Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DIREITOS POLÍTICOS, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DE ÓDIO Rodolfo Viana PeReiRa ORGANIZADOR Volume III Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626 Rua Espírito Santo, 1204, Loja Térrea - Centro - Belo Horizonte - MG CEP 30.160.031 Direitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio D598 [recurso eletrônico] /organização de Rodolfo Viana Pereira, – Belo Horizonte: IDDE, 2019. 310p.; il.; 22,5cm vários colaboradores ISBN 978-85-67134-14-7 DOI: https://doi.org/10.32445/9788567134147l 1. Direitos políticos. 2. Liberdade de expressão. 3. Análise do discurso. 4. Campanha eleitoral. 5. Ódio – Discurso. I. Pereira, Rodolfo Viana (org.). CDD 342.07 (22.ed) CDU 342.81 Rodolfo Viana PeReiRa ORGANIZADOR DIREITOS POLÍTICOS, LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DISCURSO DE ÓDIO Volume III Belo Horizonte - 2019 Baixe gratuitamente esta obra em: https://doi.org/10.32445/9788567134147l 4 Conheça nossos cursos EAD - Educação a Distância idde.com.br Acesse nossas redes sociais iddebrasil iddeinstituto Entre em contato conosco Clique no ícone https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 https://api.whatsapp.com/send?1=pt_BR&phone=5531999266344 Ou ligue (31) 99926-6344 Pensamento Sustentável. Ações Estratégicas. http://www.idde.com.br/ https://www.facebook.com/iddebrasil/ https://www.facebook.com/iddebrasil/ https://www.instagram.com/iddeinstituto/ http://https://www.instagram.com/iddeinstituto/ https://www.instagram.com/iddeinstituto/ SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Rodolfo Viana Pereira ............................................................................................................. 7 A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚ- BLICOS PELO ESTADO E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO Álvaro Chagas Castelo Branco ................................................................................................ 9 NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A REGULAÇÃO DO PONTO DE VISTA ODIOSO Bárbara Batalha da Silva ....................................................................................................... 23 SEU FACISTA! SEU PETRALHA! AS IMPLICAÇÕES DA ROTULAGEM PARTIDÁRIA NO SISTEMA DEMOCRÁTICO Bruna Luiza de Oliveira ......................................................................................................... 43 FAKE NEWS ATUANDO NO JOGO ELEITORAL DEMOCRÁTICO Cristiane de Castro Resende ................................................................................................. 61 O PODER OU DEVER DA EMISSORA DE RÁDIO OU TELEVISÃO DE CONVOLAR O DEBATE DE SEGUNDO TURNO EM ENTREVISTA DIANTE DA AUSÊNCIA INJUSTIFICADA DE UM DOS CANDIDATOS Felipe Dayrell Mendonça ....................................................................................................... 77 A DESCONSTRUÇÃO DA IMAGEM E A PROPAGANDA ELEITORAL NO RÁDIO E TELEVISÃO Giselle Morais Rocha ......................................................................................................... 103 O HUMOR EM JULGAMENTO: DISCURSO DE ÓDIO OU APENAS UMA PIADA? João Henrique R. Bonillo .................................................................................................... 123 LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CELERIDADE: A PROBLEMÁTICA QUESTÃO DA RETIRADA DE CONTEÚDOS DA INTERNET À LUZ DAS ELEIÇÕES BRASILEIRAS Kym Marciano Ribeiro Campos .......................................................................................... 147 LEGITIMANDO A PUNIÇÃO DA BLASFÊMIA? ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE EU- ROPEIA DE DIREITOS HUMANOS À LUZ DO CASO E. S. V. AUSTRIA Mariana Ferolla Vallandro do Valle ....................................................................................... 169 DISCURSO DE ÓDIO NO TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS: LIBERDADE DE EX- PRESSÃO X MANIFESTAÇÕES XENOFÓBICAS Mariana Karla de Faria ....................................................................................................... 203 A RESTRIÇÃO DE MANIFESTAÇÃO POLÍTICA NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS NAS ELEIÇÕES DE 2018 Mariana Oliveira de Sá ........................................................................................................ 229 6 | O FALSO CRIME DE ÓDIO DA SUÁSTICA NAZISTA E AS FAKE NEWS NO AMBIENTE POLARI- ZADO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 2018 Patrícia Alessandra Pimenta de Aguiar ................................................................................ 259 POR MAIS QUE UM DISLIKE AOS HATERS NAS REDES SOCIAIS: UMA RELAÇÃO ENTRE O COMBATE AO DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUN- DAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS Tiago da Silva Fonseca ....................................................................................................... 293 APRESENTAÇÃO Rodolfo Viana Pereira1 Dando sequência à série de debates sobre a temática da liberdade de expressão, do exercício de direitos políticos e do discurso de ódio, lançamos esse terceiro volume com expressivos artigos, muitos deles abordando temas até então não explorados nas obras anteriores. João Henrique Bonillo, por exemplo, enfrenta a polêmica em torno do humor e do hate speech com o ótimo artigo “O Humor em Julgamento”. Patrícia Aguiar, Bruna de Oliveira e Mariana de Sá escrevem tendo por pano de fundo as eleições de 2018, com um enfoque bastante peculiar. A primeira trata das implicações mediáticas e jurídicas do famoso caso da militante que teria sofrido lesão corporal por parte de simpatizantes do candidato Bolsonaro. De acordo com o relato da vítima, os agres- sores teriam inscrito, à faca, o símbolo da suástica em seu abdômen. A segunda autora aborda os efeitos do partidismo associado a discursos de ódio entre eleitores de direita e de esquerda na campanha presidencial. A terceira estuda os também famosos casos de intervenção da Justiça Eleitoral em atos de manifestação política nas Universidades brasileiras. Outra temática de destaque explorada nesse volume tem a ver com o marco regulatório europeu, especialmente o entendimento da Corte Europeia dos Direitos Humanos. Mariana Faria avalia a jurisprudência da Corte quanto a discursos de ódio com viés xenófobo e Mariana Ferolla estuda a posição do Tribunal sobre os discursos envolvendo blasfêmia. 1 Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Eleitoral e Administração de Eleições pela Universidade de Paris II. Pós-Graduado em Educação a Distância pela Universidade da Califórinia, Irvine. Advogado sócio da MADGAV Advogados. Fundador e Diretor da SmartGov – Governança Criativa. Fundador e primeiro Coordenador-Geral da Abradep. Fundador e CoordenadorAcadêmico do IDDE. Professor da Faculdade de Direito da UFMG. PEREIRA, Rodolfo Viana. Apresentação. In: PEREIRA, Rodolfo Viana (Org.). Direitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio. v. III. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 7-8. ISBN: 978-85-67134-14-7. Disponível em: https://doi.org/10.32445/9788567134147l 8 RODOLFO VIANA PEREIRA | Como de praxe, há um bom volume de artigos voltados para análise da propa- ganda eleitoral e da comunicação política. Nesse grupo, Kym Campos trata da possi- bilidade de remoção de conteúdos publicados na internet através de medidas extraju- diciais. Felipe Dayrell analisa as implicações do não comparecimento de candidatos a debates promovidos pela mídia televisiva. Cristiane Resende busca fundamentos para a regulação das fake news durante o período eleitoral e Giselle Rocha avalia algumas jurisprudências restritivas do TRE-MG e TSE, no âmbito do horário eleitoral gratuito. Por fim, abordando outros temas diversos, temos Álvaro Castelo Branco enfren- tando a difícil temática da regulação estatal da manifestação de servidores públicos em redes sociais. Tiago Fonseca investiga a aplicação da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais na regulação do discurso de ódio produzido também nas redes sociais. Por fim, Bárbara Batalha sustenta uma visão liberal, de não-restrição do discurso, tendo por base o conceito de neutralidade. Os artigos ora apresentados nesse Volume III são resultado novamente das discussões e dos seminários realizados na disciplina “Liberdade de expressão, (in) tolerância e propaganda eleitoral” por mim ministrada no Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da UFMG. Agradeço a todos os participantes pelo rico debate produzido e mais uma vez disponibilizado ao público. A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS PELO ESTADO E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO Álvaro Chagas Castelo Branco1 RESUMO No Brasil a liberdade de expressão é pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. A cen- sura, por outro lado, logrou-se como prática repudiada, o que não impede a responsabilização do indivíduo em caso de dano ou crimes decorrentes de manifestações abusivas. Manifestações em redes sociais, quando praticadas por servidores públicos, sejam eles civis ou militares, tem gerado inúmeras discussões, inclusive com a instauração de procedimentos administrativos disciplinares e ações judiciais, que visam apurar ilícitos e aplicar penalidades em casos de comprovada conduta antinormativa. A questão se torna mais interessante se analisarmos a possibilidade de punição ainda que tais manifestações sejam proferidas fora do ambiente de trabalho, em blogs privados, redes sociais e demais aplicativos. INTRODUÇÃO O presente artigo discorre sobre a possibilidade de se impor limites à liberdade de expressão e do pensamento, quando esse direito for exercido via redes sociais, notadamente quando tais condutas forem praticadas por servidores públicos civis ou militares, sejam estaduais ou federais, em razão do regime diferenciado que regem as suas respectivas carreiras. No Brasil, desde que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 entrou em vigor, sacramentou-se, de vez, a liberdade de expressão como pilar funda- mental do Estado Democrático de Direito. A censura, por outro lado, logrou-se como prática repudiada, o que não impede a responsabilização do indivíduo em caso de dano ou crimes decorrentes de manifestações abusivas. 1 Advogado da União. Professor Universitário. Doutorando em Direito (UFMG). LLM pela Washington University in St Louis School of Law. BRANCO, Álvaro Chagas Castelo. A possibilidade de regulamentação das redes sociais dos servidores públicos pelo Estado e a liberdade de expressão. In: PEREIRA, Rodolfo Viana (Org.). Direitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio. v. III. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 9-21. ISBN: 978-85-67134-14-7. Disponível em: https://doi.org/10.32445/9788567134147l 10 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO Na esfera privada é garantido, em tese, o direito a qualquer pessoa de divulgar, elogiar ou criticar a atuação do Poder Público, seja sobre medidas de governo, propo- situras legislativas, posicionamento de parlamentares, programas, campanhas etc. E, naturalmente, tal faculdade não se limita à comunicação presencial: os canais virtuais igualmente se incluem no rol de ferramentas para sua efetivação. Por outro lado, manifestações do mesmo tipo, quando praticadas por servidores públicos, sejam eles civis ou militares, tem gerado inúmeras discussões, não somente na academia, mas também na própria esfera administrativa e judicial, notadamente com a instauração de procedimentos administrativos disciplinares e ações judiciais, que visam apurar ilícitos e aplicar penalidades em casos de comprovada conduta antinormativa. A questão se torna mais interessante se analisarmos a possibilidade de punição ainda que tais manifestações sejam proferidas fora do ambiente de trabalho, em blogs privados, redes sociais e demais aplicativos. No dia 15 de maio de 2019, por exemplo, a Promotoria de Justiça Militar do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios requisitou à Corregedoria-Geral da Polícia Militar do Distrito Federal que apurasse as supostas transgressões disciplinares atribuídas ao policial militar Rodrigo Jardim. Por meio da imprensa, chegou ao conhe- cimento do Ministério Público a postagem na rede social Instagram em que o usuário identificado por JARDIMZIM05, com fardamento da Polícia Militar do Distrito Federal, ao lado de outros colegas de farda, e no interior de veículo da corporação, assim se manifestou: “E vamos todos para o extra na Esplanada brincar com os comunas”2. A publicação é seguida de emoticons de uma bomba, uma explosão e um taco de beisebol. 1 A RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO AOS SERVIDORES PÚBLICOS O princípio da moralidade para a Administração Pública, imposto pela Consti- tuição da República de 1988, é reforçado pelo artigo 116, inciso II, da Lei Federal n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos da União, das Autarquias e das Fundações Públicas Federais), e determina como dever do servidor: “ser leal às instituições a que servir.” Além disso o artigo 132, inciso V, da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n.º 8.429/1992) e do Decreto 2 <ht tp : / /www.mpd f t .mp .b r /po r t a l / i ndex .php /comun icacao-menu /sa l a -de - impren - sa/not ic ias/not ic ias-2019/10873-min is te r io-pub l ico- requ is i ta-a-pmdf -que- invest i - gue-manifestacao-de-policial-nas-redes-sociais?fbclid=IwAR3JLfZ8Cr_hccxNgd1flMvq_4kCwBWfm- ZRyUp-34qETISqk-2WQg2qRPRQ>. Acesso em: 28 maio 2019. http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2019/10873-ministerio-publico-requisita-a-pmdf-que-investigue-manifestacao-de-policial-nas-redes-sociais?fbclid=IwAR3JLfZ8Cr_hccxNgd1flMvq_4kCwBWfmZRyUp-34qETISqk-2WQg2qRPRQ http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2019/10873-ministerio-publico-requisita-a-pmdf-que-investigue-manifestacao-de-policial-nas-redes-sociais?fbclid=IwAR3JLfZ8Cr_hccxNgd1flMvq_4kCwBWfmZRyUp-34qETISqk-2WQg2qRPRQ http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2019/10873-ministerio-publico-requisita-a-pmdf-que-investigue-manifestacao-de-policial-nas-redes-sociais?fbclid=IwAR3JLfZ8Cr_hccxNgd1flMvq_4kCwBWfmZRyUp-34qETISqk-2WQg2qRPRQ http://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2019/10873-ministerio-publico-requisita-a-pmdf-que-investigue-manifestacao-de-policial-nas-redes-sociais?fbclid=IwAR3JLfZ8Cr_hccxNgd1flMvq_4kCwBWfmZRyUp-34qETISqk-2WQg2qRPRQ 11A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... n.º 1.1171/1994, que aprovou o Código de Ética do Servidor do Poder ExecutivoFederal tratam do assunto da mesma maneira. Por muito tempo, se disseminou no ordenamento jurídico brasileiro a ideia de que era proibido punir administrativamente o servidor público em função do seu com- portamento particular fora do seu ambiente de trabalho. Carlos S. de Barros Júnior, por exemplo, destaca que os fatos praticados na vida particular do servidor só po- deriam ser computados para fins de punição na órbita disciplinar quando afetassem gravemente a consideração do infrator e abalarem o exercício funcional, pautando-se o exame segundo o meio, os costumes vigentes no meio social, o grau de reprovação da conduta e sobretudo a publicidade e o escândalo decorrentes da má atitude, tendo em vista que as instituições são julgadas por seus integrantes, mas afiança que não se poderia invadir a esfera da intimidade do servidor.3 Esta ideia surgiu do fato de que o antigo Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais, regido pela então Lei n.º 1.711/1952, em seus artigos 195, VII e 207, III, proibiam a usura em qualquer de suas formas, assim como a incontinência pública e escandalosa, o vício de jogos proibidos e a embriaguez habitual, indepen- dentemente de onde estas condutas eram praticadas. No entanto, o atual Regime, no art. 132, V, apesar de continuar proibindo a incontinência pública ou escandalosa, res- salva expressamente que a punição ocorre se a conduta for cometida na repartição. Soma-se a isto que a Constituição da República de 1988, como já ressaltado anteriormente, ressalvou, como direito inalienável do indivíduo a intimidade e a pri- vacidade, reforçando a ideia de que a vida particular do servidor público não poderia ser punida ou regulamentada pelo Regime Jurídico Único e, consequentemente, pela Administração Pública. Por outro lado, o Decreto n.º 1.171, de 22 de junho de 1994, expressamente impõe a conduta moral do servidor público federal na sua vida particular nos termos do inciso I da Seção I do Capítulo I do Código: “a dignidade, o decoro, o zelo, a efi- cácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele, já que refletirá o exercício da vocação do próprio poder estatal. Seus atos, comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos.” Na mesma linha de raciocínio, o inciso VI é no mesmo sentido. O dispositivo encontra-se assim consignado: 3 JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 24. 12 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO “A função pública deve ser tida como exercício profissional e, portanto, se inte- gra na vida particular de cada servidor público. Assim, os fatos e atos verifica- dos na conduta do dia-a-dia em sua vida privada poderão acrescer ou diminuir o seu bom conceito na vida funcional.” As alíneas “n” e “p” do inciso XV da Seção II do mesmo Código, ratificam a im- posição do servidor pautar sua vida pessoal dentro da moral e da ética, ao vedar que o servidor público se apresente embriagado, no serviço ou fora dele habitualmente, exercer atividade profissional de maneira não ética ou ligar o seu nome a empreendi- mentos de cunho duvidoso. Indaga-se, dessa forma, se o ordenamento jurídico poderia ou não exigir que o servidor público pautasse sua vida particular, fora da sua vida pública e do seu ambiente institucional, dentro da moral e da ética? Esta indagação tem origem a partir da discussão entre o que venha a ser “com- portamento particular”, “intimidade” ou privacidade”. A dúvida é ainda reforçada porque, para analisar a possibilidade de punição funcional de um fato cometido na vida particular, é necessário se aplicar o princípio da proporcionalidade, para verificar se existe um vínculo moral e funcional entre o comportamento na vida particular com as atribuições do servidor público. O comportamento particular e imoral é aquele que tem a forte expressão e co- notação pública, que extravasa as paredes da sua privacidade. É o caso do servidor público que vive se embriagando, que é viciado em jogos ou em substancias entor- pecentes, que costuma causar escândalos em locais públicos, que vive criticando e xingando abertamente a instituição pública onde trabalha etc. Mas não basta, para fins de responsabilização funcional, que o fato seja co- metido fora da intimidade do servidor. Para tal responsabilização, é preciso haver um vínculo entre o comportamento particular e imoral com a atribuição do servidor público, vínculo este analisado sob o prisma da proporcionalidade, da razoabilidade. Em tese, não é possível exigir e punir o servidor público que se comporta imoralmente fora da repartição, na sua vida particular, se este comportamento não trouxesse uma imagem negativa para a instituição, para a sua carreira e atingisse o exercício das suas atribuições. É este o sentido do artigo 148 da Lei n.º 8.112/1990, ao dizer que o processo disciplinar deve ser instaurado para apurar a responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontrasse investido. 13A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo (Apelação n. 70014655955, 3a Câmara Cível, Rel. Des. Rogerio Gesta Leal), afastou a punição feita pela Prefeitura de Guaporé/RS ao servidor municipal que era operador de máquinas, em razão de punição aplicada pelo Poder Executivo municipal em razão de suposta prática de crime de lesão corporal contra adversários e o próprio árbitro, em uma partida de futebol na cidade. Entendeu-se não haver qual relação entre o comporta- mento imoral cometido na vida particular com a natureza das atribuições funcionais do operador de máquina. O mesmo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deixou bem claro esta pos- sibilidade de haver processo disciplinar pela conduta não ética do servidor público na sua vida particular, ao manter a punição de um policial que cometera o crime de este- lionato, mesmo sem se valer da sua condição de policial, e ainda fora da repartição, justamente porque as funções institucionais do servidor eram incompatíveis com a prática de uma conduta tão antiética como o estelionato, mesmo na vida particular. Aquele Tribunal foi enfático ao deixar consignado que, “pouco importa, ou- trossim, que a conduta ilícita do impetrante tenha sido praticada fora da função pú- blica (...), visto que, tão grave foi a infração, que inevitavelmente teve repercussão junto ao serviço público e a organização policial (...) A conduta do impetrante não se refere a crime funcional, e sim a delito de estelionato (art. 171 do CP) que implica desabono ao servidor de maneira que o inabilita para o exercício da função policial.” (TJRS, Mandado de Segurança n. 70006068977, Relator Des. Paulo Augusto Monte Lopes, Tribunal Pleno). Também podem ser citados precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que, em situação análoga às anteriormente discutidas, entendeu possível a abertura de processo disciplinar contra Advogado da União, que em suposta atitude imoral e ilegal, fora das suas atribuições e sem utilização das suas prerrogativas funcional, fez a prova de um concurso público se fazendo passar por outra pessoa. A fundamen- tação foi justamente a falta de conduta compatível com a moralidade e a improbidade administrativa, que o cargo de Advogado da União impõe a seu titular, além do dever institucional de defender estes valores (STJ, MS 11035/DF, Processo: 200501604424, 3a Seção, DJ de 26.06.2006, p. 116, Rel. Min. Laurita Vaz). Marcelo Catatonia, Maria Fernanda Salcedo Repolês e Francisco de Castilho Prates visualizam que há uma exigência constitucional e democrática de transparência no trato da coisa pública, abrindo espaço para indagações sobre a organização e as condutas funcionaisdos servidores públicos, dos agentes políticos e dos membros dos poderes do Estado, haja vista que, do contrário, teríamos não a defesa de direitos, 14 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO como, por exemplo, o da privacidade, mas a emergência de interesses meramente egoísticos, a busca pela persistência de ilegítimos, pois injustificáveis e indefensáveis, privilégios.4 2 A RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO AOS SERVIDORES PÚBLICOS MILITARES A independência das normas jurídicas militares emanam do fato de que o Direito Militar, distinto e separado da regulamentação jurídica comum, tem geral e análoga existência nas legislações contemporâneas e ligadas à vida e ao desenvolvimento histórico.5 Em uma análise preliminar, a suposta conduta do militar citada no início do artigo - postagens ofensivas no Instagram - encontraria adequação normativa nos itens 59 (Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado) e 113 (Induzir ou concorrer intencionalmente para que outrem incida em transgressão disciplinar) do Anexo I do Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto n.º 4.346/2002), aplicado no âmbito da Polícia Militar do Distrito Federal, por força do Decreto n.º 23.317/2002, do Governo do Distrito Federal. Por outro lado, há quem sustente, assim como no caso dos servidores civis, a ilegalidade das normas militares cerceadoras da livre manifestação do pensamento, com o argumento de que tais medidas afrontariam a dignidade humana do profissional da segurança pública. Loureiro Neto, por exemplo, afirma que se considerar como crime ou transgressão o exercício da liberdade de expressão, retrocede-se ao período inquisitorial.6 Em maio de 1998, o Supremo Tribunal Federal julgou o Habeas Corpus nº 75.676/RJ no qual figurou como paciente um militar da reserva que fora acusado de crime de publicação ou crítica indevida (artigo 166 do CPM) por ter concedido uma entrevista à rede rádio CBN, na qual criticou publicamente ato do Comandante Geral da PMRJ, o Governo do Estado, os cursos de formação profissional ministrados aos policiais e à política de segurança pública. No voto condutor da concessão da ordem, o Ministro Sepúlveda Pertence deixou consignado: 4 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de et al. Liberdade de imprensa e autoridades públicas: aponta- mentos a partir do estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Quaestio Iuris. vol. 10, nº. 01, Rio de Janeiro, 2017. p 223. 5 COSTA, Álvaro Mayrinck da. Crime militar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 205. p. 46 6 LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. São Paulo: Atlas, 2001. p 134 15A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... “Ora, ao contrário do que ocorre com as Forças Armada, que são instituições militares pela sua própria natureza, as Polícias Militares, cuja função de poli- ciamento ostensivo e de preservação da ordem pública é eminentemente civil, são apenas corporações militarizadas mas, nem por isso, assumem, contra a natureza das coisas, status de instituições militares”(...) “Em verdade, submeter o policial militar da reserva ou reformado às proibições do artigo 166 do Código Penal Militar, sequer se cogitando de manifestações ofensivas, representa clara limitação à livre manifestação do pensamento e estabelecimento de uma forma de censura.”7 O mesmo assunto foi debatido no Habeas Corpus 83.125-7/DF, julgado em 16 de setembro de 2003, cujo relator foi o Ministro Marco Aurélio. Nessa ação, buscava- se a concessão da ordem para extirpar o crime tipificado no artigo 219 do CPM, que considera crime propalar fatos, que sabe inverídicos, capazes de ofender a dignidade ou abalar o crédito das forças armadas ou a confiança que estas merecem do pú- blico. No caso, o paciente havia publicado livro intitulado “Feridas da Ditadura Militar” abordando temas, tidos como ofensivo à Forças Armadas, tais como desapropriação realizada pela União de terras pertencentes a pequenos agricultores no município de Formosa/GO, destinado toda sua extensão para o inadequado uso militar; torturas praticadas durante o período militar e sobre a guerrilha do Araguaia. Ressaltou o relator em seu voto: “Não há absolutamente nada na denúncia que demonstre, de forma inequívo- ca, que os fatos propalados pelo recorrido sejam inverídicos, falsos, mentiro- sos, caluniosos, muito menos que ele tivesse plena consciência disso. Aliás seria verdadeiramente aberrante tachar de inverdade uma tela tão triste da nossa história recente como o da repressão e da tortura, nem se podendo, em nome da proteção da honra e da intimidade, restringir a livre manifestação do pensamento quando se trata da discussão e crítica de arbitrariedades patroci- nadas ou consentidas pelo Poder Público.”8 3 A RESTRIÇÃO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO AOS EMPREGADOS DA INICIATIVA PRIVADA A Consolidação das Leis do Trabalho dispõe em seu artigo 482 sobre a possi- bilidade de demissão por justa causa de empregado que tenha praticado ato consi- derado lesivo à honra ou boa fama do empregador ou de superiores hierárquicos, ca- bendo ao empregador analisar essas manifestações para tomar as medidas cabíveis. 7 Habeas Corpus nº 75.676/RJ. 8 Habeas Corpus 83.125-7/DF 16 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO No Brasil, os Tribunais Regionais do Trabalho têm recebido cada vez mais re- clamações trabalhistas contendo pedidos de declaração de nulidade de dispensas por justa causa decorrentes de supostos atos lesivos à honra do empregador praticados pelos empregados. Ao analisar as decisões proferidas, verifica-se que não há um po- sicionamento majoritário por parte dos tribunais do trabalho, cabendo aos juízes uma análise pormenorizada das provas e dos fatos apresentados pelas partes. Nessa direção foi decidido pela 1ª Câmara do TRT da 12ª região nos autos do processo 0000755-17.2016.5.12.003. No julgamento foi confirmada a sentença que reconheceu a justa causa praticada por um ex-empregado da empresa Viqua Indústria de Plásticos LTDA, tendo em vista que publicou comentários ofensivos no Facebook contra as suas colegas de trabalho. A ementa do acórdão é a seguinte: “DESPEDIDA POR JUSTA CAUSA. ALÍNEA “J” DO ART. 482 DA CLT. VEICULA- ÇÃO DE OFENSAS A COLEGAS DE TRABALHO POR MEIO DE REDE SOCIAL (FACEBOOK). CARACTERIZAÇÃO DE PRÁTICA DE ATO LESIVO À HONRA E À BOA FAMA DE COLEGAS DE TRABALHO NO SERVIÇO, A DESPEITO DE A POSTAGEM DAS MENSAGENS NÃO TER SIDO REALIZADA NO SERVIÇO, DADA SUA REPERCUSSÃO NO AMBIENTE DE TRABALHO. Ainda que a postagem de mensagens ofensivas à honra e à boa fama de co- legas de trabalho através de chamada rede social (Facebook) não tenha sido realizada no ambiente de trabalho, “no serviço”, na dicção da alínea “j” do art. 482 da CLT, elas chegaram ao conhecimento das colegas, repercutindo no ambiente de trabalho, causando revolta nas colegas atingidas, afigurando-se caracterizada a prática de falta grave ensejadora da despedida por justa causa.” Verifica-se, portanto, que também na esfera laboral privada, a repercussão de comentários ofensivos em redes sociais pode ser suficiente para dar ensejo à dis- pensa por justa causa, seja durante o período da prestação de serviços, seja fora do local do desenvolvimento das atividades laborais. 4 AS REDES SOCIAIS COMO FORMA ALTERNATIVA À LIBERDADE DE EXPRESSÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS As redes sociais têm consumido um tempo cada vez mais significativo de mi- lhões de pessoas. Passamos diariamente várias horas conectados a elas. É inegável que internet tornou a sociedade efetivamente transparente, possibilitando a qualquer pessoa o acesso a uma quantidade máxima de informações em relação a qualquer aspecto da vida social. 17A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... Nada obstante, tal rede é dotada de características absolutamente próprias e conflitantes, ao mesmo tempo que pode se tornar um espaço livre, sem controle, sem limitesgeográficos e políticos, e, portanto, insubordinado a qualquer poder. Para os servidores públicos integrantes do Poder Executivo e políticos em geral, as redes sociais particulares promovem a criação de ambiente propício para o diálogo horizontal (sem hierarquia) e direto com os representantes eleitos, dando voz àqueles que jamais conseguiriam participar de audiências pelas vias tradicionais. Com a finalidade de esclarecer o tema, a Secretaria Especial de Comunicação da Presidência da República editou Manual com Orientações a Respeito das Publica- ções dos Servidores em Mídias Sociais9. O Ministério do Planejamento, por sua vez, também elaborou Portaria específica (Portaria n.º 382/2016) para abordar a questão10. No ano de 2009, em estudo das Nações Unida para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em parceria com o Centro de Estudo de soluções para a segurança pública (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, levante-se uma estimativa de um crescimento exponencial de blogs entre os servidores da segurança pública, acumu- lando o crescimento de aproximadamente 1000% (mil por cento) em dois anos.11 O autor da pesquisa assevera que além do exercício do direito à liberdade de expressão exercida pelos servidores da segurança pública por meio dos blogs, essa tendência trouxe mais motivação à categoria, que vem ampliando a discussão e tro- cando informações. Aponta ainda que a explicação para o fenômeno crescente dos blogs e redes sociais se dá em razão do choque entre os novos policiais que vem entrando na corporação. Sobre esse tema específico, Liliana Paesani explica que, embora particularmente delicada a operação para delimitar a esfera da privacidade, é evidente que o direito à privacidade constitui um limite natural ao direito à informação. Em contrapartida, está privada de tutela a divulgação da notícia, quando consentida pela pessoa. Admite-se, porém, o consentimento implícito, quando a pessoa demonstra interesse em divulgar aspectos da própria vida privada. Entretanto, podem ser impostos limites à normal es- fera da privacidade até contra a vontade do indivíduo, mas em correspondência a sua posição na sociedade, se for de relevância pública. Nesses casos, será possível indi- 9 http://www.secom.gov.br/pdfs-da-area-de-orientacoes-gerais/internet-e-redes-sociais/secommanual- redessociaisout2012_pdf.pdf 10 http://www.planejamento.gov.br/et ica/arquivos/por tar ia-382-codigo-de-conduta-et ica -mp-08-12-2016.pdf/view 11 LIMA, Mário Sérgio Lima. Agencia do Estadão. Blogosfera Policial Cresce e vira estudo da ONU. Disponível em: www.estadao.com.br/noticias/cidades,blogosfera-policial-cresce-no-brasil-e-vira-estu- do-da-onu,352987,0.htm. Acesso em: 28 maio 2019. http://www.secom.gov.br/pdfs-da-area-de-orientacoes-gerais/internet-e-redes-sociais/secommanualredessociaisout2012_pdf.pdf http://www.secom.gov.br/pdfs-da-area-de-orientacoes-gerais/internet-e-redes-sociais/secommanualredessociaisout2012_pdf.pdf http://www.planejamento.gov.br/etica/arquivos/portaria-382-codigo-de-conduta-etica-mp-08-12-2016.pdf/view http://www.planejamento.gov.br/etica/arquivos/portaria-382-codigo-de-conduta-etica-mp-08-12-2016.pdf/view 18 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO vidualizar, se há interesse público em divulgar aspectos da vida privada do indivíduo. O interesse será relevante somente com relação à notícia cujo conhecimento demonstre utilidade para obter elementos de avaliação sobre a pessoa como personalidade pú- blica, limitando, desta forma – e não eliminando – a esfera privada do próprio sujeito.12 Numa realidade global marcada por substanciais avanços científicos, Henry Kis- singer salienta que “a tecnologia da internet não tem se deixado enquadrar por estra- tégias ou doutrinas – pelo menos até o momento. Na nova era, existem capacidades para as quais não há nenhuma interpretação comum”, de modo que “existem poucos limites – se é que existem – no sentido de definir restrições tácitas ou explícitas”.13 Assim, na análise das redes sociais, deve-se reconhecer a polissemia dessa expressão, como decorrência das próprias transformações da sociedade ao longo do tempo. Por consequência, visando garantir uma maior segurança jurídica na atuação dos servidores públicos federais, por opção metodológica, devemos adotar as termi- nologias contidas no já mencionado Manual de Orientação em Mídias Sociais. Esta publicação, editada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, consigna que: “O conceito de redes sociais precede a Internet e as ferramentas tecnológicas – ainda que o termo não fosse popular no passado. Há algumas correntes que apontam a existência das redes sociais há anos. São comunidades, redes de relacionamentos, tribos. Já as mídias sociais passaram a ser interpretadas como as plataformas de Internet que facilitam e aceleram a conexão entre as redes (grupos) sociais.” Nos últimos anos, os servidores públicos federais vêm debatendo temas de enorme importância na internet, especialmente no âmbito das redes sociais (e dos respectivos grupos virtuais de discussão). Com efeito, são abordados vários assuntos concernentes não apenas à atuação dos órgãos públicos (interna corporis), como também ao seu relacionamento com a sociedade. Tratam-se, portanto, de ambientes virtuais onde se moldam relações de poder, que acabam influenciando a própria orga- nização da Administração Pública Federal. Em uma definição bastante prática, Anthony Giddens afirma que o poder signi- fica, de modo geral, a capacidade de indivíduos ou grupos de alcançar seus objetivos ou fazer valer seus interesses a despeito de oposições ou resistências.14 12 PAESANI, Liliana Minardi. Direito e internet: liberdade de informação, privacidade e responsabilida- de civil. São Paulo: Atlas, 2000. 141 p. 49 13 KISSINGER, Henry. Ordem mundial. Tradução Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 178. 14 GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 6. ed. p. 424. 19A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... Para o autor mexicano Moisés Naím, o conceito de poder é extremamente amplo, podendo, inclusive, ser compreendido como “a capacidade de conseguir que os outros façam ou deixem de fazer algo.”15 Nessa linha de ideias, com a difusão da internet, tem-se observado cada vez mais o surgimento de “micropoderes”, que, nas palavras de Michael Foucault, podem ser entendidos como a formação de “atores pequenos, desconhecidos ou até insigni- ficantes, que encontraram modos de minar, encurralar ou frustrar as megapotências, essas grandes organizações burocráticas que antes controlavam seus âmbitos de ação”.16 Isso se reflete não apenas nas relações entre a Administração Pública e os cidadãos, como também nas interações ocorridas entre os próprios servidores públicos. Ocorre que, não obstante o crescente uso das redes sociais pelos servidores públicos, ainda se vê uma enorme indefinição por parte da Administração Pública Federal no trato dessa matéria. Isso se deve à necessidade de sopesar dois aspectos jurídicos, por vezes conflitantes, tais como a a liberdade individual dos servidores nas suas relações privadas, especialmente no uso de perfis pessoais nas redes sociais (as quais, em tese, não poderiam ser objeto de intervenção estatal); e a imagem pública desses servidores nas redes sociais, principalmente quando veiculam men- sagens, vídeos e demais conteúdos que possam afetar (mesmo que indiretamente) os interesses estatais. Nesse cenário dúbio e vacilante, a Administração Pública Federal, por exemplo, tem preferido enxergar os “perfis pessoais” dos servidores nas redes sociais sob um prisma não intervencionista. Afinal, se trata de pessoas atuando em sua esfera pri- vada, formalmente desvinculada das atividades que exercem nos respectivos órgãos públicos. Todavia, embora respeite a liberdade individual e a autonomia privada dos servi- dores públicos nas redes sociais, o já citado Manual de Orientaçãoem Mídias Sociais ressalta que: os conteúdos postados são sempre de ordem pessoal – mas, a partir do momento em que o usuário definir o seu local de trabalho, eles invariavelmente terão também um teor profissional. Isso significa que a separação entre um e outro é relativa e pode gerar interpre- tações diversas. 15 NAÍM, Moisés. El fin del poder. Cidade do México: Random House Mondadori, 2014. p. 44 16 FOUCAUL, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993. 11. ed. p. 24. 20 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO Partindo-se dessas premissas, o aludido Manual recomenda aos servidores públicos federais algumas “boas práticas”, tais como: “proteja-se”, “seja criterioso”, “muita atenção com acesso” e “respeito às opiniões”. No mesmo sentido, o também já mencionado Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos, aplicável aos “que exercem cargo, emprego ou função” em tal órgão, no que tange às redes sociais, preceitua que: “Art. 26. Sem prejuízo do pensamento crítico e da liberdade de expressão, o agente público não deve, de forma deliberada, realizar ou provocar exposições nas redes sociais e em mídias alternativas que causem prejuízos à imagem institucional do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão e de seus agentes públicos.” CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS Não há dúvidas que a liberdade de expressão é um direito fundamental e con- solidado em qualquer estado democrático. Não obstante, cada indivíduo tem seu livre arbítrio e sabe o quanto quer expor sua intimidade. Há diversos precedentes que comprovam que eventual exposição de um servidor público em suas redes sociais pode ter consequências graves para quem se expõe ou expõe outras pessoas, nas diversas esferas do Direito. Como restou demonstrado, as orientações e normas da Administração Pública Federal atualmente existentes possuem viés restritivo, ainda que não imponham prá- ticas específicas aos servidores públicos. Opta-se, em verdade, por uma espécie de autorregulação de conduta pelos próprios servidores no uso das redes sociais, a fim de evitar que sua atuação privada afete a imagem dos órgãos públicos em que trabalham. Por outro lado, ainda não se observa na Administração Pública Federal uma postura mais proativa, relativamente à participação dos servidores públicos nas redes sociais. Conforme visto, trata-se de ambientes que não se prestam apenas aos temas de natureza privada, servindo inclusive para debates técnicos e diálogos profissionais, o que demandaria maior consideração dessa temática pelos órgãos competentes. É certo que os servidores públicos devem resguardar certos dados obtidos em sua atuação profissional, especialmente as informações de natureza pessoal e aquelas relativas à segurança da sociedade e do Estado. 21A POSSIBILIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS DOS SERVIDORES PÚBLICOS... Respeitados tais limites, o Poder Público deve atuar de acordo com os prin- cípios administrativos previstos no art. 37, caput, do texto constitucional, dentre os quais se situa a eficiência e a moralidade. Portanto, é fundamental que os órgãos públicos desenvolvam políticas de pes- soal que considerem essa realidade, ao mesmo tempo respeitando a liberdade indi- vidual dos servidores nas suas relações particulares e reconhecendo a importância estratégica dos debates ocorridos nas redes sociais. A ponderação desses aspectos garantirá uma atuação estatal mais eficiente, democrática e plural, num contexto em que a tecnologia da informação vem ensejando profundas transformações na sociedade. Da mesma forma, embora praticado em perfis privados e fora do ambiente de trabalho, caso publicações em redes sociais ofendam o interesse público, não resta dúvida que tais servidores estrarão sujeitos a punições nas esferas administrativa, civil e criminal. REFERÊNCIAS COSTA, Álvaro Mayrinck da. Crime militar. Rio de Janeiro: Lumen Juris. FOUCAUL, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993. 11. ed. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 6. ed. JÚNIOR, Carlos S. de Barros. Do poder disciplinar na administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972. KISSINGER, Henry. Ordem mundial. Tradução Cláudio Figueiredo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 178. LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal Militar. São Paulo: Atlas, 2001. NAÍM, Moisés. El fin del poder. Cidade do México: Random House Mondadori, 2014. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de, et al. Liberdade de imprensa e autoridades públicas: apontamentos a partir do estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Quaestio Iuris. vol. 10, nº. 01, Rio de Janeiro, 2017. PAESANI, Liliana Minardi. Direito e internet: liberdade de informação, privacidade e respon- sabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2000. 22 ÁLVARO CHAGAS CASTELO BRANCO NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A REGULAÇÃO DO PONTO DE VISTA ODIOSO Bárbara Batalha da Silva1 RESUMO A pretensão deste trabalho é demonstrar a incompatibilidade das leis contra o discurso de ódio com uma compreensão da liberdade de expressão própria de um regime democrático complexo e plural. Para tanto, retoma-se uma classificação, elaborada pela Suprema Corte norte-americana, acerca dos tipos de regulações que podem constranger um discurso. Uma regulação pode ser neutra quanto ao conteúdo, baseada na matéria ou baseada no ponto de vista. Essa distinção é relevante para compreender as características, motivações e consequências por trás de cada uma. Será demonstrado que as leis contra o discurso de ódio são normas de natureza vaga que discri- minam pontos de vista e concedem elevado e perigoso poder discricionário para as autoridades agirem com base em favoritismo e intolerância. Sem olvidar do potencial nocivo dos discursos de ódio, será apresentado um parâmetro alternativo para coibir suas repercussões negativas, qual seja, o harm principle, o qual dispensa a edição de qualquer norma especial contra o discurso de ódio, porquanto abarca qualquer tipo de comunicação. Não se analisa a posição adotada pelo manifestante, mas sim a seriedade do dano que seu discurso provoca à luz dos fatos e das cir- cunstâncias em apreço. A depender do dano, da sua iminência e gravidade, a interferência estatal pode ser necessária e, portanto, razoável. INTRODUÇÃO A sociedade democrática complexa exige um sistema de liberdade de expressão robusta para que a população heterogênea possa conviver no mesmo ambiente, de acordo com o propósito de vida escolhido por cada membro, sob certa harmonia e paz. É essencial que cada indivíduo tenha espaço para dar sentido à sua existência – desde que sua conduta respeite o arbítrio dos demais – e expresse suas percepções, o que julga ser correto e errado, ainda que essa percepção destoe da majoritária. 1 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialização em Filosofia do Direito pela PucMinas. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3817389717699657. Endereço eletrônico: bbatal- has@gmail.com SILVA, Bárbara Batalha da. Neutralidade e liberdade de expressão: a regulação do ponto de vista odioso. In: PEREIRA, Rodolfo Viana (Org.). Di- reitos políticos, liberdade de expressão e discurso de ódio. v. III. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 23-42. ISBN: 978-85-67134-14-7. Disponível em: https://doi.org/10.32445/9788567134147l http://lattes.cnpq.br/3817389717699657 24 BÁRBARA BATALHA DA SILVA Nesse cenário, discute-se se as leis contra o discurso de ódio são compatí- veis com a democracia. Trata-se de instrumentos de censura amplamente aceitos por serem idealmente meios eficazes de combater o preconceito. A pretensão deste trabalho, o qual adota uma postura cética em face de qualquer tentativa de impor limi- tações normativas à livre expressão, se volta à desconstrução dessa visão idealizada. Inicialmente, é preciso ter uma noção dos tipos de regulações que podem recair sobre a liberdade de expressão, para posteriormente identificar em qual categoria taisleis se encaixam e as decorrências disso. Essa noção, que parte de uma classificação elaborada pelo sistema constitucional norte-americano, é apresentada no tópico 2.1. No tópico 2.2, volta-se principalmente às regulações não neutras – aquelas nas quais se analisa o conteúdo do discurso – e a compatibilidade delas com a liberdade de expressão. Cada regulação possui características e repercussões distintas que são determinantes para verificar sua legitimidade. No tópico 3.1, analisa-se, especifica- mente, as leis contra o discurso de ódio. Será demonstrado que se trata de regulações de ponto de vista que concedem elevado poder discricionário para as autoridades agirem com base em favoritismo e intolerância. Sem ignorar que o discurso de ódio pode representar um mal efetivo, no tópico 3.2 apresenta-se um parâmetro alternativo para coibir suas repercussões negativas, qual seja, o harm principle. Este dispensa a edição de qualquer norma especial contra o discurso de ódio, porquanto abarca qualquer tipo de comunicação. Não se analisa a posição adotada pelo manifestante, mas sim a seriedade do dano que seu discurso provoca à luz dos fatos e das circuns- tâncias em apreço. A depender do dano, da sua iminência e gravidade, a interferência estatal pode ser necessária e, portanto, razoável. 1 NEUTRALIDADE E REGULAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO 1.1 Neutralidade quanto ao conteúdo, regulação da matéria e regulação do ponto de vista No sistema constitucional dos Estado Unidos, a forma da restrição é relevante para definir sua legitimidade. Adota-se uma classificação na qual uma regulação pode ser, em ordem crescente de presunção de inconstitucionalidade, (1) neutra quanto ao conteúdo, (2) baseada na matéria ou (3) baseada no ponto de vista. Como bem explicado por James Weinstein: A tendência da doutrina americana contemporânea acerca da livre expressão é ser intensamente hostil à regulação do debate público baseada no conteúdo. Leis baseadas no conteúdo são aquelas em que o governo visa regular uma expressão em razão da mensagem transmitida. Regulações neutras quanto ao conteúdo, 25NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: em contrapartida, limitam discursos por um motivo desvinculado da mensagem, por seu tempo, local ou forma, por exemplo. Uma lei proibindo alguém de falar sobre aborto é baseada no conteúdo; uma que proíbe o uso de alto-falantes em bairros residenciais após as 22h, seria neutra quanto ao conteúdo. As regulações de conteúdo se apresentam de formas diversas, umas piores que outras à luz da Primeira Emenda. O tipo de regulação baseada no conteúdo mais “egrégio” é a que discrimina o ponto de vista. Regulações discriminatórias de pontos de vista (...) são aquelas baseadas na “motivação ideológica ou opinião ou perspectiva específica do manifestante” (tradução do autor).2 As regulações (2) e (3) compõem a categoria “não neutra” na medida em que o conteúdo da mensagem é relevante para aferir se ela pode ser expressa. Em con- trapartida, a regulação (1) opera por uma visão neutra, pois nenhum tipo de discurso pode ser proferido, seja qual for o tópico ou a posição a ser apresentada. A jurisprudência norte-americana entende que a regulação não neutra é a regra não apenas para resguardar a livre expressão das opiniões que questionam o status quo, mas também para permitir o uso da linguagem ofensiva e perturbadora, espe- cialmente em contextos de public discourse. Essa ampla liberdade de expressão não é estendida, portanto, a qualquer ambiente de interação social. Ela é aplicada, primor- dialmente, aos discursos que abordam questões de interesse geral e são enunciados em ambientes dedicados à discussão pública, como livros, revistas, filmes, internet e fóruns públicos. Em contrapartida, a Primeira Emenda é fragilizada quando se analisa espaços destinados a certa finalidade, tais como as instalações militares, os prédios dos tribunais judiciais e as salas de aula.3 Ou seja, a fim de manter um ambiente de ordem e disciplina, soldados podem ser proibidos de se reunirem para criticar a po- sição política do superior hierárquico; os advogados podem ser obrigados a usarem uma linguajem cordial e respeitosa ao fazerem uma sustentação oral; alunos podem ser obrigados a fazerem perguntas que dizem respeito tão somente à matéria ensi- nada pelo professor. Já a discriminação do ponto de vista é uma forma de limitação comumente rejeitada pela jurisprudência norte-americana, pois ela reflete uma tomada de partido pela autoridade que vai de encontro com o contexto plural democrático. 2 Redação original: “Content-based laws are ones in which the government seeks to regulate expression because of the message it conveys. Content-neutral regulations, in contrast, regulate speech for some reason unrelated to the message, such as the time, place, or manner of the speech. A law forbidding any- one from speaking about abortion is content-based; one prohibiting the use of loudspeakers in residential neighborhoods after 10.00 p.m. would be content neutral. Content-based regulations come in different va- rieties, some worse than others from a First Amendment standpoint. The most ‘egregious’ type of content regulation is viewpoint discrimination. Viewpoint discriminatory regulations (…) are ones based on ‘the specific motivating ideology or the opinion or perspective of the speaker” (WEINSTEIN, James. An Over- view of American Free Speech Doctrine and its Application to Extreme Speech. In: HARE, Ivan; WEINSTEIN, James. Extreme Speech and Democracy. New York: University Press Inc, 2009). 3 Ibid., p. 83. 26 BÁRBARA BATALHA DA SILVA Veja-se que a motivação que sustenta cada regulação não neutra varia. À pri- meira vista, a distinção entre as regulações exige examinar se todos os pontos de vista sobre uma mesma matéria seriam igualmente excluídos em dada situação ou se alguns poderiam ser expostos em detrimento de outros. Todavia, essa caracterização se torna duvidosa e incerta quando se exclui um discurso que não aborda especificamente a matéria excluída do debate, mas apresenta uma perspectiva correlata. Isso pode ser melhor elucidado com um exemplo. Imagine que na sala de aula o professor pede que os alunos debatem sobre uma proposta de emenda constitucional (PEC) que propõe derrubar a imunidade tributária religiosa. Um aluno a defende por entender que, dessa maneira, essa nova arrecadação poderia ser aplicada na concessão de bolsas estudantis, permitindo que os menos favorecidos gozassem de uma boa formação acadêmica. Outro apresenta uma perspectiva cristã ao discorrer sobre a importância da imunidade para a manutenção das atividades paroquiais e o quão estas contribuem para a união e a harmonia entre os membros da comunidade. O professor impede que este aluno elabore sua argumentação mais a fundo, alegando que, por a escola ser laica, não caberia debater sobre religião. Percebe-se que o aluno emudecido não abordou a religião diretamente, tampouco praticou algum ato de proselitismo; ele apenas mostrou sua perspectiva – de caráter religioso – acerca da PEC. Rejeitar um discurso porque ele tem uma perspectiva religiosa ao argumento que o tópico religião foi excluído do debate, parece ser uma regulação de ponto de vista que tenta se passar por uma de conteúdo. Nesse sentido, Sustein adverte que uma regulação de conteúdo pode mascarar uma motivação ilegí- tima, podendo ser um esforço para minar um ponto de vista controverso, para impedir as pessoas de serem ofendidas por certo tópico ou visão, ou para prevenir que as pessoas sejam persuadidas pelo que os outros têm a dizer.4 Ainda, a distinção entre as regulações não neutras encontra outra dificuldade na medida em que ela exige efetuar um teste hipotético. Afirmar que a regulação de certo discurso foi baseada na matéria ao argumento que qualquer outro discurso sobre a mesma matéria também seria refreado, é uma hipótese indeterminável e dúbia. Será que a mesma restrição seria aplicada seoutro ponto de vista fosse apresentado? Essas linhas tênues não passaram despercebidas pelo Suprema Corte norte -americana. No caso Good News Club v. Milford Central School5, a Corte entendeu ser inconstitucional a recusa da escola em permitir que um grupo de estudantes se 4 SUNSTEIN, Cass R. Democracy and the Problem of Free Speech. New York: Free Press, 1995, p. 169. 5 SUPREME COURT. Good News Club v. Milford Central School, 533 U.S. 98. Washington, 2001. Dispo- nível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/533/98/>. Acesso em: 07 jul. 2019. https://supreme.justia.com/cases/federal/us/533/98/ 27NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: reunissem no local após a aula para fins de educação cristã, sendo que a escola havia fornecido um tal espaço para estudantes de comunidades não cristãs. No caso Rosenberger v. Rector and Visitors of University of Virginia6, a Corte entendeu que a recusa da universidade em subsidiar o jornal de caráter religioso de um aluno, apesar de ter subsidiado o jornal de caráter secular de outro, foi uma discriminação de ponto de vista inconstitucional. No caso Lamb’s Chapel v. Center Moriches Union Free School District7, a Corte entendeu que a permissão de uso do espaço escolar para a apresentação de visões relativos a questões familiares, desde que não por uma perspectiva religiosa, configura uma discriminação de ponto de vista inconstitucional. Analisando a jurisprudência, percebe-se que a identificação de qual tipo de regu- lação foi efetivamente aplicada em dado contexto parte de um comparativo entre uma conduta já adotada pela autoridade e a conduta regulada. Concluindo pela incompati- bilidade, extrai-se que, na medida em que se pretendeu favorecer um lado do debate, a restrição era enviesada, baseada no ponto de vista e, portanto, inconstitucional. A identificação de qual a limitação aplicada é imprescindível para verificar a mo- tivação e a pretensão da autoridade repressora. Cada uma possui características e re- percussões distintas que são determinantes para conferir-lhe legitimidade. A regulação de matéria tende a ter caráter paternalista, enquanto que a de ponto de vista tende a ter caráter intolerante; naquela, o debate pode até ser esvaziado pela constrição temática, mas nesta, a autoridade repressora guia o debate a um resultado específico. 1.2 Regulação paternalista, regulação intolerante e liberdade de expressão O paternalismo é identificado quando a autoridade limita a liberdade de ex- pressão para beneficiar os próprios manifestantes. Isso é facilmente usado para justificar uma regulação de matéria ao argumento que certas temáticas devem ser excluídas do debate, seja qual for a opinião a respeito delas, para obter decisões pertinentes e relevantes à luz do propósito específico do fórum. Isso aparenta ser uma forma razoável de circunscrever a discussão sobre determinado tema para seu melhor proveito. Diferente ocorre quando se proíbe a exposição de certos pontos de vista a fim de conduzir o debate a um determinado resultado que favoreça a ideologia promovida pela autoridade. Nesse caso, estar-se-á diante de uma clara demonstração 6 SUPREME COURT. Rosenberger v. Rector and Visitors of Univ. of Va, 515 U.S. 819. Washington, 1995. Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/515/819/>. Acesso em: 07 jul. 2019. 7 SUPREME COURT. Lamb’s Chapel v. Center Moriches Union Free School Dist, 508 U.S. 384. Washin- gton, 1993. Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/508/384/>. Acesso em: 07 jul. 2019. https://supreme.justia.com/cases/federal/us/515/819/ 28 BÁRBARA BATALHA DA SILVA de intolerância que tende a ser incompatível com os propósitos democráticos de uma sociedade complexa. Apesar de uma limitação paternalista soar mais aceitável em detrimento de uma marcadamente intolerante, quando o argumento utilizado é a proteção dos manifes- tantes, e não propriamente a utilidade do debate, a autoridade demonstra seu menos- prezo e desdenho pela capacidade racional do público. Essa regulação não é razoável se se reconhecer o caráter constitutivo da liberdade de expressão. Há uma tendência em lhe atribuir apenas valor instrumental, o que implica que o discurso tem valor porque ele produz efeitos benéficos para a sociedade. Filia-se a essa categoria a conhecida metáfora do mercado de ideias que sugere que a liberdade de expressão é valiosa para alcançar uma suposta verdade ou, então, para alcançar a melhor solução; a lógica é que a verdade tende emergir a partir da ampla exposição e confronto entre as opiniões, a partir da argumentação racional na qual se pode refutar ou adotar as razões de cada uma. A teoria do autogoverno também adota esse viés meramente instrumental. Se- gundo ela, a liberdade de expressão deve encampar dois pré-requisitos essenciais: (1) os cidadãos devem ter acesso às informações que são relevantes para a tomada de decisão coletiva e (2) eles devem ter a oportunidade de expressarem seus pontos de vistas e desejos ao aparato estatal, a fim de que a posição deles seja efetivamente considerada pelos políticos que os representam.8 A noção de autogoverno pretende conceder um status de proteção muito maior às expressões políticas em detrimento das artísticas, literárias e científicas, acusadas de não serem tão importantes para o funcionamento da democracia. Dworkin adverte que a liberdade de expressão deve ser tratada como fim, mas também como meio, abrigando todos os aspectos da vida social para não apenas ga- rantir que a democracia funcione bem.9 Segundo essa justificação, a livre expressão é importante não só pelas suas consequências, mas porque o Estado deve tratar todos os cidadãos adultos como agentes morais responsáveis, reconhecendo o direito deles tanto de participar da política quanto de contribuir para a formação do clima moral ou estético.10 8 SOLUM, Lawrence Byard. Freedom Of Communicative Action: A Theory Of The First Amendment Freedom Of Speech. Disponível em <https://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/viewcontent.cgi?ar- ticle=2961&context=facpub>. Acesso em: 29 jul. 2019, p. 73. 9 DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Tradu- ção: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 321. 10 Ibid., p. 320. 29NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: O respeito à responsabilidade moral é um traço constitutivo de uma sociedade política justa que é violado quando o Estado decreta que o individuo não é apto a ponderar sobre certas opiniões ou que ele não tem qualidade moral suficiente para ouvir uma posição que pode persuadi-lo.11 Nesse cenário, não soa razoável falar em uma censura de conteúdo, pois: Se os cidadãos são agentes morais responsáveis, é contraditório pensar que al- guém tem o direito de determinar o que eles podem ou não podem ler com base em algum juízo oficial sobre o que vai edificar ou destruir o caráter deles, ou o que os levaria a ter opiniões incorretas sobre assuntos de interesse social.12 Ainda, Dworkin alerta que a justificação instrumental da liberdade de expressão é mais frágil e limitada: É mais frágil porque, como veremos, existem circunstâncias em que as metas estratégicas às quais ela faz apelo parecem exigir uma limitação da liberdade de expressão e não a proteção desta. É mais limitada porque, ao passo que a justificação constitutiva abrange, em princípio, todos os aspectos da expressão ou do pensamento cuja independência é exigida pela responsabilidade moral, a justificação instrumental, pelo menos em suas versões mais populares, trata principalmente da proteção da expressão política.13 Restringir o escopo do debate por medo dos manifestantes serem negativa- mente influenciados por certo tema, além de ser uma justificativa paternalista in- compatível com a liberdade de expressão, parece indicar, ainda, uma hostilidade da autoridade em relação a certo tópico. Apesar da exclusão de uma matéria impedir a manifestaçãode qualquer posição correlata, o porquê desta conduta pode não ser imparcial; impõe-se uma repressão que cala todos os lados a fim de impedir a manifestação de um lado específico. Em outras palavras, a exclusão de um tópico todo geralmente favorece o ponto de vista majoritário, pois é mais raro que ele seja objeto de ampla discussão por já ser aceito pela maioria. Em tais casos, o que acaba sendo emudecido é a visão minoritária. O resultado é uma regulação de matéria cujos efeitos são típicos de uma discriminação de ponto de vista. Já a incompatibilidade da regulação do ponto de vista com a liberdade de ex- pressão é mais clara, na medida em que se permite que a autoridade molde a posição do individuo ao manipular o contexto disponibilizado. Há uma evidente postura de 11 Ibid., 319. 12 Ibid., p. 333. 13 DWORKIN, 2006, p. 321. 30 BÁRBARA BATALHA DA SILVA intolerância dirigida a um lado e de favoritismo dirigida a outro que desvirtua as bases de um sistema democrático, uma vez que um Estado justo deve repelir a imposição ou a proibição de certas ideias pessoais em nome de uma concepção única de bem.14 É mais difícil vislumbrar uma regulação de ponto de vista que tenha caráter paternalista. Seria necessário que a autoridade acreditasse que ser dirigido por certa visão fosse prejudicial ao agente ou se acreditasse que essa visão detém tamanha imoralidade que o simples ato de a expressar seria um dano moral auto infligido.15 Uma tal motivação é, na verdade, uma tentativa de universalizar a concepção de bem adotada pela autoridade, seguindo a lógica: o manifestante causa um dano a si mesmo se ele tiver espaço para incorporar uma concepção de bem diversa da projetada. Discriminações de pontos de vista são uma das formas de repressão da liber- dade de expressão mais insolentes e ameaçadoras em um contexto de democracia, uma vez que representam uma clara censura às ideais que incomodam a autoridade reguladora. Todavia, ainda é possível vislumbrar situações excepcionais em que ela seja recomendável, levando em conta o propósito do fórum. Imagine uma escola pública cujo professor de história da primeira série preleciona que Adolf Hitler foi um admirável líder político que efetuou uma limpeza étnica esplêndida. Ele expressa sua visão favorável ao Holocausto e apresenta diversos argumentos convincentes (para um público infantil). Não é forçoso concluir que uma tal situação é capaz de frus- trar o propósito educacional; crianças tendem a internalizar o que lhes foi ensinado passivamente, uma vez que ainda não têm discernimento para processar e criticar as ideias que lhes são expostas. Em contrapartida, essa intolerância perante a visão do professor não parece razoável em uma universidade pública, pois não é razoável subestimar o senso crítico dos alunos adultos e a autonomia deles em revisar suas próprias concepções acerca do Holocausto. O que parece ser crucial para determinar se a regulação – seja a que exclui toda uma matéria, seja a que exclui alguns pontos de vista, detendo caráter paternalista ou intolerante – é verificar se ela é razoável, é a identificação do motivo primordial para limitar a liberdade de expressão e os efeitos decorrentes dessa conduta. 14 GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: Um breve manual de Filosofia Polí- tica. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 157. 15 SADURSKI, Wojciench. Does the Subject Matter – Viewpoint Neutrality and Freedom of Speech. Disponível em <https://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/caelj15&colletion=journals&i- d321&startid&=endid=376>. Acesso em: 31 maio 2019, p. 339-340. https://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/caelj15&colletion=journals&id321&startid&=endid=376 https://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/caelj15&colletion=journals&id321&startid&=endid=376 31NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: 2. NEUTRALIDADE E REGULAÇÃO DO DISCURSO DE ÓDIO 2.1 A natureza não neutra das leis contra do discurso de ódio Nos Estados Unidos, a partir dos conflitos judiciais nos quais se discutia a compatibilidade de um discurso com a Primeira Emenda, a Suprema Corte foi es- tabelecendo alguns contornos da liberdade de expressão. Em geral, ela se mostrou adepta à ideia que a regulação deve ser tratada como a exceção, cabível, em especial, quando o discurso carrega tamanho potencial nocivo que uma interferência externa se faz necessária. No caso R.A.V v. City of St. Paul16, um adolescente foi condenado pela instância primária por ter ateado fogo em uma cruz no quintal de uma família negra, em clara referência ao Ku Klux Klan. A Suprema Corte derrubou a decisão por en- tender que a norma aplicada violava a Primeira Emenda, pois permitia-se a expressão de certas opiniões e não de outras. A discriminação de ponto de vista era evidente, considerando que o próprio órgão julgador de Minnesota reconheceu que a ordem era direcionada tão somente àquelas mensagens baseadas em noções virulentas de supremacia racial. Concluindo que a ordem normativa regulava, portanto, apenas expressões hos- tis a conteúdos ideológicos protegidos, a Corte [Suprema Corte norte-ameri- cana] a submeteu a um escrutínio rigoroso. Ela reconheceu que assegurar os direitos humanos básicos dos membros de um grupo vítimas de discriminação, inclusive o direito de eles viverem em paz aonde quisessem, era um interesse governamental convincente. Todavia, a Corte enfatizou que a existência de al- ternativas neutras adequadas para alcançar esse mesmo fim tornava a restrição baseada no ponto de vista desnecessária e, portanto, inconstitucional (tradu- ção do autor).17 A racionalidade desse julgamento não ignora que manifestações de ódio violam direitos básicos de convivência; a questão central é que se a reparação dessa situação conflituosa pode ser feita por meios menos invasivos, a interferência estatal, enquanto último recurso, não é permissível. 16 SUPREME COURT. R. A. V. v. St. Paul, 505 U.S. 377. Washington, 1992. Disponível em: <https:// supreme.justia.com/cases/federal/us/505/377/>. Acesso em: 07 jul. 2019. 17 Redação original: “Having found that the statute thus ‘regulates expression based on hostility towards its protected ideological content’, the Court subjected the regulation to strict scrutiny. The Court ac- knowledged that ‘ensuring the basic human rights of members of groups that have been subject to discrimination, including the right of such groups to live in peace wherever they wish’, was a compelling governmental interest. The Court emphasized, however, that the ‘existence of adequate content-neutral alternatives’ to achieve this end made this viewpoint-based restriction on speech not ‘reasonably nec- essary’ and thus unconstitutional” (WEINSTEIN, 2009, p. 86). https://supreme.justia.com/cases/federal/us/505/377/ https://supreme.justia.com/cases/federal/us/505/377/ 32 BÁRBARA BATALHA DA SILVA A partir de R.A.V v. City of St. Paul, se extrai uma importante lição que coloca em xeque a constitucionalidade das leis contra o discurso de ódio: o status de igualdade entre todas as ideias. Assim, “a expressão mais ofensiva de ideologia racial está em pé de igualdade com os argumentos contra ou a favor de maior tributação, os que de- fendem a legalização do aborto, os que tratam da legitimidade da guerra no Iraque.”18 Por essa lógica, ao invés de privilegiar a condenação daquele que ofende por motivo de raça, etnia, religião, etc., abre-se espaço para a sujeição do preconceito ao escrutínio público e sua superação pela racionalidade humana. Esse último cenário é muito mais interessante, pois promove a concretização de uma sociedade tolerante na qual os dife- rentes grupos sociais são capazes de conviverem em harmonia, em meio a uma maioria racional que desaprova ostensivamente as visões odiosas dos fanáticos. Além de coibirem a exposição do preconceito e, consequentemente, sua repro- vação social pelos próprios indivíduos, as leis contra os discursos de ódiooperam como regulações de ponto de vista de caráter nitidamente intolerante, tendo em vista que se reprime os pontos de vista tidos como odiosos e não aceitos por quem aplica a ordem normativa. Não há como atribuir caráter odioso a uma toda uma matéria. Observa-se que no caso R.A.V v. City of St. Paul, o julgamento condenatório do órgão local foi motivado por intolerância ao racismo. Por esse tipo de discriminação ser mais aceitável, pois reflete uma moralidade contrária ao preconceito, a decisão da Suprema Corte acaba sendo contra intuitiva, ainda que mais acertada. Ela é mais acertada, pois demonstra que o desgosto pelas ideias e visões do manifestante por si só, não é motivo suficiente para atrair o poder coercivo em um sistema democrático que tem, como elemento constitutivo, a liberdade de expressão. A reprovação moral, não a repressão legal, é a resposta apropriada às ideias odiosas. 19 Se a liberdade de expressão é imprescindível para a democracia e para atri- buir qualquer responsabilidade aos representantes políticos, não é condizente permitir que esses representantes possam reprimir as visões que eles entendem serem er- radas, falsas ou disruptivas20, ainda que essas visões causem repulsão à população majoritária. Surge ainda a indagação: se é necessário identificar o conteúdo odioso de um discurso para aplicar uma lei contra o discurso de ódio, a quem incumbe efetuar tal identificação? 18 Ibid., p. 86. 19 COLE, David. Why We Must Still Defend Free Speech. Disponível em <https://www.nybooks.com/ articles/2017/09/28/why-we-must-still-defend-free speech/>. Acesso em: 08 jul. 2019. 20 Ibid. 33NEUTRALIDADE E LIBERDADE DE EXPRESSÃO: A discricionariedade envolvida nesse julgamento merece atenção especial. As leis contra o discurso de ódio são, por natureza, vagas, pois elas não determinam precisamente quais condutas podem ser punidas pelo Estado. O problema de leis vagas é: Primeiro, porque se assumirmos que o homem é livre para transitar entre uma conduta legal e ilegal, nós insistimos que as leis concedem às pessoas, de inteligência comum, uma oportunidade razoável para saber o que é proibido para então agirem de acordo com o permitido. Leis vagas podem enclausurar o inocente ao não providenciar um alerta justo. Segundo, se a força arbitrária e discriminatória deve ser evitada, as leis devem prover padrões explícitos a quem se sujeita a elas. Uma lei vaga delega, de forma inadmissível, questões básicas de política aos policiais, juízes e jurados a serem resolvidas ad hoc e subjetivamente, sob o perigo de aplicação arbitrária e discriminatória. Tercei- ro, mas relacionado, quando uma norma vaga “confina áreas sensíveis das liberdades básicas da Primeira Emenda”, ela “opera para inibir o exercício des- sas liberdades”. Significados imprecisos inevitavelmente levam os cidadãos a “transitarem largamente pela zona ilegal” ..., diferentemente seria se os limites das áreas proibidas fossem claramente demarcados (tradução do autor). 21 Se o próprio conceito de discurso de ódio é objeto de ampla controvérsia, des- tituído de um conceito específico legal, o individuo jamais vai saber se sua expressão pode ser enquadrada como tal. A esse sujeito foi negado um alerta justo acerca de qual conduta transita pela zona ilegal e qual se enquadra na zona permissível. Ademais, a indeterminação do conteúdo da norma permite que ela seja preenchida pelo próprio julgador conforme sua conveniência. Se este pode escolher quais ideias devem ser domadas, inevitavelmente serão protegidas apenas aquelas que coadunam com suas concepções e interesses pessoais, enquanto que as demais serão objeto de injusta repressão sobre a falsa premissa de que o manifestante abusou de sua liberdade de expressão. É exatamente isso que ocorre. 21 Redação original: “Vague laws offend several important values. First, because we assume that man is free to steer between lawful and unlawful conduct, we insist that laws give the person of ordinary intelli- gence a reasonable opportunity to know what is prohibited, so that he may act accordingly. Vague laws may trap the innocent by not providing fair warning. Second, if arbitrary and discriminatory enforce- ment is to be prevented, laws must provide explicit standards for those who apply them. A vague law impermissibly delegates basic policy matters to policemen, judges, and juries for resolution on an ad hoc and subjective basis, with the attendant dangers of arbitrary and discriminatory application. Third, but related, where a vague statute “abut[s] upon sensitive areas of basic First Amendment freedoms”, it “operates to inhibit the exercise of [those] freedoms”. Uncertain meanings inevitably lead citizens to `steer far wider of the unlawful zone’ . . . than if the boundaries of the forbidden areas were clearly marked.” (SUPREME COURT. Grayned v. City of Rockford, 408 U.S. 104. Washington, 1972. Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/408/104/>. Acesso em: 08 jul. 2019.) https://supreme.justia.com/cases/federal/us/408/104/ 34 BÁRBARA BATALHA DA SILVA As leis contra o discurso de ódio são usadas, historicamente, para repri- mirem grupos minoritários vulneráveis. Veja-se a experiência britânica que, em 1965, editou sua primeira legislação (Race Relations Act) a tratar da discriminação racial. A quarta condenação sob essa ordem foi de um dos líderes do Movimento Negro, Michael Abdul Malik, mais conhecido como Michael X, por ter instigado ódio racial contra o povo branco. Em 1967, quatro membros da Universal Coloured People’s Association foram condenados pelo mesmo motivo. Em contrapartida, em 1968, quatro membros da Racial Preservation Society foram absolvidos sob esse Act. Eles argumentaram que não pretendiam instigar o ódio racial, mas apenas educar as pessoas sobre o problema da imigração daquelas com cor e atacar os políticos que fizeram nada a respeito. No curso do julgamento, eles apresentarem evidências sobre a puridade de raças, a desigualdade genética de raças e o impacto da imigração nos níveis de prática criminosa. Ao serem absolvidos, aduziram que o tribunal lhes concedeu respeito e reconheceu a legitimidade de sua visão. O fato é que, enquanto os líderes do movimento negro foram emprisionados – ainda que suas ações devessem ser punidas –, as ações dos supremacistas brancos foram admitidas pelo tribunal, apesar de certamente se enquadrarem na Race Relations Act.22 Atualmente, não são poucos os casos em que se identifica a aplicação das leis contra o discurso de ódio para suprimir visões políticas impopulares e dissi- dentes. Em 2015, a Corte francesa manteve a condenação por crime de ódio de 12 ativistas do grupo BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções a Israel) que de- fenderam boicote ao Estado judeu. Os ativistas foram a um supermercado usando uma blusa escrita “Viva a Palestina, boicote a Israel” e distribuíram panfletos que diziam “comprar produtos israelenses é legitimar os crimes em Gaza”.23 Este foi o crime deles. Uma manifestação de caráter nitidamente político que foi reprimida por ser, supostamente, um discurso de ódio.24 Em 2017, a corte regional de Quirguistão condenou Azimjan Askarov, jornalista e ativista dos direitos humanos, por crime de incitação ao ódio inter-étnico. Uma investigação conduzida pela Comissão de Proteção ao Jornalistas concluiu que a condenação foi uma resposta contra suas 22 TWOMEY, Anne. Laws Against Incitement to Racial Hatred in the United Kingdom. Disponível em: <http://www.austlii.edu.au/au/journals/AJHR/1994/15.html>. Acesso em: 09 jul. 2019. 23 GREENWALD, Glenn. In Europe, Hate Speech Laws are Often Used to Suppress and Punish Left- Wing Viewpoints. Disponível em: <https://theintercept.com/2017/08/29/in-europe-hate-speech-laws -are-often-used-to-suppress-and-punish-left-wing-viewpoints/>. Acesso em: 09 jul. 2019. 24 A norma determinava aplicar prisão ou multa a quem instiga a discriminação, o ódio ou a violência em relação a uma
Compartilhar