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CAPITULO 2 MODERNISMO PORTUGUES. 4 MULTIPUCIDADE DE UM POET4 PERCURSO DO CAPÍTULO Milhares de sites são criados e desativados diariamente. Por essa razão, é possivel que os endereços indicados nes- te capítulo não estejam mais disponiveis. Os heterônimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Älvaro de Campos Fernando Pessoa, ortônimo llustração de Fernando Pessoa, feita por Indio San, para a revista Bravo! n. 185, ed. jan. 2013. Editora Abril. A multiplicidade de personalidades poéticas marcou a obra de um dos maiores poetas do século XX: Fernando Pessoa. 26 PRa começar mciiild Você lerá versos de um longo poema escrito por Fernando Pessoa e atribuido por ele a Alvaro de Campos, uma de suas personalidades literárias, que conheceremos adiante. Esse poema foi publicado originalmente na primeira ediç�o da revista literária Orpheu, em março de 1915. Ode triunfal A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. O rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporäneo de vós, ó máquinas! Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! CAMPOS, Álvaro de. Ode triunfal. In: GALHOz, Maria Aliete (Org.). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 306. (Fragmento). Papilas: pequenas saliências da pele. Passento: que absorve líquidos facilmente. PensanDO SOBRe TExToairili}. 1 Ode é uma composição poética de tom solene por meio da qual se exaltam atributos de figuras ilustres. Quem ou o que está sendo exaltado nos versos de "Ode triunfal"? LemBRa? Onomatopeia: figura de linguagem que con- siste na representação de um ruido ou som por uma palavra ou conjunto de palavras. 2A que vanguarda europeia (estudada por você no capítulo anterior) os versos de Alvaro de Campos podem ser associados ? Justifique sua resposta. 3No primeiro verso da segunda estrofe, ocorre uma onomatopeia. Localize essa figura de linguagem e explique que efeito de sentido ela tem no texto, tendo em vista sua resposta à quest�o anterior. 27 NO poema, há quase uma fusão entre o eu lirico e o que ele denomina "fl0 ra estupenda, negra, artificial e insaciável", ou seja, o ambiente da fábrica. Explique essa afirmação. Os longos versos livres e brancos de "Ode triunfal" exemplificamo empenho dos artistas portugueses em atualizar a arte do país, incorporando as referências aos "maquinismos em füria" e ao mundo novo que já caracterizava parte das naçoes europeias nas primeiras décadas do século XX. O eu lirico do poema que você leu deseja manifestar-se "como um motor se exprime", sugerindo que é necessário buscar novas formas de expressão, que dialoguem com a velocidade, os ruídos, as massas das grandes cidades. Eo inicio do Modernismo português. NaQueLe TemPo... Marcos literários Nas primeiras décadas do século passado, Portugal viveu uma série de difi- culdades.O rei Carlos I foi assassinado em 1908, com o príncipe herdeiro, o que revoltou a Europa. Seu sucessor, D. Manuel I, manteve a monarquia por mais dois anos, mas foi derrubado por um golpe militar que, com apoio popular, instaurou a República no país em 1910. Seguiram-se anos de instabilidade politica e enfra- quecimento económico, aprofundado, entre outros fatores, pela participação da Primeira Guerra Mundial. o Modernismo português tem iníicio com a publicação da revista literária Or pheu, em 1915. Nesse mesmo ano, ocorre a Em 1926, o exército tomou o poder, e o pais passou a ser comandado por Anto- nio de Oliveira Salazar (1889-1970), que instituiu um governo autoritário, finalizado somente em 1974, com a chamada Revolução dos Cravos. exposição "Humoris- tas e Modernistas", na cidade do Porto. Fernando Pessoa A partir de 1914, realizou-se em terras lusitanas uma série de discussões em torno do Futurismo de Marinetti. Um ano depois, foi publicada a revista Orpheu, considerada marco do Modernismo português. Os orfistas almejavam ser por- tugueses escrevendo para a Europa e tinham como proposta criar uma poesia "desnacionalizada", irreverente, indignada, original, anárquica e antiburguesa, em diálogo com os tempos modernos. Embora a revista Orpheu tenha contado com nomes de peso da poesia por- tuguesa (como Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros), destaca-se nela a produção de Fernando Pessoa. Fernando Pessoa "ele-mesmo" A poesia ortônima- aquela assinada pelo próprio Fernando Pessoa- e escrita em lingua portuguesa (o poeta publicou poemas também em inglês) apresenta um conjunto de caracteristicas que permite sua divisão em duas categorias: saudosista- -nacionalista e lirica. Fernando Pessoa (1888-1935) nasceu em Lisboa, mas realizou seus primeiros estudos na Afri- ca do Sul, onde a familia fixou residência. Em 1905 Poesia saudosista-nacionalista Grande parte da poesia saudosista-nacionalista de Fernando Pessoa está reunida em Mensagem. Nessa obra curta, composta de 44 poemas, predominam o "misti- cismo nacionalista" (fortalecido pelo contexto da crise republicana e da Renascença portuguesa) e a retomada do passado glorioso lusitano (a expansão maritima, o sebastianisrmo, as grandes figuras históricas). Muitos dos poemas que compõem a co-letânea apresentam tom épico, e alguns deles dialogam com Os lusiadas, de Camões. voltou para Lisboa. Com amigos como o poeta Mário de 5á-Carneiro eo pintor e escritor Almada Negreiros, impulsionouo Modernismo portugues. 28 "O mito é o nada que é tudo" Fernando Pessoa defendia que seu sebastianismo era "racional", ou seja, tinha consciência da "mentira" do mito. Seu sebastianismo consistia em proclamar o surgimento de um "Super-Camões" (ele mesmo?) e de um "homem forte" que fariam Portugal retomar sua importância econômica e política na Europa. GnvesTiGue em LiTeRATURA O que é o "Super- -Camões"? A coletânea Mensagem (1934) é dividida em três partes, duas que tratam da história de Portugal e uma terceira, que remete ao futuro. E desta última parte o poema a seguir. Grécia, Roma, a Cristandade e a Europa pós-renascentista seriam os outros quatro impérios, grandiosos por possuírem significativa força cultural e espiritual. O mito do "Quinto Império" foi assunto de História do futuro, obra de um dos expoentes do Barroco em lingua portuguesa, o padre Antônio Vieira. Leitura 0 Quinto Império_ Triste de quem vive em casa, Contente com o seu lar, Sem que um sonho, no erguer [de asa, Faça até mais rubra a brasa Da lareira a abandonar! E assim, passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será theatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou. Triste de quem é feliz! BiBLiOTeca CULTURaVive porque a vida dura. Nada na alma lhe diz Grecia, Roma, Cristandade, Europa os quatro se vão Para onde vae toda edade. Em seu disco Indivis- Mais que a lição da raiz Ter por vida a sepultura. vel, José Miguel Wisnik musicou um poema de Fernando Pessoa: "Tenho dó das estrelas". Ouça a canção em: <http:// zemiguelwisnik.band camp.com/album/--2>. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião? Eras sobre eras se somem No tempo que em eras vêm. Ser descontenteé ser homem. Que as forças cegas se domem Pela visão que a alma tem! Atro: escuro. PESSOA, Fernando. O Quinto Império. In: GALHOz, Maria Aliete (Org). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 84-85. Erma: solitária, deserta. PensanDe soSRe TexToRTOIA. Reúna-se com seus colegas e, com o auxilio do professor, discutam a afirmação a seguir, a partir da análise geral do poema. A leitura do poema "O Quinto Império" nos permite interpretá-lo de duas maneiras: no âmbito individual, humano, desvinculado do objetivo geral de Mensageme do contexto histórico português, e no âmbito histórico, coletivo, relacionado ao objetivo geral da coletânea e do contexto português da época de Fernando Pessoa. Bi8LiOTeca GULTURat A Biblioteca Nacional de Portugal digitalizou Os manuscritos de Pes- soa e disponibilizou-os on-line: <http://purl. pt/1000/1/>. Que atitudes o eu lírico identifica como "Ter por vida a sepultura"? Que desafio ele lança ao povo português? 29 Poesia lírica A poesia lirica de Fernando Pessoa está reunida nas obras póstumas Quadras ao gosto popular e Cancioneiro (titulo que remete às coletâneas de poemas medievais) Por meio dela, o poeta resgata ritmos e formas tradicionais do lirismo lusitano. Perpassa o Cancioneiro um principio poético segundo o qual um poema deve representar, simultaneamente, "paisagens interiores" (mundo interior) e "paisagens exteriores" (mundo real, concreto) do sujeito lírico, pois cada sensação vivida pelo homem é constituída de uma série de "sensações mescladas", e não isoladas. Leitura Pobre velha música Com que ånsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. Fui-o outrora agora. Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi PESSOA, Fernando. Pobre velha música. In: GALHOz, Maria Aliete (Org.). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 140-141. Nessa minha infåncia Que me lembra em ti. Pensanpe soBRe TexTo ilL. Como você já sabe, forma e conteúdo são componentes que caminham juntos na construção de sentido de um poema. a) Do ponto de vista da métrica, que tipo de versos há em "Pobre velha música"? b) Agora, relacione a forma à referência que o eu lirico faz, logo no primeiro verso, à "velha música". 2O que a música evoca no eu lirico e que constitui o tema central do poema? Analise dois versos bastante conhecidos da poesia lirica de Pessoa, em que o poeta cria um efeito baseado no contraste entre presente e passado, felicidade e infeli- cidade. (Entre colchetes estão inseridos os elementos suprimidos pelo poeta.) "E eu era feliz? Não sei: eu Fui-o feliz| outrora [na infância agora [hoje]." FaLa a No poema"Pobre velha música", há uma representação simultânea da "paisagem interior" (rememoração da infáncia) e da "exterior" (audição de uma música "pobre" e "velha"). Você acha que a música tem o poder de reviver passagens da vida e de transformá-las? Que música traz sua infância de volta e a faz parecer mágica e feliz? 30 Um poeta múltiplo Retome o que você sabe sobre Romeu eJulieta. Habitam essa peça inglesa, além dos protagonistas, os Capuleto (pais de Julieta), os Montecchio (pais de Romeu), Teobaldo (primo de Julieta), a Ama (confidente de Julieta), Frei Lourenço, etc. Agora imagine que cada um desses seres ficcionais represente uma das facetas do autor, William Shakes- peare, e pudessem escrever sua própria vers�o de RomeueJulieta. Como seria a versão de cada um? Certamente, haveria vários pontos de vista, estilos de escrita diversos e uso de gêneros diterentes para contar a famosa história de amor do casal de Verona. Fernando Pessoa exercitou essa possibilidade com a criação de seus heterônimos. Como você viu, o poema que abre este capitulo, embora tenha sido escrito por Fernando Pessoa, leva a assinatura de Álvaro de Campos, que não é simplesmente um pseudônimo usado por Pessoa para ocultar a autoria de seus textos, mas um Segundo Antônio José Saraivae Oscar Lopes, "os heterônimos são, pode dizer-se, uma invenção nova na lirica europeia, embora já inerente à tradição dramática. Podemos talvez compreendê-los supondo que cada heterönimo corresponde ao ciclo de uma atitude de aparência implausivel, mas experimentada até às últimas consequëncias .;cada heterônimo parece apostado em invalidar uma tese consagrada-e acaba por também se invalidar (em teoria) como antítese". In: SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Lisboa: Porto Editora, s.d., P. 997 Fragmento) Nome fictício adotado por quem não quer revelar sua verdadeira identidade. heterônimo. Fernando Pessoa inventou personalidades dotadas de nomes, biografias, indi- vidualidades, estilos e caracteristicas fisicas próprias. Esses heterônimos não são personagens, ja que também se expressam artisticamente escrevendo poemas, assim como seu criador (ortônimo). Multiplicando-se em vários, o poeta português mergulha numa apreensão mais complexa da realidade, pois se permite investigar diferentes pontos de vista sobre o mundo, em lugar de apenas um. Entre os mais de setenta nomes, Pessoa desenvolveu completamente apenas três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Você vai conhecer alguns aspectos da poesia desses heterônimos. invesTiGUe em .LiTeRATURa Que autores compu- nham a biblioteca cultu- ral de Pessoa? Alberto Caeiro: o mestre do ver e ouvir Leitura O guardador de rebanhos IX Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é v�-la e cheirá-la E comer um fruto ésaber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. Desenho de Alberto Caeiro por Almada Negreiros. 1958. CAEIRO, Alberto. O guardador de rebanhos. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 212-213 31 PensanDe sosRe TexTO ElLAK.. O eu lirico do poema expõe uma determinada concepção de realidade e de verdade. Atente para o percurso claro, simples e lógico presente no texto: primeiro o sujeito poético se apresenta (ele é um homem do campo, que tem como função guardar rebanhos); depois, explica o que são seus pensamentose dá exemplos. Infira: o que seriam realidade e verdade para o eu lírico? Como você pôde constatar, Alberto Caeiro tem como principio de vida a simplicidade e a valorização do contato (físico) com a natureza. Esse heterônimo supervaloriza a sensação, pois entende que o conhecimento do mundo é dado pelos órgãos dos sentidos e não por sistemas de pensamento já constituidos, como as teorias filosóficas ou cientificas ou, ainda, as religiões. Caeiro deseja abolir o pensar, substituindo-o pelo ver e pelo ouvir. O poeta prefere o verso livree branco e vale-se de uma linguagem simples, condizente coma expressão de um homem do campo. Ricardo Reis: o clássico Leitura Não só quem nos odeia ou nos inveja Dos píncaros sem nada. Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada Elivre; quem não tem, e não deseja, Homem, éigual aos deuses. Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita. Que os deuses me concedam que, despido De afetos, tenha a fria liberdade REIS, Ricardo. Não só quem nos odeia ou nos inveja. In: GALH0Z, Maria Aliete (Org.). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 285. Pincaros: pontos mais elevados; cumes. PensanDe seBRe TexTO neiill. Nesse poema, o que o eu lirico pede aos deuses? FaLa ai Ricardo Reis cultuao paganismo greco-latino (os deuses da mitologia) e valoriza a forma, pois acredita que um pensamento claro-como o que ele almeja- deve ser traduzido por uma forma correspondente, isto é, cuidadosa. Outro princípio clássico defendido por Reis é a valorização do momento presente (carpe diem). Para ele, são tão condenáveis os que olham para o passado vendo "'o que não veem" quanto aqueles que se apegam ao futuro, "vendoo que näão se pode ver". Por isso, argumenta ele, o hormem precisa se apegar à "interminável hora", que é o presente. No poema, o eu lirico coloca no mesmo pata mar o ódio, a inveja eo amor como sentimen tos que aprisionamo homem. Você concorda com essa visão? Explique. Álvaro de Campos: o engenheiro invesTiGve em .LiTeRATURA Os versos que você analisouna abertura deste capitulo, retirados de "Ode triunfal", apresentam, por si, um dos aspectos mais importantes da poesia de Alvaro de Cam- pos: a exaltação do Futurismo. Mas é também desse contato com a vida frenética da cidade grande que decorrem outras facetas de sua poesia: sensação de inadaptação diante do mundo, sensacionismo ("Sentir tudo de todas as maneiras"), melancolia, agressividade, pessimismo, frustração e uma quase obsessão do poeta pela construção de longos versos livres e brancos (Campos considerava a métrica e a rima "gaiolas") Que dados biográficoS dos heterônimos sao revelados na carta que Pessoa enviou a Adol fo Casais Monteiro em 1937? 32 Afividade TeXtos em CONVersa Apresentamos, a seguir, dois textos. O primeiro é um poema de Alvaro de Campos; o segundo, a letra da canção "O vencedor", que faz parte do álbum Ventura (2003), da banda carioca Los Hermanos. Bi8LiOTeca CULTURaL Em relaç�o ao texto 1, faça, primeiramente, uma leitura silenciosa, observando a sinceridade contida nos versos. Depois, divida-o em partes, distribua-as entre seus colegas e leiam o poema em voz alta. Procurem imprimir à leitura os sentimentos necessários para reforçar o sentido dos versos. Assista a um episódio do programa Provocações sobre Fernando Pessoa e sobre Portugal: <http:// tvcultura.cmais.com. Texto 1 br/provocacoes/progra ma-046-com-antonio- -abujamra-em-portu gal-0107-2001-galeria>, Poema em linha reta Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. M Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridiículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe- todos eles príncipes na vida.. Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse n�o um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? O príncipes, meus irm�os, Vil: desprezível. Arre, estou farto de semideuses Onde é que há gente no mundo? Enxovalhos: afrontas. Infâmia: ato vergonhoso. Cobardia: covardia. Então sou só eu que é vile errône0 nesta terra? Oiço: ouço. 33 Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos- mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. CAMPOS, Álvaro de. Poema em linha reta. In: GALHOZ, Maria Aliete (Org). Fernando Pessoa: obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999. p. 418-419. Titubear: vacilar. 1O poema todo é construido a partir da oposição entre o eu (lirico) e os outros. Explique essa afirmativa. 2 Explique a estratégia usada pelo eu lirico para reconhecer e reforçar sua "vileza". 3 Relacionando os versos "Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mun- do."/ "Então sou só eu que évil e errôneo nesta terra?", o que podemos inferir sobre os sentimentos do eu lirico? 4Que ironia está implicita no "Poema em linha reta"? Texto 2 O vencedor Olha lá quem vem do lado oposto e vem sem gosto de viver Olha lá, que os bravos são escravos sãos e salvos de sofrer Olha lá quem acha que perder é ser menor na vida Olha lá quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar Não faz isso, amigo J se sabe que você só procura abrigo mas não deixa ninguém ver Por que será? A FARUELO, Jorge. Batgirl chorando. 2013. Acrilico sobre tela,113 x 73 cm. Faruelo admite a possibilidade do fracasso nos super-heróis que retrata. Eu que já não quero mais ser um vencedor, levo a vida devagar pra não faltar amor Eu que já n�o sou assim muito de ganhar junto às mãos ao meu redor Faço o melhor que sou capaz só pra viver em paz. Olha você e diz que n�o vive a esconder o coração CAMELO, Marcelo. O vencedor. In: LOS HERMANOs. Ventura. Sony Music, 2003. 1 CD. Faixa 2. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/ loshermanos/ventura/letras/ventural.htm>. Acesso em: 6 mar. 2016. BiBLiOTeca CULTURaL 5Na letra da canção, o compositor subverte a ideia de que o vencedor tem sempre as coisas mais preciosas da vida. Você concorda com essa análise? Justifique sua resposta. Acesse o site da banda Los Herman os: <www2. Sob que aspectos é possivel relacionar a canção contemporânea da banda Los Hermanos ao "Poema em linha reta", de Álvaro de Campos? uol.com.br/losherma nos/>. 34 EXpressoes Nesta unidade, por meio do estudo da literatura de Fernando Pessoa, você teve acesso não a um poeta, mas a quatro. Agora, terá a oportunidade de expressar-se artisticamente O poema a seguir foi escrito pelo paulista José Paulo Paes (1926-1998). Leia-o. Falso diálogo entre Pessoa e Caeiro Pessoa: A chuva me deixa triste.. Caeiro: A mim me deixa molhado. Prosas, seguidas de odes minimas. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Certa vez, Fernando Pessoa afirmou que era, na verdade, um dramaturgo. Observe como José Paulo Paes entra no universo teatral do poeta, imaginando um diálogo entre o português (poeta saudosista, melancólico, confessional) e Alberto Caeiro (heterônimo guiado pelos sentidos e pelo contato direto com a natureza). Agora, você também deverá entrar no jogo pessoano e propor diálogos entre o ortônimo e um heterônimo ou entre os heterônimos. Para isso, oriente-se pelos passos a seguir Escolha quem participará de seu diálogo (Pessoa, Caeiro, Reis, Campos). Retome o capítulo 2 e atente para as caracteristicas do poeta que você escolheu Imagine que diálogo os poetas poderiam estabelecer (construa falas coerentes com a postura do poeta escolhido). Faça um rascunho de seu diálogo e troque-o com um colega. Leia o diálogo escrito por seu colega, sugerindo ajustes, quando necessário. Observe a coerência entre o que os poetas falam e a postura deles em suas obras, além da ortografia e da coesão. Escreva em um papel seu "falso diálogo e publique-o no mural da escola ou crie um blog para a divulgação dos trabalhos. Se possivel, ilustre seu texto, desenhando os poetas que foram perso- nagens do diálogo criado por você. NEGREIROs, Almada. Retrato de Fernando Pessoa. 1954. Oleo sobre tela, 201x 201 cm. 35
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