem que os portugueses “são também filhos da 
terra”83. Em Julho, o Cherno da Mesquita de Priame envia ao Governador um 
telegrama informando ter a população nativa islamizada de Catió dedicado a 
 
82 Joaquim Moreira da Silva Cunha, “África Ocidental. Antecedentes da subversão na Guiné 
e em Angola”, Africana, nº17 (Março 1997), pp. 10-11, 16. 
83 Vide a transcrição do discurso in BGU, Ano 37, nº432-433 (Junho-Julho 1961), pp. 195-98. 
 28 
sua prece comunitária de sexta-feira a “ora[r] pela prosperidade da Pátria e 
pelo futuro da Guiné, integrada na Nação Portuguesa”84. A 17 de Dezembro, 
é o Governador que se desloca ao bairro islâmico do Cupelon, a convite dos 
moradores, onde lhe é proclamada “lealdade e inteira dedicação à Pátria 
Portuguesa”85. Pontualmente, vão-se repetindo as afirmações de “indefectível 
portuguesismo e amor a Portugal”86. 
Iniciada a luta armada com o ataque ao aquartelamento de Tite, o 
processo ganha novos contornos. O Governador Vasco Rodrigues assiste à 
inauguração da Mesquita em Paunca e declara que “em Meca sabe-se que 
aqui é Portugal e que todos somos portugueses” 87. Por sua vez, no contexto 
de um enorme esforço de propaganda de apoio ao Governo organizado por O 
Arauto, Alfa Umaru sublinhou que “o Deus dos muçulmanos —Alá— era o 
mesmo dos cristãos [...] pois também os maometanos tinham uma só pátria, a 
mesma dos cristãos”88. Na retórica que se vai generalizando – de lealdade e 
pertença, de um lado, de reconhecimento, do outro – é precisamente a 
normalização da expressão “muçulmanos portugueses” que se vai 
consolidando 89. Mas o ponto mais alto, o evento de carácter islâmico que 
maior repercursão teve em Portugal e em África, foi o da inauguração da 
nova Mesquita de Bissau, a 22 de Abril de 1966 90. As palavras então 
proferidas por Alfa Umaro Só ficariam célebres: 
Portugal multiplicou-se pelo mundo fora, irmanou-se com todos os povos, 
aglutinou todas as raças e todas as crenças para construir com elementos tão 
diferentes uma única Nação, multi-racial, e multi-continental. Nela não há 
distinção de raça e credos. É esta realidade que nós, os muçulmanos da 
 
84 Vide BCGP, vol. XVI, nº64, (Outubro 1961), p. 811. 
85 BCGP , vol. XVII, nº65 (Janeiro 1962), p. 199. 
86 BCGP, vol. XVII, nº67 (Julho 1962), p. 477; BCGGP , vol. XVIII, nº70 (Abril 1963), p. 320. 
87 BGU, Ano 39, nº454-455 (Abril-Maio 1963), p. 138. 
88 BGU, Ano 39, nº458-460 (Agosto-Outubro 1963), p. 112. 
89 Por exemplo, BGU, Ano 40, nº467-468 (Maio-Junho 1964), pp. 144-45; Ano 42, nº489 (Março 
1966), p. 33. 
90 Inauguração que foi inclusive objecto de reportagem televisiva (Arquivo Audiovisual da 
RTP doc. nº 660274303). Vide também, por exemplo, o artigo de Suleiman Valy Mamede no 
Diário da Manhã, cit. in Amândio César, Em “Chão Papel” na Terra da Guiné, Lisboa, AGU, 
1967, pp.93-95; os textos do próprio Amândio César,

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