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Questões Inacabadas: Colonialismo, Islão e Portugalidade∗ AbdoolKarim Vakil What’s a ghost? Unfinished business, is what. Salman Rusdhie 1 Que sabes tu de Portugal, dos seus valores, da sua história, das suas tradições milenárias? Como te identificarás tu com a Batalha de Ourique, com a glória de Salado, com a coragem do Lidador, com a valente ousadia de Afonso de Albuquerque, com a abnegação do Infante D. Fernando [?] Nos tempos de desconstrucionismo e de relativismo lúdico pós- moderno que vivemos, retratados por uma geração de escritores portugueses que o reaccionarismo crítico de Miguel Real caracteriza pela incapacidade de levar a história, e particularmente a história de Portugal a sério – geração que já não tem “nenhum mouro por fossar”2 - a pergunta soará mais a pastiche ou a frase de romance histórico de “bengalada”3 do que a santo-e-senha de cidadania. Hoje é-nos quase impossível ler este rosário de Portugalidade ou ladaínha entoada nas páginas dos compêndios de história pátria para a educação de bons portugueses até 74 4, sem imaginar esta prosa como uma ∗ Capítulo do livro Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo, coord. de Margarida Calafate Ribeiro e Ana Paula Ferreira, Porto: Campo das Letras, 2003, pp. 255-294. 1 Salman Rushdie, The Satanic Verses, New York, Viking, 1988, p.129 [“O que é um fantasma? Uma coisa inacabada, só isso”, Os Versículos Satânicos, 9ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 2001, p.127]. 2 Miguel Real, Geração de 90. Romance e Sociedade no Portugal Contemporâneo, Porto, Campo das Letras, 2001, pp.123, 131, 132;. 3 Vide Elena Losada Soler, “Introdução”, in Edição Crítica de Eça de Queirós: A Ilustre Casa de Ramires, Lisboa, IN-CM, 1999, p.56 4 Vide por exemplo os números 24, 30, 65, 102, 129-131 do popularíssimo album de cromos História de Portugal da Agência Portuguesa de Revistas, dir. de Mário de Aguiar, compilação de António Feio, ilustrações de Carlos Alberto, 16ª ed., Lisboa, Coimbra, Porto, Luanda, Lourenço Marques, Aguiar & Dias, 1970 (“segundo as Histórias de Portugal oficialmente aprovadas, de António G. Mattoso, Chagas Franco e Janeiro Acabado”, V. n.13, in Luís Reis Torgal, História e Ideologia, Coimbra, Minerva, 1989, p.382); ou o livro de História para a 4ª Classe do Ensino Primário Elementar da Editora Educação Nacional de Adolfo Machado, Porto, s.d., pp. 10, 18, 26-29, 44-45, 59-61. 1 queirosiana página da Pátria do “Castanheiro Patriotinheiro” ou dalgum serão mais inspirado do Cenáculo Patriótico da Rua das Severinas. Porém, mais perto da verdade estaria algum avisado leitor que nestas linhas suspeitasse antes o tom daquele outro João Lúcio Castanheiro, o nacional- tradicionalista arvorado em paladino pelos integralistas da Nação Portuguesa 5. Porque, de facto, é num discurso de nacionalismo integralista, como uma citação mais alargada do mesmo texto logo confirma, que se estrutura a interpelação formulada: [D]entro das tuas multiplas e traiçoeiras acções a mais repugnante é, sem dúvida, a de quereres transmitir a noção de que és “português”! Português? Tu, porco? Que sabes tu de Portugal, dos seus valores, da sua história, das suas tradições milenárias? Como te identificarás tu com a Batalha de Ourique, com a glória de Salado, com a coragem do Lidador, com a valente ousadia de Afonso de Albuquerque, com a abegnação do Infante D. Fernando, e mesmo com a tenacidade da valorosa jornada dos Reis Católicos que expulsou, por fim, a tua selvática e hedionda seita da peninsula Ibérica! Português, tu, pôrco! [...] Volta para a tua casa, pôrco! Volta para a estrumeira de onde vieste. Não tens lugar nem em Portugal nem em qualquer outro país da Europa. Trata-se na realidade de um excerto de uma vituperiosa carta enviada a um dirigente da Comunidade Islâmica de Lisboa 6, aviso, dentre ameaças reforçado, da ressunção daquela Cruzada levantada pelos Reis Católicos. Desde logo se intui que o maior agravo ao patriótico brio dos zelosos defensores da Pátria foi o de uma afirmação pública da identidade portuguesa dos muçulmanos portugueses: termo e reivindicação que constituem uma oxímora aberração no léxico do discurso identitário da tradição portuguesa. Nos termos da carta, Ourique, como batalha e hierofania, inscreve a nascença de Portugal no combate ao Islão e eleva a história pátria a instrumento da vontade divina; vínculo que, à luz do Santo Lenho, a milagrosa vitória do Salado testemunha e consagra. Gonçalo Mendes da Maia, o Infante Santo, e Albuquerque, por sua vez, erguem-se como três faces heróicas e exemplares, símbolos da história de uma pátria forjada pela 5 “Anunciação”, Nação Portuguesa. Revista de Filosofia Política, nº1 (Abril 1914), p.2. 2 Reconquista, sagrada pelo martírio e eternizada pela terrível e férrea audácia da expansão conquistadora no Índico 7. De Ourique ao Império, a história é passível de ser lida como uma Cruzada, ou por outras palavras, como um “campeonato de Cristo contra o Islão” como aquele “factor máximo da nossa história” que Paiva Couceiro já reduzira a lição para a formação dos novos Soldados Práticos da tradição 8. Oito séculos de história “portuguesa, logo católica”9 em acta lavrada pela rasura do passado islâmico. Que um discurso nacionalista, para mais de variante extremista, procure espelhar na construção da alteridade de uma minoria simbolicamente diferenciada, ex-colonizada, e agora enraízada no corpo da nação, a sua fantasia de uma identidade nacional purificada, una e coesa, pouca originalidade revela, e não justificaria por si só qualquer referência. Porém, o caso não deixa de ser interessante. Em primeiro lugar, porque a antinomia entre o Islão e a Portugalidade que estrutura este discurso é decalcada do próprio corpus canónico que enforma a tradição cultural portuguesa. Parafraseando António José Saraiva 10, a Cruzada é o mito estruturante da ideologia histórica da cultura portuguesa desde Os Lusíadas até ao 25 de Abril; 6 Carta datada de 17 de Novembro de 2001 enviada em nome de uma organização anti- islâmica em Portugal que não dignificarei aqui nomeando. 7 Sobre o mito de Ourique e o seu peso no imaginário português vide Ana Isabel Buescu; “Vínculos da Memória: Ourique e a Fundação do Reino”, in Yvette Kace Centeno (coord.), Portugal: Mitos Revisitados, Lisboa, Salamandra, 1993, pp.9-50; sobre o Salado, Bernardo Vasconcelos e Sousa, “O Sangue, a Cruz e a Coroa— a memória do Salado em Portugal”, Penélope: Fazer e Desfazer a História, nº2 (Fevereiro 1989), pp.27-48; sobre D. Fernando, Paulo Drumond Braga, “O Mito do “Infante Santo””, Ler História, 25 (1994), pp.3-10, e o estudo de João Luís Inglês Fontes, Percursos e Memória: Do Infante D. Fernando ao Infante Santo, Cascais, Patrimonia Historica, 2000. Sobre a mitificação de Albuquerque, o “Prefácio” de Joaquim Veríssimo Serrão aos Comentários de Afonso d”Albuquerque, I, Lisboa, IN-CM, 1997, pp.v-xxvii, mais sucinctamente, Luís Filipe F.R. Thomaz e Jorge Santos Alves, “Da Cruzada ao Quinto Império”, in Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (orgs.), A Memória da Nação, Lisboa, Sá da Costa, 1991, pp.136-139, e no contexto da educação escolar durante o Estado Novo, a referência de Maria Cândida Proença, “A Escola e os Descobrimentos”, in M.C. Proença, L. Vidigal e F. Costa, Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950), Lisboa, CNCDP, 2000, pp.71-2. A familiaridade e consagração do heróico episódio de “A Morte do Lidador” deve-se, claro, a Herculano nas suas Lendas e Narrativas e seu uso nas escolas. 8 Henrique de Paiva Couceiro, O Soldado Prático, Lisboa, 1936, pp.195-96.9 Oliveira Salazar, “Oitocentos Anos de Independência” [1940], Discursos e Notas Políticas, III, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1959, p.256; “O meu depoimento” [1949], Discursos e Notas Políticas IV, Coimbra, Coimbra Editora, 1951, pp.370-371. 3 e a “essência católica da identidade nacional” mais particularmente, é o “mito ideológico estruturante” do “sistema de valores” do Estado Novo 11. Um segundo factor de interesse prende-se com a desconstrução dessa antinomia. Por um lado, pelo facto de a expressão “muçulmano português”, que consubstancia essa desconstrução, ter origem no interior do próprio sistema de valores do Estado Novo; e, por outro, pelo facto de a nova síntese narrativa da formação da nação, saída da revisão historiográfica do pós-25 de Abril, ter por base a superação da visão cruzadista da história portuguesa, e por símbolo precisamente a homóloga expressão “Portugal Islâmico”. Duma e doutra forma a tradicional antinomia, bem como os mitos que a estruturavam, ficam duplamente esvaziados. Muçulmanos Portugueses: genealogia de uma identidade Tomemos uma recensão bibliográfica de Jaime Magalhães Lima na Revista de Portugal, de 1890, como texto fundador de um certo discurso geopolítico português sobre o Islão, e sobre o Islão africano em particular, pelo que este deixa adivinhar dos contornos futuros de um discurso já em formação desde a década de 80 do século XIX. A escolha deste texto justifica-se quer pelo âmbito e prestígio da publicação onde se insere (por contraste com a maioria de semelhantes pareceres consignados em relatórios de circulação mais ou menos circunscrita), quer pela presciência profética que demonstra ao aventar que “[d]e todos os fenómenos religiosos do século XIX, o mais considerável será talvez o renascimento e o progresso do Islam no continente negro”12. Mas o 10 António José Saraiva, A Cultura em Portugal: Teoria e História, Livro I: Introdução Geral à Cultura Portuguesa, 2ª ed.,Venda Nova, Bertrand, 1981, pp. 87, 119. 11 Um dos “seis mitos ideológicos estruturantes”, em que, segundo Fernando Rosas, se resume o sistema de valores do Estado Novo, “Mitos e Realidades na História Portuguesa do Século XX”, Portugal na Transição do Milénio. Colóquio Internacional, s.l.: Fim de Século, 1998, pp.71-74. 12 Jayme de Magalhães Lima, Revista de Portugal, vol. III (1890), pp.440-42. 4 que verdadeiramente justifica a escolha é aquilo que nos seus comentários podemos antever como tópicos fundamentais do que viria a ser o discurso sobre o “Islão Negro”. O Islão que Magalhães Lima revela é o rival, até então insuspeitado, dos europeus na partilha de África, ou seja, uma potência igualmente estrangeira e igualmente colonizadora em África, com a agravante, do ponto de vista europeu, de o seu carácter rácico e correspondente estádio civilizacional (mais próximo, e portanto mais adequado para a tarefa de elevação dos povos primitivos), e a sua natureza contemporizadora, sincrética e sensualista, se revelar, de acordo com esta lógica, mais atraente aos povos africanos. Durante a Primeira Grande Guerra e, ao contrário do que se passou em Inglaterra e em França, o factor islâmico em si não suscitou especial cuidado pela parte das autoridades portuguesas, embora haja prova de existência de propaganda islâmica anti-aliada em língua portuguesa datada precisamente da mobilização do país para o conflito europeu13. No entanto, no contexto do pós-Guerra já a nova dinâmica do Islão – pensada agora em termos da crise moral e da perda de supremacia da Europa – não deixou de gerar algumas expressões de ansiedade. Delas são exemplo os artigos de Ayres de Ornelas sobre “As Consequências Coloniais da Guerra” e de Pedro Correia Marques sobre “A Decadência da Europa”, publicados na revista Portugália, em 1926 14. Se o ressurgimento do Islão — e, muito concretamente, a revolta anti-colonial de Ibn Abdul Karim no Rif, o sucesso do movimento autonomista consagrado 13 Tenente El Hadj Abdallah, O Islam no exercito francez (Guerra de 1914-15), Constantinopla, 1916 é um excelente exemplo da campanha de propaganda dirigida às populações das colónias francesas norte-africanas e aos mesmos nos campos de prisioneiros na Alemanha [sobre o texto francês de 1915 e sua repercussão V. Jacob M. Landau, The Politics of Pan-Islam: Ideology and Organization, ed. rev., Oxford, Clarendon Press, 1994; p.117 e Apêndice N, pp.358-59]. A sua tradução para português, em 1916, permite inferir que se pretendia visar também as populações muçulmanas das colónias portuguesas. Já a proclamação de Jihad contra os aliados, decretada pelo Sultão Otomano Mehmed V em Novembro de 1914, e extensiva às populações muçulmanas das colónias europeias (Vide Rudolph Peters, Islam and Colonialism: The doctrine of jihad in modern history, The Hague, Mouton, 1979, pp. 90-94) teve, segundo refere Jeff Haynes, circulação em Moçambique. Vide Jeff Haynes, Religion and Politics in Africa, London, Zed Books, 1996, p.36. 14 Ayres de Ornelas, “As Consequências Coloniais da Guerra”, e Correia Marques, “A Europa em Decadência”, Portugália. Revista de Tradição e Renovação Nacional, nº4 (Janeiro 1926), pp.197-98 e p.226. 5 pela independência do Egipto sob Saad Zaghlul e particularmente o triunfo Wahhabi e de Ibn Saud assinalado pela conquista de Meca — levou à alteração do mapa da balança de relações entre o mundo islâmico e a Europa, é, sem dúvida, na perspectiva dos autores, o facto desse ressurgimento ter tido lugar sob o “malefício wilsoniano” do princípio dos “direitos dos povos” que, como feitiço virado contra o feiticeiro, mais profundamente se revela a agonia da Europa. No mesmo sentido, a manifestação de correntes modernizadoras e nacionalistas islâmicas, desmentindo as velhas teses do imobilismo social do mundo muçulmano, põe igualmente em causa o monopólio do espírito em que assentava a aparente superioridade da civilização europeia. Na liderança islâmica de movimentos pan-africanos e anti-colonialistas que se deixa adivinhar, por último, pressentem os autores um novo imperialismo islâmico a par do bolchevique. Estes dois artigos são indubitavelmente de interesse pela acuidade que demonstram em relação ao mundo árabe e pela redefinição da imagem do Islão que comportam. O seu objecto, porém, é a crise político- ontológica da Europa, e nenhuma referência é sequer esboçada quanto ao impacto ou possível relevância do ressurgimento islâmico no Portugal colonial. A metaforização do turco e do mouro – com recurso aos tópicos da ameaça oriental à civilização ocidental, da nova Cruzada e da nova Reconquista – no discurso português desde os anos vinte à Guerra Civil de Espanha, também leva a remeter o Islão para segundo plano, considerando o bolchevique como a verdadeira ameaça 15. Todavia, após a II Grande Guerra, os discursos indiciam uma nova inflexão: o seu sentido deixa de ser tão metafórico para passar a ser mais literal. Desde logo pelos títulos, e pelo tom alarmista, tanto quanto pelas respectivas conjunturas em que são pronunciados, os artigos de Eduardo Dias em 1946 e de António Sousa Franklin, dez anos mais tarde, são disso perfeitos exemplos. Em ambos, mais 15 Sobre esta apropriação do topos da ameaça turca vide o meu “Vários Vascos da Gama”, in Diogo Ramada Curto (dir.), O Tempo de Vasco da Gama, Lisboa, Difel, 1998, p.358. 6 uma vez, se sublinha que a causa da expansão portuguesa, cinco séculos atrás, fora a ameaça islâmica; mas num e noutro, o “perigo turco” e o “perigo vermelho” aparecem agora como doutrinas irmanadas, articuladas numa frente comumanti-colonial e anti-europeia; e, bem mais importante, também num e noutro o Islamismo aparece explicitamente identificado como a principal ameaça ao domínio português em África. Pela sua publicação na revista Rumo, o artigo de Dias pode ser lido em termos da linha programática da própria revista, centrada na reflexão sobre o “princípio da portuguesidade” e na “missão” de defesa da cultura portuguesa16. Já a importância atribuída aos “20 milhões de muçulmanos” na Rússia e a sugestão de possíveis desenvolvimentos de uma aliança anti- imperialista ásio-soviética, reforçada através de uma alusão ao programa revolucionário do Congresso de Baku de 1920, de alguma forma remete para um feixe de preocupações de âmbito mais geral, gerado pelos prenúncios da Guerra Fria. Mas é a perspectiva orientalista do autor que confere alguma originalidade à temática do artigo. Abordando o “problema” da penetração islâmica na África Negra, Dias radica a análise política dos factos no quadro mais vasto duma interpretação histórico-teológica do Islão 17. De acordo com o autor, Mafoma nunca pretendeu fundar uma religião e, ainda menos, uma religião universal. O islamismo revela-se assim como um fenómeno político e ideológico. O “sinistro Jihade, a guerra santa, eufemismo que significa o extermínio implacável dos adversários” é, para este autor, “sem sombra de dúvida, sem contestação possível [...] a base própria e característica da constituição islâmica”; “numa palavra, o único elemento original do Islão”18. 16 Vide “Apresentação— Rumo”, Rumo. Revista de Cultura Portuguesa, Ano I nº1 (Junho 1946), pp.8, 13 17 Autor de uma obra panorâmica em três volumes que o próprio não hesitou em descrever como o “primeiro ensaio em língua portuguesa [...] sobre várias das complexas e arriscadas matérias concernentes ao problema do Islão” (Árabes e Muçulmanos, vol. I: A Lei e as Hostes de Mafoma, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1940, p.vii), e do voluminho complementar O Islão na Índia, Colecção Gládio-Estudos Religiosos e Filosóficos, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1942), Eduardo Dias deve a sua fama de “Orientalista” principalmente à divulgação de alguns clássicos da literatura árabe em português. 18 Eduardo Dias, “Um Problema: o Islamismo e a sua penetração na África Negra”, Rumo, nº6 (Novembro 1946), pp.232-243. 7 Esta conclusão do autor, creditado como “erudito islamólogo”, continuaria a ser citada em Portugal, através das páginas do estudo geopolítico sobre o Islão que maior divulgação e circulação alcançou, desde fins dos anos 50 até à década de 70 19. No mesmo sentido, o enfoque alarmista virado para o contexto do islamismo nas colónias portuguesas encontra-se intimamente articulado com a justificação de uma imperiosa necessidade de fomentar os estudos islâmicos em Portugal, que passa a constituir outro dos refrões da época. Pela altura em que Sousa Franklin levantou como questão “A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa”, a ameaça esboçada por Dias adquirira substância 20. O seu nome era Bandung. Semelhante à leitura de Dias e estruturado em termos de um desafio do Oriente ao Ocidente, o nó da questão para Franklin reside na identidade religiosa e civilizacional de Portugal. Enquanto que “[c]ada indígena atraído ao cristianismo é, pode dizer-se, um português” – de forma que a própria cristianização se torna instrumento de nacionalização (ou lusitanização, como o autor se lhe refere) – o muçulmano, sempre igual a si próprio, “repele quaisquer influências da nossa civilização”. De tão longa data sob a tutela portuguesa, ainda assim, como o autor explica desalentado, “os nossos islamizados da Guiné [...] não se consideram portugueses —como alguns tiveram a ousadia (aliás inconsciente) de me afirmar um dia— mas árabes”21. Pelo que ao problema imediato diz respeito, a questão situa-se a nível global na “salvaguarda da civilização cristã”, sendo portanto de ordem cultural 22. Nestes termos, a questão é antiga. Retomá-la mais pormenorizadamente permite também 19 José Júlio Gonçalves, O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português, Estudos de Ciências Políticas e Sociais 10, 2ª ed., Lisboa, JIU, 1962, p.60; pp.117, 227-229. 20 António George C. de Sousa Franklin, “A Ameaça Islâmica na Guiné Portuguesa”, Lisboa, 1956; Cf. no mesmo ano o artigo de Joaquim Correia da Costa, “A Ameaça Afro-Asiática”, Diário de Lisboa (2.10.1956), pp.12-13 e “O Perigo do Islão em África”, Boletim Geral do Ultramar [abr. BGU], Ano 32, nº378 (Dezembro 1956), pp.104-106. 21 Ibid., p.17. 22 Tanto assim, que a solução apresentada pelo autor é a da colonização da Guiné Portuguesa por elementos Cabo Verdianos. 8 recontextualizar o discurso português sobre o Islão neste período duma forma um pouco diferente. Em Moçambique a questão islâmica prende-se, no período de colonização efectiva – das campanhas de pacificação e até fins do século XIX – com a questão da escravatura, em relação à qual o elemento religioso se esbate noutras considerações 23. Não obstante, as autoridades portuguesas foram tomando consciência, quer duma intensificação da penetração islâmica do interior, quer da islamização das populações. Mas na verdade, só a partir do início do século XX 24, ou mesmo mais tarde, sob o impacto das movimentações decorrentes da I Grande Guerra e no seguimento da efectiva 23 Malyn Newitt, Portugal in Africa: The last hundred years, London, Hurst, 1981, pp.61-63; René Pelissier, História de Moçambique: formação e oposição, 1854-1918, vol.I, Lisboa, Estampa, 1987, p.317-18; Fernando Amaro Monteiro, “As Comunidades Islâmicas de Moçambique: mecanismos de comunicação”, Africana nº4 (Março 1989), pp.65-79; Aurélio Rocha, “Resistência em Moçambique: o caso dos Suaíli, 1850-1913”, I Reunião Internacional de História de África: Relação Europa-África no 3º quartel do século XIX, Lisboa, IICT-CEHCA, 1989, pp.581- 615; Malyn Newitt, A History of Mozambique, London, Hurst, 1995, pp.272-6, 437-8, Luísa Fernanda Guerreira Martins, “A Expedição Militar Portuguesa ao Infusse em 1880: um exemplo de ocupação colonial nas terras islamizadas do Norte de Moçambique”, A África e a Instalação do Sistema Colonial (c.1885-c.1930): Actas da III Reunião Internacional de História de África, Lisboa, IICT, 2000, pp.483-498; Edward A. Alpers, “East Central Africa”, in Nehemia Levtzion e Randall L. Pouwels (coords.), The History of Islam in Africa, Athens: Ohio Unividesity Press, 2000, pp.306-9, 314-15; Valdemir Zamparoni, “Monhés, Baneanes, Chinas e Afro-maometanos: Colonialismo e racismo em Lourenço Marques, Moçambique, 1890-1940”, Lusotopie (2000): Lusophonies asiatiques, Asiatiques en lusophonies pp.191-223. A título de exemplo, a própria questão da “carta de Meca”, cuja circulação em Moçambique, como na África Oriental Alemã, em 1908, focou a ansiedade das autoridades coloniais na dinâmica especificamente religiosa do Islão (Alpers, op.cit., p.314), radicava afinal em questões de poder e interesses locais (Vide Mervyn Hiskett, The Course of Islam in Africa, Edinburgo, Edinburgh University Press, 1994, p.169). Sobre o Islão na Ilha de Moçambique, vide Álvaro Pinto de Carvalho, “Notas para a história das confrarias islâmicas na Ilha de Moçambique” [1972/73], ed. por Eduardo Medeiros, in Arquivo. Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique nº4 (Outubro 1998), pp.59-66; Manuel Lobato, “A Ilha de Moçambique antes de 1800” e António Rita-Ferreira, “Ilha de Moçambique: Cidade de um Oceano”, Oceanos nº25 (Janeiro- Março 1996), pp.10-26 e 30-44; Alpers, op. cit.. 24 Por exemplo com o estudo de Ernesto Jardim Vilhena, governador do Niassa, sobre “A Influência Islâmica na Costa Oriental de África” [capítulo do seu Companhia do Niassa, Relatorios e memoriassobre os Territorios, pelo governador, 1905] publicado no Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa, 24ª série (1906), nºs 5, 6 e 7 – vide particularmente os seus comentários sobre o aspecto religioso da acção islâmica (pp.179-80, 201-3), e as considerações finais sobre a política a adoptar (pp.217-18); na mesma linha: Jayme Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa Pimentel, “No districto de Moçambique (1902 a 1904) Memorias, estudos e considerações, pelo ex-governador...”, Portugal em África, vol. 12 nº136-144 (Abril-Dezembro 1905), pp.735 e 737; ou os comentários sobre educação islâmica e os obstáculos que esta levanta à influência portuguesa no relatório sobre educação e missões também de 1905 [in Pedro Massano de 9 nacionalização administrativa do território recuperado das Companhias concessionárias, é que o Islão começa a merecer atenção enquanto fenómeno religioso, cultural e ideológico por parte dos portugueses. Pode-se dizer que esta atenção se deve a um maior, mesmo que não necessariamente melhor, conhecimento do Islão, bem como à problematização do fenómeno de imigração indiana. Um lado da questão prende-se directamente com a polarização das relações entre africanos, afro-maometanos e indianos, devido à identificação cultural das elites nativistas com o discurso da civilização portuguesa. Assim se entende a denúncia da arabização, perpetrada pelas escolas maometanas, levantada por José Cantine no Brado Africano de Lourenço Marques, e a sua exigência de que era “de absoluta necessidade a exterminação da civilização árabe na colónia de Moçambique. Em Moçambique deve haver uma única civilização, uma única língua— a língua portuguesa, usos e costumes portugueses, enfim civilização portuguesa”25. Do lado da administração portuguesa, a mesma preocupação com o carácter simultaneamente desnacionalizador e destabilizador do ensino corânico-árabe aparece formulada em relatórios oficiais de 1937, na sequência em parte de movimentações relacionadas com o conflito Italo-Abissino 26. Na Guiné, as mesmas preocupações transparecem nas palavras do Director dos Serviços e Negócios Indígenas, José Ponces de Carvalho, quando em 1929 sublinha que o “revigoramento da acção muçulmana, constitui um Amorim, Distrito de Moçambique- Relatório do Governador (1906-1907), 1908] cit. por Alpers, op. cit., p.309 25 J. Cantine, “A Indigência Maometana em Moçambique” [editorial de O Brado Africano], reproduzido in Boletim Geral das Colónias [abr. BGC], nº100 (Outubro 1933), p.202. Com respeito a esta questão das relações entre o discurso nativista e nacionalismo africano, e o Islão, no contexto português, creio que seria deveras interessante um melhor conhecimento da viagem empreendida, sob passaporte português, pelo muçulmano originário de Moçambique, Ramadhani Mashado Plantan, a Lisboa em 1924 (seria antes 1923, por ocasião do planeado III Congresso Pan-Africano?), referida por Mohamed Said em The Life and Times of Abdulwahid Sykes (1924-1968): The untold story of the muslim struggle against British colonialism in Tanganyika, London, Minerva, 1998, p.177. 26 Relatórios de A.E. Pinto Correia (Nacala) e Aristides Alves de Faria (Niassa) citados por Edward Alpers in “Islam at the Service of Colonialism? Portuguese strategy during the 10 inludível perigo para as nossas exigências nacionalizadoras”27. A solução proposta assenta no princípio da acção nacionalizadora das Missões Religiosas Católicas, e é exactamente a mesma que fora defendida por Álvaro da Fontoura quando, prefigurando Sousa Franklin, levantou o problema no contexto do 1º Congresso da União Nacional em 1934 28. Tal como em Moçambique, também na Guiné a questão islâmica se enredava nas divisões de interesses entre muçulmanos e nativistas. Desde 1908 que as campanhas militares portuguesas, anteriormente apoiadas pelos Grumetes, tinham passado a depender dos Fulas e Mandingas islamizados e essa mudança de alinhamentos não deixou de se fazer sentir nas relações entre a administração colonial e os órgãos representativos das elites nativistas, como ficou evidente no encerramento da Liga Guineense pelas autoridades portuguesas 29. De uma forma talvez simplista, podemos colocar em contraste, por um lado, os islamizados, estrategicamente aliados com a administração colonial, mas culturalmente renitentes à sua influência e, por outro lado, as elites mestiças, identificadas com a cultura portuguesa e com o discurso civilizacional europeu e colonialista, mas críticas dos abusos desse colonialismo. Esta visão contrastada sugere dois aspectos. O primeiro aspecto diz respeito ao discurso cultural e à imagem do Islão e do muçulmano. O episódio em que o conflito pela definição dessa imagem mais se fez sentir junto da opinião pública portuguesa, foi sem dúvida o da presença em Lisboa dum grupo de Fulas, no contexto da “Aldeia Indígena da Guiné” realizada por ocasião da Grande Exposição Industrial Portuguesa em 1932 30. A proposta inicial, elaborada na metrópole pelo Agente Geral das armed liberation struggle in Mozambique”, Lusotopie (1999): Dynamiques religieuses en lusophonie contemporaine, pp.166-67. 27 José Peixoto Ponces de Carvalho, “Da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas”, BGC, nº44 (Fevereiro 1929), pp.183-84. 28 Álvaro da Fontoura, “Missões religiosas nacionais e estrangeiras e influências desnacionalizadoras nas colónias portuguesas” [Teses apresentadas à sub-Comissão das Colónias], BGC, nº112 (Outubro 1934), pp.123-24; vide também, “Conclusões aprovadas pela Sub-Comissão: Sobre Missões Religiosas, pp.206-7. 29 James Cunningham, “The Colonial Period in Guiné”, Tarikh, vol.VI, nº4 (1980), pp.32-37. 30 Sobre este episódio vide o meu “Guinean Princes and Portuguese Pilgrims: Race, Religion and Politics in the forging of a Portuguese Colonial Culture”, comunicação apresentada ao 11 Colónias, falava apenas de músicos mandingas e tinha sido concebida estritamente em termos de divertimento e exotismo. Foi por sugestão dos Serviços e Negócios Indígenas, e, por isso, obedecendo a uma lógica de interesses locais determinada pela relação de poderes no contexto da colónia, que o grupo de artesãos e dançarinos, afinal mandingas e fulas, passou a incluir quatro importantes régulos do Bafatá e o filho de um destes. Deixando de lado algumas facetas que se prendem mais de perto com o exotismo dos “reis pretos” na recepção popular dos régulos em Lisboa, e durante a digressão pelo Alentejo e Algarve, um dos aspectos mais salientes da retórica e coreografia dos momentos oficiais, tanto nos encontros com o Presidente da República e com o Ministro das Colónias como com os Munícipes do Sul, foi o tópico da lealdade dos régulos a Portugal, largamente felicitada por aqueles, e reiterada por estes. O momento alto e de maior cerimónia foi o da condecoração dos régulos. Em reconhecimento da sua folha de serviço nas campanhas militares da colónia, os quatro régulos foram agraciados com a medalha de prata dos Bons Serviços do Ultramar. A ocasião serviu ao Agente Geral para ensaiar o que podemos descrever como uma tentativa – inédita à data no discurso colonial português – de utilização dum texto corânico com vista à mobilização das elites muçulmanas da colónia. Ambicionando talvez aquela mística que Francisco Valoura mais tarde viria a retratar num conto, através da personagem do velho Tuaré que “confundia nas suas orações, o “Governo branco” e Alah!” 31, Garcês de Lencastre ter-se- lhes-ia dirigido com as seguintes palavras: Ides regressar à Guiné. Podeis dizer, agora, o quehaveis visto, ao povo e aos marabus, para que eles o ensinem a todos quantos recitam a oração da tarde, ‘La ill’Allah Mohammed ressul Allah Elkhbar [sic] — recitai este versículo do Alcorão. A terra pertence a Deus, que a deu de herança aos povos escolhidos, Colóquio “New Perspectives on Cultural Studies in Portuguese”, Institute of Romance Studies, Londres 19 Maio 2000, a ser publicado. 31 Francisco Valoura, “Sangue no Bosque”, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa [abrv. BCGP], vol.VI nº24 (Outubro 1951), p.955. 12 exprime êsse versículo; lembrai-vos, pois, de que, entre êsses, estão os portugueses. 32 Ora, é precisamente em reacção a esta política, bem como à fama e popularidade atingida pelos régulos junto dos portugueses da metrópole e, portanto, no contexto do conflito pela definição da imagem do Islão, que deve ser entendida a intervenção de Fausto Duarte através do texto de introdução ao seu Auá, romance premiado no Concurso de Literatura Colonial de 1934 e apadrinhado por Aquilino Ribeiro. Extremando a diferença abismal entre o fula islamizado e o negro africano, Duarte assevera que o islamismo tornou o fula “incapaz de se submeter inteiramente à civilização do ocidente ou ainda de reconhecer nela essa superioridade aceite pelo negro autóctone, melhor cooperador da nossa colonização”33. Situando-se numa linha de continuidade com um certo discurso sobre o Islão, Duarte introduz um outro elemento que terá grandes implicações: o da re-descoberta dos povos animistas como representantes da autenticidade africana. O segundo aspecto, determinado pelas relações de poder entre islamizados, nativistas e administração colonial, prende-se com a evolução de dois temas intimamente relacionados: por um lado, o discurso de valor militar, heroísmo e lealdade dos islamizados, cuja projecção pública ficou consagrada nas Exposições coloniais, e através do qual se procurou enraizar a consciência de serem “soldados de Portugal”34; e, por outro lado, o debate em torno dos régulos, no qual se joga a negociação de poder efectivo da administração portuguesa em regime indirecto. Não cabe aqui abordar a importância e desenvolvimento da atitude oficial perante estas questões no período em causa, que podem ser cotejadas a partir das referências nos 32 Diário de Notícias, 8.11.1932, p.1; O Século, 8.11.32, p.8; Diário da Manhã, 8.11.32, p.3; Diário de Lisboa, 7.11.32, p.4. 33 Fausto Duarte, “Introdução”, Auá. Novela Negra, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1934, pp.xix-xxi. 34 Vide por exemplo, Hugo Rocha, “Uma Figura de Portugal Ultramarino: Mamadu Sissé, velho régulo da Guiné e tenente de segunda linha”, O Mundo Português, Revista de Cultura e Propaganda, Arte e Literatura Coloniais, vol. III, nº28 (Abril 1936), pp.147-152; João de Almeida, “A cooperação dos nativos na expansão e na defesa do Império”, in Primeiro Congresso Militar 13 “relatórios” do Governador Carvalho Viegas 35. Pacificadas as colónias, fica gradualmente redefinida a memória das conquistas e pacificação em termos da narrativa branqueada épico-heróica e nacional-cristã da Exposição Histórica da Ocupação de 1937, que predominará essencialmente até à nova conjuntura de guerra dos anos 60. À luz do exercício de contextualização esboçado até aqui, mantendo embora como marcos cronológicos o pós-II Grande Guerra e o rescaldo de Bandung, podemos agora sugerir, em lugar dos textos de Eduardo Dias e de Sousa Franklin, duas outras intervenções que polarizam duas fases do discurso português sobre o Islão colonial no período até à redefinição dos anos 60. À conferência proferida por Manoel Maria Sarmento Rodrigues na Escola Superior Colonial, em Lisboa, a 20 de Novembro de 1947, cabe a atenção que merece a primeira comunicação inteiramente dedicada não apenas ao Islão, mas especificamente, como o título sugere, aos “Maometanos no Futuro da Guiné Portuguesa”36. Como Governador da colónia e responsável pela fundação dos seus estudos etnográficos, Sarmento Rodrigues tinha sobre a questão um profundo conhecimento e uma política apurada. Mas abordar a contribuição de Sarmento Rodrigues é, antes de mais, evocar um contexto: o da profunda transformação encetada pela política de desenvolvimento económico e social que o próprio simboliza 37, bem como todo o enquadramento institucional da política cultural por ele criada através Colonial (Julho 1934). Relato dos Trabalhos Realizados, Porto, I Exposição Colonial Portuguesa, 1934, pp.35-56. 35 Luís Augusto Carvalho Viegas, Guiné Portuguesa, 3 vols, Lisboa, 1936, 1939, 1941, em torno, por exemplo, da atribuição da Cruz de Guerra a Baró Baldé [vide a transcrição do artigo de Ferreira Martins do Diário de Notícias de 19.1.1938, in vol. II, pp.175-76], e das questões de sucessão nos regulados. 36 Manuel Maria Sarmento Rodrigues, “Os Maometanos no futuro da Guiné Portuguesa”, BCGP, vol. III, (1948), pp.219-231; reprod. in No Governo da Guiné: Discursos e Afirmações, Lisboa, AGC, 1949, pp.347-63; e 2ª ed. (1952), pp. 363-81. 37 Vide Carlos Cardoso, “A Ideologia e a Prática da Colonização Portuguesa na Guiné e o seu impacto na estrutura social, 1926-1973”, Soronda. Revista de Estudos Guineenses, nº14 (Julho 1992), pp.39, 50. 14 do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do seu Boletim e Monografias, biblioteca, arquivo, museu e missões científicas 38. A nova conjuntura de desenvolvimento, alicerçada sobre uma visão político-ideológica e de governação colonial acima do comum 39, conduziu a uma intensa intervenção administrativa no território e a uma instrumentalização da ciência etnográfica aplicada. Com a elaboração de uma grelha de conhecimentos classificatória étnico-religiosa 40, e a erradicação de autoridades medianeiras anteriormente aceites como “mal necessário”, nascia uma verdadeira política face ao islamismo na colónia. Uma face dessa política, que Avelino Teixeira da Mota destaca, refere-se especificamente aos regulados 41. Outra é a que, generalizando a partir da insistência de Sarmento Rodrigues sobre o “aportuguesamento de nomes”42 na colónia, podemos designar de “política de aportuguesamento”. Creio que é com estes termos de referência que se deverá entender aquela que, tanto quanto me foi possível estabelecer, foi a primeira ocorrência do termo “muçulmanos portugueses”43. 38 Vide o depoimento de Avelino Teixeira da Mota, in Sarmento Rodrigues, in memorian, Lisboa, Academia de Marinha, 1979, pp.19-28. 39 Vide as várias contribuições, e particularmente as de Adriano Moreira e Joaquim Veríssimo Serrão, in Almirante Sarmento Rodrigues, 1889-1979: Testemunhos e inéditos, Lisboa, Academia da Marinha e Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1999. 40 Desde logo com a publicação por A. Teixeira da Mota do Inquérito Etnográfico organizado pelo governo da colónia no ano de 1946, Bissau, Publicação Comemorativa do V Centenário da Descoberta da Guiné, 1947; e do Censo da População de 1950, vol. I População Civilizada, Lisboa, JIU-CEPS, 1959; passando pelas monografias de António Carreira sobre os Mandingas da Guiné Portuguesa (1947), de José Mendes Moreira sobre os Fulas do Gabú (1948), e de Jorge Vellez Caroço sobre Monjur o Gabú e a sua História (1948); o ensaio de Artur Augusto da Silva sobre os Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas (1969); e os artigos etnográficos, sobre os ritos, tradições, vida religiosa e costumes jurídicos de fulas e mandingas, de Eduíno de Brito (1955, 56, 57,66, 67); da história dos fulas (a partir da análise do recenseamento geral de 1960), e da expansão islâmica na Guiné, de António Carreira (1960, 66) no BCGP, etc. Cf. Clara Afonso de Azevedo Carvalho, Ritos de Poder e a Recriação da Tradição. Os Régulos manjacos da Guiné-Bissau, Dissertação de Doutoramento em Antropologia Social, Lisboa, ISCTE, 1998, pp.59-60, e, para um enquadramento mais geral, Rui Pereira, “Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do estado Novo”, Revista Internacional de Estudos Africanos, nº4-5 (Janeiro-Dezembro 1986), pp.191-235. 41 A. Teixeira da Mota, Guiné Portuguesa, vol.I, Lisboa, AGU, 1954, p.264. 42 Sarmento Rodrigues, No Goveno da Guiné, 2ª ed., Lisboa, AGU, 1952, pp.120; 293, 43 Sarmento Rodrigues, op. cit., 1949 [1947], p.362. A segunda ocorrência, se não estou em erro, deve-se a António da Silva Rego (que em 1955 dela já se aproximara numa referência 15 No texto de Sarmento Rodrigues, como no de Eduardo Dias que o antecede, e no de Sousa Franklin que o repete, encontramos a mesma urgência face ao expansionismo do Islão e a mesma referência à ameaça do Crescente. Contudo, trata-se agora de uma ameaça reduzida ao facto cultural, o que revela o muçulmano como “implacavelmente estranho aos nossos costumes, à nossa vida, à coesão nacional”. A intervenção de Sarmento Rodrigues representa um momento de inflexão do discurso, marcado ainda e, principalmente, por uma grande ambiguidade. O Governador da Colónia não deixa de recordar os Mamadu Sissés, Lamine Injais e Abdules, que caracteriza de “bons, valentes e leais portugueses”, explicitando enfaticamente uma linha de acção que defende que: é tempo de chamar à nossa comunhão, com todas as forças da nossa actuação persuasiva, aqueles que dela foram afastados: os muçulmanos portugueses. Para que aqueles que tão devotados servidores da Nação têm sido, sejam cada vez mais portugueses pelo espírito e pelo coração! 44 Porém, conclui que é nos animistas, mais abertos à assimilação e à cristianização e, portanto, a uma “mentalidade portuguesa”, que reside o futuro da Guiné. Para que a expressão que cunhou viesse a exprimir verdadeiramente o reconhecimento de uma identidade cultural portuguesa e islâmica, certas condições teriam ainda que ser criadas nos anos 60. No discurso geopolítico do regime, o momento de Bandung ficou definido por Adriano Moreira. Ao tomarmos agora como marco as curtas referências ao Islamismo apresentadas nos seus textos-chave de 1956 – “As aos “valentes portugueses de Goa, cristãos, judeus e muçulmanos”, “As Missões Católicas perante os problemas do Anticolonialismo e do Nacionalismo” [1955], in Temas Sociomissionológicos e Históricos, Lisboa; JIU-CEPS, 1962, p.2), quando em 1956, mais uma vez por referência a Goa afirma que “os muçulmanos portugueses, como aliás os hindus, dão hoje salutar exemplo de solidariedade adentro da grande família lusitana”, Lições de Missionologia [1956], Lisboa, JIU-CEPS, 1961, p.414. A aplicação do termo por Silva Rego, embora na mesma linha de Sarmento Rodrigues, parte duma radicalização ideológica da “identidade perfeita entre a metrópole e o seu ultramar” que o próprio descreve da seguinte forma: “Se Angola é Portugal e se Moçambique é Portugal, segue-se que tudo quanto lá existe é português. Portugueses os habitantes e os animais, os rios, as serras, os vales, os montes. Português o ar que se respira [etc...] Nada, absolutamente nada, no ultramar nos deve parecer estrangeiro, exótico, estranho”, “Adaptação Missionária e Assimilação Colonizadora no Ultramar Português” [1958], in Rego, op.cit., 1962, p.37. 44 Rodrigues, op. cit., 1949, p.362. 16 Elites das Províncias Portuguesas de Indigenato” e “Colonialismo e Anticolonialismo”45 – mais uma vez não é tanto o caso individual em si, que estamos referindo, mas a perspectiva estruturada pela institucionalização de um discurso que tem a figura de Adriano Moreira como símbolo. No caso em questão, essa estrutura é constituída pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais, a que Moreira presidiu desde a sua criação, em Fevereiro de 1956, e as suas séries de colóquios, estudos, e outras publicações46. O impacto no discurso sobre o Islão é imediato. As duas conferências do arabista José Domingos Garcia Domingues proferidas, a convite de Mendes Correia, na Escola Superior Colonial, em 1953 e 1954, tinha sido tudo quanto anteriormente se tentara em matéria de aplicação de conhecimentos especializados sobre o Islão à interpretação da situação colonial e da geopolítica do Islão. O que a leitura desses textos, acima de tudo, confirma é a pouca informação de que à data, mesmo um especialista, se podia valer em Portugal para o conhecimento concreto do islamismo nas colónias. Já a nível mais geral, as considerações e conclusões tecidas são as mesmas sempre repetidas: o espectro do pan-islamismo, a possível activação duma quinta coluna islâmica em território português, a necessidade de um levantamento exaustivo das populações islamizadas, o desenvolvimento de estudos islamológicos aplicados; e (esta sim, proposta menos vezes ouvida) a adopção de uma política islâmica portuguesa no sentido de captação das populações 47. O que distingue as intervenções de Adriano Moreira logo em 56 é, por um lado, a utilização do trabalho, entretanto publicado, de Teixeira da Mota sobre a Guiné Portuguesa, verdadeiro produto exemplar da escola de 45 Adriano Moreira, “As Élites das Províncias Portuguesas de Indigenato (Guiné, Angola, Moçambique)”, [Garcia de Orta 6: 2 (1956)], in Ensaios, 3ª ed., Lisboa, JIU-CEPS, 1963, pp. 55, 58-9; e “O Movimento Islâmico”, in Política Ultramarina, Lisboa, JIU-CEPS, 1956, pp.233-38. 46 Sobre Adriano Moreira e o Centro de Estudos Políticos e Sociais, vide Óscar Soares Barata, “Adriano Moreira: Quarenta anos de docência e acção política”, in Estudos em Homenagem ao Professor Adriano Moreira, Lisboa, ISCSP-UTL, 1995, vol. I, pp.15-120. 47 José D. Garcia Domingues, “Influência Árabo-Islâmica no Ultramar” [1953], Estudos Ultramarinos, vol. V (1955), fasc. 1, pp.259-80, e “Os objectivos do “Dar Al Islam” e os seus reflexos na África e no Oriente” [1954], Estudos Ultramarinos, vol. VI (1956), fascs.1-3, pp.173- 205. 17 Sarmento Rodrigues e súmula da sua visão sobre o Islão 48. E, por outro lado, a inserção desse estudo relativo a uma realidade local, de base empirista, e historicamente documentada, num quadro mais alargado de análise geopolítica centrado numa visão teoricamente bem fundamentada, e ideologicamente comprometida com os valores do regime: ocidentalista, anti- colonialista, lusotropicalista. É aqui que tem origem a visão “dos muçulmanos [considerados] como a ameaça absoluta” e, “sobretudo na Guiné e em Moçambique — como o inimigo absoluto”, de que fala com propriedade Alfredo Margarido 49. Na linha de análise desenvolvida por Moreira, mas sem que se aproxime sequer do mestre na capacidade de enquadramento e interpretação, ficam sobre o Islão as várias obras de José Júlio Gonçalves, de que O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português representa a versão mais completa e mais divulgada 50. Centrado numa análise sociologicamente reducionista do fenómeno religioso islâmico, e do chamado “Islão Negro” em particular, e em resposta ao “alarmante” expansionismo islâmico no Norte de Moçambique e na Guiné, Gonçalves advoga a necessidade de “neutralizar essa islamização deseuropeizante”. Propõe, para isso, a adopção tanto de uma estratégia activa de fomento de divisões entre as seitas muçulmanas, como a manutenção de uma atitude de passiva, mas atenta vigilância, relativamente a fenómenos de natureza política nasescolas corânicas. Para pôr em prática esta política, o autor sublinha a necessidade de criar estudos especializados sobre o Islão nas colónias portuguesas, de incentivar a acção 48 A. Teixeira da Mota, Guiné Portuguesa, 2 vols., Lisboa, AGU, 1954. Moreira, op.cit., 1956, p.237 n.3 e 1963, p.58. 49 Alfredo Margarido, “O Islamismo face ao Ocidente e mais Particularmente do Médio- Oriente”, Finisterra, nº6, (Outono 1990), p.40. 50 José Júlio Gonçalves, O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português (Estudos de Ciências Políticas e Sociais, 10), (Prémio Abílio Lopes do Rego da Academia das Ciências de Lisboa, 1958), Lisboa, JIU-CEPS, 1958; 2ª ed., 1962; “O Islamismo na Guiné Portuguesa”, BCGP vol. XIII, nº52 (1958), pp.397-470; “As “elites” no Ultramar Português”, Colóquios de Política Ultramarina Internacionalmente Relevante, Lisboa, JIU-CEPS, 1958, pp. 87-110; “Projecção do islamismo na África ao Sul do Sahara”, Revista de Artilharia, 2ª série vol.56 nº411-412 (Novembro-Dezembro 1959), pp.217-241; O Islamismo através dos Números, Lisboa, AGU, 1960; O Islamismo na Guiné Portuguesa (Ensaio Sociomissionológico), Lisboa, 1961; Síntese Religiosa da África, Lisboa, 1961; “Estrutura Religiosa da Guiné Portuguesa”, in Política de Informação (Ensaios), (Estudos de Ciências Políticas e Sociais, 61), Lisboa, JIU-CEPS, 1963, pp.117-167. 18 missionária católica, de combater a difusão do árabe e de acelerar o “aportuguesamento dos guineanos” e “a integração cultural, no Mundo Português, dos islamizados de Moçambique”. O passo mais importante na concretização de toda a lógica do Centro de Estudos Políticos e Sociais é finalmente dado com a publicação da portaria de Fevereiro de 1957, pela qual foi criada a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português. Instrumentalização de uma antropologia e missionologia aplicada, os relatórios das missões de estudo representam simultaneamente o exacerbar da consciencialização do “problema” islâmico, saído do pós-Guerra e de Bandung, e a superação dos seus termos de análise 51. De certa forma, o conceito de Islão Negro, que nos serviu de ponto de partida do percurso que temos vindo a traçar, permite igualmente sintetizar (com base nos textos de Teixeira da Mota e José Júlio Gonçalves) o ponto da situação no momento de redefinição a que chegámos. O fenómeno que deteve a atenção dos comentadores e que enforma o problema a que procuraram dar explicação foi o do inegável expansionismo do Islão no continente africano. Um primeiro aspecto da resposta, que desde logo limitou e viciou os termos de relação, foi a redefinição do problema em causa como fenómeno de natureza étnica e social e não, propriamente, religioso. O que os neologismos “islamismo negro”, “islão africanizado” e “neo-islamismo” implicam não é apenas a diferenciação destes, por contraste com o “islão puro” da tradição textual, mas o seu rebaixamento entendido como abastardamento sincrético. O próprio sucesso expansionista esconde, como realidade mais profunda, a persistência do substrato animista e a superficialidade da islamização. Daí a insistência na utilização do termo “islamizados”, que caracteriza toda a 51 Sobre os relatórios e o seu tratamento do Islão ver Donato Gallo, Antropologia e Colonialismo: O saber português, Lisboa, ER-Heptágno, 1988, pp.62-81; sobre as missões de Jorge Dias no Norte de Moçambique em 1956 e 58 ver Ana Barradas, “O pensamento colonial de Jorge Dias”, História n.s. nº30 (Abril 1997), pp. 39-40, e de forma mais equilibrada, Rui M. Pereira (1986), op.cit., e “Introdução à reedição de 1998”, in Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, I: Aspectos Históricos e Económicos, Lisboa, CNCDP-IICT, 1998, p.xxxix, e passim 19 literatura sobre as populações muçulmanas das colónias 52. Um aspecto complementar, é o da caracterização das “técnicas caquéticas” dos agentes da islamização que, por um lado, reduz a conversão a motivos de ascenção social —sintetizado na noção do “prestígio do balandrau”53 — e que, por outro, passando pela denúncia da “cuidadosa exploração das fraquezas psicológicas dos negros”54, aponta para a sua defesa pelas autoridades coloniais. Por último, a ênfase sobre a explicação do sucesso expansionista do Islão reverte sobre as próprias condições propícias à islamização criadas pela pacificação e integração territorial das colónias, e sobre os erros da política portuguesa de administração indirecta, apoiada nos auxiliares muçulmanos 55, que urgia corrigir. Mas no fundo, a questão do “problema” colonial islâmico reside na percepção do islamismo como civilização, cultura, e bandeira 56, pelo que a conversão religiosa se traduz simultaneamente em barreira cultural: o indígena tem perfeitamente a noção de estar a ser influenciado e absorvido por duas religiões e duas culturas distintas, a religião cristã e a cultura portuguesa, e a religião maometana e a cultura árabe. O progresso da islamização na Guiné [e por analogia, podemos também dizer, em Moçambique] não constitui um problema religioso, porquanto pode vir a constituir um obstáculo crescente à maior integração do indígena na comunidade nacional. 57 Em face deste discurso, o reconhecimento da identidade do “muçulmano português” requer um processo que passa pela dupla aceitação: primeiro, do Islão e, particularmente, do Islão na África, como religião, e, segundo, do muçulmano como culturalmente português. Muito esquematicamente, podemos resumir esse processo por referência aos 52 A título de exemplo, Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p.251; J. Vaz de Carvalho, “O Islamismo Negro” [Revista das Missões Ano IX nº2 (Março-abril 1956, reproduzido in], Revista do Gabinete de Estudos Ultramarinos nº11-12 (Janeiro-Abril 1956), p. 140; José Júlio Gonçalves, op. cit., BCGP (1961), p.450; Frederico José Peirone, A Tribu Ajua do Alto Niassa (Moçambique) e alguns aspectos da sua problemática neo-islâmica, Lisboa, JIU, 1967, pp. 183-84, 193; F. Rogado Quintino, “Entre Gente Temente ao Deus-Irã”, Ultramar nº32 (1968), p. 99. 53 Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p. 256; Gonçalves, op. cit., 1961, pp. 25-27. 54 Gonçalves, op. cit., 1961, p.37-41. 55 Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p.256; Gonçalves, op. cit., 1961, p.43, 1962, pp.112-14. 56 Expressão de Teixeira da Mota, op. cit., 1954, p. 257. 20 seguintes factores: a abolição do Estatuto de Indigenato; o novo contexto criado pela guerra colonial; a abertura teológica para com o Islão saída do Concílio Vaticano II; a adopção oficial do Luso-Tropicalismo; e a recuperação do passado islâmico num discurso de património cultural português. É no contexto estabelecido pelo entrecruzamento destes processos que se situa a formação da Comunidade Islâmica de Lisboa. A abolição do Estatuto de Indigenato, decretada por Adriano Moreira quando foi chamado por Salazar à chefia do Ministério do Ultramar em 1961 58, obedeceu inquestionavelmente a pressões de ordem internacional, que se vinham fazendo sentir com cada vez maior acuidade sobre a questão colonial portuguesa e, em especial, às resoluções críticas aprovadas na Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 e 15 de Dezembro de 1960 59. Mas o que essa conjuntura internacional favoreceu, e que o golpe de Botelho Moniz, na sequência do primeiro levantamento em Angola, provocou, foi de facto a institucionalização de uma de entre as várias correntes que se vinham esboçando em tensão no interior do regime: a de uma certa re-conversão actualizadora do discurso colonial português representada, por exemplo, por Sarmento Rodrigues, D. Sebastião Soares de Resende, e pelo próprio Ministro. Com o novo decreto as populações coloniais adquiriam o estatuto legal de cidadania. A revisão constitucionalde 1951, integrando o império na reformulação semântica da nação pluricontinental, nacionalizara — ou, mais literalmente, “portugalizara”— as colónias e as suas populações. De todo desprovida de consequências, a nova designação não deixou porém de pôr em circulação, e 57 Ibid. 58 Revogação do Decreto-Lei Nº39666 que promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique— Decreto-Lei nº43893, de 6 de Setembro de 1961, Lisboa, AGU, 1961. 59 Cf. José Calvet de Magalhães, Portugal e as Nações Unidas. A Questão Colonial (1955-1974), Cadernos do Lumiar 6, Lisboa, IEEI, 1996. A existência da instituição do indigenato fora explicitamente citada como prova da diferença de estatuto jurídico das populações das colónias e da metrópole, e portanto em contradição da posição oficial portuguesa. Vide Fernando Martins, “A Política Externa do Estado Novo, O Ultramar e a ONU, Uma doutrina histórico-jurídica (1955-1968)”, Penélope, nº18 (1997), p. 197. 21 de tornar corrente de ora avante, a adjectivização de portugueses nas referências aos “indígenas”, entre os quais se compreendiam os muçulmanos 60. A abolição do Estatuto de Indigenato, dez anos mais tarde, tão pouco concedeu cidadania política às populações das colónias. Com a concessão de cidadania cívica, porém, o que ficou abolido, juntamente com os “requisitos para a aquisição da cidadania” estipulados pelo Estatuto 61, foi o príncipio de assimilação cultural identitária na cultura portuguesa — concepção esta que, desde a legislação de João Belo, de 1926, fazia confluir na noção de civilização, a língua e padrão de cultura portuguesas e a religião católica. Na desarticulação desta síntese o Decreto de 1961 vibrara o primeiro golpe. Em menos de um ano iria começar a reunir-se no Vaticano o movimento que desferiria o segundo. Seria acima de tudo a lógica da solução administrativa dos problemas suscitados pela transformação social das populações das colónias 62 e a nova dinâmica do contexto de Guerra, que ditaria a abertura pragmática para com os muçulmanos. Contudo, a condição porventura fundamental para a transformação do discurso português sobre o Islão foi a do reconhecimento da dignidade religiosa do muçulmano, e essa passou pela abertura doutrinal criada pelas resoluções ecuménicas do Concílio do Vaticano II. No período em causa, a visão teológica do Islão que enforma o discurso colonial português encontra-se paradigmaticamente representada no tratamento missionológico do islamismo por António da Silva Rego e Frederico José Peirone 63. Para Silva Rego no seu O Oriente e o Ocidente de 1939 60 Vide a referência a Silva Rego citada na n.43. 61 Vide Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Decreto-Lei Nº 39:666, Lisboa, AGU, 1954, p.21. 62 Para Michel Cahen o ponto de viragem situa-se precisamente com a formação da Comissão de Estudo dos Problemas de Ordem Social no Meio Indígena em 1959; Vide Michel Cahen, L”État Nouveau et la Diversification Religieuse au Mozambique, Lisboa, Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento do ISEG-UTL (Documentos de Trabalho nº49), 1998, p. 25. 63 A afirmação da representatividade destas posições não significa que outras atitudes, mais neutras, ou mesmo respeitosas, não antagónicas ou até de incipiente abertura e diálogo para com o Islão, não se fizessem manifestar em Portugal. Mas essas outras atitudes, poucas que foram, marcam posições assumidamente individualistas, excêntricas ou heterodoxas: Agostinho da Silva, por exemplo, na visão mais positiva de um Maomé essencialmente 22 64, “o islamismo” —nos termos expressivos das frases que estruturam a sua abordagem— é “uma religião simplista por excelência, favorecendo os instintos animais do homem”, e propagada “à ponta da espada e do punhal homicidas”. Na sua visão, o Islão é mesmo a mais fácil das religiões. Considerando a “vida desregrada” e “moral laxa” de Maomé, “a vida maometana é um contínuo divórcio da moralidade”. Seguindo esta lógica, e uma vez que “a lei moral é uma entidade que não existe entre eles”, o Islão revela-se portanto “moral e filosoficamente um adversário temeroso da civilização europeia”65. Em síntese de síntese: “o Islamismo não resiste, nem pode resistir, a duas horas de pensamento sério”66. Igual concisão pode-se encontrar na refutação do Islão por D. Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira, na sua Carta Pastoral de 1947 67. Plagiato, para mais adulterado, das fontes judaicas e cristãs, o “Islamismo não é, nem pode ser, uma verdadeira religião”68. “Maomé imoral e impuro”, “precursor dos provocadores da psicose da guerra, não podia ser mensageiro reformador apresentada no seu O Islamismo (Iniciação: Cadernos de Informação Cultural), Lisboa, edição do autor, 1942; e pelo próprio facto de divulgar alguns trechos do Alcorão, in Maomet [sic], Suratas de Meca (Col. Antologia: Introdução aos Grandes Autores), Lisboa, 1943; o jornalista oficioso do regime, Francisco de Paula Dutra Faria num parenteses do seu relato da viagem do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel II, em Moçambique, vide “Com os Muçulmanos”, in Navegação de Paz e de Glória, Lisboa, AGC, 1945, pp. 105-119; Agostinho de Carvalho nos capítulos descritivos dos ritos e doutrina islâmica no seu Povos do Oriente: Parses e Muçulmanos na Índia. Seus Usos e Costumes, Coimbra, 1950, pp. 148-256; António de Cértima, com a tentativa de criar uma plataforma de diálogo mariânica, primeiro esboçada no artigo “O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica”, Diário Popular, 19.2.1952, pp. 1,8, cuja versão em francês publicada na revista Le Monde Arabe, do Cairo, mereceu o encómio de Louis Massignon, sendo mais tarde retomado como ensaio em O Carisma de Fátima e a Teologia Islâmica, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1967; e, especialmente, Bento de Castro (pseudónimo de Constantino de Castro Loupo), com a sua tradução do Alcorão publicada em Lourenço Marques, ainda antes da abertura doutrinal proclamada por Paulo VI, em 1964; José Pedro Machado, cuja tradução (com excepção da primeira sura publicada no Paquistão em 1945 e 46), embora também já finalizada em 1964, só seria publicada em Lisboa em 1974. 64 António da Silva Rego, “O Islamismo”, cap. III de O Oriente e o Ocidente, Ensaios, Lisboa, 1939, pp. 42-59. Com dez anos de carreira missionária na Malásia Silva Rego trouxe à sua análise do Islão uma experiência directa de confronto com o mundo islâmico algo singular no panorama português. 65 Rego, op. cit., 1939, pp. 42-43, 47, 57, 51. 66 Id., p. 51. 67 D. Sebastião Soares de Resende, Bispo da Beira, Falsos e Verdadeiros Caminhos da Vida, [Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1948], reproduzido como cap. IV in Profeta em Moçambique, Lisboa, Difel, s.d., “O Islamisno”, pp. 158-164. 68 Resende, op. cit., p. 162. 23 de Deus”69. A pastoral de D. Sebastião é toda movida pela urgência com que pressente para os seus diocesanos “a iminência do perigo de virem a caír nas malhas ardilosas dos sequazes de Mafoma”. Mas, ao perigo teológico inerente ao facto de “o islamismo deforma[r] o homem”, soma-se o perigo que ele representa para a nação: “Indígenas caídos no islamismo são quase perdidos para a Igreja, e oxalá o não sejam também para Portugal. Quem obedece a movimentos estranhos não é da casa” 70. Esta leitura do Islão, e o posicionamento perante os muçulmanos das colónias a ela inerente, representa uma visão institucionalizada a partir dos cursos de missionologiaque Silva Rego leccionou, desde a fundação dessa cadeira, na Escola Superior Colonial, em 1946. A sua projecção mais ampla ficou assegurada com a publicação das suas Lições de Missionologia desenvolvidas no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, numa iniciativa de Adriano Moreira. No texto da edição de 1962, é ainda substancialmente a mesma síntese do Islão apresentada pelo autor, em 1939, que se pode ler 71. Porém, passando em revista o tratamento do Islão nalguns textos de missionários, há que mencionar ainda os textos de Frederico José Peirone e de Albano Mendes Pedro 72. A importância deste último deve-se ao facto de, em 69 Ibid., pp. 162, 263. 70 Ibid., p.164. Por uma daquelas ironias de que os anais da história estão cheios, seria D. Sebastião que viria a ser apodado de traidor chegando mesmo alguns “elementos a soldo da PIDE”, aproveitando a ausência do Bispo em Roma por ocasião das jornadas conciliares do Vaticano II, a pintar as paredes da sua casa com o slogan “Morte ao Traidor e aos Vendidos”, Vide Gulamo Tajú, “D.Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira: Notas para uma cronologia”, Arquivo. Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, nº6 (Outubro 1989), p. 165. 71 A. da Silva Rego, “o islamismo”, in Lições de Missionologia [1956], Lisboa: JIU-CEPS, 1961 [1962], pp.399-414; vide também “O Catolicismo Perante Outras Religiões: 1. Perante o Islamismo”, in Alguns Problemas Sociológico-Missionários da África Negra, (Estudos de Ciências Políticas e Sociais 32), Lisboa: JIU-CEPS, 1960, pp.109-115. Sobre a carreira do autor vide Roberto Gulbenkian, Elogio do Prof. Doutor António da Silva Rego, Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1987, pp.13-64. 72 O caso do Padre Albino da Silva Pereira, cuja produção literária e doutrinária era assinada sob o nome de Lobiano do Rego, é demasiado complexo para tratar aqui. Cabe apenas referir que tratando o Islão sob uma perspectiva luso-tropicalista sui generis, a sua atitude redundou, na verdade, num feroz ataque ao Islão empreendido ao longo de várias obras, assim repudiando a via assumida pela Igreja no Concílio Vaticano II. Cf. Pátria Morena. À vista da maior epopeia Lusíada, Macieira de Cambra, LAIN, 1959, pp.77-83, 211-221; Apocalipse de Sagres, s.l., LAIN, s.d.; pp.290-292, 411-423; A ‘Declaração sobre a Liberdade Religiosa’ no tempo e no espaço da Nação Portuguesa. Comentário à primeira parte. Apêndice: Maomé na Estrada de 24 paralelo com Silva Rego, Mendes Pedro ter contribuido com um dos dois relatórios de campo sobre o islamismo em Moçambique desenvolvidos no âmbito da Missão para o Estudo da Missionologia Africana 73. Em artigo publicado na revista da Academia Missionária de S. João de Brito, um ano antes do trabalho de prospecção no terreno, e noutro artigo posterior, baseado na lição proferida num curso de deontologia ultramarina no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, em que os elementos colhidos são usados para reflectir sobre a atitude a adoptar perante o Islamismo, idêntica posição é defendida sob dois aspectos complementares. O Islão é “escuridão e erro”; a sua doutrina e moral são inferiores; os muçulmanos de Moçambique são incultos e ignorantes da sua religião que só superficialmente praticam 74. Aos missionários compete, através do exemplo acima de tudo, o dever de cristianização; às autoridades compete pôr em prática uma política concertada de ensino do português 75. Da identidade e convergência de interesses de uns e outros dependeria o futuro de Moçambique. Também o missionário da Consulata, Frederico José Peirone desenvolveu trabalho de campo em Moçambique, ainda que de natureza mais etnográfica, mas concebido no âmbito de ciência aplicada da Missão para o Estudo da Missionologia Africana chefiada, uma vez mais, por Silva Rego. E também ele publicou artigos que atravessam um leque de revistas missionárias, missionológicas e de ciência colonial académica. Em contraste com Mendes Pedro, Peirone representa já uma diferença radical na atitude de relacionamento com o Islão que se exprime desde logo, por exemplo, na insistência sobre uma preparação intensiva do missionário com conhecimento Damasco, Braga, Livraria Pax, 1966, pp.41-49 e 93-122; Abominação Devastadora, Porto, Tip. do Colégio dos Orfãos, 1978, pp.27-29. 73 Vide Gallo, op. cit., pp. 71-72 e 77-78. 74 Albano Mendes Pedro, “Islamismo e Catolicismo em Moçambique”, Volumus. Revista trimestral de formação missionária, Ano XI nº4 (1959), pp. 193, 195, 207, 210-12. Idêntica opinião sobre a incultura geral do islamismo moçambicano fora já expressa em artigo publicado na mesma revista pelo Padre Porfírio Moreira Gomes da Missão de Moma (Nampula), “Festa nos arraiais de Alá”, Volumus, Ano X nº1 (1958), pp. 15, 17, 19-20. 75 Ibid., pp. 206, 210-11; “Atitudes perante o maometismo na África Portuguesa”, Estudos Ultramarinos. Problemas Socio-Missionológicos. Revista trimestral do ISEU, nº1 (1961), pp. 43, 49- 55. 25 do árabe e línguas africanas e, especialmente, da doutrina e dos textos islâmicos. Em vários dos seus ensaios, Peirone alude ao espírito dos trabalhos das sessões conciliares em curso, mas o que os seus textos revelam são precisamente os limites e também a ambiguidade dos anos imediatamente anteriores às resoluções saídas do Vaticano II. O ensaio sobre Cristo no Islão, que dá corpo à estratégia de desenvolvimento de uma Cristologia islâmica (já advogada em 1954 e ainda mantida em 1967), dá bem a medida do impasse. Publicado pela Junta de Investigações do Ultramar, em 1962, o texto parte da posição católica que vê o Islão como um erro 76, representando este como uma deturpação de fontes judaico-cristãs. Mas o que o estudo empreende é um trabalho cuidadoso de reconstrução do Cristo islâmico, com profundo conhecimento do Alcorão, como base para uma estratégia de missionação dialogante e tecida no interior do campo doutrinal do Islão 77. A medida da verdadeira revolução operada pelos outros “ventos de mudança” que sopraram de Roma, é dada pela acção e pelas intervenções de D. Eurico Dias Nogueira, Bispo de Vila Cabral. A sua “Carta Fraterna aos Muçulmanos”, divulgada em 1966, com vista às comemorações Marianas de Fátima do ano seguinte, proclama, sem a mínima ambiguidade, a irmandade de crença entre muçulmanos e cristãos, a filiação de ambas as comunidades num Deus único, com o mesmo paraíso por objectivo 78. A representatividade 76 Frederico José Peirone, Cristo no Islão: Ensaio para uma Cristologia Islâmica, Lisboa, JIU, 1962, p. 12. Peirone publicara já sobre o mesmo assunto em 1954, mas o novo ensaio beneficiou do melhor conhecimento que o autor travou com o Islão em Marrocos após aquela data. 77 Vide do autor, “A importância do estudo da língua e da cultura árabe para a missionação dos indígenas islamizados de Moçambique”, Garcia de Orta. Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar , vol. IV (1954) nº3, pp. 371-381; “O Islão e a Conquista da África”, Volumus XI nº1 (1959), pp. 1-5; a entrevista sobre o Islão em Moçambique publicada no Diário de Moçambique de 18.9. 1962; “Correntes Islâmicas Moçambicanas”, Ultramar. Revista da comunidade portuguesa e da actualidade ultramarina internacional nº13-14 (Julho-Dez. 1963), pp. 43-53; A Tribu Ajua do Alto Niassa (1967), op. cit.. ; “Islão: a religião actual dos Ajuas”, Diário (Lourenço Marques), 1.2.1972. Pela mesma altura, António Losa desenvolve no seu Raizes Judaico-Cristãs do Islamismo (Braga, 1963), uma aproximação do Islão ao cristianismo com semelhante orientação. 78 “Carta Fraterna aos Muçulmanos” [Coimbra, 1966], reprod.in Eurico Dias Nogueira, Missão em Moçambique, Vila Cabral, Diocese de Vila Cabral, 1970, pp. 70-81. Testemunho da mesma orientação ecuménica são as duas obras do pároco da Ilha e Cidade de Moçambique, Padre António Maria Lopes, A Igreja e o Islão em Diálogo, Cucujões: Escola Tipográfica das Missões, 1965 (com 2ª ed. corrigida e aumentada em 1967), e Palavras de Mólumo a Jesus Cristo 26 do texto, enquanto genuína expressão de prática ecuménica, por um lado, e sua conformidade com o momento em termos de política colonial, por outro, fica claramente manifesta na divulgação que veio a ter não só em português e ajua em Moçambique, mas também em tradução francesa, distribuída pelas embaixadas e consulados franceses em países islâmicos, em árabe, e em italiano 79. Dois anos mais tarde, discursando sobre “A Ciência do Corão entre os Muçulmanos de Moçambique”, o padre missionário Porfírio Gomes Moreira podia já congratular-se pelo esforço em curso com vista a uma “integração efectiva, de alma e coração, da nossa comunidade islâmica num modo de ser português”80. O impacto da Guerra Colonial na concretização do duplo reconhecimento do Islão que temos vindo a referir, é posto em evidência em dois pontos explicitamente formulados no plano estratégico para a mobilização de apoio das autoridades e massas islâmicas de Moçambique, desenvolvido por Fernando Amaro Monteiro, no âmbito da acção psicológica de contrasubversão. Sendo o objectivo conquistar a simpatia dos muçulmanos, interessava criar a percepção de que “o Poder conhecia e respeitava o Islão como religião revelada”, e que “o Poder queria preservar a cultura dos muçulmanos”. O primeiro aspecto, exigia que se “lhe manifestasse público respeito e enfatisasse o direito de cidade”. O segundo procurar-se-ia fazer especificamente através da divulgação de “textos islâmicos fundamentais” em português 81. Deste modo, as autoridades [edição bilingue português/naharra], Cucujões, Escola Tipográfica das Missões, 1965, este último, de que tenho conhecimento apenas através da referência que lhe faz Filipe de Almeida d’Eça in Subsídios para uma Bibliografia Missionária Moçambicana (Católica), Edição do Autor, 1969, p.82. 79 Vide D. Eurico Dias Nogueira, Episódios da Minha Missão em África, Braga, 1995, p. 34. 80 Porfírio Gomes Moreira, “A Ciência do Corão entre os Muçulmanos de Moçambique”, in Actas do IV Congresso de Estudos Árabes e Islâmicos [1-8 de Setembro de 1968], Biblos, vol. XLVI (1970), p. 448; a leitura dos “Apontamentos Sobre o Islamismo” (IAN-TT, SCCIM caixa 71, 451-330) facultados pelo autor a título particular à Região Militar, e particularmente as considerações tecidas sobre o erro em que procedem os que acreditam poder portugalizar o islamismo, permite, porém, algumas dúvidas sobre a genuidade da atitude aqui publicamente assumida. 81 Fernando Amaro Monteiro, “Moçambique 1964-1974: As comunidades islâmicas, o Poder e a Guerra”, Africana, nº5 (Setembro 1989), pp. 86-87. 27 portuguesas contribuíam para a criação de uma cultura religiosa islâmica de língua portuguesa, pelo que, efectivamente, se nacionalizava o Islão. No entanto, o traçar da origem e desenvolvimento desta estratégia a nível do discurso de relacionamento do poder com o Islão permite-nos sugerir uma interpretação mais polifacetada do processo. Em Agosto de 1959, o massacre de Pidjiguiti vinha contribuir de forma dramática como um factor catalizador do processo de consciencialização política na Guiné. Nesse mesmo ano, Silva Cunha, recém regressado da sua Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África, proferia uma conferência no Instituto de Altos Estudos Militares, na qual, focando o carácter problemático apresentado, quer pelos quadros islâmicos, quer pelos movimentos associativos da Província, remetia a solução para o plano do social e, implicitamente, para um enquadramento preemptivo das populações 82. Em Fevereiro de 1961, ocorria o assalto à cadeia de Luanda e, em Março, a sublevação no Norte de Angola. Perante o clima que se vai adensando, dois pequenos acontecimentos deixam antever a nova fase que se avizinha e a complementaridade de estratégias que se desenham: a 4 de Maio tem início a construção da Mesquita de Bissau, que seria inteiramente custeada pelo Governo; a 25 de Maio o Governador Peixoto Correia recebeu, por ocasião da festa religiosa do Eid, uma delegação de muçulmanos fulas e mandingas, primeira de três manifestações de lealdade que lhe seriam concedidas nesse ano pelas populações muçulmanas. Em discurso rádio-difundido na província por autorização do Governador, o Cheik Serifo Aidera —mandinga natural do Gâmbia, em visita à Província— exorta os seus irmãos a agradecerem a tutela portuguesa, e a reconhecerem que os portugueses “são também filhos da terra”83. Em Julho, o Cherno da Mesquita de Priame envia ao Governador um telegrama informando ter a população nativa islamizada de Catió dedicado a 82 Joaquim Moreira da Silva Cunha, “África Ocidental. Antecedentes da subversão na Guiné e em Angola”, Africana, nº17 (Março 1997), pp. 10-11, 16. 83 Vide a transcrição do discurso in BGU, Ano 37, nº432-433 (Junho-Julho 1961), pp. 195-98. 28 sua prece comunitária de sexta-feira a “ora[r] pela prosperidade da Pátria e pelo futuro da Guiné, integrada na Nação Portuguesa”84. A 17 de Dezembro, é o Governador que se desloca ao bairro islâmico do Cupelon, a convite dos moradores, onde lhe é proclamada “lealdade e inteira dedicação à Pátria Portuguesa”85. Pontualmente, vão-se repetindo as afirmações de “indefectível portuguesismo e amor a Portugal”86. Iniciada a luta armada com o ataque ao aquartelamento de Tite, o processo ganha novos contornos. O Governador Vasco Rodrigues assiste à inauguração da Mesquita em Paunca e declara que “em Meca sabe-se que aqui é Portugal e que todos somos portugueses” 87. Por sua vez, no contexto de um enorme esforço de propaganda de apoio ao Governo organizado por O Arauto, Alfa Umaru sublinhou que “o Deus dos muçulmanos —Alá— era o mesmo dos cristãos [...] pois também os maometanos tinham uma só pátria, a mesma dos cristãos”88. Na retórica que se vai generalizando – de lealdade e pertença, de um lado, de reconhecimento, do outro – é precisamente a normalização da expressão “muçulmanos portugueses” que se vai consolidando 89. Mas o ponto mais alto, o evento de carácter islâmico que maior repercursão teve em Portugal e em África, foi o da inauguração da nova Mesquita de Bissau, a 22 de Abril de 1966 90. As palavras então proferidas por Alfa Umaro Só ficariam célebres: Portugal multiplicou-se pelo mundo fora, irmanou-se com todos os povos, aglutinou todas as raças e todas as crenças para construir com elementos tão diferentes uma única Nação, multi-racial, e multi-continental. Nela não há distinção de raça e credos. É esta realidade que nós, os muçulmanos da 84 Vide BCGP, vol. XVI, nº64, (Outubro 1961), p. 811. 85 BCGP , vol. XVII, nº65 (Janeiro 1962), p. 199. 86 BCGP, vol. XVII, nº67 (Julho 1962), p. 477; BCGGP , vol. XVIII, nº70 (Abril 1963), p. 320. 87 BGU, Ano 39, nº454-455 (Abril-Maio 1963), p. 138. 88 BGU, Ano 39, nº458-460 (Agosto-Outubro 1963), p. 112. 89 Por exemplo, BGU, Ano 40, nº467-468 (Maio-Junho 1964), pp. 144-45; Ano 42, nº489 (Março 1966), p. 33. 90 Inauguração que foi inclusive objecto de reportagem televisiva (Arquivo Audiovisual da RTP doc. nº 660274303). Vide também, por exemplo, o artigo de Suleiman Valy Mamede no Diário da Manhã, cit. in Amândio César, Em “Chão Papel” na Terra da Guiné, Lisboa, AGU, 1967, pp.93-95; os textos do próprio Amândio César,
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