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Unidade 2. Bioética Animal e Meioambiental Prof. Agustín Hernández López Bioética Bioética Animal e Meioambiental1 Unidade 2 Sumário Prefácio ► 1. Bioética da Experimentação com Animais • 1.1 Uso de Animais • 1.1.1 Razões para o Uso de Animais • 1.1.2 Consideração por Animais • 1.1.3 Senciência • 1.2 Justificativas Éticas do Uso de Animais • 1.2.1 A Deontologia Kantiana e os Animais • 1.2.2 O Contrato Social como Justificativa • 1.3 Legislação e Diretivas • 1.3.1 Ética na Prática com Animais • 1.4 Modificação Genética de Animais • 1.5 Invertebrados: A Fronteira ► 2. Bioética Não Animal e Meio Ambiental • 2.1 Desextinção de Espécies • 2.1.1 Razões e sofrimento na desextinção • 2.1.2. Em favor da desextinção • 2.2 Plantas Modificadas Geneticamente • 2.2.1 PMGs e Ética • 2.2.2 Debates sobre as PMGs • 2.3 Microrganismos, Genética e Biotecnologia • 2.4 Ética e Produção Agropecuária • 2.5 Ética e o Meio Ambiente • 2.5.1 Valores Humanos e Meio Ambiente • 2.5.2 Valores Não Humanos e Meio Ambiente • 2.5.3 Outras Visões Ecologistas • Bibliografia de consulta 1 Agustín Hernández López. Professor Visitante Estrangeiro. Bioquímico. PhD pela U. Bristol (RU da GB). Prefácio2 O aluno encontrará nas páginas seguintes um condensado das ideias e dos conceitos mais importantes relacionados à ética do uso de animais como sujeitos experimentais e à ética meio ambiental. Acredito que estas notas serão suficientes para dar uma ideia geral; porém, por sua brevidade, não será suficiente para entender em profundidade os temas aqui tratados. Por isso, é importante que o aluno leia caprichosamente as fontes que se enumeram na bibliografia, tanto as principais quanto as classificadas como complementares. Assim, este módulo tem como objetivo oferecer informações e orientações sobre a bioética atual, e o aluno deve ter em conta que este campo está em rápida e contínua evolução e, em alguns aspectos, está sujeito a interpretações pessoais. 2 Prof. Agustín Hernández (agustin.hernandez@ufscar.br). Setembro 2019. mailto:agustin.hernandez@ufscar.br ►1. Bioética da Experimentação com Animais Figura 1. Belka (branquinha/esquilo) e Strelka (setinha) formaram parte da tripulação experimental a bordo do Vostok-1 (1958) e estão entre os primeiros seres vivos enviados ao espaço que voltaram com vida. Fonte: Russian Post, Publishing and Trade Centre "Marka" (ИТЦ «Марка»). The design of the stamp by O. Yakovleva. / Public domain https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/03/Belka_%26_Strelka_50_Years_Flight_Stump.jpg https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/03/Belka_%26_Strelka_50_Years_Flight_Stump.jpg 1.1 Uso de Animais O uso de animais para benefício dos humanos é tão antigo que não temos certeza de quando aconteceu na pré-história nem qual foi o primeiro. As teorias mais aceitas atualmente propõem o cão como nosso primeiro companheiro já no pleistoceno, uns 30 mil anos atrás. Depois viriam as cabras, as ovelhas, as galinhas e o gado bovino. A maioria desses animais foi criada para, no tempo certo, ser abatida e usada como fonte de carne ou, em geral, de produtos úteisi. Em outras palavras, desde antes dos inícios da civilização, criamos, usamos e matamos animais. O uso de animais para obter conhecimento é também bem antigo. Os gregos utilizaram animais para compreender como funcionam os órgãos e sistemas fisiológicos. Durante os séculos seguintes, os experimentos com animais, mesmo que não tenham sido especialmente usuais, continuaram com os romanos e árabes. Porém, junto ao advento do renascimento, as vivissecções com o intuito de expandir os conhecimentos biomédicos tornaram-se muito mais frequentes e ainda foram cada vez mais praticadas durante os séculos seguintes até se tornarem uma prática habitual nos ensinos de medicina. Deve-se ter em conta que a Igreja Católica não permitia a dissecação de cadáveres humanosii,iii. No momento presente podemos afirmar que, embora as quantidades exatas sejam desconhecidas, estamos usando mais animais em pesquisa que em qualquer momento no passado. Contudo, anualmente, a proporção de animais utilizados em pesquisa é apenas de 0,2% de todos os animais sacrificados pelos humanos. Por outro lado, a utilização de animais em experimentação resulta em uma preocupação bem maior que a criação e o abatimento para comida. Uma das razões disso está no sofrimento infligido que associamos à prática científica. Isso não é novo; já nos séculos XVIII e XIX espantava a vivissecção sem anestesia de animais nos teatros médicosiv, v. Professor Coelho: “Agora sem frescura! O princípio da ciência livre demanda que eu faça a vivissecção deste humano pela saúde do mundo animal todo”. “Die Vivisektion des Menschen”. Litografia colorida publicada em Lustige Blatter. Berlim, c. 1910. Texto e imagem: Wellcome Collection, Creative Commons https://wellcomecollection.org/works/xm8wtp m4. Attribution 4.0 International (CC BY 4.0) Figura 2 – Human vivisection. Wellcome Collection. https://wellcomecollection.org/works/xm8wtpm4 https://wellcomecollection.org/works/xm8wtpm4 1.1.1 Razões para o Uso de Animais Na atualidade, existem ainda grupos que se chamam de “antivivissecção”, embora essa prática esteja praticamente abandonada. A utilização de animais para uso alimentar e industrial é bem conhecida por todos. Porém, quais são os usos dos animais em pesquisa hoje? Se assumirmos o Reino Unido como um indicador do que acontece em outros países, 35% dos animais em experimentação são utilizados em pesquisas básicas que podem ou não envolver modificações genéticas, 21% são utilizados em testes de drogas e procedimentos médicos ou veterinários, apenas 1% é utilizado em diagnóstico e os 43% restantes são animais que são mantidos em programas de criação para manter as colônias de mutantes ou as cepas determinadas. Na maioria dos casos (77,5%) os animais escolhidos são roedores, apenas 2% são primatas, gatos, cães, porcos ou outros mamíferos, e os 20,5% restantes seriam animais não mamíferos (anfíbios, aves, répteis e peixes, principalmente); porém, esta última porcentagem muito provavelmente não tem em conta animais inferiores, como Caenorhabditis elegans. A utilização realizada em universidades e centros públicos de pesquisa é majoritariamente relacionada à pesquisa básica, enquanto que em empresas farmacêuticas e CROs (Contract Research Organisations) se usam para teste de efetividade de drogas e toxicidade, respectivamente. Outros lugares onde fazem uso amplo de animais são os hospitais (novamente com relação à pesquisa) e laboratórios governamentais (toxicologia)vi. A outra questão é por que são usados os animais. Entre as razões estão o fato de não podemos fazer experimentos com humanos e o de que os animais são um bom modelo para entender a fisiologia animal, em geral, e a humana, em particular. Assim, acredita-se que a maioria dos grandes avanços na medicina nos últimos séculos vem de experimentos realizados em animais. Argumenta-se também que não existem alternativas neste momento que ofereçam um nível similar de confiabilidade, e, por outro lado, deixar de utilizar animais induziria a estagnação da ciência e um prejuízo sobre a saúde das gerações futurasvii. People for the Ethical Treatment of Animals (PETA) é uma organização criada em 1980 que promove “a total liberação dos animais“ e o veganismo. Em opinião da PETA: “Os animais não são nossos para experimentar, comer, vestir, serem usados para nos entreter ou abusados de qualquer jeito”. Sua posição frente à experimentação com animais é de rejeição total. Argumentam que os testes com animais não são nem necessários nem úteis e que existem alternativas válidas para todos osprocedimentos realizados em pesquisa. https://www.peta.org/ Figura 3 – Logotipo da People for the Ethical Treatment of Animals. Fonte: https://www.peta.org/ https://www.peta.org/ https://www.peta.org/ 1.1.2 Consideração por Animais Os animais não possuem a capacidade de comunicação de conceitos complexos (pelo menos não com os humanos!), o que, junto à incapacidade de nossa parte de entender os processos cerebrais/mentais deles e a uma etologia diferente, fazem com que nós, os humanos, consideremos que os animais não possuem inteligência e que possuem um nível de senciência bem menor que o nosso. Por outro lado, de forma um tanto contraditória, colocamos neles sentimentos, capacidades e intencionalidades plenamente humanas, como acontece com nossos animais de estimação: consideramos que cães e gatos, principalmente, mas também cavalos e até alguns répteis, nos amam, comunicam seus desejos e até, em ocasiões, desaprovam nossas ações. Essa “humanidade” nos animais correlaciona-se à similaridade física com os humanos (os primatas são os mais “humanos”), ao contato e ao nível de domesticação (cães mais do que os lobos), ao tamanho (equídeos mais do que roedores), entre outras variáveis mais ou menos subjetivasviii, ix. A percepção da animalidade tem mudado bastante na história. Se considerarmos as religiões como fontes indiciárias corretas para o passado (de qualquer modo, são pontos de partida para as percepções atuais), tanto a Bíblia quanto o Alcorão colocam o ser humano como dono e senhor da criação e com direito absoluto à utilização de seus recursos, incluindo os animais, para seu próprio benefício. As culturas orientais, ainda que possuam uma maior tendência para a compaixão com animais, não consideram tradicionalmente que os animais sejam mais do que o equivalente a uma ferramenta ou alimento para os humanos. Descartes, como exemplo no século XVII, considerava que os animais não tinham capacidade de sentir (senciência). Essa visão foi se modificando, paralelamente a outras mudanças sobre a percepção humana que já mencionamos muito brevemente na unidade anterior, durante os séculos XVIII, XIX e XX. Assim, já em 1791, John Lawrence, na Inglaterra, solicitou o reconhecimento de direitos para os animais (neste caso, os cavalos). Contudo, o desenvolvimento de uma sensibilidade para com os animais realmente tomou força na segunda metade do século XXx. Arthur Schopenhauer, máximo representante do pessimismo filosófico, é uma grande influência no pensamento atual. Ele via os animais como frutos da mesma “vontade” ou força que os humanos. “[B]ecause suffering increases along with the increase in the clarity of consciousness, the pain that animals suffer in death or work is not as great as that which humans suffer by doing without meat or animal power. This is why people can affirm their existence to the point of negating the existence of an animal, and the will to live as a whole suffers less than if we acted the other way around. This also determines the extent to which people can make use of animals without doing wrong (WWR 1:440n)”. Puryear, S. (2017) Schopenhauer on the Rights of Animals. Eur. J. Philosophy 25:250. Figura 4 – Arthur Schopenhauer em 1859. Fotografado por J. Schäfer Fonte: Domínio Público. https://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Arthur_Schopenhauer_b y_J_Sch%C3%A4fer,_1859b.jpg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arthur_Schopenhauer_by_J_Sch%C3%A4fer,_1859b.jpg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arthur_Schopenhauer_by_J_Sch%C3%A4fer,_1859b.jpg https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Arthur_Schopenhauer_by_J_Sch%C3%A4fer,_1859b.jpg 1.1.3 Senciência Na atualidade, não consideramos que os animais sejam simples robôs que, de forma automática, respondem aos estímulos. Achamos que muitos deles têm capacidades, como o aprendizado, o uso de ferramentas e a comunicação, as quais, embora não cheguem aos níveis das que os humanos possuem, são substantivas. Contudo, também não consideramos que todos os animais sejam iguais. Acreditamos, por exemplo, que os insetos são realmente quase pequenos robôs, incapazes de sentir ou de racionalizar. Julgamos que isto está relacionado ao fato de que o sistema nervoso desses animais é constituído por gânglios simples interconectados formando uma linha ventral. Outros animais possuem sistemas nervosos que variam em complexidade. É a complexidade no sistema nervoso que usamos para supor as capacidades cerebrais/mentais de cada espécie. Nesse sentido, a senciência define-se como a capacidade de um ser vivo de sentir e experimentar sensações subjetivas, como medo, dor, angústia, alegria, entre outras. Apenas os animais sencientes poderiam sofrer, e o grau de sofrimento dependeria do grau de senciência da espécie. O sofrimento deve ser entendido como dor, mas também como ansiedade, pânico ou inquietação, por exemplo. Dessa maneira, consideramos que os roedores ou as aves, com cérebros relativamente mais simples, são menos sencientes que os golfinhos ou os cães. Essa aproximação, por outro lado, pode ser imperfeita, já que a complexidade nos sistemas nervosos apenas é comparável entre espécies relacionadas. Assim, considera-se que o polvo, capaz de mostrar medo e aprender, possui um cérebro simples, em parte por falta de homologia com os cérebros de vertebradosxi,xii,xiii. É importante dizer aqui que o valor moral que atualmente damos aos animais correlaciona-se ao seu presumível grau de senciência, de modo que consideramos mais valioso um gato que uma rãxiv. O problema de conhecer como outro ser vivo experimenta sensações subjetivas é imenso. Um exemplo ilustrativo é a dor. No hospital pediátrico onde trabalhavam em Oklahoma (EUA), a Dra. D. Wong e a enfermeira C. M. Baker idealizaram um método para que as crianças na unidade de queimados pudessem explicar o nível da dor que sentiam e poder medicá-los corretamente. Fizeram para isso uma escala com carinhas para as quais a criança apontava. O sistema foi um sucesso e agora é utilizado amplamente no mundo todo. História da classificação da dor com carinhas e imagem: https://wongbakerfaces.org/us/wong-baker-faces-history/ Figura 5 – Um esboço feito por C. M. Baker na beira da cama de uma criança. Fonte: https://wongbakerfaces.org/us/wong- baker-faces-history/ https://wongbakerfaces.org/us/wong-baker-faces-history/ https://wongbakerfaces.org/us/wong-baker-faces-history/ https://wongbakerfaces.org/us/wong-baker-faces-history/ 1.2 Justificativas Éticas do Uso de Animais Do ponto de vista da ética, a experimentação com animais não precisa se justificar se os animais não possuem valor moral. Isto era a situação no passado, quando se considerava que os animais eram autômatos que estavam na terra apenas para nos servir. Na atualidade, no entanto, julgamos que os animais têm algum valor moral, mesmo que menor que o dos humanos. Em outras palavras, a vida de um animal tem valor per se. É por isso que existem várias formas para justificar o uso de animais em experimentação que formam o substrato moral, mais ou menos consciente, de todos os pesquisadores. Estas se acham presentes também nas diferentes instâncias em que existe debate ou nas quais precisamos expressar essa justificativa, como é o caso das leis ou das diretrizes das comissões de ética de nossas instituições de pesquisaxv. De todas as escolas de pensamento, provavelmente, o utilitarismo é invocado com mais frequência. Segundo o utilitarismo, existem coisas, estados e situações que podemos considerar bons ou desejáveis; outros, pelo contrário, seriam ruins ou indesejáveis. As ações corretas são aquelas que produzem, no balanço, mais bem que mal. Assim, considera-se que a experimentação com animais produz mais benfazeres (por exemplo,avanços em terapias que ajudam humanos) que o prejuízo causado pelo sofrimento e sacrifício dos animais. Deve-se ter em conta que este razoamento depende do valor que damos à vida dos animais e ao benefício humano e de quanto benefício e prejuízo causamos. Assim, pode estar justificado um experimento para testar uma vacina contra o ebola utilizando 25 camundongos, mas poderia não ser justificável utilizar mil primatas para testar o possível “Peter Singer: Speciesism is an attitude of bias against a being because of the species to which it belongs. Typically, humans show speciesism when they give less weight to the interests of nonhuman animals than they give to the similar interests of human beings.” Peter Singer: On Racism, Animal Rights and Human Rights By George Yancy and Peter Singer. New York Times, May 27, 2015. https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/05/27/peter-singer- on-speciesism-and-racism/ O especiesismo é uma forma de discriminação, similar ao racismo ou sexismo, que filósofos defensores dos direitos dos animais acreditam que nós, humanos, praticamos contra outras espécies animais. Figura 6 – Peter Singer Fonte: https://www.utilitarianism.com/pe ter-singer.html https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/05/27/peter-singer-on-speciesism-and-racism/ https://opinionator.blogs.nytimes.com/2015/05/27/peter-singer-on-speciesism-and-racism/ https://www.utilitarianism.com/peter-singer.html https://www.utilitarianism.com/peter-singer.html caráter irritante de um composto de um sabonete. Além disso, em caso de existirem duas alternativas experimentais, só estaria justificada aquela que causasse o menor prejuízo. Finalmente, a justificação do experimento não abrange o abusoxvi. 1.2.1 A Deontologia Kantiana e os Animais Como é claro, no utilitarismo não entra o conceito de “direito”; apenas fizemos uma avaliação de benefícios contra prejuízos. Isso implica que, se os benefícios fossem maiores que os prejuízos, a experimentação sobre humanos estaria igualmente justificada, independentemente de seu consentimento. A deontologia, iniciada por Immanuel Kant no século XVIII, faz uma aproximação diferente: os animais são pacientes morais. Isto é, eles têm direitos, sim, mas não todos, porque não são moralmente responsáveis, como os humanos comuns são. Desse modo, pode-se entender que os direitos dos animais são menores, mais restritos, que os dos humanos comuns; igualmente, aqueles humanos que consideramos incapazes de decidir por si mesmos são também pacientes morais. Essa diferença em direitos faz com que esteja justificado o uso de animais em experimentação. Além disso, segundo essa escola de pensamento, a linha divisória entre os animais com direitos e aqueles sem, seria a senciência. Animais não sencientes não teriam significância moral e, portanto, não possuem direitosxvii,xviii. Porém, é muito difícil saber o que pode sentir um animal, de forma que outros pensadores colocam a fronteira que os divide nos vertebrados, achando que outros animais não são capazes de aprendizado e senciência. Contudo, como falamos antes, há o caso dos polvos...xix,xx,xxi. Por outro lado, fica a pergunta de quantos direitos a menos são precisos para que o uso de um ser vivo em experimentação esteja justificado? Os humanos que não são responsáveis morais (crianças, doentes mentais etc.) podem ser usados em experimentação? Como os direitos são conferidos aos diferentes animais?xxii,xxiii. “The moral status of different beings […] Within the current debate, we can identify three general positions, as follows. • [T]here is a categorical moral dividing line between humans and animals. Human beings have a moral importance that animals lack. This we can call the clear-line view • [T]here is not so much a clear dividing line as a continuum or moral sliding scale, correlated, perhaps, with a biological sliding scale of neurological complexity • [B]iological classification is not by itself sufficient to support claims about a categorical moral distinction between human and non-human animals.” Texto e imagem disponível em: https://www.nuffieldbioethics.org/assets/pdfs/The-ethics-of- research-involving-animals-full-report.pdf Trecho retirado de: The Ethics of Research Involving Animals. The Nuffield Council on Bioethics. 2005. Chapter 3 – Ethical issues raised by animal research. Figura 7 – The Nuffield Council of Bioethics é uma referência mundial em ética do uso dos animais em experimentação 1.2.2 O Contrato Social como Justificativa A escola do contrato social estabelece, nas palavras de James Rachelxxiv, que “a moralidade consiste num conjunto de regras para governar como as pessoas devem tratar outras pessoas, as quais as pessoas racionais concordam em aceitar para o benefício mútuo e com a condição de que os outros seguirão essas mesmas regras”. Os animais não podem concordar com essas regras e, portanto, são deixados de fora da moral e da capacidade de serem credores de direitos. Por outro lado, dentro das regras que nós, humanos, damos para nós mesmos, estabelecemos que alguns animais têm alguns direitos. Esse contrato social atual é que estabelece que está justificado usar animais em experimentação. Nesse sentido pode ser muito útil saber qual a opinião da população sobre esse ponto, já que as regras que nos damos dependem de nossas opiniões. Em pesquisas feitas no Reino Unido, país considerado pró-animais, a proporção favorável ao uso oscilava entre 55% e 60%. Porém, deve-se ter em conta que a maneira com que são feitas as perguntas influencia grandemente o resultado. Assim, quando na pergunta era incluída uma referência à medicina, a porcentagem de respostas favoráveis aumentava claramente, enquanto que, se a referência era ao sofrimento animal, a porcentagem caía. Por tudo isso, deve-se ter em mente que a justificação pode mudar em pouco tempo, sem a necessidade de aparição de novas escolas de pensamentoxxv,xxvi. “If the government were to suddenly decide to remove everyone’s pet dogs from their homes, there would be a societal outcry that would likely be accompanied by violence [...] So, if contractualists are concerned with preventing societal chaos, why should dogs not have full moral standing under their system?” Swanson, Jennifer (2011) “Contractualism and the Moral Status of Animals”, Between the Species 14(1), Article 1. Between the Species is a peer-reviewed electronic journal devoted to the philosophical examination of the relationship between human beings and other animals. Figura 8 – Logo da revista de filosofía Between the Species Fonte: https://digitalcommons.calpoly.edu/bts/ https://digitalcommons.calpoly.edu/bts/ 1.3 Legislação e Diretivas A preocupação pelo bem-estar animal tem-se traduzido em leis nos diferentes países. Porém, nem todos iniciaram esse caminho ao mesmo tempo. Assim, na Inglaterra, a Cruelty to Animals Act foi proclamada em 1876 e incluía que os animais utilizados em experimentação científica deveriam ser anestesiados, se envolvesse sofrimento ou feridas deveriam ser abatidos ao final dos experimentos e, mais importante, que só deviam ser utilizados animais se houvesse uma necessidade real de conhecimento. Por outro lado, os EUA decretaram sua primeira lei em 1966 (Animal Wellfare Act). No Brasil, somente em 2008 foi promulgada a chamada Lei Arouca. Contudo, ainda há países, como China, que apenas possuem orientações mais ou menos oficiais, mas não legislaçãoxxvii. A lei no 11794/2008 estabelece normativas para o uso de vertebrados em experimentação científica no Brasil3. Da aplicação desta lei, criaram-se o Concea (Conselho Nacional de Controle da Experimentação Animal), órgão máximo nas questões deutilização de animais, e os Comitês de Ética para o Uso de Animais, conhecidos como CEUAs, nas diferentes instituições de pesquisa e ensino. Segundo a Lei, todo projeto de pesquisa que envolva a utilização de vertebrados deve ser revisado e aprovado pelo comitê de ética da instituição (CEUA) antes de iniciar. No nosso país existe uma sensibilização para a procura de métodos alternativos ao uso de animais (MAUA). Isso se inclui na Diretriz Brasileira para o Cuidado e Utilização de Animais em Atividades de Ensino e Pesquisa (DBCA) que foi criada pelo Concea em 2016. Essa diretriz obriga a oferecer MAUA para aqueles estudantes que se declarem objetores de consciência. Além disso, a procura por MAUA é incentivada e regulada. Para isso, 3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11794.htm. “In Italy, Law 413/1993 states that public and private Italian Institutions, including academic faculties, are obliged to fully inform workers and students about their right to conscientious objection to scientific or educational activities involving animals, hereafter written as “animal CO”. […] The results of this investigation revealed that less than half of Italian academic faculties comply with their duty to inform on animal CO” Baldelli, I. et al. (2017) Conscientious Objection to Animal Experimentation in Italian Universities. Animals (Basel) 7: 24. A consequência dos fatos relatados no exemplo ao lado (falta de vigilância e execução das leis relacionadas com uso de animais) faz com que o nível cumprimento delas com frequência dependa da vontade e princípios éticos dos pesquisadores. Figura 9 – Università da Roma "La Sapienza" Fonte da imagem: Melirius / CC BY-AS https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sapienza_entrance_(20 040201351).jpg http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11794.htm estabeleceu-se o BRACVAM, que identifica as necessidades e promove a procura por MAUA. Esses métodos são avaliados experimentalmente na Renama (Rede Nacional de Métodos Alternativos), e, uma vez terminados os estudos, o Concea valida tais métodos para uso nacionalxxviii. Outros organismos, como a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância ]]7 Sanitária), também têm produzido regulações sobre aspectos relacionados (RDC 35/2015)xxix. 1.3.1 Ética na Prática com Animais A bioética não é apenas um exercício que devemos fazer para obter a aprovação do comitê de ética de nossa instituição. Na prática do dia a dia nos laboratórios, a ética para com os animais é de grande importância. Assim, existem algumas diretrizes que são mais ou menos aceitas de forma geral no mundo ocidental entre os pesquisadores. As mais amplamente divulgadas são as conhecidas como “As três R”, inicialmente propostas pelos pesquisadores W. Russel e R. Burch no livro “Principles of Humane Experimental Technique” em 1959: Replacement (Substituição), Reduction (Redução) & Refinement (Refinamento)xxx. • Substituição: significa evitar o uso de animais sempre que possível. Essa substituição pode ser absoluta (com uso de métodos in vitro, uso de dados já publicados na literatura, ou simulações in silico) ou relativa (com uso de animais menos sencientes ou o uso de experimentação em humanos). • Redução: uso do menor número possível de animais. Isso pode ser realizado mediante uso de animais apenas nos últimos estágios da experimentação, escolha ponderada do tipo de teste a ser realizado, boa planificação e estratégias estatísticas (como desenho de experimentos sequenciais e fatoriais). • Refinamento: redução do sofrimento e cuidado nas condições em que o experimento será realizado. Neste caso, o refinamento para limitar o sofrimento pode incluir sacrificar os animais antes de estes chegarem a falecer por causa do experimento. O refinamento das condições de vida e experimentação podem incluir "Limitations of the Three Rs tenet [...] 1. The Three Rs tenet has been criticized for the underlying premise that the use of animals for scientific purposes is acceptable [...] 2. The Three Rs tenet does not provide a way to give special consideration for certain species. [...] 3. Conflicts between each “R” have also been identified as a limitation [...] 4. There can be conflicts between the Three Rs tenet and the goals of certain types of scientific animal use. [...] 5. The full potential of the Three Rs tenet to improve animal welfare has not yet been reached” Fenwick, N, et al, (2009) The welfare of animals used in science: How the “Three Rs” ethic guides improvements. Can. Vet. J. 50: 523-530. Festing, S. & Wilkinson, R. (2007) EMBO Rep 8:526-530. Figura 10 – “As três R” Fonte: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/ar ticles/PMC2002542/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2002542/ https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2002542/ cuidados na escolha do tipo de gaiola, forma de transporte e condições higiênicas, assim como as condições próprias do experimento (anestesia, evitar danos desnecessários, como a amputação de membros para identificação etc.). Além disso, deve-se estar consciente de que a bioética começa no bem-estar dos animais antes de serem sujeitos de experimentação, por exemplo, na sua criação e manutenção nos biotériosxxxi. 1.4 Modificação Genética de Animais O avanço nas técnicas de clonagem e modificação do genoma dos mamíferos com, por exemplo, a utilização de técnicas baseadas em CRISPR/Cas9 capazes de induzir a deleção de genes sem introduzir DNA exógeno faz com que, na atualidade, seja mais correto falar de Animais Modificados Geneticamente (AMG) do que Animais Transgênicos. A finalidade da introdução de modificações nos genomas dos animais é variada. Assim, na maioria dos casos, as modificações têm como finalidade o conhecimento científico. Porém, não devemos esquecer que outras motivações são também possíveis. Por exemplo, a modificação do peixe zebra mediante a introdução da sequência de codificação de uma GFP deu lugar à venda desses animais (GloFish) como animais de estimação exóticos; igualmente, apesar de ainda não haver AMG permitidos para uso alimentar humano, existem já bovinos que expressam proteínas recombinantes e porcos transgênicos com maiores níveis de ácidos graxos insaturadosxxxii. A criação de animais modificados geneticamente traz consigo algumas preocupações relacionadas ao bem-estar dos animais. Assim, questiona-se se os procedimentos para a obtenção desses animais não são excessivamente invasivos, podendo ter consequências imprevisíveis que afetem à própria manutenção dos animais (caso de fenótipos severos) ou se esses procedimentos exigem a morte de um número incalculável de animais em estágios embrionáriosxxxiii. Além disso, a manipulação genética levanta também outra série de preocupações mais básicas. Do ponto de vista utilitarista, cabe perguntar se o prejuízo pela transformação dos animais está compensado pelo benefício obtido. A maioria concordaria com a utilidade de modificar o genoma de alguns animais se isso beneficiasse a saúde da sociedade humana; GloFish é o nome comercial da variedade fluorescente geneticamente modificada do peixe ornamental Danio rerio, conhecido no Brasil como paulistinha, [...] este é o primeiro animal geneticamente modificado publicamente disponível como animal de estimação. [...] A venda ou posse destes peixes é ilegal na Califórnia devido a uma legislação que restringe a comercialização de qualquer peixe geneticamente modificado. O Canadá também proíbe a importação ou a venda destes peixes, devido à falta de informações suficientes para a tomada de uma decisão quanto à segurança do uso deste OGMs. A importação, venda e posse destes peixes também são proibidas na União Europeia.[...] Na Nova Zelândia, a posse de um GloFish acarreta multa e sacrifício dos animais apreendidos. Texto e imagem disponível em: Wikipedia (https://pt.wikipedia.org/wiki/GloFish). Figura 11 Paulistinhas ou peixe zebra Fonte: Zebrafisch por Azul Domínio Público https://pt.wikipedia.org/wiki/GloFish porém, é menos provável que concordem com a produção de animais de estimação fluorescentes. Por outro lado, estão as preocupações sobre a liberação, tanto em vida como depois da morte, dos animais modificados geneticamente no ecossistema selvagem. Devem estes animais serem contidos em vida e destruídos totalmente sem que seus corpos sequer possam contaminar o meio ambiente natural?xxxiv. Finalmente, estão as questões sobre se os animais modificados podem ser patenteados e se as modificações genéticas afetam a essência e o propósito da espécie ou do indivíduo modificado (Telos). A modificação genética do comportamento de uma espécie selvagem para que aceite a vida em gaiolas é uma modificação excessiva do caráter da espécie?xxxv 1.5 Invertebrados: A Fronteira Os animais invertebrados são aproximadamente mais de 95% dos animais na natureza, e, entre eles, muitos são utilizados em experimentação científica, por exemplo, os bem conhecidos em genética e biologia molecular Caenorhabditis elegans (Nematoda) e Drosophila melanogaster (mosca da fruta), mas também muitos outros, desde Aedes egyptii (mosquito) até minhocas planas (Platyhelminthes). Como vimos até aqui, a consideração e os direitos dos animais têm evoluído grandemente nos últimos séculos, e estes passaram de ser bêtes machines, na opinião de Descartes, para serem seres vivos cujo uso em experimentação requer justificativas morais. Porém, a consideração moral dos animais está geralmente limitada, nos casos mais amplos, aos vertebrados. Esses limites estão marcados pela senciência suposta neles. Por isso, na maioria dos países, o uso de vertebrados em experimentação requer aprovação de um comitê de éticaxxxvi. A separação entre vertebrados – considerados sencientes – e invertebrados – não sencientes – é feita baseando-se na etologia e na aparente simplicidade dos sistemas nervosos. Porém, a nocicepção (capacidade de perceber e transmitir impulsos nervosos relacionados ao dano tecidual) está ainda pouco estudada nesses organismos. Contudo, já foram encontrados nociceptores e estruturas nervosas que respondem aos estímulos nocivos em cefalópodes e outros organismos, assim como plasticidade neuronal e condutas etológicas que parecem estar relacionadas a aprendizado e sentimentos como o medo. Por outro lado, descobriu-se que muito do processamento sensorial nos cefalópodes acontece Fig. 2 Behaviour approaches of assessing emotions in invertebrates “Although only a very limited number of studies have examined emotions in invertebrates, of those that have used a behavioural approach, two have addressed the possibility of positive emotions. Cassill and colleagues (2016) report a behaviour in fire ants (Solenopsis invicta) that, they argue, is similar to bodily expressions indicating pleasure in humans and other animals (Fig. 2C).” Perry, C. J. & Baciadonna, L. (2017) Studying emotion in invertebrates: what has been done, what can be measured and what they can provide J. Exp. Biol. 220: 3856. Link direto para o artigo: https://jeb.biologists.org/content/220/21/3856 Figura 12 – Expressão de emoções em invertebrados Fonte: Figura 2 do artigo Perry, C. J. & Baciadonna, L. (2017) J. Exp. Biol. 220: 3856. https://jeb.biologists.org/content/220/21/3856 na periferia dos braços, e não no cérebro, o que sugere que não é preciso uma estrutura central complexa para essas tarefas. Por tudo isso, na Europa, os cefalópodes estão inclusos na Diretiva 2010/63/EU “On the Protection of Animals Used for Scientific Purposes”, e outros países, como a Austrália, também incorporam proteções similaresxxxvii. Embora ainda não exista um debate vivo na população sobre o tema e ainda que a comunidade científica, por enquanto, seja contra a inclusão dos invertebrados entre os animais regulamentados pelos comitês de ética, o debate já está nas revistas científicas e entre os filósofos, e por isso talvez a fronteira dos direitos animais para usos científicos pode variar nos próximos anos junto aos novos achados sobre funções cognitivas em invertebrados. ► 2. Bioética Não Animal e Meio Ambiental Figura 13 – Charles Strebor “Earth Ball”. Fonte: https://www.iied.org/fighting-for-future-sustainable-development-battle-for-ideas-2017 Creative Commons. https://www.iied.org/fighting-for-future-sustainable-development-battle-for-ideas-2017 2.1 Desextinção de Espécies A extinção de espécies é, infelizmente, uma constante na atualidade; na maioria dos casos, essas extinções têm os humanos como causa direta ou indireta. Por isso, a possibilidade que a biologia molecular abre para a “ressurreição” de espécies por meio da clonagem está no foco do debate ético. Antes de entrar na discussão, devemos ter em mente que existem vários tipos de extinção: extinção final ou filética (quando não há mais indivíduos dessa espécie), a hibridação com outras espécies, a pseudoextinção dada por evolução para outra espécie nova e a especiação alopátrica (idêntica à anterior, mas produzindo duas ou mais espécies diferentes). Cada uma dessas extinções traz seus próprios condicionantes éticos frente à possibilidade de desextinção. Vamos falar aqui apenas da desextinção para o caso filéticoxxxviii. A extinção filética, porém, não significa exclusivamente a extinção de todos os indivíduos da face da terra. Se admitirmos que cada ecossistema individual é um ente isolado que não se importa com o que acontece nos outros ecossistemas, a desaparição de uma espécie de um ecossistema, por exemplo, o urso dos Pireneus, pode ser considerada extinção filética nesse ecossistema, mesmo que existam ursos da mesma espécie nas montanhas húngaras. Isso traz como consequência a noção de desextinção também como a reintrodução da espécie com indivíduos trazidos de outro ecossistema. Outro ponto importante é que a desextinção também atinge plantas e outros organismos, e sua importância não é menor, mesmo que os casos mais espetaculares e midiáticos sejam sempre os relacionados com grandes animais do passado, como o mamutexxxix. “How long before de-extinction is a reality? The answer depends on what you’re willing to accept as “de-extinction.” If you mean a pigeon born with some passenger pigeon traits, or an elephant born with mammoth-like traits, it could happen within a few years to a decade. Longer for mammoths, for the reasons I’ve already mentioned and because elephants have a two-year gestation period. If you mean 100-percent mammoth, with all mammoth genes and behaviors, that will never happen.” Entrevista com a autora Beth Shapiro e fonte para a imagem: https://www.smithsonianmag.com/science- nature/these-are-extinct-animals-we-can-should- resurrect-180954955. Figura 14 – Capa do livro How to Clone a Mammoth, da autora Beth Shapiro] https://www.smithsonianmag.com/science-nature/these-are-extinct-animals-we-can-should-resurrect-180954955 https://www.smithsonianmag.com/science-nature/these-are-extinct-animals-we-can-should-resurrect-180954955 https://www.smithsonianmag.com/science-nature/these-are-extinct-animals-we-can-should-resurrect-180954955 2.1.1 Razões e sofrimento na desextinção Devemos dizer que ainda não houve sucesso na desextinção de espécies por métodos moleculares. Porém, acredita-se que isso acontecerá, sim, em curto prazo. A respeito das técnicas moleculares, existem duas grandes opções no caso deanimaisxl: • A transferência nuclear a partir de uma célula somática armazenada para um gameta feminino enucleado de uma espécie similar e utilização de uma mãe substituta. Porém, o clone será só quase geneticamente idêntico aos membros da espécie extinta: as mitocôndrias possuem DNA cuja origem está no gameta enucleado. • A fecundação de um gameta (geralmente feminino) de uma espécie afim com gametas conservados da espécie a ser “ressuscitada”. Nesse caso, os indivíduos serão híbridos que deveriam ser retrocruzados para conseguir a homogeneidade genética. Ambas as técnicas podem gerar críticas sobre se realmente estamos desextinguindo espécies ou criando novas, dependendo de quais sejam os critérios para aceitar que um indivíduo pertence a uma espéciexli. Do ponto de vista da ética, as primeiras preocupações que se sobressaem são as razões reais pelas quais queremos realizar a desextinção. Sem dúvida, é bacana, traz fama, e talvez seja até economicamente interessante para um grupo de pesquisa conseguir trazer de volta uma espécie extinta. Por outro lado, desextinguir uma espécie pode ser uma forma de consolar nossa consciência da responsabilidade de ter causado a extinção desta ou de outras espécies. Nenhum deles é um argumento éticoxlii. Voltando às técnicas, a imperfeição destas faz com que muitos dos indivíduos clonados apresentem problemas sérios de malformações, infertilidade e até problemas imunitários. Por isso, desde o utilitarianismo, somente é aceitável a desextinção se esta traz The de-extinction process via precise hybridization. The sequential stages begin with in silico and end in situ, shown on the outside circle. The inner circle shows the compartmentalized and overlapping supporting research for the de-extinction process, with arrows showing exchange of resources (dark purple are physical resources, light purple are knowledge resources). Novak, B. J. De-Extinction. Genes (Basel). 2018. 9(11):548. Disponível em: https://www.mdpi.com/2073-4425/9/11/548/htm O processo de desextinção envolve muito mais do que a simples clonagem. Pode envolver até a reconstrução do ecossistema original. Figura 15 – Procesos de desextinção via hibridação precisa Fonte: Figura 2 de Novak, B. J.. Genes (Basel). 2018. 9(11):548 https://www.mdpi.com/2073-4425/9/11/548/htm consigo um maior benefício que o prejuízo causado com o sofrimento animal. Do ponto de vista dos direitos dos animais, matar um animal (ou embriões) para trazer outro diferente à vida não é aceitávelxliii. 2.1.2. Em favor da desextinção O argumento maior em favor da desextinção também vem do utilitarismo. A reintrodução de uma espécie num ecossistema estará justificada se isso significar uma melhora na “saúde do ecossistema”. Por exemplo, a extinção de um predador pode trazer consigo o incremento no número de suas presas herbívoras que, por sua parte, modificam o ecossistema, colocando em perigo de extinção algumas das espécies de plantas ou, em geral, reduzindo a diversidade. Nesse caso, a reintrodução do predador traria de volta o equilíbrio entre espécies e um incremento na diversidade, que pode ser entendido como um aumento na saúde do ecossistema. Ou seja, depois de uma análise cuidadosa, em alguns casos, pode estar justificada a desextinção do ponto de vista da éticaxliv. Outro argumento é que a desextinção pode oferecer animais que possam ser utilizados para obter conhecimentos fisiológicos, anatômicos ou de outro tipo que não podem ser obtidos de outra forma. Porém, como foi adiantado anteriormente, os animais e plantas desextintos podem não ser idênticos aos originais. Relacionado a isso, se os animais não são idênticos, vale a pena gerá-los? Um quadro pintado por Rembrandt tem o mesmo valor que uma cópia deste, caso o original fosse perdido num incêndio?xlv. Por outro lado, argumenta-se que, se a extinção não é irreversível, nossa preocupação pelo cuidado do meio ambiente se tornaria bem menor. Mas se o resultado são ecossistemas íntegros e saudáveis, vale a pena se preocupar por isso?xlvi. Em linhas gerais, há mais perguntas que respostas, mas a tendência geral na sociedade é para a justificação. “De-extinction via breeding has been widely presented by many authors as a novel conservation endeavour wholly separate from historic conservation trends […] Aside from the well-known case of wolves in Yellowstone National Park, reintroductions via translocation in the United States include: beaver, bighorn sheep in badlands habitats, elk in eastern states and bald eagles and wild turkey in New England. Wild turkeys, which are abundantly common now in New England, had gone extinct in the region by the 1840s and were absent until successful reintroductions in the 1970s” Novak, B. J. De-Extinction. Genes (Basel). 2018. 9(11):548. O castor foi reintroduzido nas Badlands (ND, EUA) por iniciativa daquele que seria depois o presidente T. Roosevelt. Figura 16 – Castor (autor desconhecido) Fonte: https://www.chelseagreen.com /2018/badlands-without- beavers/ https://www.chelseagreen.com/2018/badlands-without-beavers/ https://www.chelseagreen.com/2018/badlands-without-beavers/ https://www.chelseagreen.com/2018/badlands-without-beavers/ 2.2 Plantas Modificadas Geneticamente As plantas modificadas geneticamente (PMG) apresentam algumas diferenças notáveis com respeito ao já visto anteriormente e estas diferenças possuem uma grande importância. Em primeiro lugar, as plantas não são consideradas sencientes por carecerem de sistema nervoso e, consequentemente, não são consideradas credoras de direitos nem possuem valor moral, contrariamente ao caso dos animais vertebrados. Contudo, um pouco incongruentemente, considera-se errado maltratar as plantasxlvii. Por outro lado, as PGM são majoritariamente dirigidas direta ou indiretamente para o consumo alimentar humano. Este último fato é o causador de as PMG estarem no “olho do furacão” da controvérsia sobre os seres vivos modificados geneticamente. A percepção sobre as PGM não é similar em todos os países. Assim, nos EUA apenas 2% da população considera as PMG uma preocupação, enquanto na Europa a porcentagem se eleva até quase 60%xlviii,xlix. A controvérsia gira ao redor de vários itens que podem ser resumidos eml,li: • A virtude da modificação genética de seres vivos e seu cultivo. Ou seja, é correto modificar o genoma dos seres vivos? Este é um debate similar em muitos aspectos ao já visto com animais. • Os direitos intelectuais e a patenteabilidade de seres vivos. Podemos considerar os seres vivos como instrumentos nossos? Invenções humanas? • Os direitos de agricultores, corporações e consumidores: etiquetagem, segurança alimentar, interesse geral, lucro. • A segurança meio ambiental dos cultivos de PMG: existe perigo em modificar as espécies selvagens de plantas com o pólen das PMG? Podem afetar de alguma outra forma? “A wide gap exists between the rapid acceptance of genetically modified (GM) crops for cultivation by farmers in many countries and in the global markets for food and feed, and the often-limited acceptance by consumers […] Recent political and societal developments show a hardening of the negative environment for agricultural biotechnology in Europe, a growing discussion – including calls for labeling of GM food – in the USA, and a careful development in China towards a possible authorization of GM rice that takes the societal discussions into account” Lucht, J. M. (2015) Public Acceptance of Plant Biotechnology and GM Crops. Viruses, 7: 4254-4281. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26264020/ A percepção social contra os transgênicos às vezes é explorada comercialmente sem pudor. Figura 18 – Água não transgênica – de AmandaAllworth. Fonte: https://medium.com/live-your-life- on-purpose/shameless-food-labeling-is-a- problem-8aed70752770 https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26264020/ https://medium.com/live-your-life-on-purpose/shameless-food-labeling-is-a-problem-8aed70752770 https://medium.com/live-your-life-on-purpose/shameless-food-labeling-is-a-problem-8aed70752770 https://medium.com/live-your-life-on-purpose/shameless-food-labeling-is-a-problem-8aed70752770 2.2.1 PMGs e Ética O primeiro dos pontos, a moralidade dos cultivos de PMG, é talvez o que mais puramente corresponde a um debate ético. Do ponto de vista do consequencialismo/utilitarismo, os cultivos de PMG deveriam ser aceitos e até favorecidos se realmente supõem um benefício para a humanidade em termos econômicos, sociais ou de saúde. Somente se houvesse desvantagens importantes que pudessem contrariar os benefícios (problemas de segurança ambiental ou de outro tipo), seria válido se opor. Como nos casos anteriores, o valor que demos aos problemas frente aos benefícios pode fazer com que o balanço caia para um lado ou outro. Por exemplo, quão importante é uma probabilidade de 0,0000001 de contaminação do teosinto, uma planta selvagem raramente encontrada no Brasil, com o transgene do milho Bt frente a uma poupança de milhões de reais em pesticidas?lii Do ponto de vista da ética da autonomia e do consentimento, bem cedo encontramos controvérsias. Essa escola de pensamento sustenta que temos direito a decidir sobre as questões que nos atingem diretamente. Porém, quem tem um direito maior? O agricultor, quando escolhe PMG para evitar exposição a pesticidas, ou o consumidor, quando escolhe não comer PMG? Essa controvérsia e outras parecidas serão tratadas mais à frente quando falarmos sobre as controvérsias em torno dos direitos dos consumidoresliii. Do ponto de vista da ética da virtude, de forma similar ao utilitarismo, vamos procurar um balanço positivo, mas, neste caso, de virtude, e não de benefício. A dificuldade “A novel weed has recently emerged, causing serious agronomic damage in one of the most important maize-growing regions of Western Europe, the Northern Provinces of Spain. The weed has morphological similarities to a wild relative of maize and has generally been referred to as teosinte. […] We infer that Spanish teosinte is of admixed origin, most likely involving Zea mays ssp. Mexicana as one parental taxon, and an unidentified cultivated maize variety as the other.” Trtikova et al. (2017) Teosinte in Europe – Searching for the Origin of a New Weed Sci. Rep. 7: 1560. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41598-017- 01478-w A preocupação sobre a possibilidade de espalhar genes estranhos no meio ambiente está baseada em fenômenos reais, porém, raros, de hibridação de espécies relacionadas. O caso acima ilustra a descoberta no campo espanhol de híbridos de teosinto (o antecessor do milho e uma espécie invasora na Espanha) com milho comercial. Figura 19 – Milho espanhol, teosinte espanhol e híbrido. Fonte: https://www.nature.com/articles/s41598- 017-01478-w https://www.nature.com/articles/s41598-017-01478-w https://www.nature.com/articles/s41598-017-01478-w https://www.nature.com/articles/s41598-017-01478-w https://www.nature.com/articles/s41598-017-01478-w aqui será determinar o que é virtuoso. Assim, o respeito pelas plantas pode ser considerado uma virtude, mas, como falado anteriormente, as plantas não têm valor moral, talvez apenas um status moral. Neste marco, incluem-se também as discussões sobre se estamos ultrapassando os limites do que é ético quando modificamos uma espécie (conceito do Hubris ou, mais popularmente, “brincar de ser Deus”). Neste caso, os partidários argumentam que a agricultura é uma tecnologia, não um ecossistema naturalliv. 2.2.2 Debates sobre as PMGs Além do debate ético, existem inúmeras controvérsias em torno das PMGs. Vamos ver apenas algumas delaslv: • Debate sobre a justiça. Por um lado, argumenta-se que os cultivos de PMG podem ajudar a alimentar uma população faminta ou, em outros casos, ajudar na nutrição correta dos humanos (caso do arroz dourado que ajuda corrigir dietas pobres em vitamina A); por outro, acredita-se que o aceite de PMGs sob essas razões abriria a porta para todos os PMGs. Também relacionado à justiça, argumenta-se que as companhias como Monsanto obrigam os agricultores a não guardarem parte da colheita para usar como semente nos próximos anos. Isso vai contra o princípio de justiça e os usos tradicionais. Por outro lado, não veem inconvenientes na venda e no uso de sementes que produzem indivíduos híbridos, e consequentemente, por segregação, os indivíduos da segunda geração nunca são iguais aos parentais, o que torna inviável esse costume de guardar parte da colheita para semente. • Direito dos consumidores à escolha livre. Em defesa dos consumidores e de seu direito de escolher livremente se querem ou não consumir produtos com PMG, “Gilles-Éric Séralini, cientista da Universidade de Caen (França) e autor principal de um controverso artigo que, supostamente, associava o cancro ao consumo de organismos geneticamente modificados (OGM) – mais precisamente de cereais transgénicos –, não parece estar interessado em tratar seriamente do assunto. Está convencido de que tem razão – e disposto a adoptar uma posição nada científica para ter a última palavra. A prova disso: a saga do artigo assinado por ele e a sua equipa, que foi publicado, em 2012, numa revista científica; retirado de publicação, em 2013, pela própria revista e devido a diversas falhas graves; e, apesar de tudo, tornado a publicar há dias, numa outra revista. Só que, desta vez, sem passar por qualquer crivo científico de avaliação – e sem qualquer novo resultado que venha agora demonstrar a justeza das conclusões iniciais dos seus autores.” Diário Público; Ana Gerschenfeld, 4 de Julho de 2014 https://www.publico.pt/2014/07/04/ciencia/noticia/ogm-quando- os-cientistas-se-esquecem-de-fazer-ciencia-1661471 Figura 20 – Primeira página do artigo Séralini et al. (2012) Food and Chemical Toxicology 50: 4221-4231. Fonte: https://reader.elsevier.com/reader/ sd/pii/S0278691512005637?token= B6A846B4843A2A2A4B9644A6696A 7DEDE966464734A7221482A61B32 3C91298A6581AF932CE5C35E8CD2 7D304919FA41 https://www.publico.pt/2014/07/04/ciencia/noticia/ogm-quando-os-cientistas-se-esquecem-de-fazer-ciencia-1661471 https://www.publico.pt/2014/07/04/ciencia/noticia/ogm-quando-os-cientistas-se-esquecem-de-fazer-ciencia-1661471 exige-se a etiquetagem de todos os produtos que possam ter traços destas. Contudo, o nível de informação sobre os perigos reais do consumo de alimentos com PMG é muito limitado, e abundam as desinformações. Assim, não é estranho ouvir pessoas formadas falarem “eu não vou comer esses tomates, porque tem um gene, e isso é perigoso para a saúde”. • Contenção e modificação do meio ambiente. Argumenta-se que não há dados suficientes para se ter certeza de que o pólen das PMG num cultivo não pode fertilizar outras plantas no entorno e, com isso, espalhar a modificação genética para o meio ambiente. Exige-se, nesta situação, que se aplique o princípio de cautela e a proibição das PMG até se terem dados suficientes. Paralelamente a essas controvérsias, há inúmeros exemplos de fake news, pesquisas tendenciosas e paracientíficas e preconceitos que são impulsionados pelos interesses políticos e econômicos e por medos populares. Tudo isso faz com que o debate sobre as PMG esteja vivo e gritante, com posições radicais frequentemente. 2.3 Microrganismos, Genética e Biotecnologia Nos anos 1970, com o início das técnicas de biologia molecular,houve um grande debate sobre microrganismos e sobre como podiam ser modificados geneticamente. Isso trouxe consigo uma parada voluntária temporária na pesquisa dessas técnicas e, consequentemente, da modificação de microrganismos, que durou apenas dois anos. Desde essas datas, a maior parte das dúvidas sobre a ética sobre a manipulação de microrganismos tem sido dissipada, e, na atualidade, apenas aquelas modificações que atingem ou têm como fim o mercado alimentar são recebidas com receio. Por outro lado, as inúmeras instâncias de modificação genética no campo biomédico (por exemplo, a produção de insulina recombinante ou anticorpos antitumorais) são recebidas com entusiasmo pela sociedade. Na atualidade, as maiores controvérsias têm a ver com segurança. Nesse sentido, os maiores receios giram em torno da resistência aos antibióticos (transmissão horizontal de genes de resistência), da toxicidade humana, de possíveis reações alérgicas ou da criação de cepas patogênicas novas ou mais virulentas (neste caso, às vezes associado ao possível uso como armas biológicas)lvi. A respeito da liberação de microrganismos modificados no meio ambiente, contrariamente ao panorama em plantas, é considerada uma opção válida para o caso de melhoras ambientais (por exemplo, despoluição) ou controle de pragas, entre outros. A oposição social, ainda que existente, é fraca e baseia seus argumentos nos mesmos princípios do caso de animais e plantaslvii,lviii. Em resumo, a partir de um ponto de vista ético, os pontos mais controversos sãolix: 40 Years Ago, GMO Insulin Was Controversial Also “It may seem like olden days to millennials, but the late 1970s were a lot like today. America was divided due to an unpopular President, gas was expensive, the movie industry was at death's door ... and genetic engineering was a big concern. […] Though GMO insulin today is regarded as a gigantic success story for public health, in 1977, the year before the American Council on Science and Health was founded, the same political forces and activists aligned against science now were already against it then. Just the names have changed. […] Scientists persevered, voluntarily making sure everything was done safely before Kennedy and the Carter administration could find a legal way to shut them down. They came to a consensus on using specific bacteria (e-coli strain K12) genetically engineered so that even if they somehow got to the outside world, they would die quickly and have no chance to colonize the human digestive tract.” Hank Campbell July 29, 2017 https://www.acsh.org/news/2017/08/29/40-years-ago-gmo-insulin-was-controversial-also-11757. https://www.acsh.org/news/2017/08/29/40-years-ago-gmo-insulin-was-controversial-also-11757 • Possibilidade de efeitos sobre os humanos ou o meio ambiente se espalharem, como dito acima. A maior preocupação está associada ao fato de que, uma vez liberado o microrganismo, não possuímos mais controle sobre ele. • Controvérsia sobre os direitos intelectuais e o patenteamento de organismos vivos, como no caso de plantas. • Direitos do consumidor (etiquetagem de alimentos nos quais pode haver uso de organismos modificados geneticamente, como no caso de laticínios fermentados) e segurança alimentar. • Criação e uso de armas biológicas por parte de governos e grupos terroristas. 2.4 Ética e Produção Agropecuária O santo graal da ética da produção agropecuária é contestar a pergunta: O que é comida boa (virtuosa)? Pensando a partir do academicismo, utilizando aproximações utilitaristas, mediríamos os benefícios e os prejuízos das opções e tomaríamos uma decisão sobre qual é a forma mais ética de atuar; se utilizarmos uma aproximação deontológica, como Tom Regan, chegaríamos à conclusão de que seria aquela agricultura que melhor respeita os direitos dos animais. Porém, existem mais duas aproximações para esse problema, que tentam dar visões mais bem adaptadas ao contexto agropecuário. A visão orientada ao valor cria uma agricultura ideal baseada em valores corretos e, a partir daí, julga a agricultura real. Por outro lado, a visão do pluralismo democrático avalia as práticas atuais e tenta obter padrões de excelência aos quais se deve chegarlx. Em qualquer caso, essas aproximações são utilizadas para avaliar os diferentes debates que atualmente temos relacionados à produção agropecuárialxi: • Os países “ricos” têm a obrigação de ajudar aqueles que não possuem comida suficiente? Essa ajuda é efetiva? Que fazemos com os excedentes agropecuários? • Qual deve ser nossa posição frente à má nutrição tanto estrangeira (exemplo: avitaminoses em áreas pobres) quanto própria (exemplo: obesidade)? “The Nations accepting this Constitution, being determined to promote the common welfare by furthering separate and collective action on their part for the purpose of: • raising levels of nutrition and standards of living of the peoples under their respective jurisdictions; • securing improvements in the efficiency of the production and distribution of all food and agricultural products; • bettering the condition of rural populations; • and thus contributing towards an expanding world economy and ensuring humanity's freedom from hunger”. Preâmbulo da Constituição da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations. Textos básicos da FAO: http://www.fao.org/3/K8024E/K8024E.pdf. Figura 21 – Logotipo da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Fonte: https://www.wucwo.org/index.php/ en/activities/international- updates/fao http://www.fao.org/3/K8024E/K8024E.pdf • Como devemos encarar o impacto meio ambiental produzido pela agricultura? Como agir frente à mudança climática? Que significa sustentabilidade? • Como agir na produção pecuária de forma correta com relação aos direitos dos animais, tendo em conta os diferentes pontos que isto envolve: transporte, abatimento e condições de criação de gado, entre outras? • Que posição é mais correta frente às mudanças econômicas e de modos de produção industrializado? Devemos ter em conta aqui as consequências econômicas da tendência aos grandes monopólios, a redução da agrobiodiversidade e as condições de vida dos agricultores. Esses debates estão abertos, e não apareceram, ainda, diretrizes claras de consenso. Isto, entre outras razões, porque as respostas para umas perguntas criam conflitos com as respostas para outras. 2.5 Ética e o Meio Ambiente Em linhas gerais, a ética meio ambiental segue as mesmas linhas de pensamento que outros ramos da bioética. Isso não é surpreendente se temos em conta que existe uma grande transferência de ideias e conceitos entre o pensamento sobre direitos dos animais e a ética do meio ambiente. Assim, existem três escolas de pensamento que são as majoritárias na hora de conceituar o que é bom e que ações são corretas com relação ao meio ambientelxii: • Consequencialismo (do qual o utilitarismo é o ramo principal): estão certas ou justificadas aquelas ações que maximizam o benefício. Em alguns casos, o benefício último é considerado como o florescimento da vida. • Deontologia e direitos dos animais: a justiça deve dirigir as ações, e não o benefício. Dessa forma, mesmo que produza um menor benefício, devem-se seguir os princípios morais (o que é bom) e evitar qualquer atuação que signifique uma ação injusta. Por exemplo, a morte sem razão e a extinção de animais seria injusto por ir contra seus direitos. • Ética da virtude: essa escola está ganhando uma maior importância nos últimos anos, embora não seja majoritária. Segundo ela, nossas ações devem maximizar a virtude (não o benefício). Assim, nossas ações estarão justificadas se trouxerem consigo valores comocompaixão pelos animais, eficiência ou sensibilidade ecológica. “Deep ecology” was born in Scandinavia, the result of discussions between Næss and his colleagues Sigmund Kvaløy and Nils Faarlund […] The “shallow ecology movement”, as Næss (1973) calls it, is the “fight against pollution and resource depletion”, the central objective of which is “the health and affluence of people in the developed countries.” The “deep ecology movement”, in contrast, endorses “biospheric egalitarianism”, the view that all living things are alike in having value in their own right, independent of their usefulness to others. The deep ecologist respects this intrinsic value, taking care, for example, when walking on the mountainside not to cause unnecessary damage to the plants. Environmental Ethics. Stanford Encyclopedia of Philosophy (2003, revised 2015). https://plato.stanford.edu/entries/ethics- environmental/#DeeEco. Figura 22 – Percepções da ecologia Fonte: https://environmentalethics2014.w ordpress.com/ Entrada de 1 Dezembro, 2014 https://plato.stanford.edu/entries/ethics-environmental/#DeeEco https://plato.stanford.edu/entries/ethics-environmental/#DeeEco https://environmentalethics2014.wordpress.com/ https://environmentalethics2014.wordpress.com/ Porém, o grande debate na ética meio ambiental não está em qual dessas escolas de decisão ética é utilizada para justificar nossa atitude perante o meio ambiente. A maior controvérsia e evolução dentro da ética meio ambiental gira ao redor da relevância moral dos diferentes entes que podemos ter em conta, ou seja, o que e por que tem valor moral, quanto e quem outorga esse valor. 2.5.1 Valores Humanos e Meio Ambiente Tradicionalmente, o mundo, incluindo os animais e o meio ambiente, tem sido medido a partir da perspectiva humana. Embora, séculos atrás, se considerasse que somente os humanos tinham valor ou status moral, essa visão foi modificada para compreender que outros seres e coisas ao nosso redor podiam ter valor, dependendo de sua relação conosco. Esse valor, portanto, é outorgado pelos humanos e será tão grande quanto nós, humanos, valorizemos a relação entre o ente e nós mesmos. Por conta de a fonte dos valores ser a relação com os humanos, denominam-se estes valores como antropocêntricos ou instrumentais. Esses valores são utilizados tanto para justificar o uso da biosfera pelos humanos quanto para derivar os deveres que temos para preservá-lalxiii. • Valores diretos e indiretos. A forma mais primária de outorgar valores. Estes derivam da capacidade dos entes para serem modificados e/ou produzir benefício material para os humanos de forma direta ou indireta. Por exemplo, o valor de um bosque, e daí nosso dever de preservação, é derivado da riqueza que pode ser obtida pela exploração sustentável de seus recursos madeireiros. O uso da palavra “sustentável” aqui não é fortuito. Os valores diretos são a origem do interesse na sustentabilidade dos ecossistemas de diversas organizações humanas, especialmente governos. • Valor por amenidade. O valor dos entes é outorgado pela capacidade de ser um ponto recreativo, um referente turístico, um ponto histórico ou religioso, entre “The Brundtland definition of sustainable development was a broad ethical principle with two key components. First, it framed the goals of development in terms of meeting people's needs. In this respect it differed from some theories or accounts of development that used less value- laden terms, especially those stressing GDP or general economic expansion. Second, the Brundtland definition makes an explicit commitment to future generations. It thus adopted one a philosophical approach in environmental ethics that has been associated with anthropocentrism, or the view that protection of the environment should be based primarily (if not exclusively) on benefits that humans derive from utilizing natural resources.” Thompson, P. B. (2012) Sustainability: Ethical Foundations. Nature Education Knowledge 3(10):11. Figura 23 – A relação entre ecologia, sustentabilidade e design. Fonte: Filiz Çelik (2013) Ecological Landscape Design in “Advances in Landscape Architecture”. IntechOpen outros. Não precisa ser utilizado ou convertível em valor econômico. Nesse grupo pode se englobar o valor dos parques naturais como lugares visitáveis. • Valor por opção. Tem a ver com a possibilidade de que, no futuro, o ente tenha uma importância que agora desconhecemos. Por exemplo, pode ser importante conservar um ecossistema aquático porque sua biodiversidade faz pensar que talvez no futuro possa ser encontrado algum antibiótico produzido por algum dos animais ou plantas marinhas. • Valor pela própria existência. Neste caso, o valor é derivado de nossa percepção de que um animal, lugar ou ente é importante por sua beleza ou capacidade de nos impressionar (Antártida), pelos valores que associamos a eles (fofura do coala) ou por qualquer outro fator relacionado a uma experiência humana satisfatória. Assim, este valor pode ser estendido à biosfera toda. 2.5.2 Valores Não Humanos e Meio Ambiente Os valores antropocêntricos são ainda hoje grandemente utilizados tanto na política quanto pela sociedade toda. Porém, outros valores estão tomando força e são já de grande importância para entender nossa atitude de preservação de ecossistemas e diante das mudanças meio ambientais. Esses valores não dependem da relação dos entes com os humanos; pelo contrário, ainda que os humanos não existissem, os entes teriam valor. Ou seja, são valores intrínsecos, também denominados valores não antropocêntricos. Esses valores nascem a partir de visões individualistas ou grupais dos seres vivoslxiv,lxv: • Individualismo. Os defensores dos valores individuais argumentam que, como no caso dos humanos, cada um dos indivíduos animais possui um valor e, portanto, importância moral. Esse valor poderá ser diferente para os componentes de cada uma das espécies segundo seu nível de senciência e autoconsciência; para outros autores, o valor é igual para todas as espécies animais. No extremo, essa forma de pensamento leva a outorgar o mesmo valor para todos os indivíduos vivos (biocentrismo), desde uma célula de levedura até um caxinguelê ou um gorila. • Holismo. Neste caso, são os entes supraindividuais os que possuem valor. No caso do especismo, as espécies é que possuem status moral. No ecocentrismo, os ecossistemas são os entes moralmente valiosos, enquanto que os indivíduos e as Anthropocentrism versus Ecocentrism Revisited: Theoretical Confusions and Practical Conclusions “One of the most disputed questions in environmental philosophy can be characterized as an intellectual debate between anthropocentric and ecocentric approaches […] 1) Anthropocentrists see hierarchy in natural order, where humans are above all other biota […] 2) The first point often results in metaphysical dualism, an ontological divide between humans and other nature. […] 3) Other nature is seen mechanistically; […] 4) Humans are the only beings seen as intrinsically (in the meaning of “noninstrumentally”) valuable; […] 5) It is held that human beings constitute the moral community. […] Holistic nonanthropocentrism, or ecocentrism, was introduced to the philosophical community by Aldo Leopold […]. Leopold’s main critique of anthropocentric attitude is that its nature-relation is merely economic; consequently, we seem to ignore the welfare of those beings and things in nature that don’t have any direct economic value to us.” Kortetmaki (2013) SATS 14, 21-37. Disponível em: https://www.degruyter.com/view/journals/sats/14/1/article-p21.xml https://www.degruyter.com/view/journals/sats/14/1/article-p21.xml espéciespossuem valores ecológicos diferentes e, portanto, contribuem em maior ou menor medida ao valor moral do ecossistema. Finalmente, no extremo, outorga-se valor moral à biosfera toda. Em qualquer desses casos, as entidades (neste caso a biosfera) possuem interesses que não têm por que coincidir com as dos membros, (as espécies) e, no caso extremo, defende-se que os interesses humanos são irrelevantes frente aos da biosfera. A selvageria (a qualidade de ser prístino de contato com humanos), embora não possua um valor moral, às vezes é considerada como possuindo um valor intrínseco, e, portanto, devemos nos preocupar para que o nível de independência dos ecossistemas em relação ao ser humano (selvageria) se mantenha. Por isso, algumas pessoas consideram reprovável a reintrodução de espécies num ecossistema ou desextinção, porque os animais reintroduzidos perdem sua caraterística de selvagem quando passam pelas mãos humanas. 2.5.3 Outras Visões Ecologistas Além das linhas de pensamento mencionadas anteriormente, existem também outras que, embora não majoritárias, possuem uma importância crescente para entender os debates existentes na sociedade sobre o ecologismo. • Ecofeminismo. Este é um movimento bem diverso, mas que tem um ponto em comum: existe uma ligação mutualmente fortalecedora entre a dominação da mulher e a dominação do meio ambiente que pode explicar os abusos atuais de ambos. As diferentes variantes de ecofeminismo oferecem diferentes explicações sobre qual é a ligação entre patriarcalismo e abuso do ecossistema e, em alguns casos, incluem explicações mais amplas que abrangem o racismo e o classismo na sociedade. Além disso, as visões ecofeministas usualmente fazem uma crítica contra o uso de princípios morais abstratos que não têm em conta as emoções na hora de fazer decisões éticas. Tudo isso influi na hora de outorgar status moral aos diferentes componentes dos ecossistemas e, em geral, à nossa relação com os seres vivos e a sociedade a um só tempo. Assim, existem ramos do ecofeminismo que podem ser denominados como ecofeminismo materialista, ecofeminismo vegetarianista e ecofeminismo espirituallxvi. • Pragmatismo Meio ambiental. Essa forma de pensar acredita que as aproximações “clássicas” (consequencialismo, deontologia etc.) não têm como oferecer um discurso único que possa nos dar linhas morais satisfatórias, de modo que se afastam disso e se concentram em objetivos práticos que podem ser discutidos, analisados e que, finalmente, possam produzir políticas ou diretrizes. Assim, acreditam que, em muitos casos, não existem contradições entre assumir uma posição antropocentrista “Debates on basic moral principles are important. One cannot just call for an end to the ‘humans first’ and ‘nature first’ debate on the basis of expediency. […] Particular cultures have their specific conceptions of the good, and advancing decisions by using the machinery of the state to expedite matters is unacceptable. For instance, one can think of mining and its impact on a community’s way of life. Deciding on the basis of practicality in this regard is disrespectful and tyrannical. Policies advanced on the basis of expedient outcomes would be ethically and democratically deficient.” Maboloc, C. R. (2016) On the Ethical and Democratic Deficits of Environmental Pragamatism. J Human Values 22: 107- 114. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/097168581 5627930 Figura 24 – Onde a mágica acontece. Fonte: http://www.remsol.co.uk/sustainabi lity-pragmatism-vs-idealism/ https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0971685815627930 https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0971685815627930 http://www.remsol.co.uk/sustainability-pragmatism-vs-idealism/ http://www.remsol.co.uk/sustainability-pragmatism-vs-idealism/ ou defender valores não humanos, porque, no final, se o ecossistema é preservado, tanto os valores de uma aproximação como da outra são respeitadoslxvii. Considerações Finais: A bioética abrange mais do que simplesmente as atuações que têm os humanos como sujeitos. A consideração pelos animais, seja como instrumentos de experimentação, fonte alimentar ou companheiros de viagem na terra, é fácil de entender “instintivamente”. Porém, justificar quantos animais usarmos e de qual espécie numa determinada atuação experimental precisamos entender o conceito de senciência e nossa visão atual dela, entre outros requerimentos. Mas a vida, e a bioética, não estão restritas aos animais. Plantas, microrganismos e o ecossistema todo são também sujeitos de consideração. Assim que ainda hoje as visões desde a utilidade para os humanos sejam o ponto de partida do que entendemos como justificável, essas visões estão deixando espaço para outras onde os humanos somos apenas uma parte mais do ecossistema. Bibliografia consultada O texto desenvolvido aqui está baseado principalmente em: • Hubrecht, R. C. UFAW-The Welfare of Animals Used in Research. 2014. Willey Blackwell. • Mepham, B. Bioethics, An Introduction for the Biosciences. 2nd Edition. 2008. Oxford University Press. • Oksanen, M. & Siipi, H. (Eds) The Ethics of Animal Recreation and Modification. 2014. Palgrave McMillan. • Palmer, C., McShane, K. & Sandler, R. (2014) Environmental Ethics. Ann. Rev. Environ. Resour. 39:419-442. • Parekh, S. R. (Ed.) The GMO Handbook. 2004. Springer. • Ricroch, A. E., Guillaume-Hofnung, M. & Kuntz, M. (2018) The Ethical Concerns about Transgenic Crops. Biochem. J. 475: 803-811. • Steinbock, B. (Ed.) The Oxford Handbook of Bioethics. 2007. Oxford University Press. De forma complementar, podem consultar: • Andersen, M. L. & Winter, L. M. F. (2019) Animal Models in Biological and Biomedical Research - Experimental and Ethical Concerns. An Acad. Bras. Cienc. 91, e20170238 [para legislação e instituições brasileiras sobre uso de animais em experimentação]. • Carere, C. & Mathers, J. (Eds) The Wellfare of Invertebrate Animals. 2019. Springer [para bioética relacionada aos invertebrados]. • Herring, R. J. (Ed.) The Oxford Handbook of Food, Politics, and Society. 2015. Oxford University Press [para Ética e Produção Agropecuária]. Os casos são de produção própria. O material Bioética Animal e Meioambiental de Agustín Hernández López está licenciado com uma licença Creative Commons - Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/ http://poca.ufscar.br/ http://poca.ufscar.br/ Notas bibliográficas i Vignes, J. D. (2011) C. R. Biologies 334: 171-181. ii The Ethics of Research Involving Animals (2005) The Nuffield Council on Bioethics, Reino Unido. iii Hubrecht, R. C. (2014) UFAW-The Welfare of Animals Used in Research. Willey Blackwell. iv Hubrecht, R. C. (2014) UFAW-The Welfare of Animals Used in Research. Willey Blackwell. v Mepham, B. (2008) Bioethics: An introduction to the biosciences. 2nd Edition. Oxford Univ. Press. vi Mepham, B. (2008) Bioethics: An introduction to the biosciences. 2nd Edition. Oxford Univ. Press. vii The Ethics of Research Involving Animals (2005) The Nuffield Council on Bioethics, Reino Unido. viii The Ethics of Research Involving Animals (2005) The Nuffield Council on Bioethics, Reino Unido. ix Mepham, B. (2008) Bioethics: An introduction to the biosciences. 2nd Edition. Oxford Univ. Press. x The Ethics of Research Involving Animals (2005) The Nuffield Council on Bioethics, Reino Unido. xi Hubrecht, R. C. (2014) UFAW-The Welfare of Animals Used in Research. Willey Blackwell. xii Mepham, B. (2008) Bioethics: An introduction to the biosciences. 2nd Edition. Oxford Univ. Press. xiii Jones, R.C. (2013) Biol Philos 28: 1-30. xiv Hubrecht, R. C. (2014) UFAW-The Welfare of Animals Used in Research. Willey Blackwell.
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