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micropoliticas do urbanismo

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MICROPOLÍTICAS DO URBANISMO OU POR UMA OUTRA 
HISTORIAGRAFIA URBANÍSTICA. 
Thais de Bhanthumchinda Portela 
PPGAU/FAUFBA 
taiportela@yahoo.com.br 
 
É como se você fosse andando, muito decidido, por um caminho reto 
e, aos poucos, fosse percebendo que ele ia se estreitando, mudando 
de características e virando um beco. 
Carlos Nelson Ferreira dos Santos. 
 
 Trago na memória uma entrevista feita no trabalho de campo para uma pesquisa 
sobre a história da urbanização de uma área de ocupação informal. Nesta entrevista um 
arquiteto narrava: 
“O Programa Promorar foi implementado nos inícios dos anos [19]80 
pelo [nome da instituição] para urbanizar e dar casas para as pessoas 
que ocuparam a área do mangue. Eu era arquiteto concursado, 
trabalhava ali já alguns anos mas não compactuava com o modo 
como o processo estava sendo conduzido, não concordava com o 
modo como o projeto era explicado para população. Havia uma 
demanda, determinada pela agência de financiamento, de que a 
urbanização tivesse participação social. Era uma condição por causa 
das críticas em relação ao autoritarismo do governo militar, então eles 
tiveram que inventar uma processo participativo. A gente ia então 
pela parte do dia apresentar o projeto para a comunidade de [nome do 
lugar], como técnicos do [nome da instituição]. E de noite eu pegava 
o meu fusquinha e ia lá, voltava para falar com as pessoas e explicava 
todo o projeto, de novo, do jeito que tinha que ser. Quando eu voltava 
para reunião como [nome da instuição] os responsáveis pelo 
programa não entendiam nada: 'Como foi que vocês mudaram de 
opinião? De onde tiraram isso?' E foi assim que o projeto teve que ser 
todo renegociado e ao invés de implementarem aquelas casinhas 
padronizadas a única coisa que foi construída foram as ruas com 
infraestrutura e os banheiros das casas. O resto ficou por conta dos 
moradores. Cada um ia construir sua casa do jeito que queria, com o 
recurso que tinha, no tempo que precisasse. Mas você não pode 
escrever isso no seu trabalho porque senão posso ter problemas.” 
 O programa ao que o entrevistado se refere foi politicamente organizado e 
tecnicamente elaborado por engenheiros, arquitetos e assistentes sociais do governo do 
estado, sendo implementado de acordo com as diretrizes determinadas pelo governo federal. 
O descontentamento da população e a consequente reformulação do programa de intervenção 
é bem conhecido pela História mas a atuação do arquiteto que se posiciona frente a esse 
processo do lado dos moradores, não. Ao longo dos anos, após essa pesquisa, muitas 
narrativas sobre a atuação profissional foram colecionadas em um arquivo não muito 
confiável, que é a memória, e o trecho acima descrito trata-se da memória de um testemunho 
que só não se perderá porque estas palavras estão aqui sendo escritas. Mas, qual a relevância 
desse daquela narrativa para o pensamento urbanístico e sua História? Porque uma prática 
perdida no tempo, uma prática que nem o seu agente permite que seja escrita ganha 
importância a ponto de sair do esquecimento e ser recuperado por uma memória para se fazer 
História? 
 Antes de arriscarmos uma resposta precisamos considerar que o urbanismo é um 
saber disciplinar que coloca-se e é colocado como um campo produtor de discursos 
qualificados, que produz narrativas (poderíamos falar aqui de verdades) sobre si próprio e 
sobre as cidades. Tomando o referencial teórico de Michel Foucault, saber disciplinar é 
aquele que engendra um corpo de conhecimento que dispõe e organiza o espaço além de 
determinar, também, a própria concepção sobre o tempo de uma sociedade. Essa 
determinação é possível porque conta com mecanismos de controle e de exercício de poder, 
que fiscaliza e pune quem contraria ou desobedece “a verdade” enunciada pelo discurso 
legitimado do saber. 
A positividade de um discurso caracteriza-lhe a unidade através do 
tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. 
Essa unidade não permite decidir quem dizia a verdade, quem 
raciocinava rigorosamente, quem adaptava melhor os seus próprios 
postulados. No entanto permite o aparecimento da medida segundo 
falavam da “mesma coisa”, opondo-se “sobre o mesmo campo de 
batalha”. (FOUCAULT, 1977) 
 
 Seguindo essa pensamento frente à produção da História, trazer a narrativa escrita no 
começo do texto, para ser debatida em um evento do campo disciplinar é disputar os sentidos 
do que vem a ser verdade no campo do urbanismo. Narrar aquela prática perdida no tempo 
que aconteceu dentro do próprio campo disciplinar e que se assemelha à uma miríade de 
outras práticas pelo seu caráter de resistência frente à um poder hegemônico é opor-se sobre 
o mesmo campo de batalha, o urbanismo, intentando construir outros enunciados (aqui já não 
cabe a palavra verdade). Chamaremos essa prática narrativa de historiografia outra, outra 
porque seu objeto não é o urbanismo em seu caráter macropolítico e hegemônico e sim, um 
urbanismo micropolítico. Tratamos de um urbanismo de práticas que pouco ou menos 
circulam pela História do Urbanismo, que aparecem de tempos em tempos, mas sempre em 
uma visibilidade menor em relação às práticas hegemônicas, que circulam muito mais, sendo 
generalizadas por modelos urbanísticos replicados à exaustão nas cidades brasileiras. 
 Mas para falar sobre resistências micropolíticas e hegemonias macropolíticas 
precisamos de uma pausa, de um respiro para que essas linhas de forças sejam 
compreendidas na forma em que aqui são apropriadas. Entendemos que é por necessidade de 
escrita, de uma forma para as ideias, que utilizamos do pensamento dualista para explicar o 
mundo. O branco e o preto, o bem e o mal, o hegemônico e as resistências, essas são regiões 
margem, regiões que não se tocam, permanentes que estão em direções opostas no infinito. 
Mas os planos que criam pontes-passagens, sem começo nem fim e que nunca tocam 
margens extremas; as construções que não se prendem em dicotomias porque passam por 
elas já se transformando em outra coisa, aí o mundo é construído. 
 É dessa compreensão do mundo de cores multi-variadas que intentamos tratar os 
discursos sobre as práticas do profissional urbanista nas cidades, sem distinções puristas. 
Olhamos para as resistências e encontramos ali a ordem hegemônica que a oprime e no 
hegemônico encontramos linhas de fuga constantes, resistências por todos os lados. Esse 
entre os opostos cria a complexidade que não permite apontar quem estava com ‘a verdade’, 
quem possuía ‘a razão’ em dado momento histórico cotejando a História com julgamentos 
presentes, mas permite sim, criar uma critica à dubiedade, criando uma certo entendimento 
sobre as contradições inerentes aos processos que envolvem discursos e práticas. Tomemos 
como exemplo o depoimento de Sérgio Ferro sobre Lucio Costa e Oscar Niemeyer em 
Brasília: 
Repito, ainda uma vez sem que se possa responsabilizar o Lucio ou o 
Oscar: acho que o “sujeito automático da história” os levou a 
acentuar a hegemonia do projeto. Aparentemente o traço fininho e 
trêmulo a lápis do Lucio não tem nada com isto. Mas a própria lógica 
do funcionalismo, ampliada pelas circunstâncias, contém em si 
sementes de autoritarismo [...] O que não é racional, entretanto, é esta 
fixação, esta separação que as isola do movimento da vida, que as 
solidifica antes de qualquer interação. (FERRO, 2006) 
 O “sujeito automático da história” é como o Modulor de Le Corbusier, ambas são 
construções do pensamento abstrato sobre um homem idealizado, são construções isoladas 
do movimento da vida como bem aponta Sérgio Ferro. O cristalizar esse pensamento 
idealizado do homem é movimento que cria a figura do herói mítico, a quem os “desacertos” 
não cabem. É a figura do arquiteto demiurgo, portador de um “dom divino” capaz ditar 
verdades como: “A rua curva é o caminho dos burros, a rua reta o caminho dos homens” efazer com que esse modelo, esse ideal de rua seja transposto para tantas e tão diferentes 
cidades pelo mundo, sem deixar que essa tal reta se relacione com a curva tanto da topografia 
como a dos sonhos dos homens. Mas existem as linhas de fuga, as resistências...e eis que 
surge a curva na arquitetura, no urbanismo. 
Não é o ângulo reto que me atrai, 
Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo o homem. 
O que me atrai é a curva livre e sensual. 
A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios, 
nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida. 
(trecho do Poema da Curva, NIEMEYER, 2014) 
 
 O arquiteto que sonhava curvas e liberdades, que também dizia que mais importante 
do que a arquitetura era estar pronto para protestar e ir à rua, que se dizia comunista e 
revolucionário é o mesmo que passou a receber duras críticas como “A estupidez política de 
Niemeyer, que defendia regimes homicidas, não condena a sua obra. Mas a sua obra também 
não absolve a sua estupidez política.” (Revista VEJA, 2012). Esta fala surge pelo fato do 
arquiteto, mesmo frequentando “boates com operários, tudo vestido igual” não saber, ou 
dizer não saber, qual era a base que servia à construção de Brasília, repleta de “...suicídios 
numerosos, operários se jogando sob caminhões, desinteria quase quotidiana, cercados, sem 
poder sair” (FERRO, 2006). Como dissemos antes, cotejar a História com julgamentos do 
presente exige, no mínimo, cuidados para que não tornemos nós, aqueles que criticam, os 
próprios estúpidos da história. Mas fato é que, há que também perceber as contradições e 
assumi-las. 
Tive a chance de observar os três de perto [Oscar Niemeyer, Lucio 
Costa e Juscelino Kubitschek]. Por um lado, éramos estudantes, mas 
arquitetos já. Projetávamos seguindo as regras ditadas por Lucio e 
Oscar. Na época, os arquitetos iam muito ao canteiro, aos seus e aos 
dos outros[...]...Sempre me marcou a distância entre o que ouvia 
então e o que lia nos jornais. (FERRO, 2006) 
 Isso nos mostra que as travessias entre as pontes-passagens perfaz um desenho de 
múltiplas entradas e saídas, que não permitem julgamentos rápidos e rasos entre o que vem a 
ser o hegemônico e/ou as resistências. Note-se aqui, também, que ainda não estamos falando 
de uma questão ética, que envolve a contradição entre os enunciados discursivos e as práticas 
(ação e teoria) no campo do urbanismo. Estamos aqui apenas apontando a relação entre o 
hegemônico e a resistência. Essa sutileza das passagens não pode ser percebida por esquemas 
abstratos e maniqueístas, ela somente surge com clareza no chão raso do cotidiano, na 
história da vida vivida que retira a capa dos atos heroicos dos arquitetos demiurgos e de seus 
belos monumentos que parecem surgir, na historiografia tradicional, sem ter sido parte de um 
processo que envolve operários, moradores, usuários pretéritos de áreas urbanizadas ou 
reurbanizados, etc.. 
 O processo percebido com lentes de observação focadas no cotidiano retira o 
monumento do pedestal. Monumento aqui pode ser entendido como a obra monumental, 
excepcional, grandiosa que é aceita por todos como símbolo de uma sociedade mas também 
é compreendida neste texto como a ação ou a teoria, isto é, como prática profissional que se 
torna modelo hegemônico, que se torna o modo comum, legitimado e naturalizado de uma 
prática. Nesse sentido dizemos que os postulados replicados ao infinito pelas cidades mundo 
afora da Carta de Atenas ou do Planejamento Estratégico do CIDEU, de Barcelona, se 
tornaram, de certo modo, uma prática monumental, dado o seu alcance. Quebrar esse 
condicionamento das próprias práticas instituídas pelo campo de saber, produzir linhas de 
fuga nos modelos hegemônicos, esse é um processo micropolítco do/no urbanismo. 
“Comecei, cada vez mais, a desviar minha atenção das casas, dos 
sistemas viários dos aglomerados, das soluções de esgoto e 
abastecimento de água e de outros aspectos considerados do interesse 
primordial de um urbanista ou arquiteto. […] Fui descobrindo que 
havia muitos mundos dentro do que, simplisticamente, eu designava 
por um só nome. Fui vendo que algumas ações e maneiras de ser ou 
de ver as coisas que eu classificaria, com rapidez, de “alienadas” 
tinham sentido dentro dos códigos particulares a que estavam 
referidas, frente aos quais, por não saber como me comportar, o 
alienado era eu.” (FERREIRA dos SANTOS, 1981) 
 Seguindo o pensamento de Michel de Certau, o cotidiano é ‘o aquilo’ que nos é dado 
cada dia (ou que nos cabe em partilha), aquilo que nos pressiona, nos oprime, pois existe 
uma opressão do presente. “Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o 
peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, 
com este desejo.” E o arquiteto urbanista, quanto entendido também ele como “sujeito 
automático da história”, foge de sua condição cotidiana, dos conflitos e contradições que são 
inerentes à qualquer prática de “sujeitos corporificados” (TORRES RIBEIRO, 2000). Esse 
mundo racionalizado pelas disciplinas do conhecimento - a partir da História Moderna – 
volta-se ao domínio desta história "irracional” ou desta “não-história”, em mais uma ponte-
passagem, pelos sentidos, pela memória do corpo, pela memória olfativa, memória dos 
lugares da infância, dos gestos da infância, dos prazeres. (CERTEAU, 1996) 
 Essas pontes-passagens presentes no cotidiano se estendem por toda a sociedade e 
embaralham as fronteiras do hegemônico/resistências, da História/história "irracional” ou 
“não-história”. No cotidiano o oprimido muitas vezes é também opressor, no cotidiano o 
pequeno gesto transforma-se em História. Por isso voltamos a colocar: é por necessidade de 
escrita, de uma forma para as ideias, que utilizamos do pensamento dualista para explicar o 
mundo. 
 Por isso dizemos aqui que os arranjos sociais e seus enunciados discursivos, sejam 
eles disciplinares ou não, carregam pontos de ruptura - o fazer das resistências, das minorias 
e o fazer do hegemônico, da maioria - em sua própria estrutura. Maiorias e minorias são 
ordens distintas que remetem aos conceitos do rizoma e do arborescente e as rupturas podem 
ser percebidas em ambas. Toda lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz, é a 
estrutura, essa é a lógica do urbanismo, por exemplo. Mas dentro da realidade do cotidiano, o 
urbanismo-arborescência é rompido e transformado em rizomas de um fazer cidades, fazer 
esse pleno de complexidade engendrada por processos distintos que vão para muito além do 
próprio urbanismo. E este entendimento é pouco aceito pelos poderes hegemônicos no 
campo do urbanismo, já que a consequência desse processo é a quebra da ‘verdade’ dos 
urbanistas, ou da posição de ‘autor’ de obras ou práticas (ideia do monumento) de modo 
geral. Este pensamento segue alguns conceitos provocados pelo encontro de Gilles Deleuze e 
Felix Guatarri. 
A noção de minoria, com suas remissões musicais, literárias, 
linguísticas, mas também jurídicas, políticas, é bastante complexa. 
Maioria e minoria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. 
Maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como 
um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos que 
a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante 
das cidades-falante de uma língua de padrão europeu- heterossexual 
qualquer. É evidente que o “o homem” tem maioria, mesmo se é 
menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os 
negros, os camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece 
duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se 
extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder, e não o 
contrário (DELEUZE; GUATARRI, v.2, 1995). 
O rizoma não se justifica por nenhum modelo estrutural ou gerativo 
já que ele é estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura 
profunda. Osrizomas são antes de tudo princípios de decalque, 
reprodutíveis ao infinito e a lógica da árvore é uma lógica da 
reprodução, mas um pode estar no outro, árvores podem conter linhas 
rizomáticas e o rizoma conter pontos de arborescência. As disciplinas 
são arborescentes, e por isso, a menos que contenham rizomas- 
resistências- elas não tem como conter o belo, o afetuoso ou a política 
do Outro: “toda a cultura arborescente é fundada sobre elas, da 
biologia a lingüística. Ao contrário, nada é belo, nada é amoroso, 
nada é político a não ser que sejam arbustos subterrâneos e as raízes 
aéreas, o adventício e o rizoma.” (DELEUZE; GUATARRI,v.1, 
1995). 
 As cidades contemporâneas estão cada vez mais formalizadas pela rigidez de um 
urbanismo que se impõe através de modelos hegemônicos e que raramente valoriza as 
práticas do campo que promovem linhas de fuga com o já estabelecido. Na historiografia 
tradicional é a ‘verdade’ dos urbanistas ligados ao que chamamos de Maioria é que são muito 
mais publicadas, divulgadas, teorizadas. As gagueiras, as crises, a crítica que contradizem o 
saber predominante das práticas do próprio campo são pouco difundidas pelas matérias de 
história e teoria oferecidas nas faculdades (vide uma rápida pesquisa da autora em 
bibliografias de referência pesquisadas em diferentes ementas de diferentes faculdades 
brasileiras) e nas publicações da área (basta ver a quantidade de textos que analisam a obra 
da Zaha Hadid ou Rem Koolhas comparada aos de Carlos Nelson Ferreira dos Santos ou 
Sérgio Ferro). Esse urbanismo padronizado e hegemônico cria estruturas/normas/formas nas 
cidades que parecem esfregar sal na ferida daqueles outros que não são seus poucos ‘autores’ 
e sim seus milhões de ‘praticantes’ que buscam, por exemplo, a sombra de uma árvore na 
cidade do espaço vivido, como Milton Santos diria, ou espaço praticado, como diria Ana 
Clara Torres Ribeiro. 
E, no Brasil, às vezes, as pessoas ficam reclamando: ‘Mas por que a 
Praça dos Três Poderes não tem vegetação? Por que tanto sol?’ E a 
gente tem que explicar isso, que é tão intuitivo… Porque ali é uma 
praça cívica, é diferente, tem que valorizar a arquitetura. 
Mediocridade ativa é uma merda! (NIEMEYER, 2014) 
 A Maioria (constante ou metro homem-branco-masculino-adulto-habitante das 
cidades-com poder de consumo-falante de uma língua de padrão europeu- heterossexual 
qualquer para quem o urbanismo padrão trabalha ao definir este como medida também 
padrão para os seus projetos de cidade) nega ou finge não ver a prática do espaço dos 
homens e mulheres pobres (aceita-se, desde que este se coloquem como servis trabalhadores 
e que não se atrevam a dar seus rolezinhos pelos shoppings nas horas de lazer) de gêneros ou 
hábitos sexuais outros (como os travestis que ocupam o espaço público apenas na condição 
da prostituição porque em outros lugares são hostilizados); das crianças e adolescentes 
ruidosos e vorazes (cada vez mais cedendo o espaço da brincadeira nas ruas para os 
automóveis); dos idosos lentos que assumem seus cabelos brancos (e que não conseguem 
atravessar na faixa de pedestre porque o tempo do sinal vermelho e pouco para seus passos 
lentos); dos negros que se identificam com o cabelo sarará-crioulo (que são removidos dos 
seus quilombos ou das áreas centrais gentrificadas por projetos de revitalização urbana); dos 
loucos que se recusam a se medicar (e a reforma manicomial que não consegue novas 
arquiteturas condizentes com essa nova politica); dos fumantes que gostam e precisam do seu 
vício; dos ciganos; dos moradores de rua; usuários de drogas; deficientes e mais todos os 
Outros-minorias não listados nesse texto e que por um motivo ou outro não se formatam no 
quadro das semelhanças, que produzem bons cidadãos, usuários de um urbanismo padrão. 
 Mas é apenas na escrita, como no parágrafo anterior, que as posições podem ser 
assim colocadas, de um lado a Maioria, do outro a Minoria. Na escrita podemos apresentar 
de um lado os burgueses de outro os proletários; de um lado o formal de outro o informal, o 
sertão e a cidade, os bons e os maus e assim por diante. Mas no cotidiano, é preciso lembrar, 
o oprimido muitas vezes é também opressor e o opressor pode criar liberdade, no cotidiano a 
vida embaralha as dicotomias. O movimento entre as pontes-passagens faz dobra, não 
existem margens neste processo e essas subjetividades são apropriadas para a produção 
capitalística, a tal ponto que esta torna-se dependente de todos os discursos, memórias, 
afetos, histórias produzidos na ruptura e na produção das singularidades. Estas são 
constantemente capturadas e se tornam norma. Estas normas constantemente criam linhas de 
fuga e viram resistência. Por isso a saudade sertaneja, o samba de roda, a participação, a 
ecologia, a criatividade...tudo é apropriado para os mercados de poder e do consumo 
formalizados pelo urbanismo...mas toda estrutura cria rupturas e o próprio urbanismo cria o 
antropoteto...e... 
Um grupo mínimo de pessoas, porém, já andava cavando um campo 
novo para o exercício da arquitetura. Gente que dizia preferir praticar 
“de pé no chão” a preparar o povo com idéias fluidas [...] Foi assim 
que chegava de ficar falando tanto em realidade sem ir lá ver onde ela 
estava [...[ resolvemos trabalhar com as favelas [...] Cansamos de 
redescobrir a roda, mas pelo menos conseguimos algo que fazia o 
veículo andar de verdade, em vez de meras genialidades de prancheta 
ou de utopias ótimas [...]Estava virando o que chamei, de brincadeira, 
de “antropoteto”. (FERREIRA dos SANTOS, 1980) 
 
Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as 
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas 
que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. 
João Guimarães Rosa 
 
 Julgamentos rápidos e rasos não mais determinam a macropolítica hegemônico e/ou 
as resistências micropolícas, há que se saber da complexidade que envolve os termos, uma 
complexidade carregada de contradições, conflitos, dissensos que podem ser notadamente 
observados no cotidiano das práticas profissionais. Mas se não nos serve a divisão concreta e 
dualista, para que usamos os termos? Por uma necessidade de escrita, por não saber pensar a 
complexidade sem definir margens apenas? Não. O objetivo pretendido com toda essa 
análise classificatória da ordem dos discursos sobre as práticas profissionais do urbanismo 
nos serve para pensar caminhos outros que consigam romper, cada vez mais, com essa 
contradição entre os enunciados discursivos e as práticas (ação e teoria) no campo. 
Com certeza não se trata de ficar revelando verdades ocultas ou julgando boas e más práticas 
(mesmo que estas existam). Intentamos a partir desse debate emponderar uma certa 
historiografia minoria, de resistência - que pouco aparece comparada com a historiografia 
dos monumentos, dos ‘autores’ heróis- para que esta se torne quadro referencial para novas 
práticas, que faça, cada vez mais e melhor a escuta aos ‘praticantes’ outros das cidades 
reduzindo o volume da obstinada presença dos grandes ‘autores’. Ampliando o campo do 
urbanismo pegamos um texto do cineasta Eduardo Coutinho que, ao falar de si, reverbera 
uma ética na relação com o outro que se pretende emponderar com este trabalho: 
É uma necessidade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa 
adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido 
de que o que me interessa são as razões do outro, e não as minhas. 
Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha 
existência, para tentar saber quais são as razões do outro, porque, de 
certa forma, o outro pode não ter sempre razão, mas tem sempre suas 
razões. (COUTINHO, 2003) 
Esse texto é a apresentação de uma pesquisa que busca criar referências para uma prática 
historiográfica que não se sobreponha à vida urbana, que traga a vida vivida dos arquitetos 
em suaspráticas menores e que vai para muito além do próprio urbanismo. Mas sabemos dos 
riscos dessa historiografia cair em determinismos dualistas, cremos que o maior ganho deste 
trabalho e o aprendizado de como narrar e fazer essa historiografia outra sem cair em uma 
História de heróis e bandidos. E porque emponderar uma historiografia outra? Por que 
romper processos hegemônicos já cristalizados requer referências para o aprendizado, requer 
luta política dentro do próprio campo discursivo para se desconstruir ‘verdades’ 
estabelecidas que apagam a escuta às razões dos outros, porque: 
Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as 
interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação 
com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto 
que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é 
simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, 
aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa 
de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as 
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se 
luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2004) 
Há que, portanto, lutar para aprender outras práticas e criar outra História, capaz de 
comportar as práticas heterogêneas do próprio campo, ampliando portanto sua capacidade de 
lidar com a vida das cidades brasileiras. 
 
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