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Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Trombofilias Hereditárias O termo trombofilia refere-se à tendência para o desenvolvimento de trombose. A trombofilia pode ser de causa adquirida ou hereditária. A Trombofilia Hereditária (TH) refere-se a uma tendência geneticamente determinada para o desenvolvimento de trombose Quase sempre o termo é mais empregado na abordagem do Tromboembolismo Venoso (TEV). O tromboembolismo pode ser arterial ou venoso, de acordo com o tipo de vaso acometido, se artéria ou veia, respectivamente Tríade de Virchow: dano ao endotélio vascular, estase sanguínea e tendência a hipercoagulabilidade No caso do TE arterial, a patogênese envolve as alterações na parede do vaso (arteriosclerose) e fatores de risco tais como hipertensão, tabagismo, diabetes e dislipidemia. Por outro lado, no TEV, a patogênese envolve fatores que levam a estase, imobilização e hipercoagulabilidade. O TEV refere-se a obstrução da circulação por coágulo formado localmente (trombo) ou liberado de um trombo formado em outro local no corpo (êmbolo). Suas principais manifestações clínicas são a Trombose Venosa Profunda (TVP) e a Embolia Pulmonar (EP). Etiopatogenia Podem ocasionar deficiências quantitativas, qualitativas (funcionais) ou ambas. A deficiência quantitativa ocorre quando a mutação determina uma redução dos níveis de RNA mensageiro ou afeta uma porção da proteína essencial para a sua estabilidade ou conformação. A deficiência qualitativa ocorre quando a mutação provoca a substituição de um aminoácido que é essencial para a plena atividade da proteína Mutações associadas à “perda de função” são mais raras e relacionam-se, em geral, a um risco mais elevado para TEV Epidemiologia O TEV é uma doença multicausal Aproximadamente 50% dos casos de TEV idiopático estão associados a fatores genéticos identificáveis Classificação das trombofilias hereditárias Deficiências dos anticoagulantes naturais: proteína C, proteína S e antitrombina A Antitrombina (AT) é um importante anticoagulante. A deficiência de AT é herdada como caráter autossômico dominante. Mais de 250 mutações, sendo a maioria em heterozigose, foram descritas em associação com a deficiência A deficiência homozigótica de AT parece ser incompatível com a vida, sendo raramente relatada. A deficiência de AT pode ser também de causa adquirida devido à doença hepática, uso de heparina, Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD) e síndrome nefrótica. A Proteína C (PC) é uma glicoproteína dependente da vitamina K sintetizada pelo fígado sob forma inativa. A PC é ativada pela trombina ligada a trombomodulina e essa ativação é incrementada em mais de 10 vezes pela ligação ao receptor endotelial da PC. A PCa inativa os cofatores Va e VIIIa inibindo, assim, a geração de trombina Por causa de dificuldades relacionadas a dosagem laboratorial, a deficiência de PS é a mais difícil de se diagnosticar. Atualmente, ela é classificada em dois tipos, tipo I (quantitativo) e tipo II (qualitativo), sendo o primeiro associado a aproximadamente 90% dos casos da doença. As causas de deficiência adquirida de PS incluem o uso de medicamentos, tais como cumarínicos, estrógenos, L-asparaginase, e outras condições, tais como doença hepática, síndrome nefrótica, gravidez, CIVD e LES. Resistência a proteína C ativa e fator V Durante o processo fisiológico da hemostasia, o FVa é inativado pela PC. A troca do aminoácido arginina para glicina retarda essa inativação levando a uma resistência do FVa à ação da PCa O FV Leiden é a causa mais comum de TH nos países do hemisfério norte, podendo acometer até 50% de pacientes com TEV Mutação no genoma da protrombina O segundo fator mais prevalente de TH é a mutação puntiforme (G20210A) na região terminal, não traduzida do gene da PT, que leva a níveis plasmáticos aumentados dessa proteína Carolina Lucchesi | Medicina UNIT É duas vezes mais prevalente no sul do que no norte da Europa, sendo também rara em indivíduos asiáticos e africanos. Níveis plasmáticos elevados de proteínas da coagulação O aumento dos níveis plasmáticos de várias proteínas da coagulação, tais como fibrinogênio, fator VII e fator VIII, se relaciona a um risco aumentado de TEV não foram completamente elucidadas, podendo estar relacionadas a fatores hereditários ou adquiridos Diagnóstico A caracterização do evento quanto a sua relação com situações de risco para trombose (TEV secundário) ou não (TEV idiopático) é fundamental. Praticamente não existe achados clínicos específicos da TH, exceção feita a purpura fulminans neonatal ou necrose de pele induzida por cumarínico. Diagnóstico Laboratorial Hemograma, testes de triagem da coagulação como tempo de protrombina, Tempo de Tromboplastina Parcial ativado (TTPa), tempo de trombina, função renal e hepática. Quando recomendado, para a propedêutica das TH, devem ser realizados testes funcionais para AT e PC, teste antigênico para PS livre, pesquisa de RPCa (e se positiva, análise genética para FV Leiden) e análise genética da mutação da PT G20210A Com exceção dos dois testes genéticos (FV Leiden e mutação da PT G20210A), os resultados dos demais testes podem sofrer alterações em consequência do evento trombótico ou da terapia anticoagulante. Por isso, recomenda-se que os mesmos sejam realizados pelo menos 3 meses após o evento trombótico agudo e pelo menos 4 semanas após a suspensão da terapia anticoagulante Dosagens de AT, PC e OS. As dosagens de PC e PS não devem ser realizadas durante o uso de cumarínicos, por serem fatores dependentes de vitamina K. Caso a anticoagulação não possa ser suspensa para a coleta da amostra, recomenda-se trocar a terapia para heparina por pelo menos 2 semanas antes da realização dos testes. Tratamento O tratamento dos eventos trombóticos associados a TH deve levar em consideração o tratamento dos eventos agudos, a profilaxia primária em indivíduos assintomáticos e a profilaxia secundária. Tratamento dos eventos agudos O tratamento do TEV agudo deve ser realizado com Heparina Não Fracionada (HNF) ou heparina de baixo peso molecular (HBPM) e anticoagulante oral A duração da terapia anticoagulante após um episódio de TEV agudo em pacientes com TH é variável, podendo ser recomendada por um tempo mínimo de 3 meses (quando associada a um fator de risco transitório) até 12 meses (se trombose idiopática ou TEV em sítios não usuais, por exemplo, em vaso cerebral ou mesentérico) Uma entidade grave denominada purpura fulminans pode ocorrer em recém-nascidos acometidos pelas deficiência de PC e OS. Esses pacientes devem ser tratados com transfusão de crioprecipitado, plasma fresco congelado, e warfarina em dosagem suficiente para que se mantenha o RNI entre 3,5 e 4,5. Ainda, a warfarina deve ser iniciada com cautela e em baixas doses (2 mg) em pacientes sabidamente acometidos pelas deficiências de PC e PS, pois nesses casos há risco de desenvolvimento de necrose subcutânea, devido a um estado protrombótico transitório, O concentrado de PC é indicado para tratar purpura fulminans, deficiência de PC grave com CIVD ou TEV agudo. O concentrado de AT é indicado para pacientes com deficiência hereditária de AT para tromboprofilaxia cirúrgica, durante gravidez e pós- parto e nos casos de resistência a heparina apesar de altas doses Profilaxia Primaria No caso de um indivíduo ser diagnosticado com uma das deficiências dos anticoagulantes naturais (PS, PC, AT), FV Leiden e mutação da PT G20210A, recomenda-se que os familiares de primeiro grau sejam testados especificamente para a condição encontrada Apesar do uso de anticoagulante não estar indicado nos portadores assintomáticos, o tratamento profilático pode estar indicado em situações de risco, tais como gravidez, puerpérioe pré-operatório de grandes cirurgias, uma vez que essa medida reduz significativamente o risco de trombose. Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Profilaxia Secundaria A decisão de se instituir profilaxia secundária é complexa e deve considerar: 1. o risco de um novo evento trombótico; 2. as consequências de um novo evento trombótico caso o paciente não esteja anticoagulado; 3. o risco de sangramento relacionado ao uso de anticoagulante 4. a preferência do paciente Na maioria dos casos, a profilaxia secundária para TEV em pacientes com TH é realizada através da administração de cumarínicos, mais frequentemente a warfarina, para manter o RNI entre 2 e 3. O risco de sangramento é geralmente maior em idosos (acima dos 65 anos) O risco de sangramento é inversamente proporcional ao tempo de uso da anticoagulação oral. Trombofilias Adquiridas Síndrome antifosfolípide, malignidade e outras doenças clonais, estado pós-operatório, determinadas doenças reumatológicas, gestação e tratamento hormonal estrogênico, presença de cateter venoso central e emprego de alguns agentes terapêuticos. Mais recentemente, foi demonstrado que outros fatores também aumentam o risco de TEV, como obesidade, hipertensão arterial, diabetes melito, síndrome metabólica e distúrbios hormonais Síndrome Antifosfolípede A Síndrome Antifosfolípide (SAF) é uma doença autoimune caracterizada pela presença de anticorpos antifosfolípides e, no mínimo, uma manifestação clínica, sendo as mais comuns a trombose arterial ou venosa e a perda fetal recorrente A SAF pode ocorrer de maneira isolada, quando é chamada de SAF primária, ou em associação com outras condições, principalmente doenças do tecido cone tivo, em particular o lúpus eritematoso sistêmico, quando é classificada como SAF secundária. Os anticorpos antifosfolípides correspondem a uma família heterogênea de imunoglobulinas, que, dentre outros, incluem o anticoagulante ou inibidor lúpico, os anticorpos anticardiolipina e os anticorpos antiglicoproteína Iß2 A associação entre trombose e anticorpos antifosfolípides decorre da demonstração da maior prevalência desses anticorpos em pacientes com eventos vaso-oclusivos. Patogênese Vários mecanismos foram propostos para explicar a ação desses anticorpos: a) inibição da proteína C ativada; b) ligação às plaquetas e promoção da sua ativação; c) interação com as células endoteliais, que passam a expressar moléculas de adesão, com ligação de monócitos, resultando na expressão do fator tecidual e um estado procoagulante; d) inibição da atividade da antitrombina; e) ativação da via do complemento, com geração de produtos de degradação que levam a um estado de inflamação e trombose, e f) ligação a várias proteases relacionadas com a coagulação e fibrinólise, resultando no retardo da inativação dos fatores procoagulantes e remoção dos coágulos Na síndrome antifosfolípide, a trombose é decorrente da ligação dos anticorpos antifosfolípides à célula endotelial, levando à sua ativação e a um estado procoagulante Alguns anticorpos antifosfolípides podem ainda se ligar a diversas serino-proteases da hemostasia, bloqueando a inativação de fatores ativados da coagulação e a remoção fisiológica de coágulos Assim sendo, trabalhos in vitro sugerem que os anticorpos antifosfolípides podem ter ação direta sobre os trofoblastos, além de atuarem diretamente sobre a decídua materna. Nos trofoblastos, os anticorpos antifosfolípides poderiam: a) promover lesão celular direta; b) induzir apoptose; c) inibir a proliferação e formação sincicial; d) reduzir a produção de gonadotrofina coriônica, e e) promover invasão defeituos Manifestações Clínicas Clinicamente, a SAF caracteriza-se pela ocorrência de eventos trombóticos arteriais ou venosos, em diferentes leitos vasculares, ou complicações gestacionais, expressas como perdas fetais recorrentes no primeiro trimestre, ou óbitos fetais no segundo ou terceiro trimestre, ou ainda pré-eclampsia grave com parto prematuro antes da 34 semana gestacional Carolina Lucchesi | Medicina UNIT Dos eventos vaso-oclusivos, em território venoso são mais frequentes as tromboses venosas profundas e em território arterial predominam os acidentes vasculares cerebrais isquêmicos ou os ataques isquêmicos transitórios. Os anticorpos antifosfolípides estão associados com doença valvular cardíaca, com acometimento mais comum da valva mitral comprometimento dos rins também é descrito, sendo suas manifestações típicas a hipertensão arterial com proteinúria e a insuficiência renal **O achado anatomopatológico renal mais característico é a microangiopatia trombótica O livedo reticular é observado em aproximadamente 25% dos pacientes com SAF, podendo ainda ser um marcador de pacientes com risco elevado para eventos trombóticos arteriais As complicações obstétricas representam outra importante característica da SAF. Sua manifestação mais comum é a perda gestacional recorrente, definida como pelo menos três perdas gestacionais consecutivas antes do meio do segundo trimestre, porém mais frequentemente antes da 10ª semana gestacional. Outras apresentações características da SAF são um ou mais óbitos fetais com 10 ou mais semanas de gestação, e pré-eclampsia grave ou insuficiência placentária que levam a parto com menos de 34 semanas de gestação. Tratamento Vários fatores devem ser considerados no paciente com tromboembolismo venoso e SAF: a) presença associada de outros fatores de risco trombótico; b) intensidade ótima do tratamento anticoagulante, e c) duração do tratamento anticoagulante Embora existam trabalhos com resultados conflitantes admite-se que os anticorpos antifosfolípides aumentam o risco de eventos vaso-oclusivos, de modo que sua presença deve ser considerada como um fator de risco trombotico, com outras variáveis modulando a expressão clínica final Para os pacientes com diagnóstico definitivo de SAF e um primeiro evento trombótico venoso, recomenda-se tamento anticoagulante oral com INR alvo entre 2 e 3
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