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INTRODUÇÃO O ambiente de negócios é constantemente impactado pelo Direito, por vezes pela geração de barreiras para que determinados acordos sejam celebrados ou pela criação de liability ao business em decorrência de ações tomadas. Em outras ocasiões, contudo, o Direito oferecerá proteção aos agentes econômicos e até reduzirá os custos de transação. É fato, portanto, que o desenvolvimento e a condução de um negócio, em qualquer lugar do mundo – não sendo diferente no Brasil –, estarão sempre sob as influências, ora positivas ora negativas, do Direito. Daí a importância de se compreender, em linhas gerais, como isso acontece, quais os principais pontos de contato entre esses dois campos e como, na qualidade de gestor, prevenir e mesmo se aproveitar das “regras do jogo” impostas pela lei, pelos juízes e pelos demais agentes do poder público. Após esse breve olhar para o Direito, em uma visão voltada para o negócio, o aluno desenvolverá uma consciência crítica básica e holística de temas de grande relevância para a sua atuação no mercado, sendo, com isso, capaz de realizar tomadas de decisão mais orientadas, atentando para as repercussões no mundo jurídico. SUMÁRIO MÓDULO I – INTRODUÇÃO AO DIREITO EMPRESARIAL: OS IMPACTOS DO DIREITO NO SETOR ECONÔMICO ........................................................................................................................................................ 7 OS IMPACTOS DO DIREITO NO SETOR ECONÔMICO ..............................................................................7 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA .............................................8 LIMITES DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA ...................................................................... 13 TIPOS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA ......................................................................... 16 A DICOTOMIA ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO ............................................................ 17 MÓDULO II – OS CONTRATOS E O DIREITO DO CONSUMIDOR ................................................................ 21 CONCEITO ....................................................................................................................................................... 21 Princípios gerais do Direito dos contratos .................................................................................. 24 Elementos para a formação dos contratos ................................................................................. 32 Extinção dos contratos ................................................................................................................... 35 DIREITO DO CONSUMIDOR ......................................................................................................................... 37 Direitos básicos do consumidor ................................................................................................... 38 Responsabilidade civil do fornecedor de produtos ou serviços ............................................. 44 MÓDULO III – SOCIEDADES EMPRESÁRIAS E PROPRIEDADE INTELECTUAL ........................................... 47 TIPOS SOCIETÁRIOS ...................................................................................................................................... 48 Sociedade Limitada – Ltda. ............................................................................................................ 48 Sociedades Anônimas – S.A. .......................................................................................................... 50 DEVERES E RESPONSABILIDADES DOS ADMINISTRADORES ............................................................... 51 PROPRIEDADE INDUSTRIAL ........................................................................................................................ 55 Noções gerais ................................................................................................................................... 55 Marcas .................................................................................................................................................. 56 Patentes ............................................................................................................................................... 62 Concorrência desleal ........................................................................................................................ 64 Direito autoral .................................................................................................................................... 68 MÓDULO IV – REGULAÇÃO DOS MERCADOS ............................................................................................... 73 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA ............................................................................................... 73 Agências reguladoras ..................................................................................................................... 75 DEFESA DA CONCORRÊNCIA ...................................................................................................................... 79 Sistema nacional de defesa da concorrência ............................................................................. 79 Cade ................................................................................................................................................... 81 Atos de concentração econômica ................................................................................................ 82 Práticas restritivas verticais ........................................................................................................... 83 Cartel ................................................................................................................................................. 84 MÓDULO V – DIREITO TRIBUTÁRIO E DIREITO DO TRABALHO ............................................................... 87 CONCEITO DE TRIBUTO E SUAS ESPÉCIES ............................................................................................... 87 Finalidade dos tributos ................................................................................................................... 88 Limites ao poder do Estado de tributar ...................................................................................... 89 Limites constitucionais ao poder de tributação ......................................................................... 89 Obrigações tributárias .................................................................................................................... 91 Sujeitos da relação tributária ........................................................................................................ 92 Crédito tributário ............................................................................................................................. 93 DIREITO DO TRABALHO ............................................................................................................................... 95 Princípios fundamentais ................................................................................................................ 95 Direitos básicos ............................................................................................................................. 100 Requisitos do contrato de trabalho ........................................................................................... 101 Tipos de contratos ........................................................................................................................ 103 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 105 PROFESSOR-AUTOR ...........................................................................................................................109 Neste módulo, veremos que a interferência do Estado na economia varia de acordo com o modelo adotado naquele momento histórico, podendo ser mais ou menos interventivo. De todo modo, é fundamental perceber que o Direito está sempre presente, qualquer que seja a ordenação das forças econômicas. [...] há, pois, entre Economia e Direito uma interação constante1, como diz o professor Miguel Reale. Dessa forma, cabe-nos identificar as regras legais que incidem sobre os negócios, tirando proveito dos efeitos positivos – por exemplo, a segurança conferida pelas leis em relação aos contratos, fruto do Direito Civil, ou as restrições relativas ao excesso de poder econômico, oriundas do Direito Concorrencial – e evitando prejuízos ao business a partir da compreensão dos limites impostos pelo Direito. Os impactos do Direito no setor econômico A intervenção do Estado na vida dos agentes econômicos tem como intuito colocar freios aos excessos do poder de liberdade dos indivíduos. Em outras palavras, sob o ponto de vista econômico, a intervenção busca corrigir falhas de mercado (monopólio, assimetria de informação, etc.), uma vez que a ideia de autorregulamentação, de Adam Smith, não funcionou. A intervenção do Estado no âmbito da liberdade de iniciativa dos agentes privados poderá acontecer em diversos campos. Por exemplo, pode-se dar por meio de medidas de cunho fiscal, regulatório ou trabalhista. Desse modo, a interferência estatal – que ocorre via legisladores (legislativo), agentes administrativos (executivo) e juízes (judiciário) – incide no campo privado, com vistas a proteger e 1 Reale, Miguel. Lições preliminares de Direito. p. 19-20. MÓDULO I – INTRODUÇÃO AO DIREITO EMPRESARIAL: OS IMPACTOS DO DIREITO NO SETOR ECONÔMICO Renata Realce Renata Realce Renata Realce 8 corrigir as desigualdades econômicas resultantes de alguns negócios entre agentes econômicos, bem como orientar o desenvolvimento econômico no sentido de aumentar o bem-estar coletivo. Nessa perspectiva, a vontade dos agentes econômicos – antes vista como elemento exclusivo de configuração de negócios entre particulares, blindados em relação às interferências externas – é entendida como suporte fático em conjunto e nos contornos permitidos pelo ordenamento jurídico (conjunto de leis, princípios e normas em geral). A vontade deixa de ser fonte exclusiva dos negócios, passando a concorrer com fontes diversas: as leis, o juiz e a autoridade administrativa2. Tudo isso, com efeito, gera um grande impacto no setor econômico, que se vê obrigado a atuar com uma liberdade limitada, dentro de um quadrante de regras do Direito. A seguir, veremos como as mudanças no modelo de Estado interferiram no Direito e como este, por sua vez, aumentou e diminuiu o espaço de liberdade dos agentes econômicos. Evolução histórica da intervenção do Estado na economia Na época em que os Estados adotavam um modelo político, econômico e jurídico do tipo liberal, as regras dos negócios se limitavam, basicamente, àquelas definidas pelos próprios agentes econômicos. Desse modo, havia uma máxima liberdade na sua estipulação, além de pouca interferência do Estado na economia. A vontade humana, autônoma, era o centro gravitacional da sociedade liberal, de forma que competia ao Estado apenas assegurar que ela fosse respeitada: pela autonomia da vontade, o sujeito de direito contrata se quiser, com quem quiser e na forma que quiser.3 Nesse sentido, a lei servia de garantia contra o arbítrio da atividade estatal. Desse modo, a autoridade do Estado, que na época feudal era tida como fonte de opressão aos direitos e às garantias individuais, estava limitada, de forma a conferir liberdade e autonomia aos indivíduos. Cada sujeito podia perseguir o seu interesse individual em relações econômicas de livre escolha com outros sujeitos privados. 2 Cfr. Enzo Roppo (Roppo, Enzo. O Contrato, p. 140): Normas legais, decisões jurisdicionais e procedimentos das autoridades administrativas são, portanto, os agentes típicos das limitações impostas à liberdade contratual dos particulares. Conjuntamente com a vontade das partes, que exprime o respectivo de autonomia, eles constituem as fontes do regulamento contratual. [...] Registre-se, assim, em sede de determinação do conteúdo do contrato, uma dialéctica entre fontes de tipo diverso, que pode, por comodidade, simplificar-se, em uma contraposição entre a fonte ‘voluntária’ (que exprime e realiza a liberdade contratual – e económica – dos particulares) e as outras fontes, diversas da vontade das partes. 3 Coelho, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 3, p. 8. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 9 É nesse contexto que surgem as teorias econômicas – laissez-faire e invisible hand são certamente as mais importantes –, que pregavam a ideia de que o mercado e as leis que dele naturalmente – leis econômicas, de oferta e demanda, especialmente – seriam suficientes para regular todas as situações, sem a necessidade da intervenção estatal.4 Acontece que, ao longo de sua história, a sociedade liberal foi sofrendo transformações estruturais, especialmente no modo com o qual os agentes privados operavam no livre mercado. Em seus primórdios, se os negócios jurídicos eram celebrados por pessoas humanas, com a evolução dos tempos, esse modelo acabou sendo superado por uma nova realidade, fruto da constituição de sociedades. Essa concentração alterou os mecanismos decisórios do mercado, até então, marcadamente dominados pela vontade livre dos indivíduos, e gerou uma situação de distorções entre os particulares. Nessa esteira, o desequilíbrio socioeconômico entre os contraentes fez acentuar uma realidade não pensada ou dissimulada à época da Revolução Burguesa: a de que a igualdade meramente formal permite a celebração de contratos substancialmente injustos5. De acordo com o professor Menezes Leitão, o liberalismo económico exigia um forte abstencionismo do Estado, que se deveria limitar a assegurar as liberdades de comércio e de indústria, não podendo assim impor restrições baseadas nos direitos do contraente débil (‘laissez faire’, ‘laissez passer’, ‘laissez contracter’). Na sequência dos acontecimentos, em particular a partir da Revolução Industrial, o que se viu foi a ampliação das desigualdades de forças entre os agentes econômicos. Acompanhado da forçosa abstenção do Estado em relação à esfera do domínio privado, tal desigualdade se tornou campo fértil para a subversão das ideologias emanadas da autonomia privada e da liberdade contratual. 4 Roppo (Roppo, Enzo. Op. cit., p. 37) faz apontamentos nessa direção: as teorias económicas então prevalentes – traduzidas no plano prático na directiva do laissez-faire, laissez-passer – pretendiam, de facto, que o bem estar colectivo podia conseguir- se da melhor forma, não já com intervenções autoritárias do poder público, mas só deixando livre curso às iniciativas, aos interesses, aos egoísmos individuais dos particulares, que o mecanismo do mercado e da concorrência – a ‘mão invisível’ de Adam Smith – teria automaticamente coordenado e orientado para a utilização óptima dos recursos, para o máximo incremento da ‘riqueza da Nação’. E. Gounot (apud Prata, Ana, A tutela constitucional da autonomia da vontade, p. 12, nota 8) dá o tom dos anseios e da compreensão de liberdade e economia daquele tempo: indivíduos livres e independentes, senhores absolutos da sua atividade e dos seus bens, unidos entre si apenas por relações contratuais de trocas, eis o que é para os economistas a sociedade. E, segundo eles, do conjunto destas livres convenções, em que cada um não prossegue senão o seu interessepróprio, deste choque dos egoísmos individuais devem surgir infalivelmente, em virtude das leis naturais, não apenas o máximo de riquezas, mas a ordem, a felicidade e a harmonia social. 5 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações, p. 24). Também anota Roppo (ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 38) que a disparidade de condições económico-sociais existente, para além do esquema formal da igualdade jurídica abstracta dos contraentes, determina, por outras palavras, disparidade de ‘poder contratual’ entre partes fortes e partes débeis, as primeiras em condições de conformar o contrato segundo os seus interesses, as segundas constrangidas a suportar a sua vontade, em termos de dar vida a ‘contratos substancialmente injustos’. Igualmente, Thiago Luís Santos Sombra (A eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas, p. 51) destaca que ao Estado Liberal competia tão-somente assegurar a proteção da vontade criadora das partes, bem como conferir guarida aos efeitos jurídicos por elas desejados, sem a intenção de investigação da real situação econômica e social de cada contratante. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 10 A constatação de que as premissas que alicerçavam o liberalismo estavam equivocadas é apresentada por Keynes, no texto the end of laissez-Faire6 da seguinte forma: de modo algum, é verdade que os indivíduos possuam, a título necessário, uma ‘liberdade natural’ no exercício das suas atividades económicas. [...] O mundo ‘não’ é de modo algum governado pela Providência de maneira a fazer sempre coincidir o interesse particular com o interesse geral. E ele também não está organizado cá em baixo de maneira tal que os dois acabem por coincidir na prática. Não é de todo correcto deduzir dos princípios da economia política que o interesse pessoal devidamente esclarecido opere sempre em favor do interesse geral. Diante dessa situação, o Estado do tipo liberal encontrou sua crise na constatação de abuso de uma parte sobre a outra. É, especialmente, face a um cenário de extrema exploração do operário nas relações privadas que o modelo se esgota, haja vista a necessidade de intervenção do Estado nessas relações, impedindo os abusos contidos nas pretensamente livres estipulações de vontade7. Com isso, passa-se a um novo modelo político-econômico, conhecido como Estado Social. Ele surge como resposta do capitalismo aos ensaios revolucionários do socialismo, em franca expansão nos países continentais, como Alemanha e Itália, diante dos excessos impostos pelo liberalismo. Nesse novo modelo, o poder público assume novas funções, passando a intervir no domínio econômico e social8, a fim de oferecer condições de vida dignas à classe dominada. 6 KEYNES, John Maynard. Apud PRATA, Ana. Op. cit., p. 35, nota 46. A doutrina de Keyne (keynesianismo) surgiu como salvadora, impactando o mundo ocidental entre 1950 e 1970. 7 Ivan Simões Garcia (GARCIA, Ivan Simões. Liberdade e trabalho: aporte crítico para a teoria contratual do direito do trabalho, p. 411) faz a seguinte e pertinente observação: A abstrata categoria da liberdade de contratar, no entanto, sucumbe à necessidade de se travestir a desigualdade material de igualdade jurídico-contratual gerada pela proteção conferida pelas regras do Estado ao trabalhador. A lei que ‘protege’ é a mesma que cristaliza a desigualdade na subordinação. Com efeito, o empregado é absolutamente livre para ceder ao seu empregador o direito de mandar no seu trabalho assim como é livre para deixar o seu empregador estabelecer unilateralmente o preço de sua força de trabalho. 8 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, p. 208. Já André de Laubadère (LAUBADÈRE, André de. Apud Ana Prata, p. 46, nota 60), explicando o sentido da palavra intervenção, acaba por nos orientar no tocante aos novos desígnios da atuação estatal: designa simultaneamente as medidas tomadas pelas pessoas públicas relativamente aos agentes económicos privados, às empresas privadas [...] e, por outro lado, esta forma de intervenção que é o assumir das atividades económicas pelas próprias pessoas públicas, ou, dito de outra maneira, a gestão daquilo que correntemente se chama de sector público, industrial e comercial (empresas públicas). Maria João Estorninho (ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da administração pública, p. 37) em relação a esse alargamento do espectro de atuação estatual, destaca que a questão de saber quais são exactamente as funções da Administração torna-se agora especialmente complexa, porque em bom rigor a Administração Pública tende a ocupar-se praticamente de tudo, desenvolvendo a sua actividade em todos os sectores da vida económica e social. Renata Realce 11 A professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro9 explica essa alternância de modelo da seguinte forma: No período do Estado Liberal, o interesse a ser protegido era aquele de feição utilitarista, inspirado nas doutrinas contratualistas liberais do século XVIII e reforçadas pelas doutrinas de economistas como Adam Smith e Stuart Mill. O Direito tinha que servir à finalidade de proteger as liberdades individuais como instrumento de tutela do bem-estar geral, em sentido puramente material. Com a nova concepção do Estado de Direito, o interesse público humaniza-se, à medida que passa a preocupar-se não só com os bens materiais que a liberdade de iniciativa almeja, mas também com valores considerados essenciais à existência digna; quer-se liberdade com dignidade, o que exige atuação do Estado para diminuir as desigualdades sociais e levar a toda a coletividade o bem-estar social. Sendo assim, o Estado, que era necessariamente absenteísta, relativamente ao setor econômico e às relações privadas, passou a atuar de modo a garantir o bem-estar dos cidadãos, seja intervindo em setores da economia, seja corrigindo desequilíbrios oriundos dos negócios entre agentes econômicos. Conforme explica o professor Paulo Bonavides10, em sua nova formatação, o Estado intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área da iniciativa privada. Ocorre que a sobrecarga de funções admitidas pelo Estado trouxe consequências indesejáveis ao modelo, como o inchaço da máquina administrativa, o crescimento das despesas públicas a um nível incompatível com a arrecadação, a elevação da inflação, o aumento da corrupção estatal, etc., que culminaram com o desemprego generalizado e o não cumprimento das prestações assistencialistas programadas, de certo modo, prometidas à população pelo Estado. Consequentemente, a legitimidade do Poder Público para executar todas as tarefas a que se propôs passou a ser questionada pela população, em verdadeira crise do sistema. 9 Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 25-26. 10 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social, p. 208. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 12 Desse modo, o modelo de Estado interventor e provedor encontrou seu fim na verificação de que o excessivo intervencionismo estatal era igualmente prejudicial, seja por não ser capaz de conceder às classes dominadas os serviços assistenciaisprogramados nas Constituições, seja por não conseguir desempenhar, a contento, os serviços retirados da iniciativa privada. O Estado se tornou ineficiente, sobretudo, face a um novo quadro econômico mundial imposto pela globalização. Além disso, com a derrocada da ideologia socialista, superada pelo modelo capitalista, a manutenção do welfare state deixou de ser uma necessidade, como resposta de contenção aos movimentos revolucionários. Com isso, o tamanho do Estado precisou ser redimensionado, devolvendo à iniciativa privada atividades antes realizadas por ela e, por conseguinte, algum espaço, se bem que ponderado, de liberdade para tanto. O novo modelo de Estado pós-Guerra Fria, chamado reliberalizante11, passou a prescrever não um exato retorno ao Estado Liberal, mas um restabelecimento do prestígio ao voluntarismo dos agentes econômicos de modo controlado, respeitando-se os direitos e garantias individuais. Esse seria o modelo adotado a partir do final do século XX, com a confirmação da hegemonia da ideologia capitalista de valorização do lucro e, desse modo, com o intuito de se retornar às feições liberalistas tanto quanto possível, tendo em conta não apenas que o excesso de intervenção estatal na ordem econômica – e mesmo diretamente nas relações entre particulares se mostrou ineficaz, gerando arrefecimento do setor econômico e forte restrição às liberdades dos particulares – mas também que o tráfico comercial na sociedade contemporânea deixou de ser tal como era antes. De todo modo, é importante perceber que, a despeito da premente necessidade de ampliação da liberdade de iniciativa, cabe ao Estado se manter fortemente atuante, seja para defender bens comuns, como o meio ambiente, seja para evitar abusos às classes economicamente mais fracas, seja, ainda, para garantir a continuidade do sistema, freando operações que possam prejudicar a livre concorrência. Dessa forma, continuam radiando direitos de proteção com bastante intensidade sobre a liberdade negocial, resultando em uma compressão ainda considerável da moldura voluntarista dos operadores econômicos. Na sequência, vejamos os limites dessa intervenção de forma resumida. 11 COELHO, Fabio Ulhoa. Op. cit., vol. 3, p. 17. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 13 Limites da intervenção do Estado na Economia Em princípio, é importante que se tenha em mente que a atual Constituição Federal brasileira, editada em 1988, estabeleceu a livre iniciativa como norte de organização da economia. Como explica o professor Tercio Sampaio12, isso significa que: já no preâmbulo da Constituição de 1988, o constituinte fez inserir a ‘liberdade como um dos valores supremos do Estado Democrático de Direito’. Ao instituí-lo, ela é afirmada como um dos pilares de uma sociedade fraterna. Os mais autorizados intérpretes da Constituição de 1988 têm chamado a atenção para a importância da inserção no ordenamento constitucional brasileiro, pela primeira vez, do conceito de livre iniciativa como ‘fundamento’ da ordem econômica (art. 170) e não como um princípio, que estaria no mesmo patamar daqueles princípios previstos nos incs. I a IX do art. 170 (função social da propriedade, soberania nacional, defesa do consumidor, pleno emprego, defesa da concorrência etc.). Mais do que isso, a Constituição coloca a livre iniciativa como um fundamento da própria República (art. 3o) (Reale, 1990, p. 19). Ao fazê-lo, a Constituição consagrou o mercado e a dinâmica dos agentes privados como a força motriz por excelência da economia, na crença consistente de que as soluções geradas pelos agentes privados sobre o quê, como e quanto produzir são as mais aptas à produção de bem-estar (Nusdeo, 2001, p. 113-121). Note-se que a atuação do Estado passa a ter um caráter negativo, isto é, de identificação e colocação dos limites aos agentes privados. Sendo assim, não exerce orientações positivas sobre os negócios, o que somente poderia ser indicativo, mas jamais determinante para as empresas (art. 174, ‘caput’), restringindo-se a apontar quais ações ou operações privadas não serão aceitas quando essas ofenderem ou ameaçarem interesses públicos relevantes como a saúde, a livre competição, a segurança, o meio ambiente, o pleno emprego etc. As orientações positivas sobre a organização dos negócios, dentro da lei devem partir sempre dos próprios agentes, por força da livre iniciativa que fundamenta e informa todo o sistema econômico. Em outras palavras, são os agentes econômicos os responsáveis, regra geral, por orientarem os seus negócios, com base no conceito fundante da organização econômica brasileira da livre iniciativa. Diz-se regra geral porque, em determinadas situações, por meio das fontes impositivas (lei, autoridade pública e juiz), o Estado determinará o que o particular deve fazer, por exemplo, 12 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. p. 221-222. Renata Realce Renata Realce 14 quando determina que uma empresa precisará vender algumas marcas para uma fusão (aprovação com restrições), ou quando determina que uma empresa tenha alguns funcionários portadores de deficiência em seus quadros, ou quando determina que a empresa é proibida de fazer distinção entre consumidores, obrigando-a a contratar mesmo com quem ela, grosso modo, não tenha interesse. De toda forma, no mais das vezes, será o agente econômico que ditará os movimentos do seu negócio, apenas cuidando para não ultrapassar as limitações impostas pelo Estado. Uma vez cruzada a barreira do que não convém ao particular fazer, caberá ao Estado atuar. Diante disso, é importante entender, como disse o professor Tércio, quando o Estado irá intervir, restringindo essa liberdade de os particulares desenvolverem os seus negócios. Uma forma de compreender isso é buscando responder a seguinte pergunta: qual é o limite da intervenção estatal? A resposta é que as medidas interventivas do Estado devem ser proporcionais e razoáveis, sendo esses princípios densificados por três parâmetros (ou elementos): a intervenção deve ser adequada, necessária e proporcional (em sentido estrito). O professor Alexandre Aragão explica essa ideia dizendo que: (a) a restrição à liberdade do mercado deve ser apropriada à realização dos objetivos sociais perquiridos – elemento adequação dos meios aos fins. Ex.: o tabelamento interno de preços não é o meio adequado para controlar o aumento de preços de produtos encarecidos em razão da alta do valor da matéria-prima importada (...). (b) O Estado deve impor a menor restrição possível, de forma que, dentre as várias medidas aptas a realizar a finalidade pública, opte pela menos restritiva à liberdade de mercado – elemento necessidade. Ex.: se o Estado pode assegurar o bem-estar da coletividade simplesmente ordenando determinada atividade privada, não deve titularizá-la como serviço público, excluindo-a do âmbito da iniciativa privada. (c) A restrição imposta ao mercado deve ser equilibradamente compatível com o benefício social visado, isto é, mesmo que aquela seja o meio menos gravoso, deve, em uma relação decreto-legislação racional, tendo em vista a finalidade pública almejada, ‘valer a pena’ – proporcionalidade em sentido estrito. O Estado não pode, por exemplo, qualificar determinada atividade relativamente supérflua como serviço público, mesmo que, suponhamos, essa seja a forma menos gravosa para realizar a finalidade pública. Os benefícios a serem obtidos ‘não compensariam’ a restrição que a qualificação como serviço público imporia aos particulares interessados em explorar livremente a atividade.13 13 ARAGÃO, Alexandre Santos de.Agências reguladoras e a evolução do Direito Administrativo Econômico, 3. ed. revista e atualizada, Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 132-134. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 15 Em outras palavras, a atividade de intervenção na economia promovida pelo Estado encontrará seu limite na proporcionalidade e na razoabilidade da medida, não podendo restringir a liberdade de um agente econômico se essa não for uma medida que surta efeitos, que, mesmo surtindo efeitos, seja a que menos prejudique e, ainda que surta efeitos e seja a menos prejudicial, que traga benefícios superiores aos custos impostos à sociedade. Como alertam os professores Nelson e Rosa Nery, em obediência ao modelo econômico adotado pela Constituição Federal, cabe ao Estado exercer sua política de controle e fiscalização, com o limite de intervenção mínima, o que significa tomar medidas razoáveis e proporcionais, sempre no sentido de preservar o direito de propriedade, a livre iniciativa e a atividade econômica. Caso haja mais de um caminho legítimo para que o Estado possa exercer sua atividade controladora e reguladora, deve necessariamente optar pela via menos gravosa para a atividade econômica. Incide, também, nas questões relativas à ordem econômica, a máxima da proibição de excesso. 14 Em uma de suas parcelas, a livre iniciativa é representada pela livre concorrência. Nesse sentido, a livre concorrência pode indicar a possibilidade de uma empresa atuar livremente entre os diversos concorrentes, optando, discricionariamente, pelas estratégias e pelos preços que empregará, tendo em conta o posicionamento dos demais competidores no mercado. Nesse caso, não encontrando o Estado motivos razoáveis para intervir, permitirá que um agente atue livremente, desempenhando suas atividades econômicas e explorando o mercado livremente, sem intervenção injustificada pelo Estado. No módulo 4, ao tratar de defesa da concorrência, veremos que a livre concorrência pode ser entendida em outro sentido, isto é, pode-se entender livre concorrência não como a liberdade que o agente tem de optar pelas estratégias mercadológicas que melhor lhe convier, atuando em concorrência com outras empresas, mas como uma garantia oferecida pelo Estado a todos os particulares de que a competição existirá. Nesse segundo sentido, a livre concorrência significará a preservação da possibilidade de pluralidade de empresas no mercado. Aqui, a livre concorrência acaba por ser antagônica à ideia de livre iniciativa, já que o Estado poderá intervir e limitar a atuação de determinado particular para assegurar, por exemplo, o ingresso de um outro player no mercado. Desse modo, será uma intervenção razoável e proporcional, dependendo da situação, na medida em que a concentração de um setor poderá causar prejuízos ao mercado e a todos os seus personagens. No Brasil, o modelo econômico adotado é o de economia de mercado, já o modelo jurídico é o da livre iniciativa. Desse modo, a intervenção do Estado brasileiro na economia se dará em termos específicos e restritos, ficando a cargo dos agentes econômicos o papel de protagonista. Como define o professor Luís Roberto Barroso,15 o mercado, enquanto mecanismo de coordenação e organização dos processos econômicos e que pressupõe o reconhecimento do direito de propriedade dos bens de produção e a liberdade de iniciativa, é mantido no intervencionismo como o princípio regulador da 14 JUNIOR, Nelson Nery e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional, p. 640. 15 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Congelamento de preços: tabelamentos oficiais (parecer), p. 76/77. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 16 economia. Distinto do intervencionismo é, neste sentido, o dirigismo econômico, próprio das economias de planificação compulsória, e que pressupõe a propriedade estatal dos meios de produção, a coletivização das culturas agropecuárias e o papel do Estado como agente centralizador das decisões econômicas de formação de preços e fixação de objetivos. Tipos de intervenção do Estado na economia Vimos que o modelo de organização da economia ditado pela Constituição Federal permite e, mais do que isso, impõe que o Estado intervenha na economia quando necessário. No entanto, quais são as formas possíveis dessa interferência estatal? Alguns professores dividem em mais ou menos categorias. Segundo o professor Eros Roberto Grau16, o Estado poderá autuar sobre a economia: � prestando, ele próprio, serviços considerados públicos; � por absorção ou participação; � por direção e � por indução. Já para o ministro do Supremo Tribunal Federal e professor Luís Roberto Barroso17, são três os mecanismos de intervenção estatal no domínio econômico: a) a atuação direta, que se subdividiria em intervenção por serviço público e intervenção por atividade econômica; b) o fomento e c) a disciplina. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello18 também divide as modalidades de interferência do Estado na ordem econômica em três: a) o poder de polícia; b) os incentivos e c) a atuação empresarial. Para simplificar, vamos examinar três formas de intervenção do poder público no domínio econômico, divididas em atuação por indução, atuação por direção e atuação estatal direta. A atuação interventiva do Estado por indução, também conhecida como fomento, não determina nenhuma conduta específica ao operador econômico. Trata-se de uma interferência com 16 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, p. 123/124. 17 BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços, p. 47-83. 18 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, p. 641. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 17 vistas a oferecer incentivos e estímulos ao particular, buscando a realização e o alcance de interesses do próprio Estado. Os exemplos mais comuns são os empréstimos subsidiados, as isenções tributárias ou a utilização da extrafiscalidade de alíquotas, visando estimular investimentos em determinado setor. Por exemplo, pense no período em que o governo federal optou por reduzir a zero a alíquota do imposto incidente sobre os produtos da chamada linha branca. Ou quando governos, tentando atrair investidores, oferecem condições fiscais mais benéficas para um determinado setor, incentivando a instalação de uma planta fabril em seu Estado ou Município (falaremos sobre isso no módulo relativo ao Direito Tributário). Essa é a modalidade de intervenção estatal na economia mais branda, já que não limita a liberdade do agente econômico, apenas tenta induzi-lo. A atuação por direção ou disciplina – prevista no art. 173, § 4o, da CRFB – já passa a ter um grau maior de ingerência na vida das empresas, já que o poder público obriga os particulares a agir de modo determinado, criando normas de conduta para desempenho da atividade econômica, fiscalizando a conformidade com essas normas e, no caso de descumprimento, punindo o agente econômico. Falaremos bastante sobre essa segunda forma de intervenção estatal no módulo 4, quando formos analisar a regulação dos mercados, especialmente quando estudarmos as agências reguladoras. A terceira modalidade de atuação – prevista no art. 173, caput da Constituição Federal – é a de que o Estado atua de forma direta na economia, prestando a atividade, seja ela considerada um serviço público, cujo titular é mesmo o poder público, seja ela considerada uma atividade econômica, também desempenhada pelos particulares, na qual a participação do Estado será em modelo de competição com os agentes privados. Somente poderá ocorrer quando presenteimperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, haja vista que essa é a forma de intervenção do poder público sobre a ordem econômica mais intensa. A dicotomia entre Direito Público e Direito Privado Considerando que já estudamos que o Estado irá interferir na atividade econômica, é importante aprender por quais meios isso será feito. Nisso está a importância de compreender que o Direito se divide, inicialmente, em dois ramos: Direito Público e Direito Privado. Tal divisão é feita desde os romanos, que utilizavam a utilidade pública ou particular da relação como critério. Nesse sentido, o Direito Público era aquele a respeito das coisas do Estado, e o Direito Privado era referente ao interesse individual. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 18 O professor Gustavo Tepedino19 explica, já em uma perspectiva moderna, que é por meio da dicotomia entre direito público e direito privado [que] mantém-se, de um lado, o direito público e as razões de Estado que o motivam; e, de outro, o direito privado, terreno fértil para o desenvolvimento da vontade individual, sem grandes ingerências – a não ser as imprescindíveis – por parte do Estado. Nesse sentido, veja que a sociedade se divide em Estado – titular e executante do interesse público –, e sociedade civil, compreendida pelo conjunto dos sujeitos privados. Conforme Francesco Galgano20, essas são as premissas para uma correspondente decomposição do direito, à qual se prestavam os conceitos romanistas de ‘ius provatum’ e de ‘ius publicum’: o direito privado podia ser olhado como sendo o direito regulador da sociedade civil, o direito público como o direito regulador do Estado. Como vimos acima, o problema é que a concepção de interesse público foi bastante expandida21, de maneira que passou a ser complicado fazer a divisão entre Direito Público e Direito Privado. Como adverte o professor Miguel Reale, o Estado cobre, atualmente, a sociedade inteira, visando a proteger a universalidade dos indivíduos, crescendo, dia a dia, a interferência dos poderes públicos, mesmo fora da órbita dos Estados socialistas, ou, para melhor dizer, comunistas, onde se apagam cada vez mais as distinções entre o que cabe ao Estado e o que é garantido permanentemente aos cidadãos como tais.22 Desse modo, não é mais possível estabelecer uma distinção entre esses sistemas de Direito tal como era feito no passado. É preciso encontrar outros critérios para a separação desses ramos. O professor Miguel Reale23 apresenta o seguinte modelo: A nosso ver, a distinção ainda se impõe, embora com uma alteração fundamental na teoria romana, que levava em conta apenas o elemento do interesse da coletividade ou dos particulares. Não é uma compreensão errada, mas incompleta. É necessário, com efeito, determinar melhor os elementos distintos e salientar a correlação dinâmica ou dialética que existe entre os dois sistemas de Direito [...] Há duas maneiras complementares de fazer-se a distinção entre Direito Público e Privado, uma atendendo ao conteúdo; a outra com base no elemento formal, mas sem cortes rígidos, de conformidade com o seguinte esquema, que leva em conta as notas distintivas prevalecentes. 19 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo II, p. 377. 20 GALGANO, Francesco. Apud PRATA, Ana. Op. cit., p. 28. 21 Enzo Roppo (ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 342) explica que é, de facto, verdade que a extraordinária expansão da intervenção pública nas atividades económicas privadas (um fenómeno que atingiu, no nosso século, a generalidade dos países ocidentais) determina uma correspondente dilatação da ingerência dos órgãos administrativos no exercício da autonomia contratual, e que este processo corresponde a uma linha de tendência provavelmente irreversível; donde poderia retirar-se a conclusão de que o papel do contrato está destinado a ser, cada vez mais, comprimido e circunscrito, pelo multiplicar-se das funções e dos poderes da intervenção da administração pública. 22 REALE, Miguel. Op. cit., p. 339. 23 REALE, Miguel. Op. cit., p. 340. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 19 A seguir, vejamos o esquema oferecido pelo professor para facilitar a compreensão: (Miguel Reale, Lições preliminares de Direito, p. 340) Desse modo, fará parte do sistema de Direito Público quando a norma tiver como foco o atendimento, de maneira imediata e de modo prevalente, de um interesse coletivo, de caráter geral, como são evidentes as regras imperativas do Direito Penal, cuja função é atender, imediata e preponderantemente, um interesse de toda a sociedade. Por outro lado, note que o Direito Civil, ao apresentar, por exemplo, disposições sobre relações jurídicas entre dois sujeitos, dois agentes econômicos, tem como foco imediato o interesse particular. Além disso, nessa relação, o Estado aparece coordenando os dois sujeitos, de forma que o Direito Civil é parte do sistema de Direito Privado. O mesmo acontecerá com o Direito da Propriedade Intelectual, o Direito Societário e o Direito do Consumidor. Nessas áreas do Direito, apesar de haver normas imperativas, cuja observância e cumprimento não sejam meras sugestões do Estado ao particular, mas sim uma imposição, como regra geral, o seu conteúdo pode ser ajustável, negociável entre as partes, prevalecendo o interesse particular. Nesse sentido, o Estado se coloca em uma posição de coordenação. Por outro lado, por exemplo, o Direito Administrativo e o Direito Tributário estão eminentemente inseridos no Direito Público, já que visam ao interesse da população. Explicando de um modo muito simplório, o Direito Administrativo dispõe sobre a forma de funcionamento do Poder Executivo, e o Direito Tributário, sobre as relações entre o fisco e os contribuintes. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 20 Quanto ao Direito do Trabalho, embora exista uma grande discussão doutrinária sobre onde ele se situa, é possível considerá-lo parte do ramo de Direito Público. Isso ocorre porque, ao se constituir como sistema de regras voltadas à disciplina das relações entre empregadores e empregados, nota-se uma participação do Estado interferindo na sua qualidade fundamental de poder soberano, estabelecendo o equilíbrio entre as partes interessadas e impondo soluções a que os particulares estão todos sujeitos. Tais vínculos são de subordinação, e não de coordenação.24 24 REALE, Miguel. Op. cit., p. 349/350. No entanto, há quem diga que o Direito do Trabalho representa um terceiro gênero, híbrido, entre Direito Público e Direito Privado. Há, ainda, os que o consideram parte do Direito Privado, por regular as relações jurídicas entre particulares. O tema será melhor abordado no módulo 5. Renata Realce É muito recorrente no ambiente de negócios o uso do termo “contrato”, mas esse termo apresenta diferentes significados. Por isso, o módulo trará inicialmente uma explicação sobre o que são realmente os contratos. Em seguida, considerando que a celebração de contratos é uma realidade às vezes até mesmo diária para algumas empresas, serão apresentados alguns conceitos relevantes e essenciais impostos pelo Direito, garantindo a formação válida e eficaz dos contratos. Na sequência, serão tratados os efeitos, as obrigações e os limites estabelecidos pela ordem jurídica. Na segunda parte deste módulo, a abordagem será sobre as noções relacionadas ao Direito do Consumidor, já que, especialmente para os administradores de empresas que atuam no ramo dos bens de consumo, a compreensão das dimensões dos direitos básicos do consumidor será fundamental para o sucesso ou insucesso da empresa. O último ponto que será abordado refere-se à responsabilidadeque o Código de Defesa do Consumidor imputa aos fornecedores de produtos e serviços em relação aos consumidores. Saber a abrangência e os limites dessa responsabilidade permitirá que o gestor de um negócio faça a tomada de decisões de modo diligente, escolhendo de forma consciente o grau de risco a ser assumido. Conceito A fim de apresentar noções gerais básicas que permitam a compreensão do que são os contratos, a despeito do seu uso já recorrente no ambiente de negócios, é fundamental começar o conteúdo deste módulo apresentando a definição de contrato. Nesse sentido, é interessante ver como o contrato pode ser entendido de duas formas distintas, mas intrinsecamente relacionadas. MÓDULO II – OS CONTRATOS E O DIREITO DO CONSUMIDOR Renata Realce 22 A primeira é a forma corrente, usual, a forma como falamos, no dia a dia, para nos referirmos a uma negociação. Grosso modo, é algo atrelado a uma relação econômica sem um maior cuidado com tecnicismos. Como explica o professor Enzo Roppo: 25 De facto, falar de contrato significa sempre remeter – explícita ou implicitamente, directa ou mediatamente – para a ideia de operação económica. Como demonstração, basta reflectir sobre um certo uso da linguagem comum. No âmbito desta, a palavra ‘contrato’ é, as mais das vezes, empregue para designar a operação económica ‘tout court’, a aquisição ou a troca de bens e de serviços, o ‘negócio’ em suma, entendido, por assim dizer, na sua materialidade, fora de toda a formalização legal, de toda a mediação operada pelo direito ou pela ciência jurídica. É o que acontece, por exemplo, quando se usam expressões correntes, do gênero: ‘concluí um contrato muito vantajoso, que me permitirá ganhar alguns milhões’ ou então: ‘com o contrato Fiat-Citroën esperava-se acelerar o processo de integração e concentração monopolista a nível europeu, no sector da produção automóvel’. O contexto em que proposições similares são formuladas é, evidentemente, de molde a atribuir à palavra ‘contrato’ um significado que prescinde de qualquer qualificação jurídica pontual, colocando- se, ao invés, no plano da fenomenologia económico-social – como sinônimo, justamente, de operação económica. Nesse sentido, também o professor Venosa26 diz que os contratos são negócios em massa, já se referindo ao novo modelo dos negócios, celebrados em escala, em uma economia de massa, para uma sociedade de consumo. Em uma segunda forma de se conceituar, contrato significa coisa mais técnica, com definição específica no mundo do Direito. Contrato é a contração de um negócio jurídico entre duas ou mais pessoas, previsto em códigos e leis, ou autorizado por esses, gerando efeitos jurídicos. Em outras palavras, como já dizia Enzo Roppo27, ‘contrato’ é um ‘conceito jurídico’: uma construção da ciência jurídica elaborada (além do mais) com o fim de dotar a linguagem jurídica de um termo capaz de resumir, designando-os de forma sintética, uma série de princípios e regras de direito, uma disciplina jurídica complexa. O professor brasileiro Orlando Gomes28 explica que contrato é, assim, o negócio jurídico bilateral, ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses 25 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 8. 26 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. p. 363. 27 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 7. 28 GOMES, Orlando. Contratos, p. 10. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 23 que regularam. Já Maria Helena Diniz29 define contrato como o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial. No entanto, embora o contrato possa ser definido em uma acepção técnica e em outra não técnica, fato é que uma coisa está atrelada a outra, uma vez que a formalização jurídica nunca é construída (com os seus caracteres específicos e peculiares) como fim em si mesma, mas sim com vista e em função da operação económica, da qual representa, por assim dizer, o invólucro ou a veste exterior, e prescindindo da qual resultaria vazia, abstracta, e, consequentemente, incompreensível, como bem destaca Enzo Roppo30 mais uma vez. Desse modo, a conceituação jurídica de contrato nada mais é do que a forma instrumental por meio da qual o contrato – entendido como operação econômica, negócio – será realizado. De acordo com Venosa,31 o contrato torna-se hoje, portanto, um mecanismo funcional e instrumental da sociedade em geral e da empresa. Em relação ao conceito de contrato, também é importante mencionar a mudança sofrida em sua noção, em razão das transformações na sociedade e nos métodos dos negócios. Como falamos no módulo 1, um dos fatores que levaram o Estado do tipo liberal a ser superado por um modelo social foi a constituição de sociedades. Com a concentração de poder de mercado nas mãos das sociedades, houve uma alteração nos mecanismos decisórios e gerou-se uma situação de distorções entre os atores econômicos. A constituição de sociedades influenciou bastante a forma como os contratos passaram a ser celebrados. Se antes havia uma liberdade maior, já que os acordos de negócios eram feitos entre dois particulares em igualdade de condições, na sequência, o Estado passou a impor limitações. Com isso, o Estado passou a intervir nas negociações entre agentes privados para evitar que um – muito mais forte em relação ao outro – tirasse proveito da situação injustamente.32 Também o desenvolvimento econômico trouxe maior complexidade para a vida social e para os negócios, exigindo que os contratos passassem a ser formados em massa, em vez de individualmente. Nesse sentido, é sintomático o surgimento no mercado de contratos de conteúdo padronizado, cujas cláusulas já são preestabelecidas por uma das partes, a mais forte da relação. Aliás, hoje em dia, o fenômeno das cláusulas contratuais gerais se alastrou irremediavelmente pelo mundo e para os mais diversos campos econômicos, como o dos seguros, o dos transportes, o de compra e venda de mercadorias em geral, bem como de fornecimento de serviços. Por esse modelo, compete à contraparte tão somente decidir se aceita ou não se submeter àqueles termos prefixados, em bloco, aceitando todas as previsões lá contidas e alcançando o objeto pretendido, ou rejeitando-as, igualmente em conjunto e, consequentemente, restando impedida de alcançá-lo. 29 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, p. 30. 30 ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 9. 31 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p. 364. 32 Veremos este ponto com mais detalhes a seguir, quando tratarmos dos princípios gerais dos contratos. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 24 No fundo, as cláusulas contratuais gerais representam uma nova dinâmica de contratação do mercado. No entanto, nessas condições, é de se esperar que, no mais das vezes, verifiquem-se potenciais riscos de abuso de uma das partes sobre a outra. Por essa razão, surge a necessidade de limitação à liberdade contratual, a fim de conter os abusos que tal prática pode apresentar, até mesmo, entre empresários. Aqui, cabe um parêntese para esclarecer um ponto relevante: cláusulas contratuais gerais e contrato de adesão não significam a mesma coisa. As cláusulas contratuais gerais são uma técnica de redação das cláusulas contratuais, feitas em bloco, para serem replicadas com as diversas partes com quem a empresa que as elaborou irá contratar. Já o contrato de adesão é uma modalidade negocial, que, na prática, acaba por ser uma modalidade não negocial e impositiva, já que não dá margem à discussão doconteúdo dos contratos. Normalmente, os contratos de adesão são feitos com cláusulas contratuais gerais, mas pode acontecer de uma empresa desenvolver as cláusulas de um contrato, especificamente, para fechar um acordo comercial com uma outra empresa, sem que esse conteúdo tenha sido desenvolvido para reutilização incontáveis vezes. No entanto, repare que, se a empresa que está elaborando o contrato não permitir que a outra parte, ainda que seja outra empresa, discuta os termos do contrato e altere o teor das cláusulas, estaremos diante de um contrato de adesão. Por que isso é importante, afinal? Como dissemos, não é só com consumidores que são celebrados contratos de adesão. Dessa forma, o próprio Código Civil brasileiro prevê que o aderente poderá ser beneficiado em casos em que a contratação se der por adesão: Art. 423: Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente. Art. 424: Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. Nesse sentido, um gestor de uma empresa precisa estar bastante atento ao elaborar contratos de adesão, mesmo quando a outra parte é uma empresa, já que poderá ver esse contrato questionado na Justiça e, eventualmente, deparar-se com uma mudança forçada do negócio. Agora, vejamos os princípios gerais do Direito dos contratos, que também mudaram com todas essas alterações econômicas e sociais, dando nova cara aos contratos. Princípios gerais do Direito dos contratos Estudando o Direito Privado e, em especial, o direito dos contratos, é possível conhecer diversos princípios. Aliás, hoje em dia, é recorrente o estudo dos princípios (e a famosa teoria dos princípios), a distinção entre princípios e regras, e o discurso de que estamos em uma espécie de era dos princípios. Se avaliarmos as decisões e, individualmente, os votos proferidos pelos Ministros do Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 25 Supremo Tribunal Federal33 e do Superior Tribunal de Justiça34, ficaremos surpresos com a quantidade de novos princípios, alguns até bem curiosos, utilizados como fundamento. Desse modo, para simplificar, ficaremos apenas com poucos, os básicos, para uma visão inicial da questão. Primeiramente, vamos tratar da liberdade contratual, que decorre de um princípio maior conhecido como autonomia da vontade ou, mais modernamente, autonomia privada, justamente em razão das tantas alterações de que acabamos de falar. A autonomia da vontade significa o poder dos indivíduos de atuar, bem como de suscitar efeitos reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica, pelo Direito. No exercício desse poder, toda pessoa capaz tem aptidão para provocar o nascimento de uma obrigação.35 Nesse sentido, trata-se de um poder amplo, cujos reflexos se irradiam para diversos campos do Direito, inclusive, e de forma bastante evidente e relevante, nos contratos, recebendo a denominação de liberdade contratual36. Tal liberdade contratual é uma modalidade mais reduzida da autonomia da vontade, que confere poderes aos sujeitos privados para criar vínculos jurídicos com outros indivíduos segundo seus próprios interesses. A liberdade contratual é composta por algumas faculdades distintas. Segundo Orlando Gomes37, algumas faculdades são: 1. a liberdade de contratar ou deixar de contratar; 2. a liberdade de negociar e determinar o conteúdo do contrato; 3. a liberdade de celebrar contratos atípicos; 4. a liberdade de escolher o outro contratante; 5. a liberdade de modificar o esquema legal do contrato; 6. a liberdade de agir por meio de substitutos e 7. a liberdade de forma. 33 Corte constitucional e última instância da Justiça. Fica a cargo do STF analisar discussões com fundamento nas previsões contidas na Constituição Federal, além de alguns casos específicos, por conta do tão falado foro privilegiado. 34 Tribunal responsável por julgar, em última análise, discussões envolvendo leis que estão abaixo da Constituição Federal em uma escala hierárquica. Também é conhecido como o Tribunal da Cidadania. 35 De acordo com Menezes Leitão (Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações, p. 19), em sentido literal, a expressão ‘autonomia privada’ (do grego ‘auto’, proprio e ‘nomos’, regra) consiste na possibilidade que alguém tem de estabelecer as suas próprias regras. [...] A autonomia privada é assim a possibilidade de alguém estabelecer efeitos jurídicos que se irão repercutir na sua esfera jurídica. 36 Para Menezes Cordeiro (Cordeiro, António Menezes. Tratado de direito civil português, tomo I, p. 393) a autonomia privada é um instituto geral de todo o Direito privado. Ela pode ser apresentada como liberdade ou autonomia contratual ou como liberdade ou autonomia negocial, quando tenha em vista a celebração de contratos ou de negócios. Trata-se, porém, da mesma realidade, que vale igualmente como princípio que a sustenta. 37 GOMES, Orlando. Novos temas de direito civil, p, 81. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 26 Outros autores jurídicos38 também já explicaram como entendem que a liberdade contratual se decompõe, sendo as mais comuns: � a liberdade de escolher se quer ou não contratar; � a liberdade de escolher com quem contratar e � a liberdade de escolher como contratar. Vejamos que, a despeito das faculdades ou liberdades que os agentes econômicos terão para celebrar contratos entre si, uma coisa é comum entre todas elas: a vontade. É a vontade de fazer ou não fazer que ditará os contratos. Por exemplo, se uma empresa não quiser, de acordo com as liberdades conferidas a ela, ela não contratará alguém ou não contratará com essas ou aquelas cláusulas comerciais, ou não contratará com esse ou aquele parceiro comercial ou consumidor. Assim será, desde que respeitados alguns limites impostos pela lei, pelos órgãos administrativos do poder público ou pelo juiz, em caso de uma questão contratual ser levada ao juiz, para que ele decida o conflito. Por exemplo, a lei pode estabelecer limites à escolha entre contratar e não contratar, para evitar ou corrigir situações de abuso de poder econômico ou de posição dominante no mercado, e, em geral, práticas que resultem em infração à ordem econômica. Nesse sentido, como veremos mais adiante, repare que o nosso Código de Defesa do Consumidor prevê, entre as práticas abusivas vedadas ao fornecedor de produtos ou serviços, a recusa de venda para quem se disponha a adquirir mediante pronto pagamento (art. 39, IX, CDC). Vale lembrar que existem casos em que a lei proíbe ou dificulta a contratação, como é o caso da contratação de trabalho infantil, de empréstimos em salas de jogos ou a venda de bens de pais a filhos. Por essa razão, é muito relevante conhecer as regras postas pelo Direito dos contratos, a fim de saber quais são os direitos e os deveres de uma empresa em uma relação com terceiros e os limites impostos pelo Direito. O próximo princípio analisado será um princípio moderno, que surgiu como contraponto a um princípio do liberalismo, o princípio pacta sunt servanda39. O princípio do equilíbrio contratual exige que os contratantes realizem negócios jurídicos ou contratos justos, garantindo que haja um equilíbrio entre as obrigações assumidas por cada um deles. Será por meio dele que, muitas vezes, o Estado intervirá nos contratos entre agentes econômicos, assegurando a proteção da parte mais fraca contra um abuso do poder negocial do contratante mais forte. Desse modo, o balanceamento das prestações contratuais (obrigações) deverá ser observado pelos contratantes. O equilíbrio deverá permanecer desde a fase das negociações e, obviamente, também no curso da execução do contrato, de modo que, ao longo de toda arelação contratual, nenhuma das partes sofra prejuízos injustos. 38 Ferreira de Almeida (ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Os direitos dos consumidores, p. 13) fala em uma tripla escolha livre na vida negocial, definida como a possibilidade de 1) contratar ou não contratar; 2) escolher a outra parte; 3) determinar o conteúdo das obrigações assumidas. Em suas palavras, isso corresponde às normas de comportamento racionais pressupostas pela concorrência exercida no mercado pelos agentes económicos livres. 39 Desde Napoleão, diz que os contratos fazem lei entre as partes. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 27 Para exemplificar, vejamos a afirmação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo de Tarso Sanseverino no julgamento de um caso em que se discutia o equilíbrio de um contrato, a respeito dos momentos em que se vislumbra uma grande carga de justiça contratual:40 a) ao tempo da celebração do contrato, pela preservação do sinalagma genético da relação obrigacional, adotando-se o instituto da lesão (art. 157 do CC) como forma de combate à elevada desproporção entre as prestações; b) ao tempo da execução do contrato, assegurando-se o sinalagma funcional, que pode ser perturbado por acontecimentos extraordinários, que minam a correspectividade das obrigações, instalando um dos contratantes em posição de onerosidade excessiva. Por isso, é muito importante que os gestores de uma empresa estejam atentos a esse aspecto da relação contratual. Ao vislumbrar um desequilíbrio, o Poder Judiciário poderá, corretivamente, garantir uma readequação das obrigações e dos direitos conferidos a cada um dos contratantes, libertando a parte em situação de onerosidade excessiva daquele dever contratual, afastando, de modo pontual, determinadas cláusulas, ou estipulando uma lógica do contrato mais justa e equânime. No entanto, há de se ressalvar que não é qualquer situação de desequilíbrio ou mesmo de prejuízo a uma das partes que autorizará o juiz a resolvê-lo ou modificá-lo. Como adverte Menezes Cordeiro41, a simples ocorrência de desequilíbrio contratual não é, em si, injusta: se uma pessoa pode doar (940/1) também pode, por maioria de razão, firmar contratos que a prejudiquem; necessário é, porém, que o faça livremente, conhecendo e querendo as consequências. Como exemplo, considere as hipóteses em que as circunstâncias que levaram à celebração de contrato se alteraram durante a relação contratual. O que fazer? Se uma das partes se sentir prejudicada, o juiz poderá resolver, ou seja, extinguir a relação? Poderia o juiz também modificar as condições do contrato para recobrar o equilíbrio do contrato, levando em consideração os direitos e as obrigações de cada uma das partes? Antes de responder, é importante notar que, nos artigos 478 a 480, o Código Civil brasileiro trata, expressamente, da resolução por onerosidade excessiva.42 Nesse sentido, percebe-se que haverá situações em que o juiz poderá interferir no contrato, resolvendo-as ou modificando-as. No entanto, isso não ocorre em qualquer situação. O Código Civil exige que haja uma onerosidade excessiva 40 BRASIL, STJ, AgRg no REsp 941.781/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgamento em 30/09/2011. Disponível em <www.stj.jus.br>. Acesso em: nov. 2013. 41 Cordeiro, António Menezes. Tratado de direito civil, vol. II, p. 224, nota 692. 42 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. Renata Realce Renata Realce Renata Realce 28 para uma das partes, uma extrema vantagem para a outra, e que ambas decorram de acontecimento extraordinário e imprevisível. A seguir, vejamos dois exemplos do STJ: no primeiro43, uma decisão em que o Tribunal negou o pedido de ajuste do contrato, por não entender que o caso merecia uma intervenção externa, modificando o que foi acertado entre a empresa Rodrimar S/A Transportes Equipamentos Industriais e Armazéns Gerais, e a Companhia Docas do Estado de São Paulo – CODESP: 1. Esta Corte Superior sufragou o entendimento de que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva). 2. Na hipótese vertente, o Tribunal a quo ressaltou, explicitamente, que não pode ser reconhecida a imprevisão na hipótese vertente, em virtude de o recorrente ter pleno conhecimento do cenário da economia nacional, tendo, inclusive, subscrito diversos aditivos contratuais após os momentos de crise financeira, razão pela qual não seria possível propugnar pelo imprevisto desequilíbrio econômico-financeiro. Já no segundo44, o Superior Tribunal de Justiça, entendendo estar diante de situação que se enquadrava nos parâmetros do Código Civil, determinou a modificação no contrato firmado, em que pese ter sido firmado entre duas empresas, o Banco Santander Noroeste S/A e a Rawplastic Plásticos LTDA.: 1- Tendo em vista a onerosidade excessiva havida em decorrência da mudança na política cambial do país, nos contratos de arrendamento mercantil com previsão de reajuste das prestações com base na variação cambial do dólar, o reajuste das prestações, a partir de janeiro de 1999, deverá ser feito pela metade da variação cambial, nos termos do REsp 472.594/SP, julgado pela Segunda Seção. Diante disso, é importante que se tenha bastante presente nos negócios tanto o direito de pedir a revisão ou extinção de um contrato, quanto as circunstâncias que serviram de base para a tomada de decisão se modificar em função de evento imprevisível e extraordinário, gerando um 43 BRASIL – STJ – AgInt no REsp 1316595/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4a Turma, julgado em 07/03/2017, DJe 20/03/2017. 44 BRASIL – STJ – AgRg no REsp 1260016/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3a Turma, julgado em 17/11/2011, DJe 05/12/2011. Renata Realce Renata Realce 29 peso, um desequilíbrio excessivo, quando o dever de estar em relação nas quais a outra parte não esteja, por razões alheias a sua vontade, em extrema desvantagem. Na sequência, passaremos a falar do princípio da boa-fé objetiva, talvez, o princípio do direito dos contratos mais relevante atualmente. O princípio da boa-fé objetiva está previsto, expressamente, no Código Civil em três artigos, possuindo 3 importantes funções: 1. quando o Código, no art. 113, diz que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração a boa-fé têm a função interpretativa dos contratos; 2. quando o art. 187 estabelece que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, sobressai a função limitadora de direitos, e 3. a terceira função da boa-fé objetiva, a função de criação de deveres acessórias, de comportamento, podeser encontrada no art. 422: os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Nesse sentido, a boa-fé objetiva concede ao juiz o poder de se intrometer nos contratos, interferindo no seu conteúdo, a despeito da vontade das partes. Nesse sentido, o professor Menezes Leitão45 diz que a boa-fé concretiza-se assim em regras impostas do exterior, que as partes devem observar na actuação do vínculo obrigacional, podendo servir para complementação do regime legal das obrigações, através de uma valoração a efectuar pelo julgador. Em relação à terceira função, ela impõe aos contratantes o dever de agir com lealdade, honestidade, probidade, zelo, e sem abuso ou intenção de causar desvantagem excessiva à outra parte. O princípio da boa-fé objetiva se traduz em um modelo de comportamento para nortear as empresas em seus negócios com terceiros. Além disso, ao estipular os padrões de comportamento das partes46, o princípio em questão representa um limitador do exercício de direitos que sejam contrários ao que ele prevê, delimitando os espaços de liberdade contratual de outra forma. No entanto, ressalte-se que esse princípio influencia de modo distinto, exigindo mais ou menos dos contratantes, dependendo das particularidades da contratação. De todo modo, como visto, a boa-fé objetiva deve guiar o comportamento das partes não só na execução dos negócios mas desde a primeira aproximação entre elas, sendo observado mesmo depois de terminado o contrato, como explica Anderson Schreiber:47 45 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações, volume 1, Coimbra: Almedina, 2002. p. 52-53. 46 A boa fé constitui assim um importante princípio geral de Direito cuja aplicação no Direito das Obrigações se reconduz à imposição de comportamentos às partes, em ordem a possibilitar o adequado funcionamento do vínculo obrigacional, em termos de pleno aproveitamento da prestação, e evitar a ocorrência de danos para as partes. (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações, volume 1, Coimbra: Almedina, 2002. p. 55). 47 SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras, p. 11. Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce Renata Realce 30 sob o império da boa-fé objetiva, o comportamento das partes antes, durante e depois do cumprimento da prestação principal passa a produzir efeitos jurídicos diferenciados, que podem mesmo ultrapassar, em importância, aqueles que resultam do cumprimento em si. Em um cenário marcado por relações contratuais duradouras, torna-se não apenas um direito, mas um efetivo dever de ambas as partes diligenciar pela utilidade da prestação antes, durante e depois do seu vencimento, para muito além do momento pontual de sua execução. Além do mais, tendo em vista que a regra geral que impede que sejam causados danos a terceiros encontra, atualmente, seu fundamento no princípio da boa-fé objetiva, como expressão da tutela (defesa, proteção) da confiança, as partes estão proibidas de agir com comportamentos contraditórios, sob pena de responderem por abuso do direito. A confiança legítima depositada por uma parte em um comportamento juridicamente preestabelecido é, em outras palavras, protegida, mesmo no momento das negociações. A título de exemplo, vale analisar uma situação específica, a da responsabilidade pré-contratual de uma empresa por ruptura das negociações. Imagine o seguinte cenário: você é o gerente comercial de uma empresa de bens de consumo e está negociando com um gestor comercial de uma empresa transportadora, para aumentar sua capacidade de distribuição e penetração no mercado. As tratativas para fechar um acordo de parceria estão indo bem, de forma que a transportadora investiu dinheiro nesse potencial negócio, comprando novos carros e adequando os que já possuía, acreditando que tudo correria bem e um acordo seria fechado em breve. No entanto, antes do momento do aperto de mãos, uma contaminação na plantação dos fornecedores da sua matéria-prima causou um enorme impacto na produção, afetando toda a estimativa de oferta. Em resumo, os planos de expansão dos negócios da empresa foram arruinados. Frente a esse cenário, a empresa de transporte te aciona na Justiça, pedindo indenização pelos investimentos feitos, alegando que você deu a entender que já poderia incorrer em gastos, uma vez que o negócio já estava certo. Como falamos antes, os agentes econômicos não são obrigados a avençar pactos com outras pessoas senão em virtude de seu convicto querer, podendo desistir do contrato em fase de negociação, sem nada dever a outra parte. Em outras palavras, o Direito permite e, mais do que isso, tem como regra geral a liberdade de as partes começarem e terminarem os diálogos, ainda que no curso de uma tratativa negocial. No entanto, não pode tolerar que isso aconteça em prejuízo injustificado ou proposital a terceiros.48 48 Enzo Roppo (ROPPO, Enzo. Op. cit., p. 107) esclarece que o ponto de equilíbrio encontra-se na regra segundo a qual a ruptura das negociações gera responsabilidade apenas quando é injustificada e arbitrária, e não já quando é apoiada em uma justa causa que a torne legítimo exercício de uma liberdade económica. Renata Realce 31 A intervenção do Poder Público acontecerá para as negociações simuladas. Evidentemente, isso resulta em um prejuízo consciente à outra parte ou mesmo para proteger a confiança digna de uma empresa quanto à celebração futura do contrato, quando houver a frustração de uma real e legítima expectativa de desfecho positivo das negociações, baseada em uma certeza razoável adquirida por uma das partes em decorrência do comportamento da outra. No entanto,49 o Direito não protege propriamente o sujeito envolvido em uma negociação de ver rompidas as tratativas – isso é parte do jogo negocial –, o Direito protege, na verdade, a confiança legítima, a expectativa criada em uma parte por comportamento inequívoco da outra. A seguir, vejamos duas decisões, uma da Justiça portuguesa e outra do STJ do Brasil: I – Incorre em responsabilidade pré-contratual por culpa in contrahendo quem, depois de negociações com vista à celebração de determinado contrato e durante as quais foram acordadas todas as cláusulas relevantes faltando apenas a formalização, recusa outorgar o contrato. II – A responsabilidade decorre do facto de uma das partes ter gerado na outra a confiança e a expectativa legítima de que o contrato seria concluído e não da ruptura das negociações, da não conclusão ou da recusa de celebração do contrato; III – Logo, o facto que obriga à reparação é a confiança violada por inobservância das regras da boa-fé e não a ruptura das negociações, a não conclusão ou a recusa de celebração do contrato por inexistência de obrigação legal ou contratual de prosseguir negociações, de concluir ou de celebrar o contrato. *** RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL PRÉ-CONTRATUAL. NEGOCIAÇÕES PRELIMINARES. EXPECTATIVA LEGÍTIMA DE CONTRATAÇÃO. RUPTURA DE TRATATIVAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA- FÉ OBJETIVA. JUROS DE MORA. TERMO 'A QUO'. DATA DA CITAÇÃO. 1. Demanda indenizatória proposta por empresa de eventos contra empresa varejista em face do rompimento abrupto das tratativas para a realização de evento, que já estavam em fase avançada. [...] 4. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva na fase pré-contratual. Doutrina sobre o tema. [...] 5. Responsabilidade civil por ruptura de tratativas verificada no caso concreto. [...] 9. Manutenção da decisão de procedência do pedido indenizatório, alterando-se apenas o termo inicial dos juros de mora.
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