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MICROPOLÍTICAS DO URBANISMO OU POR UMA OUTRA HISTORIAGRAFIA URBANÍSTICA. Thais de Bhanthumchinda Portela PPGAU/FAUFBA taiportela@yahoo.com.br É como se você fosse andando, muito decidido, por um caminho reto e, aos poucos, fosse percebendo que ele ia se estreitando, mudando de características e virando um beco. Carlos Nelson Ferreira dos Santos. Trago na memória uma entrevista feita no trabalho de campo para uma pesquisa sobre a história da urbanização de uma área de ocupação informal. Nesta entrevista um arquiteto narrava: “O Programa Promorar foi implementado nos inícios dos anos [19]80 pelo [nome da instituição] para urbanizar e dar casas para as pessoas que ocuparam a área do mangue. Eu era arquiteto concursado, trabalhava ali já alguns anos mas não compactuava com o modo como o processo estava sendo conduzido, não concordava com o modo como o projeto era explicado para população. Havia uma demanda, determinada pela agência de financiamento, de que a urbanização tivesse participação social. Era uma condição por causa das críticas em relação ao autoritarismo do governo militar, então eles tiveram que inventar uma processo participativo. A gente ia então pela parte do dia apresentar o projeto para a comunidade de [nome do lugar], como técnicos do [nome da instituição]. E de noite eu pegava o meu fusquinha e ia lá, voltava para falar com as pessoas e explicava todo o projeto, de novo, do jeito que tinha que ser. Quando eu voltava para reunião como [nome da instuição] os responsáveis pelo programa não entendiam nada: 'Como foi que vocês mudaram de opinião? De onde tiraram isso?' E foi assim que o projeto teve que ser todo renegociado e ao invés de implementarem aquelas casinhas padronizadas a única coisa que foi construída foram as ruas com infraestrutura e os banheiros das casas. O resto ficou por conta dos moradores. Cada um ia construir sua casa do jeito que queria, com o recurso que tinha, no tempo que precisasse. Mas você não pode escrever isso no seu trabalho porque senão posso ter problemas.” O programa ao que o entrevistado se refere foi politicamente organizado e tecnicamente elaborado por engenheiros, arquitetos e assistentes sociais do governo do estado, sendo implementado de acordo com as diretrizes determinadas pelo governo federal. O descontentamento da população e a consequente reformulação do programa de intervenção é bem conhecido pela História mas a atuação do arquiteto que se posiciona frente a esse processo do lado dos moradores, não. Ao longo dos anos, após essa pesquisa, muitas narrativas sobre a atuação profissional foram colecionadas em um arquivo não muito confiável, que é a memória, e o trecho acima descrito trata-se da memória de um testemunho que só não se perderá porque estas palavras estão aqui sendo escritas. Mas, qual a relevância desse daquela narrativa para o pensamento urbanístico e sua História? Porque uma prática perdida no tempo, uma prática que nem o seu agente permite que seja escrita ganha importância a ponto de sair do esquecimento e ser recuperado por uma memória para se fazer História? Antes de arriscarmos uma resposta precisamos considerar que o urbanismo é um saber disciplinar que coloca-se e é colocado como um campo produtor de discursos qualificados, que produz narrativas (poderíamos falar aqui de verdades) sobre si próprio e sobre as cidades. Tomando o referencial teórico de Michel Foucault, saber disciplinar é aquele que engendra um corpo de conhecimento que dispõe e organiza o espaço além de determinar, também, a própria concepção sobre o tempo de uma sociedade. Essa determinação é possível porque conta com mecanismos de controle e de exercício de poder, que fiscaliza e pune quem contraria ou desobedece “a verdade” enunciada pelo discurso legitimado do saber. A positividade de um discurso caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. Essa unidade não permite decidir quem dizia a verdade, quem raciocinava rigorosamente, quem adaptava melhor os seus próprios postulados. No entanto permite o aparecimento da medida segundo falavam da “mesma coisa”, opondo-se “sobre o mesmo campo de batalha”. (FOUCAULT, 1977) Seguindo essa pensamento frente à produção da História, trazer a narrativa escrita no começo do texto, para ser debatida em um evento do campo disciplinar é disputar os sentidos do que vem a ser verdade no campo do urbanismo. Narrar aquela prática perdida no tempo que aconteceu dentro do próprio campo disciplinar e que se assemelha à uma miríade de outras práticas pelo seu caráter de resistência frente à um poder hegemônico é opor-se sobre o mesmo campo de batalha, o urbanismo, intentando construir outros enunciados (aqui já não cabe a palavra verdade). Chamaremos essa prática narrativa de historiografia outra, outra porque seu objeto não é o urbanismo em seu caráter macropolítico e hegemônico e sim, um urbanismo micropolítico. Tratamos de um urbanismo de práticas que pouco ou menos circulam pela História do Urbanismo, que aparecem de tempos em tempos, mas sempre em uma visibilidade menor em relação às práticas hegemônicas, que circulam muito mais, sendo generalizadas por modelos urbanísticos replicados à exaustão nas cidades brasileiras. Mas para falar sobre resistências micropolíticas e hegemonias macropolíticas precisamos de uma pausa, de um respiro para que essas linhas de forças sejam compreendidas na forma em que aqui são apropriadas. Entendemos que é por necessidade de escrita, de uma forma para as ideias, que utilizamos do pensamento dualista para explicar o mundo. O branco e o preto, o bem e o mal, o hegemônico e as resistências, essas são regiões margem, regiões que não se tocam, permanentes que estão em direções opostas no infinito. Mas os planos que criam pontes-passagens, sem começo nem fim e que nunca tocam margens extremas; as construções que não se prendem em dicotomias porque passam por elas já se transformando em outra coisa, aí o mundo é construído. É dessa compreensão do mundo de cores multi-variadas que intentamos tratar os discursos sobre as práticas do profissional urbanista nas cidades, sem distinções puristas. Olhamos para as resistências e encontramos ali a ordem hegemônica que a oprime e no hegemônico encontramos linhas de fuga constantes, resistências por todos os lados. Esse entre os opostos cria a complexidade que não permite apontar quem estava com ‘a verdade’, quem possuía ‘a razão’ em dado momento histórico cotejando a História com julgamentos presentes, mas permite sim, criar uma critica à dubiedade, criando uma certo entendimento sobre as contradições inerentes aos processos que envolvem discursos e práticas. Tomemos como exemplo o depoimento de Sérgio Ferro sobre Lucio Costa e Oscar Niemeyer em Brasília: Repito, ainda uma vez sem que se possa responsabilizar o Lucio ou o Oscar: acho que o “sujeito automático da história” os levou a acentuar a hegemonia do projeto. Aparentemente o traço fininho e trêmulo a lápis do Lucio não tem nada com isto. Mas a própria lógica do funcionalismo, ampliada pelas circunstâncias, contém em si sementes de autoritarismo [...] O que não é racional, entretanto, é esta fixação, esta separação que as isola do movimento da vida, que as solidifica antes de qualquer interação. (FERRO, 2006) O “sujeito automático da história” é como o Modulor de Le Corbusier, ambas são construções do pensamento abstrato sobre um homem idealizado, são construções isoladas do movimento da vida como bem aponta Sérgio Ferro. O cristalizar esse pensamento idealizado do homem é movimento que cria a figura do herói mítico, a quem os “desacertos” não cabem. É a figura do arquiteto demiurgo, portador de um “dom divino” capaz ditar verdades como: “A rua curva é o caminho dos burros, a rua reta o caminho dos homens” efazer com que esse modelo, esse ideal de rua seja transposto para tantas e tão diferentes cidades pelo mundo, sem deixar que essa tal reta se relacione com a curva tanto da topografia como a dos sonhos dos homens. Mas existem as linhas de fuga, as resistências...e eis que surge a curva na arquitetura, no urbanismo. Não é o ângulo reto que me atrai, Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo o homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher preferida. (trecho do Poema da Curva, NIEMEYER, 2014) O arquiteto que sonhava curvas e liberdades, que também dizia que mais importante do que a arquitetura era estar pronto para protestar e ir à rua, que se dizia comunista e revolucionário é o mesmo que passou a receber duras críticas como “A estupidez política de Niemeyer, que defendia regimes homicidas, não condena a sua obra. Mas a sua obra também não absolve a sua estupidez política.” (Revista VEJA, 2012). Esta fala surge pelo fato do arquiteto, mesmo frequentando “boates com operários, tudo vestido igual” não saber, ou dizer não saber, qual era a base que servia à construção de Brasília, repleta de “...suicídios numerosos, operários se jogando sob caminhões, desinteria quase quotidiana, cercados, sem poder sair” (FERRO, 2006). Como dissemos antes, cotejar a História com julgamentos do presente exige, no mínimo, cuidados para que não tornemos nós, aqueles que criticam, os próprios estúpidos da história. Mas fato é que, há que também perceber as contradições e assumi-las. Tive a chance de observar os três de perto [Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Juscelino Kubitschek]. Por um lado, éramos estudantes, mas arquitetos já. Projetávamos seguindo as regras ditadas por Lucio e Oscar. Na época, os arquitetos iam muito ao canteiro, aos seus e aos dos outros[...]...Sempre me marcou a distância entre o que ouvia então e o que lia nos jornais. (FERRO, 2006) Isso nos mostra que as travessias entre as pontes-passagens perfaz um desenho de múltiplas entradas e saídas, que não permitem julgamentos rápidos e rasos entre o que vem a ser o hegemônico e/ou as resistências. Note-se aqui, também, que ainda não estamos falando de uma questão ética, que envolve a contradição entre os enunciados discursivos e as práticas (ação e teoria) no campo do urbanismo. Estamos aqui apenas apontando a relação entre o hegemônico e a resistência. Essa sutileza das passagens não pode ser percebida por esquemas abstratos e maniqueístas, ela somente surge com clareza no chão raso do cotidiano, na história da vida vivida que retira a capa dos atos heroicos dos arquitetos demiurgos e de seus belos monumentos que parecem surgir, na historiografia tradicional, sem ter sido parte de um processo que envolve operários, moradores, usuários pretéritos de áreas urbanizadas ou reurbanizados, etc.. O processo percebido com lentes de observação focadas no cotidiano retira o monumento do pedestal. Monumento aqui pode ser entendido como a obra monumental, excepcional, grandiosa que é aceita por todos como símbolo de uma sociedade mas também é compreendida neste texto como a ação ou a teoria, isto é, como prática profissional que se torna modelo hegemônico, que se torna o modo comum, legitimado e naturalizado de uma prática. Nesse sentido dizemos que os postulados replicados ao infinito pelas cidades mundo afora da Carta de Atenas ou do Planejamento Estratégico do CIDEU, de Barcelona, se tornaram, de certo modo, uma prática monumental, dado o seu alcance. Quebrar esse condicionamento das próprias práticas instituídas pelo campo de saber, produzir linhas de fuga nos modelos hegemônicos, esse é um processo micropolítco do/no urbanismo. “Comecei, cada vez mais, a desviar minha atenção das casas, dos sistemas viários dos aglomerados, das soluções de esgoto e abastecimento de água e de outros aspectos considerados do interesse primordial de um urbanista ou arquiteto. […] Fui descobrindo que havia muitos mundos dentro do que, simplisticamente, eu designava por um só nome. Fui vendo que algumas ações e maneiras de ser ou de ver as coisas que eu classificaria, com rapidez, de “alienadas” tinham sentido dentro dos códigos particulares a que estavam referidas, frente aos quais, por não saber como me comportar, o alienado era eu.” (FERREIRA dos SANTOS, 1981) Seguindo o pensamento de Michel de Certau, o cotidiano é ‘o aquilo’ que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), aquilo que nos pressiona, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. “Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição, com esta fadiga, com este desejo.” E o arquiteto urbanista, quanto entendido também ele como “sujeito automático da história”, foge de sua condição cotidiana, dos conflitos e contradições que são inerentes à qualquer prática de “sujeitos corporificados” (TORRES RIBEIRO, 2000). Esse mundo racionalizado pelas disciplinas do conhecimento - a partir da História Moderna – volta-se ao domínio desta história "irracional” ou desta “não-história”, em mais uma ponte- passagem, pelos sentidos, pela memória do corpo, pela memória olfativa, memória dos lugares da infância, dos gestos da infância, dos prazeres. (CERTEAU, 1996) Essas pontes-passagens presentes no cotidiano se estendem por toda a sociedade e embaralham as fronteiras do hegemônico/resistências, da História/história "irracional” ou “não-história”. No cotidiano o oprimido muitas vezes é também opressor, no cotidiano o pequeno gesto transforma-se em História. Por isso voltamos a colocar: é por necessidade de escrita, de uma forma para as ideias, que utilizamos do pensamento dualista para explicar o mundo. Por isso dizemos aqui que os arranjos sociais e seus enunciados discursivos, sejam eles disciplinares ou não, carregam pontos de ruptura - o fazer das resistências, das minorias e o fazer do hegemônico, da maioria - em sua própria estrutura. Maiorias e minorias são ordens distintas que remetem aos conceitos do rizoma e do arborescente e as rupturas podem ser percebidas em ambas. Toda lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz, é a estrutura, essa é a lógica do urbanismo, por exemplo. Mas dentro da realidade do cotidiano, o urbanismo-arborescência é rompido e transformado em rizomas de um fazer cidades, fazer esse pleno de complexidade engendrada por processos distintos que vão para muito além do próprio urbanismo. E este entendimento é pouco aceito pelos poderes hegemônicos no campo do urbanismo, já que a consequência desse processo é a quebra da ‘verdade’ dos urbanistas, ou da posição de ‘autor’ de obras ou práticas (ideia do monumento) de modo geral. Este pensamento segue alguns conceitos provocados pelo encontro de Gilles Deleuze e Felix Guatarri. A noção de minoria, com suas remissões musicais, literárias, linguísticas, mas também jurídicas, políticas, é bastante complexa. Maioria e minoria não se opõem apenas de uma maneira quantitativa. Maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua de padrão europeu- heterossexual qualquer. É evidente que o “o homem” tem maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder, e não o contrário (DELEUZE; GUATARRI, v.2, 1995). O rizoma não se justifica por nenhum modelo estrutural ou gerativo já que ele é estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura profunda. Osrizomas são antes de tudo princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito e a lógica da árvore é uma lógica da reprodução, mas um pode estar no outro, árvores podem conter linhas rizomáticas e o rizoma conter pontos de arborescência. As disciplinas são arborescentes, e por isso, a menos que contenham rizomas- resistências- elas não tem como conter o belo, o afetuoso ou a política do Outro: “toda a cultura arborescente é fundada sobre elas, da biologia a lingüística. Ao contrário, nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o rizoma.” (DELEUZE; GUATARRI,v.1, 1995). As cidades contemporâneas estão cada vez mais formalizadas pela rigidez de um urbanismo que se impõe através de modelos hegemônicos e que raramente valoriza as práticas do campo que promovem linhas de fuga com o já estabelecido. Na historiografia tradicional é a ‘verdade’ dos urbanistas ligados ao que chamamos de Maioria é que são muito mais publicadas, divulgadas, teorizadas. As gagueiras, as crises, a crítica que contradizem o saber predominante das práticas do próprio campo são pouco difundidas pelas matérias de história e teoria oferecidas nas faculdades (vide uma rápida pesquisa da autora em bibliografias de referência pesquisadas em diferentes ementas de diferentes faculdades brasileiras) e nas publicações da área (basta ver a quantidade de textos que analisam a obra da Zaha Hadid ou Rem Koolhas comparada aos de Carlos Nelson Ferreira dos Santos ou Sérgio Ferro). Esse urbanismo padronizado e hegemônico cria estruturas/normas/formas nas cidades que parecem esfregar sal na ferida daqueles outros que não são seus poucos ‘autores’ e sim seus milhões de ‘praticantes’ que buscam, por exemplo, a sombra de uma árvore na cidade do espaço vivido, como Milton Santos diria, ou espaço praticado, como diria Ana Clara Torres Ribeiro. E, no Brasil, às vezes, as pessoas ficam reclamando: ‘Mas por que a Praça dos Três Poderes não tem vegetação? Por que tanto sol?’ E a gente tem que explicar isso, que é tão intuitivo… Porque ali é uma praça cívica, é diferente, tem que valorizar a arquitetura. Mediocridade ativa é uma merda! (NIEMEYER, 2014) A Maioria (constante ou metro homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-com poder de consumo-falante de uma língua de padrão europeu- heterossexual qualquer para quem o urbanismo padrão trabalha ao definir este como medida também padrão para os seus projetos de cidade) nega ou finge não ver a prática do espaço dos homens e mulheres pobres (aceita-se, desde que este se coloquem como servis trabalhadores e que não se atrevam a dar seus rolezinhos pelos shoppings nas horas de lazer) de gêneros ou hábitos sexuais outros (como os travestis que ocupam o espaço público apenas na condição da prostituição porque em outros lugares são hostilizados); das crianças e adolescentes ruidosos e vorazes (cada vez mais cedendo o espaço da brincadeira nas ruas para os automóveis); dos idosos lentos que assumem seus cabelos brancos (e que não conseguem atravessar na faixa de pedestre porque o tempo do sinal vermelho e pouco para seus passos lentos); dos negros que se identificam com o cabelo sarará-crioulo (que são removidos dos seus quilombos ou das áreas centrais gentrificadas por projetos de revitalização urbana); dos loucos que se recusam a se medicar (e a reforma manicomial que não consegue novas arquiteturas condizentes com essa nova politica); dos fumantes que gostam e precisam do seu vício; dos ciganos; dos moradores de rua; usuários de drogas; deficientes e mais todos os Outros-minorias não listados nesse texto e que por um motivo ou outro não se formatam no quadro das semelhanças, que produzem bons cidadãos, usuários de um urbanismo padrão. Mas é apenas na escrita, como no parágrafo anterior, que as posições podem ser assim colocadas, de um lado a Maioria, do outro a Minoria. Na escrita podemos apresentar de um lado os burgueses de outro os proletários; de um lado o formal de outro o informal, o sertão e a cidade, os bons e os maus e assim por diante. Mas no cotidiano, é preciso lembrar, o oprimido muitas vezes é também opressor e o opressor pode criar liberdade, no cotidiano a vida embaralha as dicotomias. O movimento entre as pontes-passagens faz dobra, não existem margens neste processo e essas subjetividades são apropriadas para a produção capitalística, a tal ponto que esta torna-se dependente de todos os discursos, memórias, afetos, histórias produzidos na ruptura e na produção das singularidades. Estas são constantemente capturadas e se tornam norma. Estas normas constantemente criam linhas de fuga e viram resistência. Por isso a saudade sertaneja, o samba de roda, a participação, a ecologia, a criatividade...tudo é apropriado para os mercados de poder e do consumo formalizados pelo urbanismo...mas toda estrutura cria rupturas e o próprio urbanismo cria o antropoteto...e... Um grupo mínimo de pessoas, porém, já andava cavando um campo novo para o exercício da arquitetura. Gente que dizia preferir praticar “de pé no chão” a preparar o povo com idéias fluidas [...] Foi assim que chegava de ficar falando tanto em realidade sem ir lá ver onde ela estava [...[ resolvemos trabalhar com as favelas [...] Cansamos de redescobrir a roda, mas pelo menos conseguimos algo que fazia o veículo andar de verdade, em vez de meras genialidades de prancheta ou de utopias ótimas [...]Estava virando o que chamei, de brincadeira, de “antropoteto”. (FERREIRA dos SANTOS, 1980) Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. João Guimarães Rosa Julgamentos rápidos e rasos não mais determinam a macropolítica hegemônico e/ou as resistências micropolícas, há que se saber da complexidade que envolve os termos, uma complexidade carregada de contradições, conflitos, dissensos que podem ser notadamente observados no cotidiano das práticas profissionais. Mas se não nos serve a divisão concreta e dualista, para que usamos os termos? Por uma necessidade de escrita, por não saber pensar a complexidade sem definir margens apenas? Não. O objetivo pretendido com toda essa análise classificatória da ordem dos discursos sobre as práticas profissionais do urbanismo nos serve para pensar caminhos outros que consigam romper, cada vez mais, com essa contradição entre os enunciados discursivos e as práticas (ação e teoria) no campo. Com certeza não se trata de ficar revelando verdades ocultas ou julgando boas e más práticas (mesmo que estas existam). Intentamos a partir desse debate emponderar uma certa historiografia minoria, de resistência - que pouco aparece comparada com a historiografia dos monumentos, dos ‘autores’ heróis- para que esta se torne quadro referencial para novas práticas, que faça, cada vez mais e melhor a escuta aos ‘praticantes’ outros das cidades reduzindo o volume da obstinada presença dos grandes ‘autores’. Ampliando o campo do urbanismo pegamos um texto do cineasta Eduardo Coutinho que, ao falar de si, reverbera uma ética na relação com o outro que se pretende emponderar com este trabalho: É uma necessidade imperiosa ter a colaboração do outro. E essa adesão ao objeto implica uma postura que chamo de vazio, no sentido de que o que me interessa são as razões do outro, e não as minhas. Então, tenho de botar as minhas razões entre parênteses, a minha existência, para tentar saber quais são as razões do outro, porque, de certa forma, o outro pode não ter sempre razão, mas tem sempre suas razões. (COUTINHO, 2003) Esse texto é a apresentação de uma pesquisa que busca criar referências para uma prática historiográfica que não se sobreponha à vida urbana, que traga a vida vivida dos arquitetos em suaspráticas menores e que vai para muito além do próprio urbanismo. Mas sabemos dos riscos dessa historiografia cair em determinismos dualistas, cremos que o maior ganho deste trabalho e o aprendizado de como narrar e fazer essa historiografia outra sem cair em uma História de heróis e bandidos. E porque emponderar uma historiografia outra? Por que romper processos hegemônicos já cristalizados requer referências para o aprendizado, requer luta política dentro do próprio campo discursivo para se desconstruir ‘verdades’ estabelecidas que apagam a escuta às razões dos outros, porque: Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2004) Há que, portanto, lutar para aprender outras práticas e criar outra História, capaz de comportar as práticas heterogêneas do próprio campo, ampliando portanto sua capacidade de lidar com a vida das cidades brasileiras. Referências bibliográficas BRESCIANI, M.S. 2009. Cidades e Urbanismo. Uma possível análise historiográfica. In: Politeia: História e Sociedade, Vol. 9, No 1 (2009). Disponível em: http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/viewFile/559/556. [Acessado 05 janeiro 2014]. CERTEAU, Michel de. 1996. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes,1996. COUTINHO, Eduardo, ASSIS BRASIL, Giba, SARAIVA, Leandro, DOS SANTOS, Myriam Sepúlveda. 2003. Debate. Cinema entre real e ficção. In: Interseções. Rio de Janeiro: UERJ, ano 5, n.1. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1995. Mil Platôs. v. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34. __________. 1995. Mil Platôs. v. 2. São Paulo, Ed. 34. FERRO, Sérgio. 2006. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify. FOUCAULT, Michel. 1979. Os intelectuais e o poder. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal. __________. 1997. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Petrópolis: Editora Vozes. ___________. 2004. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola FREIRE,A.; OLIVEIRA, L.L. (org.). 2002. Capítulos da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao CPDOC/FGV. Rio de Janeiro: Folha Seca. NIEMEYER, Oscar. Depoimentos. S/data. Disponível em: <http://www.avidaeumsopro.com.br/pt/niemeyer_depoimentos.php. [Acessado 20 fev. 2014]. REVISTA VEJA. AZEVEDO, Reinaldo. Morre Oscar Niemeyer, metade gênio e metade idiota. S/data. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/morre-oscar-niemeyer-metade-genio-e-metade- idiota/. [Acessado 18 fev. 2014]. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. 1980. Como e quando pode um arquiteto virar antropólogo? In: VELHO, Gilberto (org). Rio de Janeiro, Editora Campus, p. 37-57. __________. 1981. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Zahar. __________. 1988. A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Universitária. SANTOS, Carlos Nelson Ferreira; VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva et al. 1985. Quando a rua vira casa. São Paulo. Projeto Arquitetos Associados. RIBEIRO, A. C. T. et al. 2000. Sujeito corporificado e bioética: caminhos da democracia. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v.24, p.82-86, jan./abr.
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