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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE PSICOLOGIA JULIA DE PINHO PORTO - 115.159.085 REBECA DE OLIVEIRA EUCLIDES - 115.042.238 RIO DE JANEIRO NOVEMBRO 2020 1) Introdução A partir da perspectiva do livro “Ideias para adiar o fim do mundo” que apresenta uma série de reflexões acerca da ideia de humanidade, trazendo uma visão crítica sobre os fenômenos que acompanharam o processo de colonização da América e suas consequências até os dias de hoje, serão tratadas algumas das reflexões que mais chamaram atenção para este trabalho, fazendo um paralelo com a ideia de humanidade trazida pelo Krenak ao que Kilomba apresenta em seu livro “Memórias da Plantação”, articulando assim pensamentos que se mesclam ao analisar os processos de colonização da América aos povos escravizados da África, e ao extermínio dos povos nativos americanos. Concomitantemente as essas análises, as ideias de corpo e mente concebidas durante a filosofia cartesiana se choca com o que Merleau-Ponty apresenta, defendendo um corpo que não é estritamente racional, mas que sente e carrega consigo suas marcas do mundo que vive, rompendo com uma ideia de existência pautada somente ao raciocínio da mente. A psicologia pode estar neste lugar de entender mente e corpo como um só, e proporcionar a possibilidade de adiar o fim do mundo perante a escuta de mais uma história, como sugere Krenak. 2) Objetivo O presente trabalho pretende trazer uma correlação entre os atravessamentos que o livro “Ideias para adiar o fim do mundo” de Krenak trouxeram em relação à conceitos estudados durante a disciplina Fenomenologia Existencial II, como noções de corpo, mundo, humanidade, e as relações com a contemporaneidade. 3) Discussão Ailton Krenak, líder ativista dos direitos indígenas, apresenta nesta obra, sua perspectiva crítica sobre a humanidade que se entende enquanto a mais importante a evoluída presença na Terra, e dentro de muitas análises que o autor levanta durante o livro, é sobre essa ideia de uma humanidade que pode ajudar a compreender a proposta a ser apresentada aqui. Krenak aponta, na primeira página, uma hipótese, uma pergunta quase que retórica: “como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência?” (KRENAK p. 1). Uma breve pesquisa sobre os feitos do ser humano de determinados locais do planeta nos últimos 3 mil anos enquanto civilização e humanidade, pode responder positivamente à pergunta do autor. A ideia de humanidade que Krenak apresenta pode fazer um paralelo com o que Grada Kilomba fala em seu primeiro capítulo intitulado “A máscara” do livro “Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano”, onde ela aborda o conceito de Outro que é desenvolvido pelos brancos colonizadores durante o período de colonização com os escravizados, no qual estes eram obrigados a usar uma máscara que lhes impediam de comer e falar, apresentado por ela como a representação do colonialismo como um todo. Os europeus ao sequestrarem pessoas do continente africano para as Américas e cometer todo tipo de crime que, naquela época, foi visto como algo natural e necessário para o desenvolvimento da civilização, mesmo estando no papel de opressor, introduz o uso da máscara para que seus escravos não roube aquilo que lhe pertence: sua colheita. Pelas palavras de KILOMBA (2019, p. 34) “‘Estamos levando o que é Delas/es’ torna-se ‘Elas/es estão tomando o que é Nosso.’ Estamos lidando aqui com um processo de negação, no qual o senhor nega seu projeto de colonização e o impõe à(ao) colonizada(o).” Neste ponto, o opressor se coloca no lugar de vítima, e o oprimido é colocado no lugar de perigoso. O opressor projeta no outro aquilo que ele não quer assumir como sua responsabilidade, já que não haveria “roubo” se não houvesse escravização. Essa humanidade única construída pelos europeus ao longo dos séculos se fortaleceu durante as colonizações e se sustenta até hoje com suas atualizações para se adaptar à sociedade atual, transformando aquilo que Kilomba chama de projeção no outro no período colonial em algo geral e universal chamado de humanidade. Aprendemos que nós, enquanto seres humanos, somos o centro, desenvolvendo uma separação entre nós e o resto, nós (humanidade) e a natureza (outro). Separar ideologicamente o ser humano da natureza proporciona um distanciamento perfeito para que as grandes empresas possam sugar dela seus bens naturais, de forma agressiva e inconsequente sem que haja uma reflexão crítica acerca dessas atitudes, já que nós somos o centro e o resto está aí para nos servir de sustento, independente das consequências. Quando Krenak fala que os povos originários, quilombolas, resistem às margens dessa humanidade, a primeira interpretação que soa é a de uma marginalidade forçada pela colonização, de que esses povos vivem à margem não porque desejam, mas porque seu modo de viver não cabe dentro do sistema. Mas as palavras do autor fazem entender também que, esta (sobre)vivência marginal encontra caminhos potentes de se manter conectado com seu povo, com a Terra e com sua história. Quando se vive num mundo onde pessoas deixam de ser cidadãs e passam a ser consumidoras, a ideia de coletividade e conexão ancestral perdem sentido. Aqui, o autor traz a urgência que existe em resgatar esses movimentos ao nosso cotidiano para que, de alguma forma, não sucumbamos dentro deste “liquidificador chamado humanidade” como ele mesmo diz. "Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos" (KRENAK, 2019, p. 9) O adoecimento está dado para o nosso corpo que é tão sensível às mudanças do ambiente, temos a Covid-19 para nos mostrar isso. Mas, recentemente vemos um aumento universal do adoecimento da mente. Não faremos aqui uma abordagem aprofundada sobre os transtornos mentais psiquiátricos. Mas é inevitável o fato de que estamos vivendo num mundo cada vez mais ansioso e deprimido, onde isso tem afetado não só a população adulta, mas adolescentes e crianças também. Ou seja, essa humanidade tão adulada tem adoecido sua população em escalas universais e pouco tem se refletido sobre o que leva a esse adoecimento. O individualismo capitalista está tão bem instalado no imaginário social, que ao olhar para esses dados o que ocorre é uma individualização de casos, isto é, cada pessoa se torna responsável por sua própria causa, mesmo que suas crises de ansiedade, por exemplo, estejam muito mais atreladas ao único modo de vida que lhe é oferecido, do que às escolhas pessoais que esta pode ter tomado durante a vida. Quando Krenak sugere ideias para adiar o fim do mundo,ele fala sobre poder contar mais uma história. A ideia de expandir o céu, tomar um ar, respirar fundo e poder olhar além do que estão nos dizendo para olhar, seria uma maneira de adiar o fim deste mundo. A psicologia pode estar nesse lugar de abrir espaço para que mais uma história seja contada. Para que cada pessoa que chega até nós e possa contar sua história e ser ouvida, possa adiar seu fim do mundo e driblar o sufocamento dessa única humanidade que nos é vendida. Utilizar da capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Despencar em paraquedas pode ser a estratégia de fugir da lógica do sistema para resgatar o contato com o corpo, com a natureza, com o tempo, com a ancestralidade, com o passado. Se reconectar para resgatar a vida. Em conexão com o livro de Krenak, conseguimos nos debruçar sobre a noção de “Antropoceno”: onde o ser humano coloca a existência humana como uma existência singular e poderosa. Antropoceno é um termo formulado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995. O prefixo grego “antropo” significa humano; e o sufixo “ceno” denota as eras geológicas. Este é, portanto, o momento em que nos encontramos hoje: a Época dos Humanos. O ser humano, com sua crença, tenta subjugar as forças da natureza, sem sucesso. Podemos correlacionar esse ato trazendo a tona às diversas tragédias naturais que vêm acontecendo, como Krenak mesmo elucida. O rompimento da barragem de Brumadinho, Mariana e tantas outras tragédias ambientais. E, percebemos como isso faz novamente uma referência alarmante a esse conceito antropoceno: Entende-se que, de alguma maneira, esse modo de conceber o mundo e as relações para com ele, é falho. Vivemos muito inseridos e adaptados na visão cartesiana de mundo – utilitarista e mecanicista do corpo. Descartes instaura a racionalidade e sua valorização: “penso, logo existo”. A razão nessa configuração seria a única via segura pela qual o conhecimento do mundo poderia ser alcançado, sendo só assim possível se chegar a uma verdade absoluta, incontestável. O corpo, esse então, na visão cartesiana, não vale muito, não é confiável. Nosso corpo seria fonte de erro, de engano, do equívoco, não poderíamos confiar em nenhuma informação obtida por ele – a ilusão dos sentidos. Ainda completa que não seríamos capazes de distinguir o real – o mundo externo – do irreal – produto da mente, dos sonhos. Assim fica claro o fundamento pelo qual se debruça a nossa construção de uma profunda inconsciência corporal, uma desvalorização do corpo que é construída e fomentada ao longo de tanto tempo em nossa sociedade. Só posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 114) No livro “Antropologia do Corpo e Modernidade” (Le Breton, 2011), ele traz a ideia de um “corpo racional”, que é um protótipo do corpo moderno, um corpo “liso, moral, sem aspereza, limitado, reticente a toda transformação eventual. Um corpo isolado, separado do outros, em posição de exterioridade com o mundo, fechado em si” (Le Breton, 2011, p. 48). Já Merleau-Ponty, aparece nesse contexto como um “salvador” dessa visão tão cruel ao nosso corpo, aos nossos sentidos, à nossa percepção. Critica que a verdade só seja atingida através da ciência em negação ao corpo – por que seria preciso negar uma ou outra? Fala que formulamos pensamentos a partir do nosso corpo trazendo para o plano da valorização, dessa vez, o corpo que estava esquecido. Para Merleau-Ponty não existe visão clara e absoluta. Critica ainda mais o pensamento científico moderno quando coloca que o pensamento de sobrevoo apenas quantifica e classifica de forma mais superficial o Ser - sendo a fenomenologia capaz de fazer uma análise mais profunda do Ser não somente em sua compreensão física, mas também dos fenômenos sensíveis. A fenomenologia de Merleau-Ponty propõe, então, que o sensível da corporeidade se alie ao mundo psíquico promovendo uma maior interação do homem e sua existência no mundo em que vive - colocando o corpo e os sentidos como importantes aliados para um melhor entendimento dos fenômenos. É a partir de um ponto que você se encontra que vai formular conhecimento, o pensamento é situado, sendo de grande importância que a ciência do pensamento se abrisse para o mundo percebido. Há portanto uma certa consistência de nosso “mundo”, relativamente independente dos estímulos, que proíbe tratar o ser no mundo como uma soma de reflexos – uma certa energia da pulsação de existência, relativamente independente de nossos pensamentos voluntários, que proíbe tratá-lo como um ato de consciência. É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio, de todo conhecimento em primeira pessoa – e que ele poderá realizar a junção do “psíquico” e do “fisiológico”. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 119) A expressão: “Penso, logo existo”, torna-se então: “Posso, logo existo”. Tal expressão fala da potência e possibilidade de ação prática do corpo, e não somente da dimensão reflexiva e racional da mente. Merleau-Ponty discute a forma como a fisiologia mecanicista trata o corpo como um objeto, movido por forças mecânicas - para esta ciência a percepção de um objeto seria uma reação a diferentes estímulos sensoriais. Ele atenta para o fato de as sensações percebidas pelo sujeito não terem uma relação tão matemática com os estímulos e dependerem de uma certa organização destes estímulos que é realizada por um centro gnóstico do cérebro. Ressalta que a maneira que percebo algo que toco com as mãos está relacionada à forma como minhas mãos envolvem o objeto e à organização sensorial particular do meu próprio organismo. A verdade não "habita" apenas o "homem interior", ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo. (MERLEAU-PONTY, 1999) Entendemos assim, a noção de percepção de si, do corpo, do outro e do mundo. Ele expõe que, nós ignoramos o mundo pois nos colocamos em uma posição prática de não sentir e viver o mundo sensível, mas em vez disso, buscamos compreender o mundo através do exame das coisas sensíveis por meio da “impostura dos sentidos” para me fiar apenas na inteligência. Merleau-Ponty nos convida a essa necessidade de um novo estudo da percepção por meio da experiência do corpo, e onde a percepção é influenciada diretamente pela experiência. Para a fenomenologia, a percepção vai para além do método cartesiano que compreende que a verdade é percebida através do pensamento. Mas, para esse campo filosófico, é importante compreender a importância de se abrir para o mundo percebidopois existem verdades que são a própria experiência do corpo. Os conceitos seriam abstrações, e, só entraremos em contato com o fenômeno real por via da percepção. Nesse contexto, confronta-se a ideia de verdade absoluta, já que, se a percepção vêm por meio de inúmeras perspectivas e com o corpo podemos experimentar e vivenciar o mundo, olhá-lo, orientar nosso olhar no mundo e depois, compreendê-lo, a verdade nunca poderá ser única, imutável e absoluta. Não se pode portanto, existir uma percepção límpida, livre de cultura e de sentido. Em suma, se temos o corpo como um “nó” de todas as significações e situações que experienciamos, desse “embaraçado” brota então uma ação possível. Sendo assim, no ato de viver compreendemos a situação presente, todo passado e prospecção de futuro. Podemos entender, que uma solução para “adiar o fim do mundo” é compreender o sentido de “percepção” e reconectar-se efetivamente com o sentir do corpo, de um “corpo-vivo”. Somente a partir dele, quebrando essa cisão racional de mente e corpo, que conseguimos produzir significações e possibilidades. Importante ressaltar aqui que não é um movimento de negar a racionalização mas, para além dela, tornar outros sentidos também potentes. Na mudança da máxima cartesiana para “posso, logo sou” afirmamos o sentido de fazer, agir como um grande poder de ação no mundo. É considerar a partir desses conceitos a nossa condição existencial como uma condição essencialmente prática. 4) Referências: KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019. LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. PONTY, Merleau. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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