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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÂO PAULO ALEXANDRA BERNARDINI CANTARELLI PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO A Experimentação Animal e os Seres Não-Humanos como Sujeitos de Direito Projeto de Iniciação Científica PIBIC-CEPE Alexandra Bernardini Cantarelli Orientação: Profa. Dra. Erika Bechara SÃO PAULO 2020 2 A Experimentação Animal e os Seres Não-Humanos como Sujeitos de Direito Relatório de Pesquisa para elaboração de Monografia jurídica proposta pela Prof. Dra. Erika Bechara, do Departamento de Direitos Difusos e Coletivos da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica, desenvolvida pela aluna Alexandra Bernardini Cantarelli, com auxílio de Bolsa de Iniciação Científica – PIBIC – CNPq. SÃO PAULO 2020 3 Sumário Introdução .......................................................................................................... 4 Parte I – Atividades Desenvolvidas ................................................................. 6 1. Sistemática Adotada ..................................................................................... 6 2. Objetivos, dificuldades e superações ......................................................... 6 2.1. Dos objetivos alcançados ....................................................................... 6 2.2. Das dificuldades encontradas ................................................................ 7 2.3. Das soluções propostas ......................................................................... 7 3. Atividades acadêmico-culturais .................................................................. 8 Parte II – Relatório Científico ........................................................................... 8 1. Os seres não-humanos e a capacidade de sentir: a senciência como fundamento do direito dos animais ................................................................. 8 2. Experimentação animal: a evolução do sistema de combate a esta prática ............................................................................................................... 12 2.1. As correntes filosóficas sobre a dignidade, os direitos e a utilização dos animais .................................................................................................... 16 2.1.1. Especismo .................................................................................. 16 2.1.2. Utilitarismo e Bem-estarismo ................................................... 19 2.1.3. Abolicionismo ............................................................................ 24 3. Os animais e a experimentação sob a ótica do Direito nacional ........... 27 3.1. Os animais e o direito internacional .................................................... 29 3.2. A proteção jurídica dos animais no ordenamento brasileiro ............... 31 3.3. A experimentação animal no Brasil: a Lei Arouca, o critério da necessidade e as Comissões de Ética .......................................................... 39 3.3.1. As falhas da Lei Arouca e das demais normas de proteção aos animais ............................................................................................... 45 4. Métodos alternativos à experimentação animal ...................................... 50 4.1. Propostas de proibição dos testes em animais no Brasil ................... 58 5. Rumo ao abolicionismo: a ineficácia e desnecessidade da experimentação animal para os resultados pretendidos ............................ 63 Conclusão ........................................................................................................ 76 Bibliografia ....................................................................................................... 79 Parte III – Resumo ........................................................................................... 85 4 Introdução A experimentação animal, à primeira vista, seria um método científico eficaz, apto a elucidar fenômenos naturais e científicos, apresentando contribuições altamente benéficas às áreas da saúde e do conhecimento, já há séculos presente em nossa sociedade. Contudo, a real efetividade e necessidade da utilização de animais em testes medicinais e educacionais suscitam conflitos de ordem ética e moral, sobretudo no que tange à condição dos animais como seres vivos sencientes, ao passo em que se questiona a redução desses seres à condição de meros instrumentos de pesquisa. A questão dos direitos dos animais e a sua utilização em pesquisas é discutida desde o século XVII. O filósofo Jeremy Bentham, em 1789, foi um dos principais pontos de referência para o questionamento da relação dos seres humanos perante os seres não humanos, e, sobretudo, da senciência animal. Em sua obra, destaca-se que “a questão não é, eles podem raciocinar? Ou, eles podem falar? Mas, sim, eles podem sofrer?”. A partir da obra de Bentham, foi se instalando definitivamente a tensão entre liberdade de investigação científica e a proteção do bem-estar animal (GOMES, 2016, p. 103). Hoje, com a evolução do conhecimento acerca dos processos biológicos e suas interações, a preocupação em relação a segurança no uso das tecnologias experimentais em animais e humanos também cresceu. Esses questionamentos de ordem moral repercutiram para a criação de movimentos sociais em prol do bem-estar animal, e chegou a atingir a esfera jurídica de diversas nações, que reconheceram a necessidade de proteção dos seres não-humanos, já que também dotados de senciência. Assim, os ordenamentos internos passaram a regulamentar o uso de animais em pesquisas, além de estabelecer normas que, indiretamente, atribuem direitos aos seres não humanos, ao impor condutas omissivas aos humanos no que tange a provocação de práticas cruéis e que infligem dor e sofrimento aos animais. O Brasil, adotando tal perspectiva, integrou e constitucionalizou o que seria o “direito dos animais”, estabelecendo regras e sanções relativas às condutas humanas perante os seres não-humanos. No que tange à experimentação animal, o ordenamento brasileiro inclusive conta com 5 legislação específica, a qual institui órgãos e comissões especializados para avaliação dos procedimentos. No entanto, tal como ocorre em outros países, as normas brasileiras estabelecem técnicas e métodos para realização da experimentação, não chegando, porém, a proibi-las. Com isso, estabelece-se o conflito entre as posições filosóficas que defendem o uso dos animais em pesquisas, desde que respeitado o critério da necessidade do experimento e a dignidade do animal, e as que rejeitam todo e qualquer uso de seres não humanos para objetivos de pesquisa. Esta última posição, defendida por Tom Regan, entende que não há como se utilizar de animais sem ferir sua dignidade ou sem infligir alguma espécie de desconforto: Será que isso é verdade? Será que todos os grandes avanços na saúde pública, ou mesmo a maioria deles, se devam ao uso dos “modelos animais?”. E mesmo que sim, como é que fica a pergunta moral: Os benefícios para os humanos justificam os danos aos animais? (REGAN, 2006, p. 199). Assim, entendendo que os seres não humanos são, tal como nós, dotados de interesses e sentimentos, a melhor posição que deveríamos adotar perante os animais seria a total abstinência de sua utilização, para qualquer fim. Em defesa a tal posição, divergente da adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, entende-se que métodos alternativos ao uso de animais em pesquisas devem ser buscados e exclusivamente adotados pelos pesquisadores. Isto, pois, como será abordado no presente trabalho, os seres não humanos são seres dignos de direitos, tal como nós, à medida quecomprovadamente são capazes de sentir. Ao mesmo tempo, também será demonstrada a ineficácia dos métodos experimentais em animais para os fins pretendidos, ao oposto do que corriqueiramente se pensa, enquanto serão apresentados métodos alternativos que são dotados de maior eficácia. Por fim, o trabalho defenderá que, sendo os animais sujeitos de direito, devem ter garantida proteção mais abrangente e reforçada pela legislação pátria, no que tange não só à experimentação, mas também às demais disposições ligadas à crueldade animal. 6 Parte I – Atividades Desenvolvidas 1. Sistemática Adotada Como ponto central, a pesquisa buscou analisar a experimentação realizada em animais no Brasil, à luz da situação dos animais perante a Constituição Federal, no sentido de serem considerados sujeitos de direitos ou não. Assim, examinou-se a proteção dada aos seres não humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro, atualmente, sob a linha de defesa da existência comprovada da senciência animal, que justifica o tratamento digno dos animais perante a lei. Nos primeiros meses de pesquisa, foi necessário o conhecimento preliminar acerca do tema, sobretudo em relação às correntes filosóficas ligadas a ele e o seu impacto na esfera da legislação brasileira, aprofundamento feito a partir das obras de Peter Singer, Tom Regan e Melanie Joy, principalmente. Ato contínuo, foi feita a leitura de artigos científicos mais voltados à área da biologia e da medicina, para trazer ao texto a comprovação fidedigna (i) de que os animais são seres sencientes; (ii) de que existem métodos alternativos viáveis à experimentação animal; (iii) de que a utilização de animais em pesquisas é algo obsoleto. Ao adentrar a legislação brasileira, foi feita uma análise preliminar, para entender qual a posição adotada pelo ordenamento em relação aos animais, qual o nível de proteção dado a eles e como a experimentação é tratada no Brasil, com especial destaque para a Lei Arouca. Neste ponto, sobretudo, a orientação da Prof. Dra. Erika Bechara foi crucial, para compreender o verdadeiro status dos animais perante a legislação e também para melhor interpretar o conteúdo da lei que versa a respeito do tema. 2. Objetivos, dificuldades e superações 2.1. Dos objetivos alcançados Até o presente momento, muitos dos objetivos que foram estabelecidos pela pesquisa têm sido concretizados, com auxílio da Professora Orientadora. Em primeiro lugar, a redação da tese de que os animais são seres sencientes e a defesa de que, em razão da senciência são, portanto, sujeitos dignos de 7 direitos, foram dois pontos que puderam ser abordados de forma bastante aprofundada, dando forte base ao projeto. A sustentação dessa parcela da pesquisa foi possível, principalmente, em razão da bibliografia científica e biológica, me proporcionando os conhecimentos além do Direito que foram necessários para toda a redação do tema. Um outro objetivo, cujo cumprimento tem se mostrado bastante satisfatório nos últimos meses, se relaciona com a pesquisa legislativa feita para trazer à tona a posição do animal no ordenamento jurídico brasileiro. A análise dos princípios ambientais da Constituição de 1988 para dar suporte ao reconhecimento dos direitos dos animais como um todo e, posteriormente, a leitura e abordagem crítica da Lei que regula a experimentação animal no Brasil - Lei Arouca - até então puderam ser bastante exploradas. O uso da jurisprudência e da doutrina tem o potencial de complementar o projeto nos próximos meses. 2.2. Das dificuldades encontradas Uma das maiores dificuldades encontradas no projeto, também observada quando do relatório parcial, centrou-se no aspecto relacionado à explicação das teorias relacionadas ao direito dos animais: especismo, bem- estarismo e abolicionismo. Em um segundo momento, em relação ao exame do ordenamento jurídico brasileiro, a elaboração de uma análise crítica em relação ao tratamento da experimentação animal no país foi também uma dificuldade encontrada, que exigiu esforços significativos para interpretar a letra da lei. Por fim, o estudo e pesquisa envolvendo a leitura de artigos científicos com linguagem mais próxima da médica e científica também se apresentou como uma dificuldade, já que distinta da jurídica, ora mais familiar. 2.3. Das soluções propostas Tendo em vista os desafios encontrados, o papel da orientadora Prof. Dra. Erika Bechara foi crucial, sobretudo para corrigir e esclarecer os aspectos concernentes ao reconhecimento pelo ordenamento jurídico brasileiro da senciência animal e também para tornar mais maleável a questão da legislação infraconstitucional a respeito da experimentação animal. 8 No que diz respeito às demais dificuldades, foi fundamental a pesquisa de doutrina, jurisprudência e, principalmente, teses e artigos nos quais a linguagem científica era um pouco mais esclarecida para leitores leigos. De tal modo, foi possível desenvolver a perspectiva crítica do projeto. 3. Atividades acadêmico-culturais Como a parte final da pesquisa ocorrera durante a pandemia de Coronavírus (COVID-19), a realização de atividades acadêmico-culturais que pudessem enriquecer o projeto ficou prejudicada. Não obstante, foi possível atender ao webinar “Direito e Ética Animal”, promovido pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) no dia 25 de maio de 2020, através da plataforma Youtube. Parte II – Relatório Científico 1. Os seres não-humanos e a capacidade de sentir: a senciência como fundamento do direito dos animais A senciência significa a capacidade de sentir prazer, felicidade ou dor, e tem se centrado nos argumentos que envolvem tanto o bem-estar humano como o animal (JOY, 2010, p. 57). Por muitos séculos, a comunidade científica e a sociedade compreendiam que somente os seres humanos, dotados de capacidade cognitiva mais complexa, teriam sensibilidade. Assim, seria totalmente dispensável o tratamento digno aos seres não-humanos, já que desprovidos de sentimentos. Contudo, evidências de que os animais (pelo menos os vertebrados) sentem dor, a exemplo de quando evitam ou tentam escapar de um estímulo doloroso, foram comprovadas por diversos estudos comportamentais, tanto pela teoria da evolução quanto pela similaridade anatomo-fisiológica em relação ao ser humano (LUNA, 2006, apud LUNA, 2008, p.18). A capacidade de sentir, de acordo com o filósofo Peter Singer, se configura como um pré-requisito para que um ser tenha interesses. Assim, sendo evidente a capacidade dos animais de sofrer e de sentir prazer, são eles seres que possuem interesses, tal como nós seres humanos. Com isso, se um 9 ser sofre, não há justificativa moral para deixar de levar em conta esse sofrimento: O princípio da igualdade requer que seu sofrimento seja considerado da mesma maneira como o são os sofrimentos semelhantes - na medida em que comparações aproximadas possam ser feitas - de qualquer outro ser. Caso um ser não seja capaz de sofrer, de sentir prazer ou felicidade, nada há de ser levado em conta. Portanto, o limite da senciência [...] é a única fronteira defensável de preocupação com os interesses alheios. Demarcar essa fronteira com outras características, tais como inteligência ou racionalidade, seria fazê-lo de maneira arbitrária (SINGER, 2013, p. 14-15) No século XVII, o filósofo Jeremy Bentham, fundador da escola reformista-utilitarista de filosofia moral, foi uma das mais importantes influências para o reconhecimento da senciência e da necessidade de tratamento mais humano aos animais, sendo um dos poucos que estendeu esta concepção da igual consideração de interesses aos seres de outras espécies. Em sua argumentação, o dever do tratamento digno aos animais seria resultado da indagação acerca da capacidade que os mesmos possuem de sentir, e não de falar ouraciocinar (BENTHAM, 1823, p. 283). Com isso, se um ser sofre, este sofrimento não pode ser considerado irrelevante, sendo fundamento para conferir aos animais a devida respeitabilidade. Bentham incorporou ao seu sistema de ética a base essencial da igualdade moral, colocando que os interesses de cada ser afetado por uma ação deveriam ser levados em conta e receber o mesmo peso que os interesses semelhantes de qualquer outro ser (BENTHAM, 1823 apud SINGER, 2010, p.9). John Stuart Mill (1861) e Henry Sidgwick (1874) foram outros protagonistas que seguiram os ideais de Bentham. Walter Russell Brain, neurologista britânico do século XX, afirmava que considerar que os animais sentem menos por não serem humanos, e que, portanto, seriam inferiores, era algo absurdo (BRAIN, 1964 apud SINGER, 2010, p. 20). Isto, pois, vários de seus sentidos são muito mais apurados que os nossos, a exemplo da audição dos morcegos e do olfato dos cães. Apesar de nosso córtex cerebral ser mais complexo, o que não diz diretamente sobre a dor, o sistema nervoso dos animais é quase idêntico ao nosso, e as reações à dor são praticamente semelhantes. No mesmo sentido, o Comitê sobre a 10 Crueldade com Animais Selvagens do Reino Unido, redigiu relatório1, no ano de 1951, concluindo que há evidências que comprovam que os animais sentem dor: Sabe-se que alguns mamíferos possuem, e pode-se presumir que todos possuam, o aparelho nervoso que nos seres humanos é conhecido por mediar a sensação de dor, e isso é uma evidência aceitável de que os mamíferos realmente sentem dor. Além disso, os animais guincham, lutam e dão outras evidências "comportamentais" que são geralmente consideradas como o acompanhamento de sentimentos dolorosos. Evidências desse segundo tipo são, talvez, menos certas, pois sinais externos de dor são variáveis e podem estar ausentes e é impossível dizer se, e em que sentido, o choro de um animal deve receber o mesmo peso que o choro de um ser humano. No entanto, acreditamos que os aspectos fisiológicos, e, mais particularmente, as evidências anatômicas justificam e reforçam totalmente a crença do senso comum de que os animais sentem dor (tradução livre). Também no Reino Unido, outro estudo relevante evidenciando a capacidade de sentir dos animais foi realizado em 2012. Philip Low escreveu a Declaração de Cambridge sobre a Consciência, a qual editou em conjunto com Jaak Pankseep, Diana Reiss, David Edelman, Bruno Van Swinderen e Christof Koch. O documento foi baseado em estudos realizados para comprovar que os animais possuem certo grau de consciência, em comparação com o comportamento dos seres humanos. Dentre as observações feitas, a declaração final foi favorável ao reconhecimento da senciência animal: A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuranatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos. Com isso, os animais não humanos também sentem dor, por serem dotados de substratos neurológicos que geram consciência e comportamentos voluntários e intencionais. Assim, não é razoável supor que sistemas nervosos 1 HENDERSON, John Scott. Report of the Committee on Cruelty to Wild Animais Presented to Parliament by the Secretary of State for the Home Department and the Secretary of State for Scotland, etc. [Chairman, John Scott Henderson.]. Committee on Cruelty to Wild Animais. Londres, 1951. 11 idênticos do ponto de vista fisiológico, que resultam em formas semelhantes de comportamento em circunstâncias parecidas, devam operar de forma totalmente diferente no que tange às sensações subjetivas (SINGER, 2013). No entanto, sendo a dor uma experiência subjetiva, não é difícil argumentar contra o sofrimento do outro e acreditar nas posições contrárias à senciência animal, como assim explica Melanie Joy (JOY, 2010, p. 57). De acordo com a psicóloga, como não estamos no corpo do outro, só conseguimos presumir a dor, e, quando temos um interesse em presumir que o sujeito não está sentido dor, acabamos acreditando que seja verdade: Nossas suposições provêm de nossas crenças e o próprio sistema de crenças que nos torna capazes de infligir sofrimento a outros trabalha ativamente para mantê-las vivas. [...] Consideremos, por exemplo, a suposição comum de que apenas o instinto leva as lagostas a lutar para escapar da panela onde estão sendo cozidas vivas. Embora não tenhamos motivos para acreditar que elas não estão fugindo da água fervente porque ela causa dor, e embora o instinto e a senciência possam coexistir e de fato coexistam (um não exclui o outro), a maioria das pessoas prefere pensar de modo diferente (JOY, 2010, p. 57) Joy afirma que o bloqueio no reconhecimento pleno da senciência e dos direitos animais se justifica pela a percepção genérica em relação aos seres não-humanos, a qual os reconhece como coisas vivas ou abstrações, e não seres vivos como o são. Essa percepção é formada por um trio cognitivo, composto pela objetivação, desindividualização e dicotomização dos animais. O trio cognitivo nos permite distorcer nossas percepções dos animais, o que nos impede de nos identificar com eles, e, assim, reduz a possibilidade de desenvolvermos uma empatia para com eles, com base no princípio da semelhança. A objetivação seria o processo no qual encaramos o animal como mero objeto inanimado, o que distancia o reconhecimento de sua sensibilidade ou de sua vida, a exemplo da classificação jurídica dos animais como propriedade. A desindividualização, por sua vez, implica em ver o animal não como um sujeito único, mas parte de um grupo, sendo uma mera abstração sem personalidades e preferências. A dicotomização, por fim, nos faz encaixar os animais em categorias, o que implica separar nossas emoções em relação a eles, e, portanto o reconhecimento de uma senciência seletiva aos animais. 12 Assim, por exemplo, ao comer carne, não temos a mesma sensibilidade em relação a um porco do que temos em relação a um cachorro, encarando comer aquele como algo natural e este como algo repugnante. O mesmo pode ser dito em relação aos animais submetidos a testes, que acabam sendo reduzidos ao sofrimento por não serem reconhecidos individualmente, mas como membros de uma abstração ausente de senciência, o que torna a prática aceitável. Contudo, o reconhecimento da senciência está presente no plano prático, na medida em que as pessoas se recusam a testemunhar a violência contra os animais, seja na produção de carne, no entretenimento ou no uso para experimentos. Os indivíduos, no geral, detestam ver animais sofrendo. E isso, pois, nós nos compadecemos, não desejando fazer ninguém sofrer, ainda mais se o sofrimento for intenso e desnecessário, seja o ser humano ou animal. É por essa razão que existe um conjunto de defesas em práticas que suportam a violência contra os animais, com as acima mencionadas, que acabam possibilitando que as pessoas apóiem estas práticas sem perceber (JOY, 2010, p. 35). Diante das evidências apresentadas, é possível afirmar, finalmente, que os animais são seres sencientes. Portanto, não há justificativa moral para considerar que a dor (ou o prazer) sentida pelos animais seja menos importante do que a mesma intensidade de dor (ou prazer) experimentada pelos seres humanos (SINGER, 2010, p. 25). A nossa capacidade mental pode fazer a diferença em muitos casos, a exemploda memória dos fatos e das questões filosóficas. Contudo, essas diferenças não implicam maior sofrimento do ser humano normal. Em alguns casos, aliás, os animais podem sofrer mais, justamente devido a seu grau de compreensão ser mais limitado, a exemplo de um confinamento por razões de segurança, em que é possível explicar a situação ao homem, mas para o animal isto é inviável, e ele não conseguirá distinguir o motivo do confinamento de uma ameaça de morte. 2. Experimentação animal: a evolução do sistema de combate a esta prática A experimentação animal nada mais é do que a utilização de animais, vivos ou mortos, em atividades de pesquisas científicas, com a justificativa de 13 determinar os efeitos prejudiciais de certas substâncias nos seres humanos ou de ensinar funções fisiológicas a estudantes. Os experimentos incluem testes de toxicidade de produtos como cosméticos e farmacêuticos, e a dissecação e vivisseção nas escolas e Universidades, para auxiliar o aprendizado. Dentre os testes, alguns animais são forçados a ingerir a substância testada; às vezes, são forçados a inalá-la; ou a substância é aplicada na sua pele ou no seu olho. Apesar de não existir um número exato de animais usados nestes experimentos, não há dúvida de que beira aos milhões, e que continua a crescer (REGAN, 2006, p. 208). O uso de animais em experimentos e pesquisas apresenta registros desde os primórdios da humanidade. Na Antiguidade, o anatomista grego Alcmaeon (500 a.C.) praticava a vivissecção para estudar a natureza anatomofisiológica. Pouco depois, Hipócrates (550 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.) e outros estudiosos utilizavam animais em suas pesquisas com fins de comparar o funcionamento do corpo humano com o corpo de outros seres vivos. No que diz respeito aos testes, Galeno (129-210 a.C.) teria sido o primeiro que realizou a vivissecção com a finalidade experimental, e que também realizou demonstrações em animais vivos em público. Os primeiros estudos de Galeno consistiram em verificar os efeitos da destruição da medula espinhal, da perfuração do peito, da secção de nervos e das artérias dos animas que utilizava. Ele dizia que fazia parte do perfil do pesquisador a indiferença perante os sentimentos das cobaias (PAIXÃO, 2001, apud STEFANELLI, 2011, p. 189). Em 1638, William Harvey publicou o primeiro experimento em que se estabelecia um uso sistemático de animais em pesquisas, com o objetivo de estudar a fisiologia da circulação sanguínea. No século seguinte, indo em direção oposta aos demais cientistas, James Ferguson iniciou um movimento de busca de métodos alternativos ao uso de animais, ao se compadecer com o sofrimento dos seres vivos submetidos às pesquisas. Seguindo o mesmo entendimento que Ferguson, Robert Boyle, Robert Hook e Edmund O’Meara se manifestaram na mesma época contra os testes em animais. Em 1789, Jeremy Bentham defendia a igualdade de condições a todos os seres sencientes, e 14 lançou sua obra questionando o uso dos animais com o objetivo de experimentar. No século XIX, contudo, a experimentação ganhou grande vigor como método científico, sendo utilizado por François Magendie e Claude Bernard, que defendiam a ausência de qualquer sentimento no animal, sendo nosso direito nos utilizar deles conforme nossos interesses. Bernard condicionava o mérito dos experimentos à rígida adesão ao método científico, de modo a determinar a confiabilidade e reprodutibilidade dos resultados (BAEDER; PADOVANI; MORENO; DELFINO; 2012, p. 315). Ao mesmo tempo, em contrapartida, entidades protetoras dos animais começaram a emergir. No Reino Unido, em 1824, a Society for the Preservation of Cruelty to Animals foi criada, e, em 1876, o British Cruelty to Animal Act foi a primeira lei que regulou o uso dos animais em pesquisas. Anteriormente, em 1822, fora instituída a Lei Inglesa Anticrueldade (British Anticruelty Act), mas esta se aplicava apenas aos animais domésticos de grande porte. A primeira lei a proteger os animais domésticos foi, provavelmente, uma que existiu na Colônia de Massachussets Bay, em 1641. Essa lei propunha que: “ninguém pode exercer tirania ou crueldade para com qualquer criatura animal que habitualmente é utilizada para auxiliar nas tarefas do homem” (BAEDER; PADOVANI; MORENO; DELFINO; 2012, p. 315). Em 1845, na França, também fora criada a Sociedade para a Proteção dos Animais. Em anos posteriores foram fundadas sociedades similares na Alemanha, Bélgica, Áustria, Holanda e Estados Unidos (BAEDER; PADOVANI; MORENO; DELFINO; 2012, p. 315). No Brasil, o político Ignácio Wallace da Gama Cochrane fundou, em 1895, a primeira entidade protetora dos animais nacional, a UIPA - União Internacional Protetora dos Animais. Em 1909, a Associação Médica Americana propôs a primeira publicação estadunidense acerca da ética envolvendo a experimentação animal. Na década de 1970, o interesse no uso de métodos alternativos cresceu significativamente, ao mesmo tempo em que filósofos e defensores dos direitos dos animais, como Peter Singer e Tom Regan, publicavam obras demonstrando que os animais seriam sujeitos de direitos, cabendo a nós o dever de respeitá-los e adotar comportamentos éticos perante eles. 15 Em 1978, a proteção dos animais no âmbito internacional ganhou maior visibilidade, com a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO. De antemão, o documento estabelecia que todos os animais são sujeitos de direito (art. 1º). Diversos países são signatários do documento, inclusive o Brasil. Dentre seus dispositivos, está vedada a experimentação animal que implicar qualquer sofrimento, independentemente de qual for o seu escopo. Ao mesmo tempo, é estimulada a utilização e o desenvolvimento de técnicas alternativas.2 Os instrumentos para reduzir o uso de animais em pesquisas ao redor do mundo que mais tem se estabelecido nas instituições científicas são as Comissões de Ética no Uso de Animais. A atuação dos comitês foi estabelecida nos Estados Unidos, a partir da década de 1980, em decorrência da crescente pressão social sobre o uso de animais e, simultaneamente, do surgimento da obrigatoriedade legal em 1985. Neste momento, as universidades e instituições de pesquisa e aquelas relacionadas à produção comercial estabeleceram o IACUC (Institutional Animal Care and Use Committees). Esses Comitês passaram a ter a missão de adequar a proposta de procedimentos a serem efetuados em um protocolo experimental e, também, de aprovar ou não qualquer propósito de utilização de animais (BAEDER; PADOVANI; MORENO; DELFINO; 2012, p. 316). No Brasil, a atuação das Comissões de Ética foi instaurada a partir da Lei nº 11.794/08, que também propôs a criação de um Conselho Nacional de Controle e Experimentação Animal, ligado ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Nas últimas duas décadas, ademais, surgiram diversas associações e organizações não governamentais a favor dos direitos dos animais, tendo em vista que grande parte da sociedade discorda dos métodos de pesquisa corriqueiros e do uso em animais sem cuidados. No Reino Unido, por exemplo, foi fundada a Fund for the Replacement of Animals in Medical Experiments, no Reino Unido (FRAME), e a International Network for Humane Education (InterNICHE), que em 1988 atuava somente na Europa, se consolidou como 2 Art. 8º 1.A experimentação animal que implique sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, quer se trate de uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer que seja a forma de experimentação. 2.As técnicas de substituição devem ser utilizadas e desenvolvidas. 16 uma rede global em 2000. A World Animal Protection busca acabar com a crueldade animal, e atua mundialmente, inclusive, no Brasil. 2.1. As correntes filosóficas sobre a dignidade,os direitos e a utilização dos animais De formal geral, podemos destacar as seguintes correntes filosóficas concernentes ao uso dos animais para o atendimento das necessidades e utilidades humanas, dentre as quais os experimentos científicos e educacionais: o especismo, o utilitarismo e o bem-estarismo e o abolicionismo. Essas filosofias acabam por levantar questionamentos envolvendo Moral e Ética, frente à exploração animal e ao reconhecimento de sua dignidade. Carla Amado Gomes, citando a obra de Jean Yves Goffi (GOFFI apud GOMES, 2016), afirma que a dimensão da Ética pode ser resumida em duas perguntas e duas respostas expressas àqueles que utilizam animais em suas pesquisas. À pergunta: “Porque usa animais nos seus projetos?”, a resposta seria “Porque eles são como nós”. Enquanto à pergunta “É moralmente aceitável conduzir experiências com animais?”, a resposta, em sentido contraditório, seria “Sim, pois eles não são como nós”. 2.1.1. Especismo O termo especismo foi criado por Richard Ryder em 1970, mas a sua concepção já havia sido difundida à época do Renascimento, quando a experimentação em animais se popularizava pela Europa. O conceito de especismo envolve, basicamente, a discriminação contra aqueles que não pertencem a certa espécie. É o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém contra uma espécie distinta da sua, a favor dos interesses de membros da própria espécie (SINGER, 2010, p. 11). Portanto, aqui, o ser humano discrimina os outros animais com a justificativa principal de suas inteligências não serem similares à inteligência humana, sendo, portanto, seres inferiores. Assim, não há qualquer questão moral no que diz respeito ao uso dos animais, sendo competência do próprio ser humano decidir se deve ou não se utilizar de um animal, de acordo com seus exclusivos conhecimentos. Como resultado, os animais não humanos podem ser explorados livremente pelo ser humano, sendo utilizados como objetos indiscriminadamente. 17 Nesse sentido, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos em 2006, Tom Regan acentua que o “especismo é análogo a outros preconceitos morais. Racismo, por exemplo. Racistas pensam que membros de sua raça são superiores aos membros de todas as outras raças apenas porque eles (mas não outros) pertencem à raça superior. Especistas pensam que membros de nossa espécie são superiores a todas as outras espécies apenas porque nós (mas não outros) pertencemos à raça superior. Entretanto, assim como não há raça superior, não há também nenhuma espécie superior. A crença do especista não é menos preconceito que a crença do racista”. (REGAN, 2006) Na Renascença, o pensamento humanista insistia no valor e na dignidade dos seres humanos, os quais ocupavam lugar central no universo. Apesar de alguns pensadores, como Montaigne, condenarem a crueldade animal e reconhecerem o nosso dever de benevolência para com os seres não- humanos, esta concepção foi muito rejeitada à época. Na primeira metade do século XVII, René Descartes, influenciado pelos ideais cristãos e pela nova ciência da mecânica, disseminou a filosofia de que os animais não teriam alma imortal como o ser humano. Portanto, não teriam consciência, sendo meras máquinas que não sentiriam prazer ou dor ou qualquer sensação (SINGER, 2010). Assim, e sendo a época marcada pela experimentação em pesquisas como fonte mais utilizada para o conhecimento do ser humano, foi estabelecida uma tendência de utilização de animais em experiências, já que considerados seres sem alma e sem capacidade de sofrimento (GOMES, 2016, p. 102). A teoria adotada por Descartes, com isso, permitia aos experimentadores dissecar animais vivos, com a justificativa de obter progresso na ciência e sustentando que os seus corpos não possuíam qualquer sensibilidade. O grande filósofo e percursor dos ideais da dignidade humana, Immanuel Kant, também ilustrou seu posicionamento em relação aos animais, alinhado ao especismo e ao antropocentrismo exasperado. Para Kant, não haveria um dever moral dos seres humanos perante os animais. Isto, pois o reconhecimento moral da igualdade material entre o homem e o animal seria algo completamente equivocado, já que o ser não-humano seria desprovido de 18 dignidade, sentimento ora intrínseco à condição humana. Assim, o pensamento kantiano sustenta que os animais não são um fim em si mesmo, mas meio de satisfação do ser humano, único ser dotado da capacidade de pensar e agir de acordo com o pensamento (MENESES, Renato; SILVA, Tagore, 2016, págs. 231-232). No século XIX, quando os testes em animais também atingiram seu auge, o fisiologista Claude Bernard, alinhado ao especismo, defendia que os experimentos em animais seriam um direito integral e absoluto (PAIXÃO, 2001, apud STEFANELLI, 2011, p. 190). Isto, pois, se o ser humano teria o direito de usá-los para a alimentação, por exemplo, seria justificável o seu uso para fins científicos, que era algo de grande interesse para a humanidade. Ainda, Elísio Bastos (BASTOS, 2018, págs. 44-45) destaca as objeções especistas de Ruth Cigman, Alan White e Carl Cohen, no que tange ao reconhecimento do direito dos animais e de sua senciência. Para Cigman, os animais seriam incapazes de perceber a morte, pelo fato de os sentimentos que exprimem serem apenas mero reflexos de seu instinto. De tal modo, a ausência desta percepção implicaria na incapacidade dos seres não-humanos de demonstrar o desejo de estar vivo ou não. Assim, pela falta desse desejo, os animais não poderiam ser titulares de direitos. Já para White, o reconhecimento de direitos implicaria na compreensão acerca das implicações destes direitos, como suas obrigações e privilégios, o que os animais não conseguem realizar. Assim, dispõe que todo direito gera um dever, e, portanto, os animais seriam desprovidos de direitos, apesar de sentirem dor. No entanto, White traz uma ressalva que acaba por enfraquecer sua posição, afirmando que a falta de direitos dos animais não os isenta de maior proteção do que a atual. Ao tratar do posicionamento de Carl Cohen, Bastos revela que sua oposição ao direito dos animais justifica-se por considerar a concepção de direito essencialmente humana, o que a tornaria inerente ao ser humano e somente a ele, já que dotado de autonomia moral para entender suas limitações e liberdades. Seguindo esse raciocínio, os direitos só seriam reconhecidos em uma comunidade fundada na moralidade e racionalidade, sendo impossível estendê-los aos animais. Contudo, em uma concepção similar a White, Cohen admite a existência de obrigações dos seres humanos 19 perante os animais, como aquelas derivadas de compromissos assumidos por escolha, a exemplo de proporcionar cuidados ao animal de estimação. Ainda hoje, existem filósofos que defendem a ideia de que os animais não são conscientes de nada, porque não podem dizer nada ou porque lhes falta a habilidade de usar uma linguagem (REGAN, 2006, p. 82). Ademais, muitos cientistas alinhados ao especismo pautam suas defesas nos benefícios que a experimentação animal proporcionou à medicina e aos conhecimentos fisiológicos. Para eles, o uso em si dos animais na experimentação não envolve qualquer questão moral ou ética, mas apenas quando ultrapassa o limite do aceitável e justificável, a exemplo de casos de imperícia e negligência nas pesquisas. E, nos casos em que são justificáveis as experiências, caberia tão somente ao cientista decidir quais e quantos animais utilizar, sem a necessidade de procurar por métodos alternativos, sendo estes seres meros objetos que devem ser manejados com cuidado (CARDOSO; TRINDADE, 2012, p. 4). Assim, sendo postos os padrões de manejo dos animais, ficam pendentes apenas questões técnicas, a serem julgadas tão somente pelos próprios cientistas, desconsiderando o grau deinterferência na vida daqueles seres. De forma divergente, nas situações em que temos experimentos a serem realizados em seres humanos, diversas questões são colocadas em jogo para que a pesquisa possa ser aprovada. Com isso, são sopesados os riscos para o individuo e os benefícios que serão obtidos pela pesquisa. Portanto, o especismo permite que pesquisadores considerem os animais sujeitos a experimentos como itens de equipamento, instrumentos de laboratório, e não criaturas vivas, que sofrem. Nas agências governamentais norte-americanas, que financiam as pesquisas, os animais são listados como “suprimento”, ao lado de tubos de ensaio e instrumentos de registro. Ainda, a continuidade dos experimentos se justifica pelo imenso respeito que as pessoas ainda têm pelos cientistas, se rendendo a qualquer pessoa que use um jaleco branco e que tenha um P.h.D. (SINGER, 2010, p. 102). 2.1.2. Utilitarismo e Bem-estarismo O questionamento dos padrões de pesquisa e do uso inescrupuloso dos animais sem qualquer consideração de sua senciência nos leva para a próxima 20 corrente relativa ao direito dos animais, o utilitarismo. Com primeiros indícios no período iluminista, época marcada pela redescoberta da natureza, o utilitarismo reconhecia que os outros animais sofriam, e que, portanto, seriam dignos de consideração. Contudo, não se atribuía aos animais direitos similares aos seres humanos. O que era defendido por esta vertente filosófica consistia no “uso gentil” dos animais, conforme expressado por David Hume à época. Assim, tínhamos licença para utilizar os animais, mas devíamos fazê-lo de maneira gentil. (HUME apud SINGER, 2010, p. 142). O utilitarismo foi inicialmente difundido por Jeremy Bentham e Stuart Mill, com base no princípio da utilidade ou da beneficência. Tal princípio sustenta que o fim moral que devemos procurar em tudo o que fazemos é a maior porção possível de bem em relação ao mal, ou a menor porção possível de mal em relação ao bem (FRANKENA, 1975, p. 50). Assim, o utilitarismo diverge das teorias deontológicas, que estabelecem deveres independentemente de suas conseqüências. Jeremy Bentham, em sua obra “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”, também traz um conceito para o princípio: Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo (BENTHAM, 1974, p. 10). Em contrapartida ao especismo, Bentham entendia que, para que um ser fosse titular de direitos, bastaria sua capacidade de sentir. Portanto, a senciência se apresenta como critério suficiente para o reconhecimento de direitos aos seres não-humanos, dispensando a moralidade ou a capacidade de exprimir a vontade de viver. Bentham e Mill, embora adeptos da mesma teoria, avaliavam as ações de maneira diferente. Bentham defendia que o princípio da utilidade envolvia um aspecto quantitativo, tangente ao interesse da comunidade em alcançar o máximo na soma da felicidade de cada um dos indivíduos, sendo importante calcular a quantidade de dor e prazer objetivamente, para que se possa tomar a decisão mais justa e universalmente desejável. Em reação a Bentham, Mill acrescentou à utilidade um critério qualitativo do prazer, avaliando também a 21 qualidade da felicidade aferida, incluindo aspectos como a espontaneidade, o cultivo mental e o auto-desenvolvimento (GODOI, 2017, p. 19). O utilitarismo, assim, pode ser distinguindo em duas subcategorias: o normo-utilitarismo, atribuído majoritariamente à filosofia de Stuart Mill, e o ato- utilitarismo, que seria defendido por Jeremy Bentham. O ato-utilitarismo considera que, na avaliação de qual seria a melhor decisão a ser tomada, com base no princípio da utilidade, devem ser levadas em conta as conseqüências de nossas ações particulares, em casos específicos: Os ato-utilitaristas sustentam que, em geral, ou pelo menos quando praticável, deve-se decidir quanto ao que é certo ou obrigatório por apelo direto ao princípio da utilidade, isto é, tentando estabelecer qual das possíveis ações produzirá ou é de se esperar que produza no universo a maior porção de bem em relação ao mal. A pessoa deve perguntar: “Qual será o efeito de eu praticar este ato nesta situação, relativamente ao equilíbrio geral do bem em relação ao mal?”, e não “Qual o efeito de todos praticarem esta espécie de ato nesta espécie de situação, em relação ao equilíbrio em geral como referência ao mal?” (FRANKENA, 1975, p. 50). O normo-utilitarismo, em contrapartida, entende que as conseqüências das atitudes que tomamos em geral, e não em situações específicas e isoladas, são as que devem ter maior relevância para se chegar à decisão mais adequada. Com essa concepção, Stuart Mill atribui relevância às regras na moral, e sustenta que devemos agir de forma específica conforme uma regra, e não buscando uma atitude particular que terá as melhores conseqüências (FRANKENA, 1975, p. 51). Assim, o normo-utilitarismo entende que devemos tomar atitudes com base em regras, e não juízos particulares, que possam suscitar o maior bem geral a todos. No entanto, segundo Frankena (1975, p. 50), o estabelecimento de um padrão utilitarista para avaliação das ações nunca foi esclarecido. Assim, existia certa dificuldade em mensurar o bem e o mal, tanto considerando o normo-utilitarismo como o ato-utilitarismo, o que resultou em uma forte objeção a teoria. Considerando o utilitarismo no uso dos animais em pesquisas e experimentos, devem ser adotadas posições que possibilitem a maximização da felicidade e a minimização do sofrimento do maior número de seres (AMORIM, 2012). Assim, na tomada de uma decisão, devem ser estabelecidas 22 as conseqüências relacionadas a todas as opções possíveis, sendo escolhida aquela cuja soma das utilidades associadas é a maior. Com posição filosófica semelhante, Peter Singer defende que aos animais devem ser reconhecidos direitos e o convívio digno com o ser humano, condenando o sofrimento animal independente de qual for a sua utilização. Acompanhando o raciocínio de Bentham, Singer invoca a senciência como o fator responsável pelo tratamento equiparado entre animais e seres não- humanos. No entanto, diferentemente de seus antecessores, segundo os preceitos definidos em sua obra “Libertação Animal”, Singer traz o princípio da igual consideração de interesses, no qual os interesses de cada ser afetado por uma acao devem ser levados em conta e receber o mesmo peso que os interesses semelhantes de qualquer outro ser. E, nesse sentido, a capacidade de sofrer e de sentir prazer é um pré-requisito para um ser ter algum interesse (SINGER, 2010, págs. 9-13). Assim, Singer busca um equilíbrio entre o que seria o uso indiscriminado dos seres não-humanos pelos seres humanos e a abolição de qualquer uso. Com isso, Singer entende que, em alguns casos, o uso dos animais pode ocorrer, mas desde que moralmente justificado, considerando que não são os animais meros instrumentos delicados, mas seres dotados de senciência e interesses próprios. E essa senciência, a capacidade de sentir dor, manifestada tanto em seres humanos como nos animais, deve ser considerada na avaliação das condutas. A teoria da igual consideração de interesses defendida por Peter Singer o afasta do utilitarismo tradicional, trazendo a concepção do bem-estarismo animal. Diferentemente de Bentham e os demais utilitaristas, a filosofia bem- estarista de Singer se encaixaria no queseria o utilitarismo preferencial. Segundo a vertente, para que se tenha uma ação moral, devem ser maximizadas as preferências individuais dos seres em questão, contanto que sejam sopesados de forma semelhante os interesses semelhantes dos sujeitos que serão atingidos pela ação, sempre se atentando ao bem-estar (CARDOSO; TRINDADE, 2012, págs. 7-8). A tese do bem-estarismo entende que a livre utilização dos animais como meio para fins humanos é admissível, contanto que não sejam estes submetidos a práticas dolorosas em virtude da utilização. Com isso, devem ser 23 empregados padrões de tratamentos que seriam considerados éticos ao lidar com animais, mas não sendo questionado o seu uso enquanto meios. Assim, o abate de um animal seria plenamente justificável se o animal tiver uma morte indolor e viver em condições relativamente tranquilas (CURY, 2010, p. 171). Ao julgar o experimento que utilizará animais, e que, conseqüentemente, lhes infligirá dor e desconforto, Singer entende que deve ser sopesado o sofrimento com a garantia dos benefícios que este experimento promoverá. Esses benefícios, assim, devem ser superiores ao sofrimento para que a pesquisa possa ser uma ação moral. Para Singer, além disso, as pesquisas não podem ser aprovadas quando não houver objetivos diretos e urgentes, e, sempre que possível, métodos alternativos ao uso de animais devem ser buscados. Ademais, a experimentação em animais, para o filósofo utilitarista, só pode ser justificada se a pesquisa for tão importante a ponto de ser também justificada a utilização de um ser humano com lesões cerebrais nas mesmas condições. Com isso, no que tange aos experimentos, Singer invoca o princípio de Russell-Burch (1959), dos 3 Rs: replacement, reduction and refinement (substituição, redução e refinamento)3 no uso de animais. Tal teoria entende 3 Os 3 Rs, explicado pela Comissão de Ética no Uso de Animais da Universidade Federal do Espírito Santo: Reduction (redução) - Estabelecimento de banco de dados, facilitação de acesso à literatura especializada e estímulo à publicação de resultados negativos; - Qualidade genética, sanitária e ambiental dos animais possibilita uma menor dispersão dos resultados, portanto diminuição do número de animais utilizados; - Planificação das experiências a fim de poder compartilhar os mesmos animais. Replacement (substituir) - Substituição de estudos em animais vertebrados vivos, por invertebrados, embriões de vertebrados ou microorganismos; - Trabalho com órgãos e tecidos isolados de animais; - Técnicas “in vitro” utilizando cultura de tecidos e células; - Sistemas físico-químicos mimetizantes de funções biológicas; - Simulação de processos fisiológicos utilizando computadores. Refinement (refinar) - Refinar os protocolos experimentais para minimizar a dor ou o estresse sempre que possível; - Obter treinamento adequado antes de executar qualquer experimento; - Usar técnicas apropriadas para o manuseio dos animais; - Assegurar que as dosagens das drogas estão corretas; - Identificar a dor ou o estresse e estabelecer procedimentos para prevenir ou aliviá-los; - Usar analgésicos e anestésicos apropriados para experimentos potencialmente dolorosos; - Realizar cirurgias de forma asséptica para evitar infecções; - Realizar uma única cirurgia por animal; 24 que sempre deve existir uma reflexão para reduzir o número de animais em experimentos científicos, assim como a busca por métodos alternativos que substituam os animais e por procedimentos que diminuam a dor infligida aos animais submetidos aos experimentos. Assim, para Singer, existem alternativas de pesquisa que seriam mais válidas que o uso de animais e que podem ser desenvolvidas, evitando o sofrimento desnecessário dos seres não-humanos em nome do bem-estar do ser humano ou da ciência (BASTOS, 2018, p. 52). O bem-estarismo é a corrente que hoje funciona como base para as indústrias e empresas relacionadas ao comércio de produtos de origem animal ou que realizam testes em animais. Para viabilizar seus projetos, os empreendimentos deste segmento utilizam-se das legislações de bem estar animal, as quais buscam um tratamento mais “humanitário” dos seres não- humanos. Assim, os animais deixam de ser considerados como instrumentos para seres vistos como seres com vida própria. 2.1.3. Abolicionismo Apesar de trazerem certos avanços no que tange ao direito dos animais e à crueldade animal, como antes visto, as legislações atuais, pautadas no bem-estarismo, prevêem um tratamento mais “humanitário” que continua viabilizando a exploração dos animais. Ao mesmo tempo, contudo, continuam sendo os animais objetificados e utilizados como fonte de benefício financeiro e marketing publicitário inesgotável para os produtores (TRINDADE; NUNES, 2012, p. 183). Neste sentido, a perspectiva humanitária do uso dos animais proposta pelos ideais bem-estaristas seria incapaz de proporcionar uma qualidade de vida digna a eles: [...] muitos filósofos, biólogos e juristas hodiernos questionam o atual ordenamento jurídico, devido ao fato de ele não conferir aos animais um status de co-participantes desta categoria essencial. Em conseqüência desse não-reconhecimento, fica a ele vedado acesso a uma gama de direitos que salvaguardariam suas integridades física e psíquica, e lhes proporcionariam uma vida naturalmente respeitável. (CURY, 2010, p. 162). - Estabelecer cuidados pós-cirúrgicos adequados. 25 Assim, segue-se a terceira teoria, defendida pelo filósofo e grande teórico do movimento em prol dos direitos dos animais Tom Regan: o abolicionismo. Os abolicionistas sustentam que nenhuma prática poderia ser considerada ética ao utilizar animais vivos em experimentos científicos que provoquem dor e sofrimento. Regan (2006, p. 217) firma, nesse sentido, que os animais submetidos à experimentação são prejudicados sem que haja previsão de qualquer benefício a eles, existindo somente a intenção de obter informações que proporcionem benefícios a outros. Tratando dos direitos humanos, Regan adentra o espectro dos direitos morais, que são os mesmos para todo ser humano, independentemente de nossas diferenças, pois somos iguais em aspectos relevantes, quais sejam, os direitos à vida, à integridade física e à liberdade. Regan define os seres humanos como “sujeitos-de-uma-vida”, pois, apesar de possuírem características diversas, ao tratar da igualdade moral fundamental estas diferenças não são relevantes: Do ponto de vista moral, cada um de nós é igual porque cada um de nós é igualmente "um alguém", não uma coisa; o sujeito-de- uma-vida, não uma vida sem sujeito (REGAN, 2006, p. 62) Os direitos morais envolvem duas proibições essenciais à proteção destes aspectos: os outros não são moralmente livres para nos causar mal e também não o são para interferir na nossa livre escolha. A limitação moral da liberdade dos outros é o que permite proteger a dignidade do ser humano. O respeito pelos direitos humanos, aqui, prevalece sobre qualquer consideração. Assim, não há “bons fins” que justifiquem o emprego de “maus meios”, ou benefícios de muitos que justifiquem a violação do direito de poucos (REGAN, 2006, p. 49). Regan ressalta que, contudo, o agir em autodefesa contra um agressor não se caracteriza como uma permissão para prejudicar aqueles que nada fizeram de errado a nós, mas, tão somente, a ação dentro de nossos direitos. Ao tratar acerca do direito dos animais, e tecendo suas considerações que envolvem a corrente abolicionista, Regan traz o seguinte questionamento: se seriam os animais considerados “sujeitos-de-uma-vida”, tal como os seres humanos. Para responder à pergunta, Regan traz, inicialmente, que, assim 26 como nós, os animais são criaturas psicológicas complexas, conscientes do que lhes acontece, e que possuem necessidades,memórias e frustrações. Regan dispõe que os animais não-humanos possuem comportamentos, às vezes, similares aos nossos, em situações semelhantes, que nós identificamos ao inferir que a experiência deles é parecida com a nossa. Além disso, seus corpos são, em diversos aspectos, similares aos nossos, a exemplo de possuirmos, ao comparar com várias espécies, os mesmos sentidos e elementos anatômicos comuns. Ademais, Regan invoca os ensinamentos evolucionistas de Charles Darwin acerca das capacidades da mente dos seres humanos e dos animais. Citando Darwin, percebe-se que a capacidade mental dos humanos é em muito similar com a dos animais, os quais, além de prazer e dor, podem sentir ansiedade, desespero, amor e outros sentimentos que acreditariam ser exclusivos dos humanos. Como conclusão, estando dispostos os fatores acima, Regan coloca que “o senso comum e o significado das palavras na nossa linguagem comum sustentam a resposta afirmativa” para a questão de os animais serem também “sujeitos-de-uma-vida.” Os comportamentos comuns entre nós, assim como nossas estruturas anatômicas comuns, sustentam essa resposta. Nossos sistemas neurológicos comuns e considerações sobre nossas origens comuns, seja através da evolução, seja como uma criação separada de Deus, sustentam essa resposta. Se olharmos a questão "com olhos imparciais", veremos um mundo transbordante de animais que são não apenas nossos parentes biológicos, como também nossos semelhantes psicológicos. Como nós, esses animais estão no mundo, conscientes do mundo e conscientes do que acontece com eles. E, como ocorre conosco, o que acontece com esses animais é importante para eles, quer alguém mais se preocupe com isto ou não. A despeito de nossas muitas diferenças, os seres humanos e os outros mamíferos são idênticos neste aspecto fundamental, crucial: nós e eles somos sujeitos-de-uma- vida. (REGAN, 2005, p. 72) Assim, sendo os animais sujeitos-de-uma-vida, há uma equiparação com os seres humanos, tendo em vista a autoconsciência e a senciência que ambos compartilham. Deste modo, deve-se reconhecer os direitos desses animais. Para Regan, com isso, a utilização dos animais pelos seres humanos constitui a quebra de um dever moral, uma vez que existem os seus direitos morais. O abolicionismo, portanto, considera que toda a exploração animal é algo que precisa ser encerrado, e não ficar mais “humanitário” como assim pretendem as correntes bem-estaristas. Para acabar com essa exploração, Regan 27 defende que nós, como seres humanos, temos o dever de intervir e nos manifestar em defesa dos animais, prestando assistência a estas vítimas, já que lhes falta capacidade de agir pelos seus direitos. Contrapondo o especismo e até mesmo o bem-estarismo, assim, o abolicionismo defende que a espécie a qual os seres pertencem não é relevante para as discussões referentes à moralidade. Para Regan, a limitação de direitos fundada no pertencimento a uma espécie, moralmente, constituiria um preconceito tal como o racismo ou o sexismo. Portanto, sendo sujeitos-de- uma-vida como os seres humanos, os animais também são dignos de direitos, incluindo o direito a serem tratados com o devido respeito, o que implica a abstinência de qualquer uso dos animais para fins humanos, como a experimentação. 3. Os animais e a experimentação sob a ótica do Direito nacional Pode-se dizer que a legislação brasileira encontra-se avançada no que diz respeito ao direito animal, alavancando o processo de inclusão dos animais na comunidade moral. Vale dizer que a positivação exerce papel importantíssimo no que tange à inclusão moral dos sujeitos na comunidade, pois, em razão da vertente legal do Direito, quem possui direitos faz com que sejam gerados deveres a serem cumpridos pelo outro, à luz da inerente coercibilidade. E esse processo de inclusão, foi muito bem observado na história, contribuindo principalmente para a inclusão dos negros, das mulheres e também da população deficiente na sociedade. A título de exemplo, com o advento do Código Civil de 2002, as pessoas com deficiência deixaram de ser consideradas absolutamente incapazes para exercer atividades da vida civil. Assim, a força coercitiva do Direito requalifica os sujeitos, e neles incluídos os animais, conferindo a eles a prerrogativa de participar da comunidade moral, o que os movimentos em prol dos animais não conseguiriam garantir sozinhos. E nesse ponto também se manifesta a vertente moral do Direito, a qual manifesta maior preocupação com os ideais da justiça: O direito moral é aquele que se preocupa com o que é justo e o injusto, certo ou errado. Aqui, pode ser entendido como uma justiça socioambiental planetária. Exercendo assim uma reta conduta herdade de tradições religiosas como de Buda, Moisés e Jesus. O 28 conceito de direito ultrapassa o âmbito da ciência jurídica para ser discutido sob o ponto de vista filosófico. (SOUZA, 2010, p. 6). Sob essa perspectiva moral, a proteção aos animais ganhou status constitucional com o diploma de 1988, que acolheu os direitos de terceira geração, ligados aos valores de solidariedade ou fraternidade, direcionados a preservação da qualidade de vida. O artigo 225 da Constituição Federal assegura o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, implicando no dever do Poder Público de promover a sua proteção, junto à população. O meio ambiente, nos termos do inciso I do art. 3º, da Política Nacional do Meio Ambiente4, é o “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”, o que envolve o natural, artificial, cultural e também o trabalho. No que tange ao meio ambiente natural, este é constituído pela flora, pela atmosfera, pela biosfera e, portanto, também pela fauna, estando de fato tutelado pelo §1º, incisos I, III e IV do art. 225 da Constituição. Assim, torna-se dever, também, o amparo aos animais, em prol do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Com isso, pode-se afirmar que são afastados do ordenamento brasileiro vigente os ideais puramente antropocentristas. De acordo com a Constituição, assim, é reconhecida a senciência dos animais, sendo expressamente vetadas quaisquer práticas que promovam a crueldade. Ainda, reconhece-se a importância da fauna para o equilíbrio dos ecossistemas ao vedar também as acoes que impliquem no risco à sua função ecológica ou que induzam a sua extinção. Além da Constituição, a legislação brasileira ordinária também articula o tratamento que o homem deve ter perante os animais, estabelecendo limites aos maus-tratos, considerando que são eles também seres capazes de sentir dor e sofrimento. Ao mesmo tempo, a lei também regulamenta os métodos de manejo no que tange ao uso de animais em pesquisas, o que traz à tona os órgãos criados com o objetivo de avaliar os experimentos e seus danos, a exemplo do Conselho Nacional do Controle de Experimentação Animal (CONCEA), que integra o Ministério da Ciência e Tecnologia. 4 Lei Federal nº 6.938/1981 29 3.1. Os animais e o direito internacional Hoje, o direito dos animais não encontra amparo em uma norma ou conjunto de dispositivos de caráter sólido, imperativo e dotado de força coercitiva no plano internacional. No entanto, o documento mais notável no que tange à proteção dos animais em caráter internacional é a Declaração Universal do Direito dos Animais, redigida em 1978. A Declaração fora apresentada à Organização das Naçoes Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) por ativistas da causa animal, liderados pelo cientista Georges Heuse, como uma proposta para criação de normas jurídicas de proteção ao direito dos animais aos países-membros da ONU. Diversos autores, constantemente, disseminam a informação de que a Declaraçãoteria sido proclamada pela UNESCO e que o Brasil seria signatário da mesma. Entretanto, não há qualquer registro formal da mesma nos sites da UNESCO ou da ONU, sendo suscitadas diversas dúvidas (PORTO; PACCAGNELLA, 2017, p. 2). Não obstante, analisando os dispositivos consoantes da referida declaração, é possível observar que se trata de uma tentativa altamente articulada para elevar os animais ao patamar de sujeito de direitos. Logo em seu artigo 1, resta explicitado que “todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o mesmo direito à existência.”, sendo em seguida garantido aos animais, pelo artigo 2, o direito ao respeito, bem como o “direito à consideração, à cura e à proteção do homem”. Assim, a Declaração parece alinhar-se às perspectivas mais promissoras para a criação e desenvolvimento de um direito dos animais uniforme internacionalmente. Caminhando para os próximos artigos, a Declaração ainda veda que os animais sejam submetidos a quaisquer práticas cruéis ou maus-tratos e que sejam privados de sua liberdade, quando de espécies selvagens - mesmo que para fins educativos -, tendo o direito de viver justamente segundo o ritmo e condições de vida e liberdade próprias de sua espécie. Um ponto interessante do diploma, e que apresenta uma outra filosofia referente ao direito dos animais, diz respeito ao artigo 9. O dispositivo em apreço, seguindo a tendência de evitar o sofrimento, a exploração e a morte desnecessária dos animais, busca proibir que sejam eles criados para 30 alimentação, que sejam nutridos, alojados, transportados e abatidos, sem que para eles haja ansiedade ou dor. A princípio, é possível verificar a interferência da ética vegana e vegetariana na elaboração do dispositivo, visto que ambos os estilos de vida, adotados por milhões de seres humanos ao redor do mundo e que estão em constante crescimento de adesões, promovem o fim do consumo de alimentos de origem animal, à vista do intenso sofrimento e maus- tratos aos quais os animais de produção são submetidos ao longo de suas vidas, dentro dos criadouros industriais. Não obstante, o artigo 8 da Declaração traz expressamente a proibição à experimentação animal, pois implica em extremo sofrimento físico, sendo “incompatível com os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou qualquer outra.”. Ainda, no mesmo artigo, a Declaração propõe que técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas pelo homem, de forma a encerrar a dor que é diariamente provocada aos animais em laboratórios e universidades. Diante disso, é possível afirmar que a Declaração Internacional dos Direitos dos Animais, apesar de desprovida de força normativa, é um diploma bastante sofisticado no que diz respeito ao direito dos animais, à medida que atribui a eles não só o posto de sujeito de direitos, mas que também impõe a cessação de toda e qualquer exploração que implique desconforto, a privação de liberdade e sofrimento ao animal. Assim, a Declaração, de tal modo, absorve os ideais abolicionistas pregados por Tom Regan, procurando eliminar o uso dos animais pelo ser humano como um objeto, mesmo diante das supostas necessidades que são defendidas pelos teóricos bem-estaristas e especistas. A despeito da Declaração, em 1973 já havia sido firmada, em Washington, nos Estados Unidos, a Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES), aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 54 e promulgada pelo Decreto nº 76.623/75. Não obstante, a sua vigência internacional iniciou-se em 01 de julho de 1975 e conta com a adesão de 181 partes, sendo caracterizada como uma convenção com potencial aplicação global, que atraiu um elevado número de vinculações e que regula uma área problemática de forma duradoura (SANDS, Philippe; PEEL, Jacqueline, 2012, p. 97 apud NEVES, 2016, p. 72). 31 Como o próprio nome diz, a Convenção objetivava regulamentar o comércio internacional das espécies ameaçadas de extinção, evitando que fossem elas colocadas em risco de sobrevivência, prevendo a possibilidade de comércio apenas em situações excepcionais, mediante autorização dos órgãos e entidades competentes. A Convenção, ainda, busca coibir uma atividade ilícita que movimenta milhões de dólares a cada ano, perdendo apenas para o comércio de armas e drogas, que é o tráfico de animais (GRANZIERA, 2015, p. 206). A sua celebração traduziu o reconhecimento de que a intervenção internacional é essencial para controlar e regular o comércio internacional de espécies ameaçadas de extinção, tendo em vista a sua sobrevivência a longo prazo. Nesse sentido, assumiu-se a necessidade e possibilidade de uma intervenção precaucional transnacional, à luz das listas que compõem os anexos do texto da CITES, as quais elencam as espécies consideradas em perigo de extinção. Essa intervenção se funda nas alterações já feitas aos anexos, incluindo novas espécies ou os modificando, buscando basear-se na melhor informação disponível, tanto do ponto de vista das avaliações científicas biológicas, quanto dos impactos atuais ou futuros do comércio (NEVES, 2016, p. 75). Ressalta-se que o objetivo principal da CITES centra-se na proteção mais completa de determinadas espécies de fauna e flora selvagens, contra a exploração excessiva do comércio internacional, além da conservação destas populações alinhada ao seu uso sustentável, de forma a promover a redução significativa da taxa de perda de biodiversidade. Não obstante, ressalta-se que a referida Convenção, ainda, apresenta uma regulação internacional pretendidamente evolutiva, cientificamente informada, participada, parcialmente descentralizada e cooperativa, representando um esforço coletivo das nações diante da manifesta necessidade que temos de proteger os animais e a flora selvagens, já que tão importantes para a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas (NEVES, 2016, págs. 76-79). 3.2. A proteção jurídica dos animais no ordenamento brasileiro A relação dos animais com os seres humanos, quando se trata da legislação brasileira, apresenta aspectos ambíguos e também um tanto 32 contraditórios. Em certos momentos é possível abrir discussões acerca dos direitos dos animais, levantando seguramente aspectos como a senciência e a não crueldade. No entanto, em outros momentos, os seres não humanos são reduzidos à mera condição de bens, não sendo considerada a sua sensibilidade. O Código de Posturas de 1886, do município de São Paulo, foi o primeiro marco no ordenamento que garantiu proteção aos animais, buscando coibir o abuso e a crueldade. Pelo seu artigo 220, os cocheiros e condutores de carroça estavam proibidos de praticarem castigos bárbaros e imoderados contra os animais, sob pena de multa. Décadas depois, em 1934, surgia o Decreto-Lei nº 24.645, primeiro estatuto geral de proteção dos animais no Brasil, com status jurídico de Lei, estabelecendo logo em seu art. 1º que “Todos os animais existentes no país são tutelados do Estado”, sendo os animais abrangidos pela Lei todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos5. O diploma foi revogado por Decreto em 1992, à época do Presidente Collor, mas, pelo seu status jurídico, não poderia esta espécie normativa revogá-lo, já que uma lei só pode ser revogada por outra lei, o que gera diversas controvérsias. O Decreto, também, criou o crime de maus-tratos contra os animais. Assim, passaram a ser condenadas práticas reprováveis como o abandono; a submissão de animais à trabalhos excessivos ou superiores às suas forças; e o transporte sem as proporções necessárias ao seu tamanho6, as quais eram punidas através de multa, confisco do animal e, até mesmo, prisão. 5 Art. 17. A palavra animal, da presente Lei, compreendetodo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos. 6 Art. 3º Consideram-se maus tratos: I - praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal; II - manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz; III - obrigar animais a trabalhos excessívos ou superiores ás suas fôrças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo; IV - golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia, exceto a castração, só para animais domésticos, ou operações outras praticadas em beneficio exclusivo do animal e as exigidas para defesa do homem, ou no interêsse da ciência; V - abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem coma deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; 33 Não obstante, o Decreto 24.645/34 trouxe a possibilidade de os animais ingressarem em juízo para defender seus direitos, conferindo verdadeira tutela jurisdicional, sendo representados pelo Ministério Público, seus substitutos VI - não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo exterminio seja necessário, parar consumo ou não; VII - abater para o consumo ou fazer trabalhar os animais em período adiantado de gestação; VIII - atrelar, no mesmo veículo, instrumento agrícola ou industrial, bovinos com equinos, com muares ou com asininos, sendo somente permitido o trabalho etc conjunto a animais da mesma espécie; IX - atrelar animais a veículos sem os apetrechos indispensáveis, como sejam balancins, ganchos e lanças ou com arreios incompletos incomodas ou em mau estado, ou com acréscimo de acessórios que os molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo; X - utilizar, em serviço, animal cego, ferido, enfermo, fraco, extenuado ou desferrado, sendo que êste último caso somente se aplica a localidade com ruas calçadas; Xl - açoitar, golpear ou castigar por qualquer forma um animal caído sob o veiculo ou com ele, devendo o condutor desprendê-lo do tiro para levantar-se; XII - descer ladeiras com veículos de tração animal sem utilização das respectivas travas, cujo uso é obrigatório; XIII - deixar de revestir com couro ou material com identica qualidade de proteção as correntes atreladas aos animais de tiro; XIV - conduzir veículo de terão animal, dirigido por condutor sentado, sem que o mesmo tenha bolaé fixa e arreios apropriados, com tesouras, pontas de guia e retranca; XV - prender animais atraz dos veículos ou atados ás caudas de outros; XVI - fazer viajar um animal a pé, mais de 10 quilômetros, sem lhe dar descanso, ou trabalhar mais de 6 horas continuas sem lhe dar água e alimento; XVII - conservar animais embarcados por mais da 12 horas, sem água e alimento, devendo as emprêsas de transportes providenciar, saibro as necessárias modificações no seu material, dentro de 12 mêses a partir da publicação desta lei; XVIII - conduzir animais, por qualquer meio de locomoção, colocados de cabeça para baixo, de mãos ou pés atados, ou de qualquer outro modo que lhes produza sofrimento; XIX - transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por uma rêde metálica ou idêntica que impeça a saída de qualquer membro da animal; XX - encerrar em curral ou outros lugares animais em úmero tal que não lhes seja possível moverem-se livremente, ou deixá-los sem água e alimento mais de 12 horas; XXI - deixar sem ordenhar as vacas por mais de 24 horas, quando utilizadas na explorado do leite; XXII - ter animais encerrados juntamente com outros que os aterrorizem ou molestem; XXIII - ter animais destinados á venda em locais que não reunam as condições de higiene e comodidades relativas; XXIV - expor, nos mercados e outros locais de venda, por mais de 12 horas, aves em gaiolas; sem que se faca nestas a devida limpeza e renovação de água e alimento; XXV - engordar aves mecanicamente; XXVI - despelar ou depenar animais vivos ou entregá-los vivos á alimentação de outros; XXVII. - ministrar ensino a animais com maus tratos físicos; XXVIII - exercitar tiro ao alvo sobre patos ou qualquer animal selvagem exceto sobre os pombos, nas sociedades, clubes de caça, inscritos no Serviço de Caça e Pesca; XXIX - realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas, ainda mesmo em lugar privado; XXX - arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculo e exibi-los, para tirar sortes ou realizar acrobacias; XXXI transportar, negociar ou cair, em qualquer época do ano, aves insetívoras, pássaros canoros, beija-flores e outras aves de pequeno porte, exceção feita das autorizares Para fins científicos, consignadas em lei anterior; 34 legais e pelos membros das sociedades protetoras dos animais7. Portanto, pode-se inferir que com o presente diploma, os animais teriam ganho status jurídico de sujeito, já que poderiam ir à justiça para defesa de seus direitos. Vale lembrar também que quem participa da comunidade moral são efetivamente os sujeitos, e não objetos. Mas foi com a constitucionalização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em 1988, que os animais ganharam maior âmbito de proteção, diante de um cenário de mudança dos paradigmas antropocêntricos, à luz de uma nova experiência pós-humanista à época, com os Direitos Fundamentais de 3ª geração. O art. 225, introduzido pela Emenda Constitucional de Revisão, confia ao Poder Público o dever de tutelar a fauna e a flora, tendo em vista a necessidade do equilíbrio entre todos os elos do meio ambiente, com o escopo de garantir um ecossistema balanceado e saudável: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. A referida proteção, como dever geral, independe da legislação infraconstitucional, mas as vedações expressas no dispositivo - colocar em risco sua função ecológica, provocar a extinção e submeter à crueldade - terão sua maior eficácia “na forma da lei”. À vista disso, a Constituição Federal determinou que estão vedadas as práticas que submetam os animais a crueldade. A crueldade pode ser concebida como a insensibilidade, que enseja ter indiferença ou prazer com o sofrimento alheio. Assim, ao impedir que os animais sejam alvo de práticas cruéis, a Constituição impõe que eles devem ter sua vida respeitada. Com isso, infere-se que o ordenamento brasileiro reconhece a preservação da vida animal como tarefa constitucional do Poder Público (MACHADO, 2016, p. 986). 7 Art. 2º, §3º. Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras dos animais. 35 Diante da proteção constitucional, houve o advento da Lei 9.605 de 1998, que diz respeito aos crimes ambientais, incluindo a tipificação dos crimes contra a fauna. Os atentados contra a fauna anteriormente estavam previstos na Lei 5.197/67, o Código de Caça, e também no Decreto-Lei 221/67, o Código de Pesca, sendo consolidados nos arts. 29 a 37 da Lei 9.605/98. O art. 32 da Lei, mais especificamente, proíbe a prática de atos abusivos e cruéis aos animais, tanto silvestres quanto domésticos e domesticados e, ainda, o
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