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1ª Edição Rogério de Melo Grillo Eloisa Rosotti Navarro Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 Guarujá Editora Científica Digital 2020 Copyright© 2020 Editora Científica Digital Copyright da Edição © 2020 Editora Científica Digital Copyright do Texto © 2020 Os Autores Editor Chefe: Reinaldo Cardoso Editor Executivo: João Batista Quintela Mídias e Pesquisas: Elielson Ramos Jr. Érica Braga Freire Erick Braga Freire Revisão: Os Autores Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Alberto Martins Cordeiro Profª. Drª. Eloisa Rosotti Navarro Prof. Me. Ernane Rosa Martins Prof. Dr. Robson José de Oliveira Prof. Dr. Rogério de Melo Grillo Prof. Dr. Rossano Sartori Dal Molin EDITORA CIENTÍFICA DIGITAL Guarujá - São Paulo - Brasil www.editoracientifica.org - contato@editoracientifica.org O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores. Permitido o download e compartilhamento desde que os créditos sejam atribuídos aos autores, mas sem a possibilidade de alterá-la de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) P974 Psicologia [recurso eletrônico] : desafios, perspectivas e possibilidades: volume 2 / Organizadores Rogério de Melo Grillo, Eloisa Rosotti Navarro. – Guarujá, SP: Editora Científica Digital, 2020. Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN: 978-65-87196-09-1 DOI: 10.37885/978-65-87196-09-1 1. Psicologia – Pesquisa – Brasil. I. Grillo, Rogério de Melo. II.Navarro, Eloisa Rosotti. CDD 150 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 Todo o conteúdo deste livro está licenciado sob uma Licença de Atribuição Creative Commons. Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0). SUMÁRIO CAPÍTULO 1 .............................................................................................................................................. 9 A NOVA FACE DA VELHICE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: UMA PERSPECTIVA SÓCIO – HISTÓRICA Jéssica Oliveira Costa; Michelle Alves de Souza; Samya Regia Figueiredo Vieira Antero CAPÍTULO 2 ............................................................................................................................................ 15 A BRINCADEIRA NO AUTISMO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO - CULTURAL DE VIGOTSKI Ricardo Colombo Gallina; Regina Basso Zanon CAPÍTULO 3 ............................................................................................................................................ 22 A CONTRATRANSFERÊNCIA NA PRÁTICA PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO ATUANTE NO SISTEMA PRISIONAL Denis Mantovani CAPÍTULO 4 ............................................................................................................................................ 29 A CRIANÇA, A FAMÍLIA E A ESCOLA: A POTÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL Ana Paula Parise Malavolta; Andressa Bittencourt Flores; Nitheli Cardoso Bissaco; Thayara Carlosso Irion CAPÍTULO 5 ............................................................................................................................................ 36 A IMPORTÂNCIA DO ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO PARA MULHERES PORTADORAS DE ENDOMETRIOSE Camila Barreto; Gabriela Nascimento; Arina Lebrego CAPÍTULO 6 ............................................................................................................................................ 39 A INSTITUIÇÃO FAMILIAR E O TRABALHO DO PSICÓLOGO NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS SOCIAIS Claudia Maria Rinhel-Silva CAPÍTULO 7 ............................................................................................................................................ 47 A MÚSICA COMO FACILITADORA DO ESTADO DE FLOW NO TÊNIS DE ALTO RENDIMENTO Ana Beatriz Santos Honda SUMÁRIO CAPÍTULO 8 ............................................................................................................................................ 59 AS VIVÊNCIAS DE PRODUTORES RURAIS DA CIDADE DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS/RS QUE SOFRERAM ABIGEATO Débora Irion Bolzan; Giana Bernardi Brum Vendruscolo CAPÍTULO 9 ............................................................................................................................................ 68 ATUAÇÃO DAS/OS PSICÓLOGAS/OS NAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS – APACS Flávia Cristina Guimarães Paiva Nascimento CAPÍTULO 10 .......................................................................................................................................... 73 AVALIAÇÃO COGNITIVA DE ADOLESCENTES ATRAVÉS DA ESCALA RESILIÊNCIA E INVENTÁRIO DO CLIMA FAMILIAR Rosimar Conceição Rodrigues; Letícia Maia Amaral; Ronaldo Santhiago Bonfim de Souza CAPÍTULO 11 .......................................................................................................................................... 78 BARREIRAS AO TRABALHO DO PSICÓLOGO ESCOLAR: VISÕES DESATUALIZADAS QUE DIFICULTAM A PRÁTICA Juan Farret Ritzel; Marcelo Moreira Cezar CAPÍTULO 12 .......................................................................................................................................... 81 CLASSES MULTISSERIADAS: INFÂNCIA E APRENDIZAGEM Naillê Belmonte Trindade; Rejane La Bella Flach Cunegatto CAPÍTULO 13 .......................................................................................................................................... 86 COMPREENDO O BEHAVIORISMO RADICAL: DA LITERATURA AO CINEMA Rogério de Melo Grillo; Eloisa Rosotti Navarro CAPÍTULO 14 .......................................................................................................................................... 97 DEMANDAS DO PROCESSO PSICODIAGNÓSTICO: CONSIDERAÇÕES GERAIS Raquel Furtado Conte SUMÁRIO CAPÍTULO 15 ........................................................................................................................................ 105 DIÁLOGOS SOBRE INTERSECCIONALIDADE: RAÇA, GÊNERO, SEXUALIDADE E PRÁTICA PROFISSIONAL Daniele da Silva Fébole; Paulo Vitor Palma Navasconi; Karen Eduarda Alves Venâncio; Bárbara Anzolin CAPÍTULO 16 .........................................................................................................................................117 ESPAÇO ESTIMULAR: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL E AS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS Gabriel Henrique da Silva Honório; Maria Adelaide Pessini CAPÍTULO 17 ........................................................................................................................................ 125 ESTRESSE E ANSIEDADE: ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS Rafaela Brito; Larissa Soares; Lorena Paulino; Emília Damasceno CAPÍTULO 18 ........................................................................................................................................ 128 EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE INÁCIO DE LOYOLA E A PSICANÁLISE: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Maria Teresa Moreira Rodrigues CAPÍTULO 19 ........................................................................................................................................ 144 GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: A PERSPECTIVA DE ESTUDANTES DE PSICOLOGIA Cleison Guimarães Pimentel; Aline Carlos do Vale; Ana Carolina da Rocha Gonçalves; Barbara Suelen Lima dos Santos; Kassia Thamiris dos Santos Freire; Maria Karolina Dias da Costa CAPÍTULO 20 ........................................................................................................................................ 154 IDEAÇÃO SUICIDA EM PESSOAS IDOSAS: CONTRIBUIÇÕES DA TERAPIA COGNITIVO - COMPORTAMENTAL Cintia Glaupp Lima dos Santos; Lívia Maria Monteiro Santos; Maria das Graças Teles Martins CAPÍTULO 21 ........................................................................................................................................ 162 IDOSO E TECNOLOGIA:APRENDIZAGEM E SOCIALIZAÇÃO COMO FATORES PROTETIVOS PARA UM ENVELHECIMENTO SAUDÁVEL Cláudia Cibele Bitdinger Cobalchini ; Bruna Fernanda Alves ; Lucas Lauro da Silva; Thiago Bellei de Lima SUMÁRIO CAPÍTULO 22 ........................................................................................................................................ 168 INICIAÇÃO ESPORTIVA E ESPECIALIZAÇÃO PRECOCE: O DISCURSO E A PRÁXIS Maria Luiza Bertoni; Cassio José Silva Almeida CAPÍTULO 23 ........................................................................................................................................ 177 LEITURA E MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA: ANÁLISE DE AÇÕES À LUZ DA TEORIA HISTÓRICO CULTURAL Luanna Freitas Johnson ; Tainara Braga Lima CAPÍTULO 24 ........................................................................................................................................ 184 LIDERANÇA DE EQUIPES SOB SITUAÇÃO DE ESTRESSE: UMA COMPARAÇÃO ENTRE DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES ESPECIAIS E EQUIPES DE TRABALHO Daniel Andrei Rodrigues da Silva CAPÍTULO 25 ........................................................................................................................................ 187 MEU PET, MEU AMPARO, MEU CAMINHO SEGURO: A HISTÓRIA DE VIDA DE PESSOAS COM DEPRESSÃO PÓS-ADOÇÃO Cindy Gomes Bezerra; Ewerton Helder Bentes de Castro CAPÍTULO 26 ........................................................................................................................................ 204 O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE MORTE EM CRIANÇAS SAUDÁVEIS Julia Roveri Rampelotti ; Najla Maryla Maltaca; Vittoria do Amaral Ceccato de Lima; Cloves Antonio de Amissis Amorim CAPÍTULO 27 ........................................................................................................................................ 210 PERCEPÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA SOBRE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS QUE PROMOVEM A CRIATIVIDADE NA ESCRITA Gláucia Madureira Lage e Moraes; Eunice Maria Lima Soriano de Alencar CAPÍTULO 28 ........................................................................................................................................ 221 PERFIL PSICOLÓGICO DE USUÁRIOS DE CRACK Bruna Monique de Souza; Scheila Beatriz Sehnem SUMÁRIO CAPÍTULO 29 ........................................................................................................................................ 235 PLANTÃO PSICOLÓGICO NA ASSISTÊNCIA A URGÊNCIA PSÍQUICA DA COMUNIDADE Benedita Nádia Silva Pereira; Francisco Flávio Muniz Rufino; Francisca Telma Vasconcelos Freire; Leidiane Carvalho de Aguiar; Marcelo Franco e Souza CAPÍTULO 30 ........................................................................................................................................ 239 PRÁTICA DE MARATONAS NA LONGEVIDADE: OLHANDO PARA A AUTO - ESTIMA Maria Arlene de Almeida Moreira; Ceneide Maria de Oliveira Cerveny CAPÍTULO 31 ........................................................................................................................................ 247 REPRESENTAÇÃO SOCIAL ACERCA DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR PARA IDOSOS DE UM MUNICÍPIO DO OESTE DE SANTA CATARINA Jeane Samara Zucchi; Carmen Lúcia Arruda de Figueiredo Dagostini CAPÍTULO 32 ........................................................................................................................................ 255 SAÚDE MENTAL DE ESTUDANTES DA ÁREA DA SAÚDE: UM ENSAIO SOBRE CURRÍCULO INTEGRADO, HUMANIZAÇÃO E RESILIÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR Evely Najjar Capdeville CAPÍTULO 33 ........................................................................................................................................ 263 TRABALHO HOME-OFFICE: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES À SUBJETIVIDADE DO TRABALHADOR Tamara Natácia Mulari Coneglian; Guilherme Elias da Silva CAPÍTULO 34 ........................................................................................................................................ 271 TRANSTORNO DO PÂNICO: NEUROBIOLOGIA, SINTOMATOLOGIA E DIAGNÓSTICO. Melissa Tavares Lima; Suellen de Oliveira Barbosa; Sarah Medeiros Tavoglieri; Greg Luan dos Anjos Cardoso; Marcos Vinicius Lebrego Nascimento SOBRE OS ORGANIZADORES ............................................................................................................ 274 A NOVA FACE DA VELHICE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂ- NEA: UMA PERSPECTIVA SÓCIO – HISTÓRICA 10.37885/200400131 Palavras-chave: Idoso; Motivação; Limitações; Possibilida- des. RESUMO O crescimento da população idosa no Brasil nos remete a uma reflexão sobre os cuidados que a sociedade deve ter para manter estes idosos em condições de independência, motivados e participantes de programas instituídos para a melhoria da qualidade de suas vidas. Este trabalho aborda a nova face da velhice numa perspectiva sócio histórica, tendo como objetivo conhecer como vivem os idosos hoje e quais fatores os motivam a assumirem uma nova postura comportamental, considerando suas limitações e suas possibilidades. Para tanto, tomou-se como base os desafios e as oportunidades advindos desta nova postura. Para embasamento da pesquisa realizou-se estudo teórico sobre envelhecer nos dias atuais com foco no novo perfil e na motivação, assumindo diferentes papéis na sociedade. O presente trabalho utilizou como instrumento de investigação um questionário constando de dez perguntas respondidas por trinta alunos participantes do Curso de Memória Ativa do Programa de Atenção Integral ao Aposentado do Estado – PAI. Os resultados da pesquisa indicam que os idosos hoje desfrutam de uma gama de possibilidades para que tenham um envelhecimento bem sucedido. CAPÍTULO 1 Jéssica Oliveira Costa UNINASSAU Michelle Alves de Souza UNINASSAU Samya Regia Figueiredo Vieira Antero UNINASSAU Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 110 1. INTRODUÇÃO “De nada adianta acrescentar anos à nossa vida, se não acrescentarmos vida aos nossos anos”. Marcelo Salgado O Brasil está envelhecendo, isto é um fato incontestável. Estima-se que a expectativa de vida da população brasileira no ano de 2020 será de aproximadamente 16,2 milhões de idosos. Deve-se este fato ao avanço da tecnologia, ao baixo índice de natalidade e as melhorias das condições de vida. O processo de envelhecimento está atrelado a uma fase de significativas mudanças bio-psico-sócio-cul- tural que de acordo com cada envelhecente, esse processo assume uma conotação diferenciada, por vezes positiva e cheias de possibilidades, noutras, com limitações. Ter uma boa velhice é viver um pro- cesso contínuo de adaptações e aprendizagens, con- siderando, aqui, perdas e ganhos, autoaceitação, acúmulo de experiências e a busca constante de independência, e bem-estar, passando pelo prazer de viver. De acordo com o Ministério da Saúde (MS) foram adotadas diretrizes básicas que estão inseridas na Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa (PNSPI), tendo por objetivo promover o envelhecimento sau- dável, a prevenção de doenças e a manutenção da capacidade funcional. Com base em estudos realizados, podemos observar que a melhoria das condições de vida favorece ao aumento da expectativa de vida da população idosa. Nesse contexto, entram em cena os Centros de Convivência, Clubes da Maturidade, Escolas Específicas, dentre outros, que possibilitam a inclusão dessa faixa etária a vários segmentos da sociedade e todo um aparato para proporcionar a esta categoria uma melhor qualidade de vida. Neste contexto, apresentam-se as seguintes questões: o que motiva a pessoa idosa a vencer os obstáculos, superando as limitações encontradas no seu dia-a-dia para viver melhor? Onde encontrar recursos para envelhecer com saúde e qualidade de vida? Quais benefícios os recursos da comunidade agregam à vida desta população? Para o alcance dos objetivos propostos por este trabalho realizou-se aplicação de questionárioseguido de entrevista com os idosos/ alunos da Instituição escolhida. Vale salientar que a pesquisa foi realizada num clima de harmonia e percebeu-se alegria dos participantes em contribuir com o referido trabalho. 2. A NOVA FACE DA VELHICE De acordo com o censo do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística realizado em 2010 a estimativa de crescimento da população com 65 anos ou mais, entre os anos de 1991 a 2010 passou de 4,8% para 7,4%. Sendo que no Nordeste a população é ainda jovem, porém com o controle de natalidade aumentando a tendência é de que a proporção de idosos aumente. Em decorrência do crescimento da população idosa, percebeu-se um avanço da ciência em relação à velhice contribuindo e muito para a melhoria da qualidade de vida para as pessoas que adentram esta fase. Na virada do século a expectativa de vida se ampliou de 50 para 80/90 anos; isso significa que podemos viver 1/3 a mais. Daí, o estímulo para buscar formas de aproveitamento deste tempo de vida. Portanto, vemos os idosos de aproximadamente 70/90 anos nas academias, universidades, espaços culturais, excursões, nos chamados clubes da Melhor idade e nos trabalhos voluntários. Comprovadamente aqui está o foco deste trabalho – a nova face da velhice. Com índice de natalidade cada vez mais baixo, os avanços na área de medicina e da tecnologia e ainda a crescente preocupação com a qualidade de vida, as pessoas que envelhecem estão atingindo idades próximas aos 100 anos. É possível abordar o envelhecimento sob diversos enfoques, além do cronológico: • Biológico: é o processo gradual e progressivo que atinge todos os seres vivos; • Psicossocial: acontece quando o indivíduo apre- senta modificações afetivas e cognitivas, interfe- rindo nas suas relações com os outros; • Funcional: ocorre quando a pessoa necessita de ajuda para desempenhar atividades básicas; • Sócio-econômico: acontece por meio de mu- danças decorrentes da aposentadoria. Considerando os estudos hoje realizados sobre o futuro dos longevos na esfera mundial e particular- mente no Brasil, podemos observar que a melhoria da qualidade de vida do idoso, apesar do preconceito, discriminação e isolamento da sociedade para com o mesmo, e mais ainda, da velhice ser vista como etapa de vida permeada de doenças, fracassos e peso social percebemos que existe hoje um esfor- ço da sociedade, dos profissionais de saúde e dos próprios longevos, para rever este quadro e oferecer uma melhor qualidade de vida a essa população. Existe um movimento de sensibilização por parte da sociedade para tornar o idoso mais participativo, o que justifica o presente trabalho. Com essa nova visão, criou-se as políticas públicas dirigidas a esta parcela da população que contribui consideravelmente Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 11 para o envelhecimento exitoso. 3. ALGUNS MITOS SOBRE A VELHICE Velhice e Enfermidade companheiras fiéis – Mito! É bem verdade que de acordo com o que ficamos mais velhos nosso sistema imunológico fica mais fragilizado, porém isso não quer dizer doença. Atualmente grande parte população da melhor idade pratica exercícios, faz acompanhamentos com es- pecialistas e participa de algum grupo de atividades sociais. Os idosos ficam melhor em isolamento – Mito! Não se pode generalizar essa informação. Na maioria das vezes idosos preferem sentir-se úteis e estando em convívio direto com seus familiares e amigos. Alguns acabam se distanciando por conta dos pre- conceitos da sociedade, muito contrário ao que se pensa, essas pessoas não querem e nem devem sentar numa cadeira de balanço esperando sabe lá o que. A vida está aí pra ser vivida. Idosos não são produtivos – Mito! Hoje o maior exemplo que temos são de pessoas que se aposentam por tempo de trabalho, idade, tempo de contribuição e continuam trabalhando e produzindo. Criatividade e sexo não existem depois dos 60 – Mito! Basta ir a uma Faculdade, ou instituição de cursos técnicos para descobrir que se trata de um mito. Fora os governantes de muitos países e grandes empresas. E quem foi que disse que o sexo ficou para os jovens? Alguns estudos comprovaram que as pessoas da melhor idade têm condições de ter uma vida sexual ativa, assim elas se permitam. 4. CONQUISTAS PARA VIVER MELHOR 4.1 ESTATUTO DO IDOSO Indubitavelmente, a aprovação do Estatuto do Ido- so foi um avanço para o sistema legal brasileiro. A Constituição Federal de 1988 em seu Capítulo VII, Título VIII (Ordem Social), nos arts. 229 e 230, versa sobre alguns princípios e direitos assegurados aos idosos. Os artigos expõem que o filho tem o dever de ajudar e amparar o pai na velhice, enfermidade ou carência e que é um direito do idoso a participação na comunidade, a dignidade humana e o bem-estar. Regras mais específicas foram, então, criadas para regulamentar as leis infra-constitucionais, sempre se- guindo os princípios expostos no texto constitucional. Positivar um Direito é sempre proporcionar benefícios à sociedade, é um avanço, pois poder-se-á utilizar a nova lei como instrumento para validar reivindicações. O Estatuto do Idoso apresenta um campo fértil e estimulante para que a sociedade se mobilize e exija efetivação das Lei em benefício do idoso. Pensando nisto, é que nos propomos a abordar as principais garantias asseguradas pelo Estatuto do Idoso. É considerada idosa a pessoa que tem idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. A família, a comunidade e o Poder Público têm o dever de garantir ao idoso, com absoluta prioridade, os direitos assegurados à pessoa humana. Entende-se por garantia à prioridade: • A preferência na formulação de políticas sociais; • O privilégio para os idosos na destinação de recursos públicos; • A viabilização de formas eficazes de convívio, ocupação e participação dos mais jovens com os idosos; • A prioridade no atendimento público e privado • A manutenção do idoso com a sua própria família; • O estabelecimento de mecanismos que escla- reçam à população o que é o envelhecimento. • Garantia de acesso à rede saúde e à assis- tência social. 4.2 CARTEIRA DO IDOSO A Carteira do Idoso é um instrumento que possibilita o acesso à gratuidade e ao desconto em passagens interestaduais em ônibus, trens e barcos, aos idosos de 60 anos ou mais, com renda individual mensal de até dois salários mínimos, e que não possuem qualquer comprovante de renda (Carteira de Trabalho atualizada; contracheque ou documento expedido pelo empregador; carnê de pagamento do INSS; extrato de pagamento de aposentadoria ou benefício, como o BPC ou outro regime de previdência). A Carteira é impressa pela Secretaria de Assistência Social do município, mas para recebê-la, o idoso deve estar inscrito no CADÚNICO. Lembramos, ainda, a conquista da prioridade em filas, passe livre em transportes coletivos, vagas prioritárias em estacionamentos e 50% nas entradas de cinemas, teatro e demais locais de apresentações culturais. 5. OBJETIVOS Constituem os objetos deste estudo: Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 112 5.1 GERAL Analisar a contribuição das atividades promovidas para o idoso pelo Programa de Atenção Integral ao Idoso do Estado do Ceará - PAI, na promoção da qualidade de vida dos participantes do curso de Me- mória Ativa. 5.2 ESPECÍFICOS: • Analisar o estilo de vida dos idosos hoje e quais fatores os motivam a assumirem uma nova postura comportamental, considerando suas limitações e suas possibilidades. • Refletir sobre as representações do velho de ontem e de hoje, levando em consideração o seu estilo de vida. • Conhecer o que motiva o idoso a ter interes- se em participar de atividades socioeducativas e culturais. • Conhecer as expectativas e aspirações do idoso em relação ao futuro. 6. JUSTIFICATIVA A escolha pelo tema deste estudo deu-se pele relevância que o processo de envelhecimento bem sucedido tem assumido na sociedadenos dias de hoje. Fala-se em Melhor idade, Idade Dourada, Feliz idade e tantos outros títulos que venham a suavizar o impacto da velhice nos seres humanos. A velhice é uma fase da vida permeada de medos, frustrações, ansiedade e tantas outras ocorrências que dificultam a aceitação. Daí, ter-se conteúdo para desenvolver um trabalho de estudo e reflexão com um rico material para seu embasamento. Suscitando o interesse por discorrer sobre o tema. A opção por aplicar a pesquisa no Programa de Aten- ção Integral ao Idoso fundamenta-se na variedade existente de cursos e atividades oferecidas por esta instituição a seus associados, possibilitando um rico trabalho de investigação e observação sobre a ma- neira de como vivem os idosos em nossa sociedade, foco da presente pesquisa. A pesquisa é orientada, portanto, pela questão: Qual o fator motivacional que leva o idoso associado ao PAI a participar das atividades oferecidas por este órgão? O interesse pelo tema e a realização da pesquisa na instituição mencionada também se justifica pelo reconhecimento de demanda por serviços que pro- movem e facilitam a vida pessoa idosa, para que continuem com força, energia e vitalidade por um maior período de tempo e por ser esta instituição reconhecida pela prestação exemplar dos serviços oferecidos, não só pelos envolvidos na pesquisa, mas pelos órgãos de apoio e atenção à saúde e qualidade de vida da pessoa idosa. 7. METODOLOGIA A metodologia para o desenvolvimento deste trabalho está organizada de maneira a descrever o caminho adotado para a sua realização, contemplado a partir do levantamento da pesquisa bibliográfica acerca do envelhecimento na atualidade. Com base na pesquisa elaborou-se um questionário a ser res- pondido por trinta idosos participantes do curso de Memória Ativa do Programa de Atenção Integral ao Aposentado do Estado - PAI com o intuito de conhe- cer a maneira como administram suas vidas e como ocupam seu dia. O modelo de pesquisa usado foi de natureza qualitativa constando do referido questionário 10 (dez) perguntas. Após aplicação procedeu-se a análise interpretativa dos resultados e a observação de dados escritos pelos respondentes. Este trabalho é composto de três partes, a saber: levantamento da pesquisa bibliográfica sobre o tema trabalhado, aplicação de questionários e análise dos resultados obtidos. No levantamento da literatura, realizou-se um amplo leque de informações sobre o tema através de lei- turas em livros e artigos com foco no perfil do idoso da atualidade. Constando, também, de informações advindas de pesquisas na internet. O resultado obtido nesta etapa compõe a base teórica deste trabalho e orientou a construção do formulário de pesquisa. Para a realização do levantamento de dados, optou-se pela aplicação de questionário de entrevista como instrumento de pesquisa mais adequado, visto que o estudo pretendia conhecer o perfil, a motivação e as dificuldades por que passam os respondentes. O questionário foi elaborado tomando por base os aspectos importantes a serem estudados e que foram levantados no estudo bibliográfico. Tendo em vista o objetivo da pesquisa, considerou-se o número de respondentes e o resultado da pesquisa suficiente para o propósito do estudo. 8. RESULTADOS Este relatório apresenta os resultados das entre- vistas realizadas para conhecer o perfil, a motivação e as limitações a que são submetidos os idosos hoje. Para a realização deste estudo foi utilizado o méto- do de pesquisa qualitativa, através da aplicação de questionários. O público-alvo dessa pesquisa foram trinta idosos/alunos do curso de memória ativa da Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 13 instituição acima mencionada. Através das entrevistas, foram observadas as seguintes características pertinentes ao perfil dos participantes: • Idade entre 60 e 92 anos • Estado Civil: na maioria casados • Sexo predominante: feminino • Grau de escolaridade: Superior • Situação de moradia: maioria mora com marido e filhos • Renda familiar: Entre 3 e 5 salários mínimos Percebemos, ainda, que os envelhecentes de hoje, mantêm por mais tempo de vida o interesse por estarem ativos e acreditam que o caminho para melhoria da qualidade de suas vidas passa por de- cisões estrategicamente pensadas e assumidas. Das observações feitas destacamos aqui, alguns depoimentos ilustrativos: 1. “Eu participo de vários grupos da “Melhoridade” para continuar bem”. 2. “Não desisto de meus objetivos. Estou aqui porque me faz bem”. 3. “Escolhi o Curso de Memória para ficar tinindo”. 4. “Estudo memória pra lembrar das coisas do dia a dia”. 5. “Estou aqui no PAI para que no futuro não ser acometido de Alzheimer”. 6. “Gosto muito da convivência com os colegas e de sair de casa”. 7. “Ocupo meu dia conversando com os amigos e fazendo os afazeres domésticos”. 8. “Agora na velhice me sinto ainda realizado por estar ativo e independente”. 9. “O curso de memória melhora a minha vida. Meu raciocínio anda um pouco lento, às vezes me sinto confuso. ” 9. CONCLUSÃO De acordo com a pesquisa realizada o objetivo do trabalho foi atingido. Entende-se que se faz ne- cessário um novo enfoque sobre a velhice. Mesmo com todas as dificuldades, a velhice deve ser vista não como o começo do fim, mas como um período de grandes transformações. Envelhecer assusta se não estamos preparados para as dificuldades des- ta fase da vida. Por outro lado, o envelhecimento bem sucedido consiste em estar satisfeito com a vida atual e ter expectativas positivas em relação ao futuro, considerando que é uma fase da vida em que a pessoa está mais exposta a riscos e crises de natureza biológica, psicológica e social, aspec- tos estes, claramente observados por ocasião da pesquisa realizada. “A doença no idoso não é uma consequência inevitável do envelhecimento, mas um processo patológico com fatores de risco identificá- veis”. Dr. Joaci Medeiros (2001). Nas entrevistas foi possível perceber o quanto as pessoas que envelhecem hoje tendem a procurar por novas razões para tocarem suas vidas com entusias- mo, buscando os recursos disponíveis na sociedade como facilitador do envelhecimento exitoso. “Não há alegria maior que vir aqui participar dos cursos. Eu faço dança sênior, informática e memória ativa. Tenho quase todos os dias da semana ocupados, ninguém me segura” frase dita com muito entusiasmo por uma idosa de 92 anos, lúcida e relativamente independente. Estamos convencidos de que manter o idoso ativo e independente minimiza as tensões e ansiedades dos mesmos, tornando-os preparados para enfrentar o futuro. Diante deste quadro, torna-se imperativo ampliar o número de instituições que desenvolvem projetos e promovem à saúde do idoso percebendo-os como seres únicos, em sua totalidade. Essa é a visão ho- lística do ser – corpo, mente e espírito em harmonia, considerando que é da natureza humana o instinto de preservação da vida. É importante destacar o papel do psicólogo enquanto facilitador do processo de envelhecimento ativo, pois ele possibilita a socialização e manutenção deste idoso na sociedade. Dessa forma, conclui-se que manter o idoso ativo e preparado para os desafios próprios desta etapa da vida, significa termos pessoas mais saudáveis, participativas, com menos conflitos e, principalmente, pessoas mais felizes. REFERÊNCIAS NEGREIROS, T. C. G. A nova velhice: uma visão multidisciplinar. Editora Revinter, Rio de Jeneiro – 2001. MARTINS, I. M. Felicidade na Velhice. Editora Paulinas, São Pulo – 2003. OLIVEIRA, R. C. S. Terceira Idade: do repen- sar dos limites aos sonhos possíveis. Editora Paulinas, São Paulo – 1999. LORDA, C. R. Recreação na terceira Idade. Editora Sprint, Rio de Janeiro – 1998. 2ª edi- Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 114 ção. CASTRO, O. P. et al. Envelhecer um encontro inesperado? Realidades e perspectivasna tra- jetória do envelhescente. Editora Notadez, Rio Grande do Sul – 2001. Estatuto Nacional do Idoso, Editora INESP, Fortaleza – 2011. A BRINCADEIRA NO AUTISMO: CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA HISTÓRICO - CULTURAL DE VIGOTSKI 10.37885/200400172 Palavras-chave: Autismo; Brincadeira; Teoria Histórico-Cul- tural; Desenvolvimento. RESUMO Este trabalho é resultado de um diálogo entre os autores para buscar novas compreensões sobre as particularidades da brincadeira no Transtorno do Espectro Autista (TEA) a partir das contribuições de Vigotski, principalmente de seus escritos sobre a brincadeira e o desenvolvimento. O objetivo, portanto, foi de investigar as potencialidades de desenvolvimento em uma criança com TEA, a partir da análise da qualidade de sua brincadeira, incorporando os conceitos vigotskianos. Para tanto, utilizamos como material vídeos de sessões lúdicas nas quais foi realizada a aplicação do instrumento PROTEA-R com uma criança de 6 anos com diagnóstico prévio de TEA, buscando identificar na relação da criança com os brinquedos e com a avaliadora as dinâmicas descritas por Vigotski. Dessa forma, foi possível identificar momentos nos quais a criança estabelecia relações significativas com os brinquedos apresentados pela avaliadora, bem como estabelecer contato operando com os significados dos objetos, ainda que com apoio, demonstrando as potencialidades de operar com signos e símbolos. CAPÍTULO 2 Ricardo Colombo Gallina UFGD Regina Basso Zanon UFGD Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 116 1. INTRODUÇÃO 1.1 A BRINCADEIRA COMO ATIVI- DADE DOMINANTE NO DESENVOL- VIMENTO DA CRIANÇA A partir da perspectiva histórico-cultural, cuja base filosófica é o materialismo histórico de Marx e Engels, o ser humano caracteriza-se por seu devir histórico em relação com a cultura, isto é um ser que não “nasce pronto”, mas nasce com certas potencialida- des legadas a ele pela história evolutiva da espécie, que, no contato com o mundo externo, natural e social, age ativamente transformando a natureza e a si mesmo. Compreende-se que o ser humano sempre tem “diante de si uma natureza histórica e uma história natural” (MARX; ENGELS, 2007, p. 31), mobilizando-o no sentido de agir em consonân- cia com as condições de cada situação posta pela objetividade, pelo mundo externo. Dessa forma, as potencialidades ditas naturais, denominadas de fun- ções elementares, são mobilizadas e “desafiadas” ao se confrontarem com situações propostas pela sua relação com a natureza. Vigotski nos demonstra que o trabalho guarda uma relação essencial com o processo de devir humano na cultura, isto é, com o processo de tornar-se humano. Segundo o autor, os instrumentos de trabalho, cuja finalidade é controlar um processo de metabolismo entre homem e natureza, são meios artificiais criados pelo ser humano para controlar um objeto externo. De forma análoga, os instrumentos psicológicos são entendidos como meios artificiais cuja finalidade é controlar os processos mentais do próprio ser humano (de si mesmo ou de outros), ou seja, são criados pelo ser humano para controlar seus próprios processos psíquicos. (VIGOTSKI, 1999) Portanto, o processo de desenvolvimento do ser humano é o processo de apropriação e internalização desses meios auxiliares criados culturalmente, os chamados signos culturais. Aqui, é preciso fazer uma delimitação, caracterizando o que é um signo e como este se expressa e influen- cia no desenvolvimento psicológico. Um signo é um meio auxiliar de algum recurso cultural, ou seja, de uma relação ou objeto externo que é apresentada de maneira significativa pelos outros à criança, cuja inclusão no processo de comportamento “forma um centro estrutural e funcional, que determina toda a composição da operação e a importância relativa de cada processo separado.” (VYGOTSKY, 1994, p. 61) Tendo esse pressuposto da inclusão do signo no processo de comportamento como o determinante do comportamento cultural do ser humano, Vygotsky (1994, p. 58) define o desenvolvimento cultural como o conjunto de operações que se sucedem histori- camente, ditadas pelas “formas de comportamento baseadas no uso de signos como meio de controlar qualquer operação psicológica em particular”. Esse domínio de signos, no entanto, não constitui o único fator no desenvolvimento. Para o autor, “apenas em um certo nível de desenvolvimento interno do orga- nismo torna-se possível dominar qualquer método cultural [de controle do comportamento]”. Assim, é necessário um nível de maturação para que o de- senvolvimento cultural entre em ação. No entanto, a relação entre os dois fatores nesse tipo de desenvolvimento é alterada materialmente. A parte ativa é desem- penhada pelo organismo que domina os meios de comportamento cultural apresentados pelo ambiente. A matu- ração orgânica desempenha um papel de condição, ao invés de motivo do pro- cesso de desenvolvimento. (VYGOT- SKY, 1994, p. 64) Nesse momento, passaremos para a análise da brincadeira como atividade dominante na idade pré-escolar e seu papel fundamental no desenvol- vimento da criança. Isso porque o desenvolvimento, fundado no domínio dos meios culturais de controle do comportamento, vai se expressar na criança na brincadeira. Por isso, ela é entendida como sendo a principal forma de atividade para este período do desenvolvimento, a partir da qual o desenvolvimento cultural se efetiva na criança. Na brincadeira, essencialmente, a criança cria uma situação imaginária, e essa característica é o que separa a brincadeira de outros tipos de atividade da criança. Por outro lado, a brincadeira é também uma situação com regras. Assim, podemos dizer que a situação imaginária já contém um conjunto de regras a serem seguidas. A situação imaginária pode condensar em si certos papeis sociais (no caso da brincadeira de faz de conta), limitações de objeto (um cavalo não pode voar), etc, e essas contingências próprias da brincadeira são as regras as quais a criança se submete. Assim, a essência dessa situação imaginária é que a criança submete sua atividade, adaptando e controlando seu comportamento de acordo com as regras da brincadeira. Mas, para que essas dinâmicas próprias da brincadeira se efetivem, existem dois processos fundamentais que são condições necessárias, são eles: 1) a sepa- ração da ideia do objeto e 2) o controle dos próprios impulsos. No primeiro caso, o que ocorre é o que Vigotski (2008, p. 26) chamou de “separação entre o campo visual e o semântico”. Na criança até certa idade, existe uma união efetiva entre esses dois campos, o que na prática significa que a criança é Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 17 incapaz de descolar a ideia da situação ou do objeto. Um cavalo é e só pode ser aquele animal grande de quatro patas, com pelos, rabo e cascos, e não pode ser um cabo de vassoura. Isso determina, também, o que o autor denomina como “amarras situacionais”, que derivam de uma característica fundamental de certo estágio no desenvolvimento, quando percepção, afeto e motricidade estão unidos, ou seja, a percepção é “um momento inicial da reação motora-afetiva”, onde “qualquer percepção é um estímulo para a atividade”. (VIGOTSKI, 2008, p. 29) No entanto, na brincadeira ocorre um salto quali- tativo nessa dinâmica: a criança aprende a agir de maneira descolada daquilo que vê, e essa unidade perceptivo-motora-afetiva é dissolvida, e “a criança aprende a agir em função do que tem em mente e não do que vê” ou seja, os objetos e as situações deslocam-se da centralidade de impulsionar direta e/ou necessariamente uma ação da criança, para uma simples condição a partir da qual uma ação pode ou não ser desencadeada. Dito de outro modo, A ação na situação que não é vista, mas somente pensada, a ação num campo imaginário, numa situação ima- ginária, leva a criança a aprender a agir não apenas com base na sua percep-ção direta do objeto ou na situação que atua diretamente sobre ela, mas com base no significado dessa situação (VI- GOTSKI, 2008, p. 29- 30) Essa separação da ideia do objeto, no entanto, é um processo longo, do qual a brincadeira faz parte e é uma forma de transição. A criança, até certo ponto, é incapaz de separar a ideia do objeto. Essa capacidade desenvolve-se, antes, usando um ob- jeto externo como meio auxiliar para operar essa separação. Dessa forma, para idealizar e pensar sobre um cavalo, a criança apoia-se em um cabo de vassoura e projeta neste o cavalo, pois nele pode montar, segurar no cabo como se fosse as rédeas, pular simulando uma cavalgada, etc, ou seja, utili- za o objeto para objetivar suas ações. Se, antes, o que determinava o curso de ação da criança era o próprio objeto, agora o objeto torna-se apenas uma condição que pode desencadear um curso de ação, mas a criança opera não diretamente com o objeto, e sim com seu sentido. No entanto, como essa ainda é uma forma de transição, não é qualquer objeto que pode ser um cavalo, porque a brincadeira ainda não é uma operação simbólica. Os objetos passam de dominantes para subordinados no curso de ação, mas ainda são importantes na relação da criança com o mundo e sua brincadeira (utiliza-se o cabo de vassoura porque nele é possível montar, segurar o cabo como se fosse as rédeas, pular simulando uma cavalgada, etc). A ação da criança na brincadeira opera com os significados, mas não completamente separados do objeto. Isso deriva, essencialmente, da passagem de uma forma de percepção para outra, radicalmente dife- rente. A estrutura da percepção da criança muda para a percepção real, aquela que não percebe no mundo apenas cores, formas e movimentos, mas percebe e se relaciona com objetos concretos do- tados de significados e sentidos. Assim, “vejo não algo redondo, negro com dois ponteiros, mas vejo o relógio e posso separar uma coisa da outra.” (VI- GOTSKI, 2008, p. 31) No segundo caso, a criança aprende a conter o im- pulso de agir imediatamente, conseguindo contro- lar seu próprio comportamento, submetendo-o às regras da situação imaginária da brincadeira. Essa capacidade desenvolvida na brincadeira não deve ser tomada como um aspecto separado da função exposta anteriormente, visto que a capacidade de conter o impulso de agir imediatamente depende da capacidade de operar com os sentidos e significados dos objetos, ou da separação do campo visual e do semântico. A partir da perspectiva histórico-cultural, compreende- -se que na brincadeira a criança pode se emancipar das situações imediato-concretas e agir de maneira imaginativa, assimilando suas vivências, ao mesmo tempo em que as retoma de forma criativa. Essa compreensão de que a brincadeira não é uma sim- ples reprodução da realidade conhecida, tratando-se de uma função representativa e não funcional ou concreta, é particularmente importante para a re- flexão acerca do desenvolvimento de crianças que apresentam peculiaridades na brincadeira, como é o caso das com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Crianças com esse diagnóstico costumam apresentar padrões atípicos de relação com objetos e com outras pessoas em contextos de brincadeira, sendo a dificuldade na brincadeira imaginativa (ou simbólica) um dos comprometimentos comuns das crianças com TEA. 1.2 O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA): CARACTERIZAÇÃO O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é atualmente definido como uma condição neurodesenvolvimen- tal, com início precoce e de etiologias múltiplas, ca- racterizado por comprometimentos persistentes na comunicação social, bem como pela presença de comportamentos, atividades e interesses restritos e repetitivos, levando a prejuízos sociais, ocupacionais e outros (APA, 2014). No que concerne à brincadeira Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 118 no TEA, estudos demonstram que a relação esta- belecida entre uma criança com TEA e um objeto muitas vezes é destituída de significado, podendo o mesmo ser utilizado como parte dos movimentos estereotipados, como alvo de fixação/interesse res- trito ou ainda como parte de rituais. Uso repetitivo de objetos, pouca imaginação e flexibilidade, hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais (dos ob- jetos e/ou do ambiente) também são características diagnósticas do TEA que podem igualmente interferir na qualidade das brincadeiras (APA, 2014). Cabe ressaltar que indivíduos com TEA costumam apre- sentar dificuldades na reciprocidade socioemocional (por exemplo, falha nas trocas de turnos conversa- cionais; compartilhamento reduzido de interesses e emoções) e nos comportamentos comunicativos não verbais usados para iniciar e regular as interações sociais (por exemplo, contato visual, gestos e ex- pressões faciais) (BOSA; ZANON, 2016). Tendo em vista que a brincadeira, em especial a imaginativa, tem natureza e origem social – a criança reelabora as formas humanas de agir a partir de suas condições concretas de vida – destaca-se que as dificuldades sociais características do TEA também influenciam no desenvolvimento da brincadeira destas crianças. Assumindo uma postura baseada no materialismo histórico-dialético, em que os fenômenos são enten- didos como processos em constante movimento e mudança, questionamos o caráter imutável de as- pectos do desenvolvimento infantil e valorizamos as interações sociais estabelecidas em determinados contextos históricos na construção de comportamentos tipicamente humanos. Sendo assim, o objetivo do estudo é investigar potencialidades do desenvolvi- mento de uma criança com TEA a partir da análise da qualidade da sua brincadeira, considerando contextos interativos em especial os mediados por objetos. 2. METODOLOGIA Realizou-se um estudo de caso (YIN, 2001) de uma menina com 6 anos e com o diagnóstico prévio de TEA. A pesquisa consiste em uma análise retrospectiva de uma sessão lúdica videogravada de aplicação do Sistema PROTEA-R (BOSA; SALLES, 2018) no processo de reavaliação da menina. As sessões foram desenvolvidas pela segunda autora do estudo, em contexto de clínica-escola de Psi- cologia. Nesse processo, a pesquisadora inclui-se como elemento que faz parte da situação pesquisada, sem assumir uma posição de observadora/avaliadora neutra. Sendo assim, as suas ações no ambiente e as relações dessas ações com o comportamento infantil também serão materiais de análise. A pesquisa tem caráter transversal e qualitativo, sendo as análises baseadas pelos pressupostos do enfoque microgenético, que se insere no arcabouço teórico da perspectiva histórico- cultural. Foram considera- das também informações oriundas de entrevistas semiestruturadas (de anamnese) realizadas com os pais, conforme preconizado pelo Sistema PROTEA-R (BOSA; SALES, 2018). A análise de dados parte de recortes de episódios típicos e atípicos que permitem interpretar o fenômeno de interesse, no caso, a quali- dade da brincadeira da criança, e sua relação com o pesquisador e com os objetos. Busca-se, assim, um relato minucioso dos acontecimentos, considerando indícios, pistas e signos que auxiliem na compreensão de um processo em curso (BAGAROLLO; RIBEIRO; PANHOCA, 2013). O caso foi selecionado de um banco de dados de uma pesquisa coordenada pela segunda autora que foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa (CEP) institucional sob protocolo número 27134314.8.0000.5334, e realizada conforme a resolução 196/96 e 510/16. 3. RESULTADOS E DISCUSSÃO 3.1 MOTIVO DO ENCAMINHAMENTO INICIAL E PRINCIPAIS QUEIXAS A busca inicial dos pais pelo serviço se deu de forma espontânea e foi decorrente de um diagnóstico prévio de Transtorno do Espectro Autista da filha, denomi- nada aqui de J. Entre as queixas iniciais trazidas pelos cuidadores estiveram hipersensibilidade a sons, peculiaridades no desenvolvimento da linguagem e dificuldades no relacionamento social. Deste modo, o motivo principalda primeira avaliação foi investigar possíveis comprometimentos nas áreas da comuni- cação, interação social, qualidade da brincadeira e ocorrência de comportamentos repetitivos/estereo- tipados, para fins de esclarecimento dos aspectos comportamentais do diagnóstico. A avaliação buscou também identificar aspectos desenvolvimentais pre- servados (potencialidades), nas áreas investigadas e o adequado encaminhamento aos profissionais da área. J. foi avaliada por equipe interdisciplinar quando tinha 3 anos e 10 meses e reavaliada quando tinha 5 e 6 anos. Em todos os processos avaliativos e momentos foram identificados comportamentos característicos do diagnóstico de TEA. Para fins do presente estudo, será analisada uma sessão de reavaliação, quando a menina tinha 5 anos, na qual foi administrado o sistema PROTEA-R. Ressalta-se que o PROTEA-R é um instrumento de observação, composto por 17 itens, que se destina a avaliar a qualidade e a frequência de comportamentos característicos do TEA (isto é, comprometimentos sociocomunicativos e presença de comportamentos Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 19 repetitivos e estereotipados) em crianças pré-escolares com suspeita do transtorno, especialmente aquelas não verbais, a partir de situações de brincadeira livre e estruturadas. Destaca-se que a administração do protocolo requer um treinamento prévio, sendo uma das autoras do presente estudo capacitada para trei- nar a equipe para a sua administração. 3.2 IMPRESSÕES GERAIS TRANSMI- TIDAS E RESULTADOS DA SESSÃO LÚDICA – PROTEA-R A avaliação dos atos sociocomunicativos (Área I do PROTEA-R) foi realizada em ambiente de brincadeira, em contexto livre e dirigido, por meio de observação da exploração dos brinquedos e dos comportamentos sociocomunicativos. Tais comportamentos foram ava- liados com base nos seguintes eixos: 1) vocalizações, contato visual e gestos (isolados ou coordenados entre si); 2) iniciativas ou respostas (reciprocidade e espontaneidade); e 3) tipo de contexto (compartilhar ou buscar assistência). Na sessão reavaliação, J. apresentou tanto iniciativa como resposta de atenção compartilhada, sendo a primeira de frequência rara e a segunda ocasional, ambas em situações restritas e/ou repetitivas. Por exemplo, ela entregou a melancia de pelúcia na mão da avaliadora, olhando em sua direção, assim como comeu a “comidinha” oferecida por ela, olhando nos seus olhos. Vale registrar que, na maioria das vezes, J. pareceu mais interessada no objeto do que na interação. J. apresentou comportamento de imitação ao dar um tapa no brinquedo de silicone, a fim de ligar a luz, após a avaliadora lhe mostrar como operá-lo. Porém, ela também apresentou, ocasionalmente, comportamentos de emulação, como quando operou o trem e a máquina fotográfica de forma repetitiva devido ao interesse sensorial. Não foram observados durante a sessão comportamentos de engajamento social não mediado por objetos. J. apresentou sorriso difuso quando viu as bolhas de sabão, por exemplo. A frequência desse compor- tamento foi rara. Ela buscou contato físico e afetivo com a avaliadora (beijando-a durante a brincadeira com as bolhas), e aceitou contato da avaliadora na maioria das vezes, retraindo-se uma única vez (ti- rando o braço) quando a avaliadora lhe fez carinho. Em relação à busca de assistência, a menina o fez de maneira frequente; contudo, sem coordenar con- tato visual e gestos – como, por exemplo, ao puxar a avaliadora pela mão, sem olhar, vocalizando para pedir outro brinquedo que estava em cima do armário. No que diz respeito ao comportamento de protesto/ retraimento, J. apresentou de forma branda, mas frequente – como quando deu as costas durante a brincadeira livre, retraiu-se e deu pausas na intera- ção durante a sessão. É evidente que os traços de natureza comunicativa e de operação/ação com os sentidos (i.e. uso instrumental do adulto) tem suas particularidades dentro da natureza do TEA e dos sintomas da criança em reavaliação, porém os exem- plos mostram também potencialidades comunicativas e significativas emergentes, e portanto a capacida- de latente de internalização de funções cindidas, que se mostram na relação entre J. e a avaliadora. Por exemplo, quando J. pega um pote e entrega à avaliadora, sem olhar, ao passo que esta pega o pote e diz “tem um au-au. Olha. Ele faz au-au.”, e entrega novamente o pote para J. A menina tenta abrir o pote para pegar o cachorro e, ao perceber que não consegue sozinha, o estende de volta para a avaliadora e diz “Au-au”. No que se refere a relação com os objetos / brincadeira (Área II do PROTEA-R), J. operou mais da metade dos brinquedos dispostos na sessão, de formas va- riadas, ocorrendo algumas explorações atípicas e/ou repetitivas, como ao colocar vários objetos na boca e cheirá-los. Apresentou boa coordenação visomotora durante a reavaliação. J. operou alguns brinquedos (menos de 1/3) de acordo com a sua função (ex: animal de silicone, máquina fotográfica e bola que produz som e movimento), além de apresentar indí- cios de brincadeira simbólica, porém sem conexão de episódios e de frequência rara. Por exemplo, ela deu água para um cachorro em uma xícara apre- sentada pela avaliadora, produzindo gestos e sons apropriados à situação, e o fez fugir do animal de silicone, em uma espécie de pega-pega. Nesse momento, observou-se que J. apropria-se de um objeto apresentado pela avaliadora e o utiliza funcionalmente, operando com seus sentidos dentro da brincadeira, depois da avaliadora apresenta-lo com palavras e relações que aludem à seu sentido próprio como objetos culturais – por exemplo, a xí- cara como um objeto no qual se coloca o chá e as pessoas o bebem, criando a relação da xícara com os bonecos, e ainda trazendo para a atividade na qual a criança estava interessada, a partir do cachorro, que ela estava brincando no momento, e para o qual a avaliadora “oferece o chá” que estava na xícara. Assim, a criança utiliza as mediações criadas pela avaliadora como uma ponte entre o que ela realiza sozinha e o que pode realizar no futuro, mas no mo- mento precisa de ajuda – a própria definição da ZDI. Ao longo da sessão lúdica emergiram vários momentos nos quais J. mostrou ter as potencialidades para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, principalmente se tomarmos como pressuposto a lei da internalização formulada por Vigotski, segundo a qual toda função psicológica superior aparece em Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 120 cena duas vezes: primeiro no plano social, como como categoria interpsicológica, depois no plano in- dividual-pessoal, como categoria intrapsicológica. Toda função psicológica superior era, antes de se internalizar e controlar o comportamento do próprio ser humano, uma relação social, uma forma de co- municação entre dois ou mais indivíduos. O que realmente suscita interesse a nossos olhos: a conclusão de que, em um primeiro momento, toda função su- perior estava dividida entre duas pesso- as, constituía um processo psicológico mútuo. [...] O estudo da gênese desses processos mostra que qualquer proces- so volitivo é inicialmente social, coleti- vo, interpsicológico. Isto se relaciona com o fato de que a criança domina a atenção de outros ou, pelo contrá- rio, começa a utilizar consigo mesma os meios e formas de comportamen- to que, no princípio, eram coletivos. A mãe chama a atenção da criança para algo: esta, seguindo suas indica- ções, dirige sua atenção para o que ela mostra: aqui nos encontramos sempre ante duas funções separadas. Depois, começa a ser a própria criança quem dirige sua atenção e desempenha em relação a si mesma o papel de mãe, surge nela um complicado sistema de funções, que antes estavam cindidas. Um indivíduo ordena e outro cumpre. O indivíduo ordena a si mesmo e ele mes- mo cumpre. (VIGOTSKI, 1999b, p. 113) J., em vários momentos,criou um engajamento com a avaliadora no qual mobilizou sua atividade em direção a alguns objetivos de natureza comunica- tiva e/ou exploratória com os objetos que lhe eram apresentados, mostrando que tem potencialidade de operar com os sentidos e significados dos objetos, dando indícios de entrada na brincadeira com situação imaginativa, aquela que possibilita o desenvolvimento da cisão entre o campo visual e o campo semântico, entrando no mundo dos signos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do caso estudado e da particularidade do autismo, ficam evidentes as dinâmicas apresen- tadas por Vigotski na brincadeira como uma fonte de desenvolvimento na idade pré-escolar e na infância. Apesar de ter características próprias do TEA, J. apresentou potencialidades típicas do desenvolvi- mento na situação de brincadeira, operando com os sentidos dos objetos, propiciando um salto no desenvolvimento a partir da ZDI, controlando o próprio comportamento submetendo-o às regras daquela brincadeira, etc. Embora, é claro, cada caso de TEA tem suas particularidades, suas potencialidades de desenvolvimento e seus comprometimentos, mas optamos por valorizar aquilo que a criança tem po- tencialidade de desenvolver, em detrimento daquilo que está comprometido. Por fim, destaca-se que a análise da sessão do PRO- TEA-R permitiu identificar áreas desenvolvimentais preservadas e as potencialidades da menina, que podem ser endereçadas em intervenções a fim de que, com o tempo, a qualidade das brincadeiras en- volvendo objetos (cenas de atenção compartilhada e brincadeira simbólica) sejam expandidas, envolvendo troca de turnos, diferentes contextos e sequencias. Ainda, recomenda-se que a linguagem oral seja estimulada, a fim de que a menina compreenda a importância da fala (coordenada com outros canais) na comunicação. Vale dizer que o período restrito destinado à análise de dados (uma única sessão de reavaliação), pode ter penalizado a criança no sentido de não ter dado tempo para J. manifestar todo o seu repertório social e comunicativo. REFERÊNCIAS AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. BAGAROLLO, M. F.; RIBEIRO, V. V.; PANHO- CA, I. O brincar de uma criança autista sob a ótica da perspectiva histórico-cultural. Rev. bras. educ. espec., Marília, v. 19, n. 1, p. 107-120, Mar. 2013. BOSA, C. A.; ZANON, R. B. Psicodiagnóstico e transtorno do espectro autista. In: HUTZ, C. S. et al. (Org.) Psicodiagnóstico. Porto Alegre: Artmed, 2016. p. 308-322. BOSA, C. A.; SALLES, J. F. Sistema PROTEA- -R de avaliação da suspeita do transtorno do Espectro Autista. 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Considerando esta importância conceitual para a prática clínica, e que atualmente a psicologia encontra-se inserida no contexto de atendimentos no sistema prisional, considera- se relevante levantar a hipótese sobre a possível existência de um tipo de contratransferência específica nesse caso. Para tanto, descreve-se como ocorre o trabalho de um psicólogo em uma penitenciária. Em seguida são expostos pontos que mostram a especificidade da contratransferência no contexto prisional, expondo suas particularidades, características e possível manejo. Entre essas características, tem-se que, devido a todos os atendimentos serem escoltados por um agente penitenciário, as projeções e introjeções do psicólogo incidem sobre esses dois personagens, saindo, então, da tradicional relação dual que ocorre nos consultórios particulares, para uma relação triangular. Contratransferencialmente, o escoltante e a estrutura da segurança pública que gerencia a penitenciária tornam-se depositários da projeção do superego, pressionando o psicólogo, de forma inconsciente; e o paciente-apenado-criminoso torna-se depositário da projeção do id do profissional, que se verá defrontado a seu lado instintivo primitivo; restando ele próprio como ego-mediador entre esses dois eixos contratransferenciais.Manejar tal contratransferência torna-se de suma importância em uma instituição muitas vezes hostil à prática psicológica e na qual o sofrimento humano se revela de forma dramaticamente crua. CAPÍTULO 3 Denis Mantovani UEM/PR Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 23 1. INTRODUÇÃO O estudo da criminalidade, do encarceramen- to e das consequências dele na saúde mental dos apenados tem aguçado vários questionamentos na contemporaneidade. Questiona-se qual caminho seria o mais justo para lidar com alguém que rompe os limites éticos e morais mais caros e estruturantes à nossa sociedade. Projeções futuras e políticas públicas são pensadas caso haja continuidade do modelo de aprisionamento atual, assim como se bus- ca identificar a causa de o que leva uma pessoa a exterminar outra, ou a cometer uma violação sexual - acting-outs puros. Assim, o trabalho do psicólogo nesses locais torna-se desafiador, e para alguns, algo bastante inóspito e árido. Para auxiliar na dissolução desse desafio, traz-se à tona o conceito psicanalítico de contratransferência. Mesmo abordagens díspares e que não guardam relação conceitual com a psicanálise utilizam esse conceito em sua prática psicoterápica, evidenciando seu relevo. A contratransferência tem sido objeto de estudos no campo da psicanálise desde a sua definição por Sigmund Freud, no começo do século XX, sobretudo devido à interferência que ela provoca na prática profissional. A partir disso a subjetividade do profissional passa a ser encarada sob um viés de maior complexidade e torna-se parte ativa do cenário psicólogo - paciente, abandonando a concepção positivista de “cientista da mente” imparcial, neutro e distante, então em voga na psicologia experimental (anterior a Freud) (SCHULTZ, 2004). A contratransferência funciona como um radar sensível às variações do campo relacional, isto é, como uma antena que capta, inconsciente e conscientemente, o que se passa tanto durante a sessão de atendimen- to com o paciente, quanto em relação à instituição em que o profissional desempenha suas atividades.Capta, e, muitas vezes apenas inconscientemente, produz efeitos desta captação. Sendo assim, torna-se indispensável uma análise da contratransferência sob pena de a eficácia da intervenção psicoterapêutica ser comprometida se- veramente por um estímulo alheio à condição mental do paciente. O manejo da contratransferência é de inteira responsabilidade do psicoterapeuta (ETCHE- GOYEN, 2004). Em determinados locais de trabalho, o profissional pode sentir que essas variações de campo - ou perturbações - sejam de tão modo massivas que impactam com relevância no trabalho que ele (pro- fissional) realiza. Considerando que a intervenção do psicólogo se insere em uma relação dialética com seu paciente e com a instituição em que ele trabalha; ou seja, simul- taneamente quando intervém, sua prática também é modificada, produzindo uma nova interpretação; conceitos que ele operaria em um lugar não neces- sariamente ocorreriam da mesma maneira em outro. O sistema prisional é uma instituição com uma repre- sentação social bastante negativa, com um setting peculiar, com internos reclusos portadores de condi- ções psicopatológicas que exigem atenção especial dos psicólogos. É um lugar em que as pulsões (de vida; de morte) apresentam-se em sua forma crua, descritas na história de vida dos pacientes-apenados. Com o número de encarceramentos crescendo a cada ano, foi necessário que a psicologia “entrasse na penitenciária” a fim de tratar das questões de saúde mental dos internos ali custodiados. Este estudo tenta investigar a existência de uma contratransferência específica neste local de trabalho, suas características e possível manejo. Como método de pesquisa qualitativo/compreensivo, a psicanálise tem como objetivo de pesquisa a “apre- ensão e interpretação da relação de significações de fenômenos para os indivíduos e a sociedade” (TURATO, 2003, p. 156-7). A psicanálise enquanto método de investigação do psiquismo humano utiliza o critério evolutivo, onde as manifestações patológicas e não-patológicas são estudadas levando-se em conta as vivências do indi- víduo, suas experiências de gratificação, frustração, privação e suas consequências dentro do aparelho psíquico. A psicanálise, ainda, considera o contex- to em que os fenômenos psíquicos ocorrem. Este contexto se constitui pelas condições biológicas do indivíduo, sua psicodinâmica (como se dá o funcio- namento entre as instâncias psíquicas), e a realidade social e cultural em que ele está inserido - neste caso, particularmente, será a penitenciária. Somente dentro deste contexto fenômenos mentais podem ser analisados (KUSNETZOFF, 1982). Partindo dessa base teórica analisar-se-á a contra- transferência, e como ela se desenvolve no setting penitenciário. Delimitarei como se dá esse setting, usando minhas observações decorrentes do meu cotidiano de psicólogo do sistema prisional. O “setting penitenciário” é bastante diverso do set- ting clínico, descrito detalhadamente na literatura psicanalítica. O setting influencia tanto a própria construção teó- Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 124 rica interna do psicólogo que atende os apenados, quanto à prática em si. “Setting” é definido como um conjunto conceitual que contempla elementos tais como o lugar em que as sessões acontecem, sua disposição espacial, a relação do sigilo, a fre- quência das sessões, à demanda do paciente, se é espontânea ou não, e também o contrato firmado entre psicólogo e paciente, além da ética à que o psicólogo se subordina, no sentido de observar o dever de preservar a saúde mental do paciente, in- dependente dos sentimentos que nele despertem (MIGLIAVACCA, 2008). No caso em questão, o contrato se dá entre psicólo- go-paciente e escoltante também, visto que ele fica na porta da sala de atendimento. Como na penitenciária o paciente não fica a portas fechadas com o profis- sional, e aquele não busca a ajuda deste esponta- neamente, mas sim juntamente com um escoltante, que permanece na sala de atendimento enquanto ele está algemado, o manejo dos conceitos psicanalíticos também requer tratamento diferenciado. Nesse contexto, cabe frisar que a equipe de psicó- logos do sistema prisional de que faço parte são da área da saúde, e não psicólogos jurídicos. Algumas características desse trabalho devem ser levadas em consideração: • O ambiente de privação de liberdade, que coloca o indivíduo à distância do profissional; • A demanda judicial, em que o imperativo de atendimento parte de um terceiro oculto (juiz); • O medo de expor intimidades e conteúdos desviantes por parte do interno, com receio de que essas informações possam ser usadas negativamente em seu processo jurídico; • O atrelamento dos atendimentos à condição de se ter uma escolta perto da porta de aten- dimento para que se resguarde a segurança do profissional; • O fato de o atendimento se realizar à porta aberta; • O fato de o interno estar algemado durante as sessões; • A imensa demanda reprimida construída durante anos de falta ou número mínimo de profissionais na área, dentre outras. Não é possível garantir 100% do sigilo. Trabalhamos nesse limiar, portanto. O tempo de duração da sessão depende diretamente dos protocolos de segurança - estamos em local que pertence à “segurança”, não à “saúde”. Muitos atendimentos psicológicos são determina- dos judicialmente. Evidentemente que, observando o Código de Ética, o psicólogo faculta ao apenado a decisão de participar. Mas como existe a demanda judicial, quase todos preferem participar, por teme- rem consequências negativas em seus processos judiciais. Surge, pois, um vínculo contaminado, vi- ciado, em que o paciente não está ali, mas finge estar para conseguir um benefício ou para fugir de um malefício jurídico. Isso cria um vínculo altamente corrompido, uma vez que os apenados participam dos atendimentos de maneira robótica, artificial. É evidente que isso também faz parte da complexidade do quadro psicopatológico de alguns criminosos - a dificuldade de criar vínculos genuínos - porém a de- manda jurídica dentro da sala de atendimento piora esse quadro, em vez de ajudar. Para tentar contornar esta situação e diminuir esta contaminação, conseguimos estabelecer perante o Poder Judiciário a diferenciação da atuação entre um psicólogo jurídico da de um psicólogo da área de saúde. Pactuamos que o psicólogo da saúde procederá a tratar os sintomas psicológicos, evitar seu surgimento ou reincidência, enquanto os psicó- logos jurídicos procederiam às avaliações, incluindo o exame criminológico. Os psicólogos da área da saúde não procedem a testes psicológicos nem re- alizam perícias tampouco. Tal acordo nos permite enviar relatórios de participação como resposta aos ofícios que demandam atendimentos, em vez de relatórios avaliativos - o que faz com que o vínculo se torne menos corrompido, e que o interno participe de maneira mais inteira, sem se sentir pressionado por estar ali, embora a figura do juiz seja um sujeito oculto muito presente tanto no imaginário do paciente quanto de quem o atende. Os relatórios psicossociais para subsidiar as de- cisões judiciais são ponto relevante. Em Varas de Infância e Juventude, por exemplo, muitas vezes é exigido desse psicólogo um exercício de “passado- logia” - (“houve ou não abuso sexual?”); como se isso pudesse ser atestado de maneira científica, com 100% de segurança. No meu caso, de psicólogo do sistema prisional, exige-se o inverso: “futurologia” (“o interno reincidirá ou não?”). Os relatórios são usados para instrução processual e muitas vezes decisivos; acredito que os profissionais devem ser muito cautelosos e cuidadosos na produção desses documentos, visto que uma palavra mal colocada poderá ser interpretada pelo magistrado como um “sim” ou “não” à pergunta entre parênteses. Isso gera uma necessidade premente e permanente, um verdadeiro desafio, de criar um espaço híbridoque atenda tanto à demanda judiciária quanto à da ciência psicológica, de cuja ética jamais pode se dissociar. Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 1 25 Construir uma ponte com as autoridades judiciárias demandantes dos relatórios torna-se importantíssimo para desfazer esse mal-entendido. A contratransfe- rência do psicólogo nesse momento, entretanto, pode ser de atender essa demanda judiciária da maneira que está posta, sem criticidade, para que ele se sin- ta “útil” ou até mesmo “importante”. SHINE (2009) aponta os riscos dos laudos ao observar que grande maioria dos processos éticos no Conselho Federal de Psicologia se refere não a questões de atendimento, mas a laudos, perícias ou relatórios elaborados de maneira controversa. A vaidade profissional indica incidir nesses casos suprindo o ego do analista do reconhecimento de que ele se julga merecedor. Pode acontecer também de surgir uma sensação de “deso- rientação”, não no sentido psicopatológico do termo, mas no sentido de se sentir acuado ou atônito; por exemplo, ao se elaborar relatórios de atendimento de serial killers. Mesmo sendo esse relatório apenas informativo, e não uma perícia, nem laudo tampouco, uma sensação surge de que se o interno progredir de regime a partir do seu relatório e reincidir a “culpa” será sua (do profissional), e o inverso também: se ele ficar retido e for inocente. Trata-se de um fator estressor da mais alta relevância. É importante utilizar esses sentimentos para autorreflexão e proceder da maneira apropriada, verificando se a demanda judiciária coincide com os princípios da profissão, consultar outros profissionais - daí a necessidade de se construir pontes - consultar a literatura específica e observar o Código de Ética profissional. Considerando as variáveis envolvidas no trabalho do psicólogo no sistema prisional verifica-se que em três situações principais a contratransferência se manifesta com relevância: a relação entre psicólo- go e instituição prisional; a relação entre psicólogo jurídico e o papel de psicólogo da saúde; e a díade psicólogo - paciente-preso, na dinâmica dos aten- dimentos individuais. A respeito da relação entre psicólogo e instituição prisional, há um contexto em que a instituição “de- sarma” e poda sua “potência”, sendo que algumas reações são esperadas e ocorrem entre os profis- sionais, e pode-se até mesmo fazer um paralelo com o complexo de castração: a recusa, gerando a revolta; e a inércia. Ocorre muitas vezes a confusão de papéis entre um psicólogo da saúde e um psicólogo perito, e também um psicólogo do poder judiciário, gerando perplexidade no profissional. Tal confusão decorre do fato de muitas autoridades ainda enxergarem o psicólogo apenas como um “detetive mental” capaz de atestar se o interno reincidirá ou não. Com relação à díade psicólogo - paciente-preso, percebi que ocorre uma contratransferência muito recorrente e peculiar: o psicólogo projeta seu id no criminoso e projeta seu próprio superego no policial que escolta, restando ele próprio como ego, tendo que mediar essas duas projeções, configurando uma relação triangular, na verdade. Portanto é como se houvesse dois pacientes. O interno quer “relatório, medicamento, visitantes, mudança de cela, classificação para trabalho, só quer resolver seu problema, etc.”, cometeu crimes, não internalizou a lei e só quer satisfação; características do id; já o policial impõe os limites da instituição , pode se sentir em oposição ao interno, enxerga nele o mal a ser combatido e vingado, é portador da ordem, do interdito e da lei; características do superego. Passarei a chamar essas duas projeções de “id- -criminoso” e “superego-policial”, lembrando que se trata de uma análise contratransferencial, não das pessoas reais. Essa tríade gera a seguinte configuração contratrans- ferencial nesse setting: identificação com algum do par ou oposição a algum do par. No que diz respeito à identificação com o “id-cri- minoso”, muitas vezes o inconsciente do psicólogo pode se identificar com as histórias dos pacientes presos, histórias de sofrimento, e também se iden- tificar com a situação de poder dispor das pulsões a seu bel-prazer, partindo da premissa psicanalítica de que todo ser humano possui fantasias agressivas e sexuais as mais viscerais e primitivas (FREUD, 1923; KUSNETZOFF, 1982). A identificação com o “superego-policial” decorre que, uma vez inscrito na cultura, somos convencidos a abandonar os desejos do “id-criminoso”. Então surgem as preocupações de “se o interno está mentindo”, “se está tentando manipular para ganhar algum be- nefício”; surgem fantasias de “vou ser mais assertivo para passar a impressão de ser rigoroso para atender e conquistar a confiança do superego-policial” – o que nos remete a conflitos edipianos. A oposição ao “id-criminoso” muitas vezes surge como um sentimento de tristeza, de pesar, de luto, ao ver alguém que não consegue se controlar; passando por sofrimentos terríveis e, principalmente, fazen- do outras pessoas – as vítimas – e outras famílias passarem por sofrimentos terríveis também. Por vezes também há a sensação de medo do interno “eu posso ser vítima dele, então, por que ajudá-lo?”. Além disso: “o interno pode me ver como aliado e querer me manipular, então preciso me defender”. “Essa pessoa é perigosa, me diz coisas terríveis que fez na maior naturalidade; não concordo com esse modo de vida”. Esse medo pode levar à inércia, ou até mesmo a comportamentos de esquiva (ETCHE- GOYEN, 2004). Psicologia: Desafios, Perspectivas e Possibilidades - Volume 126 E, por fim, a oposição ao “superego-policial” surge com o sentimento de “mesmo ele me vigiando, não vou obedecê-lo e continuar com meu trabalho tra- tando de maneira ética quem ele odeia’’ - no caso o “id-criminoso”. O atendimento civilizado e ético é considerado um “luxo”, e isso denuncia a carga agressiva da sociedade moderna. Há uma fantasia paranoide em relação ao psicólogo de que talvez pensem que “não nos identificamos com a vítima, de que deveríamos estar atendendo às vítimas”, então atender o paciente criminoso de forma ética indica uma oposição a esse ‘superego-policial’, e também de que “atendendo de forma ética o interno, posso estar passando a impressão de chancelar suas atitudes antissociais” – o que evidentemente é fantasioso. Diante disso, é como se o psicólogo fosse o ego me- diando os dois polos inconscientes, “id-criminoso” e “policial-superego”, tal qual desenhado na metáfora freudiana exposta na obra O ego e o Id (1923): o ego tem o controle e coordena a ação. Ele é um cavaleiro, e seu cavalo indomável é regido pelo princípio do prazer buscando somente satisfação de seus desejos. O cavaleiro tenta domar esse cavalo - Id. Simultane- amente, há um enxame de abelhas ferroando o rosto do cavaleiro, exigindo que ele controle o cavalo, ou então continuarão as picadas dolorosas. Esse enxame representa o superego. O ego-cavaleiro ainda precisa lidar com as exigências da paisagem, para não cair num buraco, por exemplo. A paisagem representa a realidade externa. Evidentemente Freud criou essa metáfora para expor os conceitos da psicanálise que estava então nascendo, mas as três instâncias são uma só: o sujeito total FREUD (1923). Vê-se, então, que o psicólogo da saúde no sistema prisional precisa domar seu cavalo, tranquilizar o enxame, não sucumbir à paisagem - e lidar com ou- tros cavaleiros, seus respectivos enxames e cavalos. Nesse contexto psíquico interior de verdadeira e ine- quívoca turbulência contratransferencial, pode advir a revolta ou a inércia que relatei anteriormente a respeito da relação psicólogo-instituição. Ceder a um dos polos seria sair do “lugar do analista” (ETCHEGOYEN, 2004) e ter uma postura antiprofissional e anticientífica. Ao mesmo tempo, conquistar a confiança do paciente e do policial é tarefa permanente e essencial, de outro modo todo
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