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O DIREITO COMO TRADIÇÃO INVENTADA E A HETERONOMIA

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O DIREITO COMO TRADIÇÃO INVENTADA E A HETERONOMIA: A 
RECEPÇÃO DO DIREITO ROMANO NA IDADE MÉDIA 
1. O papel da História do Direito e as tradições inventadas 
Entende-se aqui que o papel da História do Direito é levar a uma compreensão 
da sociedade passada e não propriamente realizar uma explicação de fatos ou 
acontecimentos passados. A história é entendida a partir de Cornelius 
Castoriadis, como um produto social e também como fator que engendra esta 
mesma sociedade. Há na história aspectos de uma dimensão lógica como os 
fatos, datas, etc., e também uma dimensão das significações criadas ou 
utilizadas por aquela sociedade, sendo com isso criação. Essas significações 
permitem o conhecer cada sociedade naquilo que ela é única, ou seja, no que a 
caracteriza como aquela sociedade e não outra. Assim, a história pode ser 
entendida para Castoriadis como: “domínio onde as significações encarnam e 
todas as coisas significam”[4]. 
O direito, que é uma das diversas instituições sociais de uma sociedade. A 
história proporciona a compreensão, o conhecimento, mas nunca uma 
explicação: 
“Na história não há explicações. Há uma outra coisa: de uma lado, uma 
[inteligibilidade] reduzida do ponto de vista conjuntista-identitário (….); de outro, 
a compreensão daquilo que se passa (….). Para compreender o desenrolar 
histórico, devemos fazer apelo, a cada vez, à significações imaginárias sociais 
da sociedade e àquilo que acontece com elas. Essas significações imaginárias 
sociais, nós não podemos abordá-las segundo um modo causal e não podemos 
compreender como é possível que elas motivem as pessoas de forma causal, 
nem como elas surgem, nem mesmo como elas se desgastam. E é ai que se 
encontra o ponto central para a compreensão de uma sociedade passada ou de 
um desenvolvimento histórico”[5]. 
Esse compreender outras sociedades faz com que o homem se abra para 
questionar a sua própria sociedade. O questionamento pode recair sobre o novo 
e as transformações sociais, mas pode também recair sobre a continuidade de 
determinadas significações. 
O Direito Romano foi por diversas vezes utilizado como uma “tradição 
inventada”, pois há reelaborações desse direito nos séculos XI-XV e também no 
século XIX. Hobsbawm utiliza-se do termo “tradição inventada” para tratar de 
fenômenos recentes que são colocados como algo que vem de décadas ou 
séculos, para buscar uma legitimidade social. Nas palavras do historiador inglês: 
“O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca 
indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e 
formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil 
de localizar num período limitado e determinado de tempo- às vezes coisa de 
poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez (….) Por 
tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas 
por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou 
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simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da 
repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao 
passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um 
passado histórico apropriado (…) Contudo, na medida em que há referência a 
um passado histórico, as tradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer 
com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são 
reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações 
anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase 
obrigatória”[6]. 
Quando um direito busca utilizar-se da tradição, retomando um direito anterior 
utilizando-se de um “mito fundador da legitimidade” o que geralmente se objetiva 
é mascarar um direito em que a autonomia de uma sociedade não foi respeitada. 
Entende-se aqui autonomia no sentido de cada um dar a sua própria norma, ou 
nas palavras de Castoriadis: 
“Chamo de sociedade heteronômica aquela em que o nomos – a lei, a instituição 
– é dado por outrem- o heteros. De fato, nós sabemos, a lei nunca é dada por 
um outro, ela é sempre criação da sociedade. Todavia, na esmagadora maioria 
dos casos, a criação dessa instituição é imputada a uma instância extra-social, 
ou, de qualquer modo, que escapa do poder e ao agir dos humanos viventes. 
Torna-se imediatamente evidente que, enquanto ela se mantiver, esta crença 
constituirá o melhor meio de assegurar a perenidade, a intangibilidade da 
instituição. Como pode se questionar a lei, quando a lei foi dada por Deus, como 
se pode dizer que a lei dada por Deus é injusta (…). Mas essa fonte pode ser 
outra, evidentemente, além de Deus: os deuses, os heróis fundadores, os 
ancestrais- ou instâncias impessoais, mas igualmente extra-sociais, como 
Natureza, a Razão ou a História.”[7] 
O que fica claro nesse mecanismo de ocultamento, descrito por Castoriadis, é 
que ele impede a crítica, o que para o caso da exaltação moderna do Direito 
Romano antigo é particularmente verdade. É raro encontrar quem defenda 
abertamente nas universidades que esse direito não serve para entender a 
sociedade moderna, porém essa é a postura de Weber. É difícil uma crítica ao 
Direito romano antigo e recepcionado, pois ele é entendido como uma 
significação importante da sociedade atual, em especial trata-se da brasileira. 
Os resultados desse impedimento à crítica e a reflexão é a perpetuação da 
sociedade heterônoma, como aponta Castoriadis: 
“Essas sociedades criaram suas instituições, mas elas não sabem e não querem 
saber. Elas fazem tudo o que podem para ocultá-lo; e elas o fazem imputando a 
origem de suas instituições e de suas significações imaginárias sociais a uma 
fonte extra-social, transcendente, que, dessa forma, torna-se também o 
fundamento ou a justificação da instituição (….). É aquilo que chamo de estado 
de heteronomia social: estado em que a sociedade, pelo fato de imputar a um ou 
outro a criação de suas instituições, de sua lei, de seu nomos, e das significações 
imaginárias correspondentes, proíbe-se por isso mesmo de mudar o que quer 
que seja (explicitamente). O caso mais claro é evidentemente o das sociedades 
religiosas, mas não é o único. A crença em “leis históricas” que trarão ou já 
trouxeram a boa sociedade – “socialista” ou “democrática”- ou mesmo a crença 
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no progresso como lei imanente da história são formas modernas de 
heteronomia, e conhecemos bem, aliás, os resultados a que levam”[8]. 
Inventar tradições, reputando fatos uma antiguidade que eles não têm, 
geralmente visa mascarar um poder autoritário e muitas vezes heterônomo. 
Tradições são também inventadas para dar legitimidade a um poder, e assim, 
direitos e legislações são colados a um poder divino, à forma de um mito ou 
herói. 
A quem, como Guilhermo Margadant, fale de uma segunda vida do direito 
romano, para tratar do fenômeno da recepção desse direito na Idade Média[9]. 
Para o autor a recepção não foi mera interpretação do direito romano, mas uma 
reelaboração, que afasta a idéia dos “equívocos criativos” que mudaram o direito. 
Nas palavras de Margadant: 
“A literatura alemã utiliza-se às vezes, a expressão graciosa de roduktives 
Missverstehen- “equívocos criativos”- mas um se pergunta se não se trata bem 
mais de um desejo preconcebido de chegar a certo resultado, que uma prática 
medieval pedia- as vezes medieval-germânica-resultado que logo se justifica 
mediante engenhosas interpretações”[10]. 
Entende-se aqui que a “recepção” não foi feita ao mero acaso, tendo fortes 
interesses políticos na condução dessa incorporação de velho direito, ou melhor, 
na pretensa incorporação do velho, uma vez que o direito novo medieval fazia-
se passar por um direito secular em uma tradição inventada. Assim, direito novo 
de uma nova sociedade medieval que se formava adquire legitimidade quando 
se associa a um direito antigo. O direito romano da Idade Média tem relações 
com o direito romano antigo, porém há uma aproximação que é forçada para se 
obter legitimidade. A “recepção” do direito romano também não foi democrática, 
não foi uma recepção pelo povo. A expressão “recepção” mascara o que 
realmente aconteceu, ou seja, uma imposição de um direito exterior à sociedade 
medieval por desejo de alguns reis. 
2. O papel das universidades européias na baixa Idade Média: a criação de 
um direito 
As universidades surgiram na Idade Média como uma instituição social que tinha 
como fim a recuperação da cultura clássica. Esta volta às fontes romanas de 
direito foi propiciada por um movimento maior de redescobrimento de muitos dos 
originais Greco-romanos. A obra de Aristóteles é redescoberta, assim como as 
codificações de Justiniano. 
O renascimento das cidades, com os reis fortes, aumento da segurança levaram 
a um crescimento do comércio e das relações civis, necessitando de 
instrumentos de regulação social, como o Direito e as faculdades passam a ser 
centros de discussão e produção desse Direito. Enquanto Paris é reconhecida 
como um dos pólos dos estudos de filosofia e teologia, Bolonha surge como o 
centro dos estudos em Direito. A ligação da criação das universidades com a 
política nos fins da Idade Média é ressaltado por Hilário Franco Jr: 
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“De fato, no século XIII as escolas se fixam, se organizam, se corporativizam, 
dando origem às universidades. Na verdade, universitas designava qualquer 
comunidade ou associação, com o termo passando a ser usado exclusivamente 
para uma corporação de professores e alunos apenas a partir de fins do século 
XIV. Até então, falava-se em studium generale. De toda maneira, a associação 
visava fazer frente às interferências dos poderes locais, eclesiásticos (bispado) 
ou laicos (monarquia, comuna*). Para tanto, conseguiu o importante apoio do 
papado e sua política universalista, que precisava da produção intelectual dela 
para enfrentar as heresias*. Aparecia assim a grande contradição da 
universidade: mesmo tendo em seus quadros leigos e clérigos que não tinham 
ainda recebido as ordens sacerdotais, ela permanecia uma “corporação 
eclesiástica” que, sem poder cortar seus laços nacionais ou comunais, passava 
a ser vista com reserva por todos os poderes e segmentos sociais”[11]. 
O direito é estudado como uma matéria depois que se cumpriam os estudos das 
artes liberais. Dois eram os direitos estudados: direito canônico e as leis 
(civis/imperiais/romanas): 
“Nas faculdades de Direito os dois ramos estudados refletiam bem a dualidade 
cultura eclesiástica/cultura vulgar. Formando uma sociedade à parte, com suas 
próprias regras, a Igreja desde o século VI procurara organizar e classificar as 
normas estabelecidas por concílios gerais, sínodos locais e bulas papais. 
Contudo, o volume de material e suas inúmeras contradições dificultavam sua 
consulta e aplicação. Daí a elaboração de coleções que selecionassem e 
sistematizassem as leis da Igreja. Para tanto, recorreu-se aos métodos que se 
desenvolviam nas escolas, e assim foi se tornando necessária a formação de 
especialistas e, portanto de faculdades de Direito Canônico. Paralelamente, 
naquele contexto de complexização da sociedade, as regras jurídicas 
estabelecidas pelo costume (Direito consuetudinário de origem germânica) não 
mais atendiam às necessidades do momento. A revalorização da cultura antiga 
que então ocorria fornecia o material desejado pelas monarquias nascentes e 
pela população urbana. O Direito Romano tornou-se objeto de estudo em vários 
locais, sendo Bolonha o principal deles”[12]. 
Os estudantes tomavam contato com textos romanos, como os de Justiniano, 
que procurava com seu espírito codificador alterar a jurisprudência já decadente 
e solucionar problemas decorrentes de contradições entre as leis vigentes. O 
estudo dessas fontes romanas era feito livro à livro, e cada instituição ou conceito 
de direito vista como uma dogma. Além do código de Justiniano foram utilizadas 
como fontes os Digestos, a Novellae e Instituta. Formam-se manuscritos 
legislativos que são atribuídos à cidade de origem, como os littera pisana-
florentina, littera bononiensia ou a littera vulgaris, esta última ligada à matéria 
dos manuscritos. 
Na alta Idade Média há uma grande utilização do direito canônico, que vai 
perdendo força ao longo dos séculos. Esse direito começa a rivalizar com o 
direito romano recepcionado, na baixa Idade Média, que também era um direito 
culto e escrito, como aponta Martins, no seguinte trecho: 
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“O direito canônico manteve-se, durante toda a Idade Média, como o único direito 
escrito e universal. Sua uniformidade e sua unidade derivavam do fato de que 
sua interpretação era privativa do Papa, desde os tempos de Gregório VII”[13]. 
Porém, nem tudo do direito canônico foi afastado, uma vez que o direito que 
passa a ser implantado em grande parte da Europa da baixa Idade Média é feito 
à maneira dos dogmas. Não deve ser sem razão que a Europa cristã foi onde 
predominou o direito de “tradição da romman law”. As faculdades de direito 
produziam um direito novo, que não era um trabalho puramente desinteressado, 
uma vez que existia forte ligação da faculdade e seus professores com os 
poderes locais. As universidades não eram exatamente subservientes aos 
imperadores, pois existia entre eles uma relação de dependência mútua, como 
aponta Duby: 
“Exterior e dependente da lei divina, a Universidade de Paris vivia à sombra do 
poder real, muito menos independente do que julgava ser. Entrava-se para a 
faculdade das artes na esperança de fazer carreira nesta ou naquela 
administração, a eclesiástica ou a laica: a alta e média burocracia saída quase 
toda dos colégios. Quando os professores, eminentes sábios, alguns dos quais 
vinham das camadas mais baixas da população, como se sabiam mais hábeis 
que qualquer um no raciocínio, como eram convidados a decidir as questões 
gravíssimas criadas pelo Cisma, a concorrência com a autoridade do papa e do 
concílio geral, não estavam longe de se considerarem instalados nos mais altos 
escalões da hierarquia do mundo. Em meio aos tumultos que volta e meia 
sacudiam a capital, posavam de fornecedores de conselhos. A corte os ouvida. 
Os partidos se formavam na corte procuravam conquistá-los, o que era fácil, 
mediante pequenos favores e aparências de respeito. Esses homens eram 
partidários da ordem. Davam o melhor de si para consolidar, ao nível dos 
princípios, um edifício político que desejavam íntegro e dominado pela 
razão”[14]. 
A ligação entre os acadêmicos das universidades medievais e os reis, levava a 
uma criação de um direito novo. Porém, somente construir um novo direito não 
conseguiria afastar ospoderes antigos, nem rivalizar com eles. A invenção da 
tradição do direito romano foi um elemento decisivo para consolidação dos reis 
no poder. A construção de um novo Estado forte dependia não só de armas, 
centralização do poder e uma série de medidas econômicas e políticas, mas 
também de uma construção jurídica. A importância das universidades para a 
formação do Estado nacional é destacada por Verger, no seguinte trecho: 
“Seja como for, uma coisa é certa: o surgimento das primeiras universidades não 
foi um fenômeno espontâneo, simplesmente uma pura criação de mestres e 
estudantes. Mesmo que a ação pessoal destes possa ter sido indispensável, ela 
sempre foi sustentada por uma vontade política que permitiu conseguir vencer 
as resistências (principalmente aquelas dos poderes locais, do bispo e de seu 
chanceler em Paris, da cidade em Bolonha) e oferecer à nova instituição sua 
legitimidade e seu estatuto jurídico. Essa vontade política foi, ao mesmo tempo, 
aquela do príncipe (particularmente visível na Inglaterra, mais discreta em Paris) 
e aquela do papa (especialmente ativo em Paris e em Bolonha). 
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O apoio dos poderes superiores, eclesiásticos e laicos às primeiras 
universidades não era puramente desinteressado. Esperava-se delas uma 
contribuição para o desenvolvimento de disciplinas sobre as quais tais poderes 
fundavam sua própria legitimidade: o direito romano era um instrumento 
essencial para o renascimento do Estado (…)”[15]. 
Esse fortalecimento do poder dos reis, que era até o meio da Idade Média 
relativamente forte, tem relação direta com as universidades. Por meio da 
atuação das universidades, afastou-se o poder eclesiástico e começa-se impor 
um outro poder, que era o poder dos reis, como destaca Verger: 
“O predomínio do que então era dado ao direito permite que se calcule a 
dimensão política do movimento. Se nenhuma universidade pôde nascer e se 
desenvolver na Idade Média sem o apoio dos poderes externos serão estes que, 
nos séculos XIV e XV, muitas vezes tomarão a iniciativa de tal operação. E cabe 
acrescentar que se tratavam dali por diante, essencialmente de poderes 
principescos ou urbanos, nos quais o papado não possuía mais tanta 
interferência como teria então os poderes laicos para confirmar, freqüentemente 
tarde demais, a nova fundação e lhe garantir o estatuto clássico 
de studium generale”[16]. 
A ligação entre as universidades e os imperadores é tão simbiótica que todo o 
Estado na Idade Média começa a instaurar sua própria universidade. O direito 
romano “recepcionado” tem pouco de universalizante, uma vez que a sua criação 
tem relação intensa com o poder local. Assim, os reis começam a fomentar 
faculdades de direito ligadas aos Estados, como destaca Verger no seguinte 
trecho: 
“Não obstante, a idéia que cada vez mais se impõe é de que todo o Estado ou 
principado moderno deveria possuir sua própria universidade, para formar as 
elites religiosas e sobretudo administrativas das quais eles teriam necessidade, 
em que se tivesse de recorrer as universidades estrangeiras”[17]. 
O novo direito inventado na Idade Média pelos reis e pelos juristas nas 
universidades, juntamente com um ensino formalizado e controlado, faz com que 
surja uma série de funcionários para esse Estado (como por exemplo, os 
conselheiros, magistrados): 
“Os estatutos que elas receberam desde sua fundação, sempre as 
caracterizando como instituições autônomas, deixam largas possibilidades de 
controle e de intervenção aos poderes externos e seus representantes. A mais 
óbvia foi freqüentemente que os professores (ou pelo menos alguns dentre eles) 
seriam dali por diante, pagos pelo príncipe que, como retorno, exerceria o direito 
de responsabilizar-se pelas nomeações. Na Itália, os magistrados particulares, 
os Savi ou Reformatori dello Studio, foram em geral instruídos para se ocuparem 
dos assuntos universitários”[18]. 
Nem todas as cidades da Europa ocidental recepcionaram o direito romano do 
mesmo modo. A variação ocorre não apenas ela adesão, mas pela própria 
elaboração do direito recepcionado, como aponta Marc Bloch: 
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“Na França do Sul, onde a tradição consuetudinária tinha conservado fortemente 
a influência romana, os esforços dos juristas, ao permitirem daí em diante o 
recurso aos textos originais, acabaram por elevar o direito escrito à categoria de 
uma espécie de direito comum que se aplicava na falta de costumes 
expressamente contrários. O mesmo aconteceu na Provença, onde o 
conhecimento do Código Justiniano parecia tão importante, desde os meados do 
século XII, para os próprios leigos, que houve a preocupação de lhes fornecer 
um resumo em língua vulgar. Noutros lugares, a ação do foi menos direta. Tanto 
mais que, mesmo onde encontrava um terreno particularmente favorável, as 
regras ancestrais estavam demasiado solidamente enraizadas na “memória dos 
homens”, demasiado estreitamente ligadas, por outro lado, a todo um sistema 
de estrutura social, muito diferente do da antiga Roma para suportarem ser 
transformadas só pela vontade de alguns professores de leis. Evidentemente 
que, por toda parte, a hostilidade testemunhada dali em diante aos antigos 
modos de prova, especialmente ao duelo judiciário e à elaboração da noção de 
lesa majestade, no direito público, deveram qualquer coisa aos exemplos do 
Corpus Júris e das glosas. Também a imitação do Antigo era, na sua essência, 
poderosamente ajudada por outras influências: o horror que a Igreja votava ao 
sangue, bem como a qualquer prática que parecesse destinada a tentar a Deus, 
a atração exercida especialmente junto dos comerciantes, por trâmites mais 
cômodos e mais racionais; a renovação do prestígio monárquico. Se, nos 
séculos XII e XII, vemos alguns notários esforçarem-se por exprimir, no 
vocabulário dos Códigos, as realidades do seu tempo, estas tentativas 
desajeitadas não alteravam nada no âmago das relações humanas. Foi por outra 
via que o direito erudito agiu então verdadeiramente sobre o direito vivo, 
ensinando-o tomar uma consciência mais clara de si mesmo”[19]. 
3. O social e o histórico- panorama em que as universidades se inseriram 
e o Direito Romano 
As universidades européias medievais podem ser consideras um centro de 
produção do saber. A descoberta dos clássicos grego-romanos levou a uma 
valorização da descoberta, dos métodos de conhecimento e de uma discussão 
sobre as artes. O belo não estava mais nas representações dos anjos macros, 
escuros e pouco carnais, mas nas estátuas gregas e romanas, que declaravam 
a humanidade explicita de suas formas. O domínio do divino passava para o 
domínio dos humanos, porém o ideal era um humano divinizado nos clássicos 
da antiguidade. 
A reocupação das cidades, na alta Idade Média praticamente abandonadas, leva 
ao ressurgimento de uma população urbana e de um adensamento populacional. 
O comércio, com sua intensidade de relações, ressurge com toda força. É 
preciso estruturar uma rede de relações que ficou apagada e assim surgem: 
nova moeda, novos poderes e novos apoderados. Enquanto o senhor feudal 
possuía em seu domínio umpoder local e leis voltadas para uma pequena 
sociedade agrária os novos reis buscavam estabelecer seu poder em um 
território imensamente maior em que a complexidade de relações sociais e a 
diversidade tinha de ser equacionada. 
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A disputa do poder entre os reis e a igreja se acentua a medida que a Idade 
Média avança, e essa disputa de poder estava ligada à legitimidade do direito, 
como aponta Hilário Franco Jr: 
“Sabemos que os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em choque 
constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam — a herança do 
Império Romano — somente um deles poderia ter sucesso. Assim, ambos 
fracassaram, permitindo a emergência de poderes particularistas (feudos* e 
comunas*) e nacionalistas (monarquias). Mais do que isso, quando ficou patente, 
em fins da Idade Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas 
nacionalidades já tinham perdido sua oportunidade histórica de organizar 
Estados centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases 
territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da Alemanha (base 
do Sacro Império)”[20]. 
Nem o direito local antigo dos senhores, nem o direito canônico davam conta de 
tal complexidade. Litígios surgiam e era necessária uma reestruturação do 
judiciário, bem como a criação de toda uma série de cargos burocráticos: 
conselheiros do rei, advogados, registradores de propriedade (há o surgimento 
de um direito notarial), etc.. As universidades eram um polo de formação dessas 
pessoas, que passariam a ter como base um direito único, com a mesma 
metodologia, ensino padronizado e uma literatura comum. 
O direito romano é visto como um direito que podia resolver algumas das 
complexidades e disputas dessa nova sociedade, porém apenas parte desse 
direito foi resgatado, em especial, o direito romano privado. O direito romano foi 
adaptado às mudanças da sociedade medieval, que buscava deixar de lado o 
direito canônico que não dava conta das novas relações sociais, em especial das 
econômicas e políticas, como aponta Martins: 
“Os séculos da recepção do direito romano (XII-XIII) são também os do 
desenvolvimento da burguesia européia. O capitalismo mercantil exigia uma 
nova estrutura jurídica, mais adequada às novas relações econômicas 
emergentes. Em primeiro lugar, havia a necessidade de um direito estável que 
garantisse uma efetiva segurança institucional e jurídica às operações 
comerciais. Em segundo lugar, um direito universalmente válido que unificasse 
os diversos sistemas europeus de forma a garantir um mercado internacional. E 
por fim, um sistema legal que libertasse a atividade mercantil das limitações 
comunitaristas ou de ordem moral que lhes impunham os ordenamentos feudais 
e eclesiásticos. O direito romano-justinianeu atendia a todas essas exigências. 
Quanto à necessidade de uma efetiva garantia jurídica das transações 
comerciais, tão caras à burguesia, a jurisprudência romana opunha a 
generalidade e a abstração de sua legislação ao casuísmo do direito 
consuetudinário feudal. Ademais, o direito romano era aceito como fonte 
subsidiária praticamente em todos os sistemas jurídicos europeus, constituindo, 
assim, uma espécie de “língua franca, usada desde as cidades da Hansa até a 
faixa mediterrânica”[21]. 
Os valores presentes no direito romano antigo se viram transformados, quando 
aquele direito foi aplicado em uma sociedade que não mantinha os mesmos 
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poderes, a mesma religiosidade, ou seja, possuía outras instituições imaginárias 
sociais. Mesmo mantendo a legislação romana, o direito não era mais o mesmo, 
pois a sociedade mudara. 
Os fatores econômicos que levaram a essas mudanças sociais, não estão 
dissociados dos fatores culturais. Há uma busca pela razão, mesmo com a 
ligação com a religião ainda sendo forte. No Direito há o estabelecimento de 
escolas que buscam a razão da lei, ou mesmo a universalização de casos em 
regras gerais, como a escola do direito natural. 
Surgem reis como Frederico I, que aposta em quadro doutores (Búlgaro, Martino 
Grossio, Porta Revenate e Jacopo) como seus aliados para a construção de um 
direito que tem como inspiração o Direito Romano. Em Portugal, Afonso III é o 
monarca que inicia o processo de recepção do Direito Romano, buscando uma 
afirmação de sua legitimidade como rei e como fonte de poder. A centralização 
política que inicia-se no final da Idade Média terá como fim os Estados Nacionais 
e o papel do direito formalizado nesses Estados é de fundamental importância: 
“A Centralização Política, por fim, era a conclusão lógica de um objetivo 
perseguido por inúmeros monarcas medievais. O Estado moderno, unificado, 
caracterizava-se pelo fato de o soberano ter jurisdição sobre todo o país, poder 
de tributação sobre todos os seus habitantes, monopólio da força (exército, 
marinha, polícia). Esta tinha sido a tripla meta de reis como Henrique II da 
Inglaterra (11541189) ou Luís IX da França (12261270). O sentimento 
nacionalista, que fornecia o substrato psicológico necessário à concretização do 
poder monárquico centralizado, também era, como já vimos, de origem 
medieval”[22]. 
 Esse poder do rei era um poder em processo de consolidação, pois existia 
outras esferas de poder em disputa, como o próprio papado e o poder dos 
senhores feudais que ainda se perpetuavam. Essa união dos reis com os juristas, 
em torno do novo direito que se formava, é ressaltada por Fernandes, no 
seguinte trecho: 
“Esse renascimento parte da Escola de Bolonha, defensora do partido dos 
imperiais, que formará uma plêiade de juristas, glosadores e comentadores dos 
textos justinianeus. Os imperiais armam-se de legistas, capazes não só de ler, 
mas de também interpretar a essência de princípios que foram constituídos numa 
época bem distante e para uso de jurisconsultos romanos. Defendendo e 
recuperando a ordem jurídica do Império Romano, os imperiais do século XII 
afirmavam-se frente ao Papado”[23]. 
O Direito Romano surge para diversos governantes da Idade Média, como um 
direito unificador, que buscava a universalidade e possuía um grau de segurança 
e certeza, ao ter forma escrita. Diante de direitos locais, que se estabeleceram 
baseados nos costumes e no poder local, o direito romano surgiu como um 
instrumento de unificação, utilizado para a formação do que seriam os Estados 
Nacionais. 
4. A criação do direito nas universidades: entre glosadores e comentadores 
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As universidades como locus do saber começam a tomar para si a criação de 
um direito romano. Pode-se dizer que há duas escolas distintas de Direito que 
se apropriam do Direito Romano de maneira diversa e desempenharam papel 
diferente: uma dos glosadores e outra dos comentadores. 
Os glosadores podem ser encontrados entre os séculos XI-XII e buscaram uma 
apropriação do Direito Romano, retirando dele elementos e institutos dos quais 
precisavam. Havia há glosa um respeito pela ordem dos termos propostos na 
compilação de Justiniano, predominando análise interna dos textos, ou seja, a 
busca de um entendimento do texto por ele mesmo, sem se referir à sociedade 
que o produziu, não colocando o texto em um contexto. Destacava-se entre os 
glosadores: Irnério que realizou uma nova edição do “Corpus IrisCivilis de 
Justiniano”, Rogério com sua “Summa Codicis” e Arcúsio com sua “Magna 
Glosa”. 
Mesmo os glosadores já apresentam uma ligação política com os imperadores e 
seus estudos são direcionados a legitimar esse poder, como aponta Koschaker 
: 
“Os glosadores eram, pois, ideologicamente considerados, os aliados do 
imperador alemão, o que é tanto mais notável se atenta-se para o fato de que 
estes glosadores, durante os primeiros tempos, mantiveram amistosas relações 
com a margravina Matilde de Tuszien, partidária do papa Gregório VII. Irnerio, 
sem dúvida, se colocou abertamente do lado do imperador Enrique V. Essa 
amizade dos glosadores com os imperador, especialmente íntima na época dos 
Staufen, subsistiu por longo tempo”[24]. 
Para o historiador do direito Antonio Manuel Hespanha, a glosa não foi única e 
nessa variação é possível encontrar um caráter de sistematização, que estará 
mais em evidência nos comentadores. Assim, diz Hespanha: 
“A glosa – explicação breve de um passo do Corpus Iuris obscuro ou que 
suscitasse dificuldades- era, portanto, o objetivo do trabalho desta escola; no 
entanto, o trabalho da escola encerra uma gama muito variada de tipos literários: 
desde a simples glosa exegética ou que indicava os lugares paralelos até 
passando pela formulação de regras doutrinais (brocarda, regulae), pela 
discussão de questões jurídicas controversas (dissensiones doctorum, 
quaestiones vexatae ou disputae), pelo arrolamento dos argumentos utilizáveis 
nas discussões jurídicas (argumenta), pela análise dos casos práticos. Em 
alguns destes tipos literários as preocupações de síntese e de sistematização já 
são sensíveis”[25]. 
A relação dos glosadores e dos imperadores trouxe proveito para ambas as 
partes, uma vez que os próprios glosadores aumentaram seu prestígio, enquanto 
que os imperadores conseguiram uma legitimação do direito imperial, com as 
explicações do direito romano[26]. A relação entre glosadores e imperadores não 
visava apenas utilizar-se de um direito antigo, mas de criar um novo direito, como 
aponta Koschaker ao tratar das relações dos glosadores e dos imperadores para 
constituição de rendas imperiais: 
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“(….) a primeira vez, quando Frederico I, convidou os discípulos de Irnerio para 
auxiliar o parlamento de Roncaglia (1158), no qual, mediante a contitutio de 
regalibus, se pretendia legitimar as rendas imperiais pelo poder unitário do 
imperador fundamentado no Direito Romano. Os imperadores atuaram desse 
modo, porque na luta contra o pontificado, acreditaram conseguir uma grande 
vantagem cimentando seu poder, com ajuda dos glosadores, sobre os princípios 
do corpus iuris, e organizando uma nova idéia de Estado, de conformidade com 
o Direito de Roma. Por essa razão concedeu Frederico I a Bolonha tantos 
privilégios, e o mesmo fez seus sucessores, enviaram suas leis para publicação 
aos glosadores, incorporando-as nos corpus iuris”[27]. 
Os comentadores pertencem a segunda escola ligada à recepção do direito 
romano antigo, localizada no século XIV. Os comentários saiam do campo da 
mera junção de regras jurídicas para uma interpretação e para uma investigação 
da razão da lei com base nos textos doe Direito Romano. Há também uma busca 
pela conciliação legislativa, que levava ao árduo trabalho de conciliaro ius 
comune com o ius speciale (local). Destaca-se como importantes comentadores: 
Bártolo, com seus “Comentários” que buscava uma sistematização do Direito e 
“Conselhos” com pareceres, Cino e Pistóia, e Baldo de Ulbaldes. 
Uma das mais importantes tarefas dos comentadores foi a de conselheiros e 
pareceristas, pois é nessa função que os conhecedores dos textos de direito 
romano reelaboram o direito antigo para resolver um caso concreto. 
“Os comentadores (…) transformaram-se nos grandes conselheiros dos 
príncipes, das comunas de dos particulares, emitem opiniões e pareceres 
(consilia) e ajudam a dar mais um passo na unificação ou, pelo menos, na 
harmonização dos direitos locais espalhados pela Cristandade. Eles conciliam 
direitos locais entre si, pela via do direito comum, o ius commune, ou seja, o 
direito romano erudito, acadêmico”[28]. 
Gilissen destaca a atuação desses comentadores no século XI, que buscavam 
criar um direito que ia além o direito local, utilizando-se para isso do direito 
romano. A diferença entre os direitos não era desconhecida dos professores das 
universidades de direito, porém, segundo Gilissen havia um propósito para a 
adoção de um direito erudito baseado no direito romano, como se pode ver no 
seguinte trecho do autor: 
“(….) os professores elaboram uma ciência do direito, independente dos 
numerosos sistemas jurídicos efetivamente em vigor nas diferentes regiões da 
Europa. Esta ciência do direito não era idêntica à da época romana, porque os 
professores da Baixa Idade Média não viviam, apesar de tudo, inteiramente fora 
do mundo do seu tempo; na sua interpretação dos textos romanos, eram numa 
certa medida influenciados pelas idéias da época, designadamente pela filosofia 
cristã e também pelas instituições da Baixa Idade Média. O sistema jurídico, que 
assim eleboravam, era todavia um direito teórico, um direito erudito, muito mais 
próximo do direito romano do que dos direitos positivos locais da sua época. 
Esse direito erudito apresentava algumas vantagens em relação às centenas ou 
mesmo milhares de direitos locais: 
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* Era um direito escrito, enquanto os direitos das diferentes regiões da Europa 
ainda, na sua maior parte, consuetudinários, isto é, não escritos, com todas as 
conseqüências que derivam da incerteza e da insegurança do costume; 
* Era comum a todos os mestres (com reserva de algumas variantes na 
interpretação), aparecia assim, e foi alías reconhecido finalmente, como um 
direito comum (ius commune) da Europa continental 
*Era muito mais amplo e mais completo que os direitos locais, compreendendo 
numerosas instituições que a sociedade feudal não conhecida (ou que já não 
conhecia) e que as necessidades do desenvolvimento econômico tornavam 
úteis; o direito erudito pode assim desempenhar a função de direito supletivo 
para colmatar as lacunas das leis e costumes locais 
* Era mais evoluído, porque tinha sido elaborado com base em textos jurídicos 
que refletiam a vida duma sociedade muito desenvolvida, na qual a maior parte 
dos vestígios das sociedades arcaicas tinham desaparecido; aparecia assim 
como um direito útil ao progresso econômico e social, em relação às instituições 
da Idade Média”[29]. 
Gilissen partilha da importância do direito dos eruditos que transformava o direito 
local, utilizando-se de bases do direito romano, mas principalmente de sua 
reputação. O autor não deixa de ressaltar que o direito romano era mais 
“evoluído”, fruto e uma “sociedade mais desenvolvida”, em uma nítida 
desvalorização da sociedade e da cultura medieval, porém o autor mostra o 
sentimento que os juristas da Idade Média podem ter explorado, ou seja, a 
retomada do direito romano apontava para uma “evolução”. Aqui defende-se que 
não se trata de uma evolução, mas de uma criação do direito que buscava maior 
adequação à sociedade que se transformava. 
Ao atuarem politicamente nos Estados, como conselheiros ou mesmo como 
juristas,os comentadores passaram a utilizar o Direito Romano não apenas 
como objeto de estudo, mas como instrumento de mudança social. O direito 
romano é utilizado como uma bandeira de legitimidade dos pareceres dos 
comentadores, que interpretavam o direito romano com base em outros valores. 
Nem todo o direito romano teve importância para os glosadores e comentadores, 
uma vez que estes selecionaram nos textos romanos o que tinha relação com o 
direito que buscavam implantar na sociedade medieval. Para Wieacker foi 
recepcionado as normas privadas do direito romano, mas o direito político, o 
direito penal e o direito processual, foram pouco recepcionados, devido a 
incompatibilidades com as instituições presentes na Idade Média alemã[30]. 
“Desde a Idade Média que os intelectuais partilham também com outros 
intelectuais europeus a convicção de que o direito romano é a ordem jurídica 
original do império ocidental sem referência à sua nacionalidade, de que ele é o 
direito natural por força de sua autoridade espiritual. A redescoberta das 
Pandectas, favoreceu, de fato, esta convicção dando uma formulação espiritual 
à idéia de Estado e de direito do império universal dos Hohenstauffen, ela não 
conduziu, no entanto, nem à aplicação do direito romano em todo o território do 
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império, nem fundamentou (em conseqüência da ficção superiorem non 
recognosscens imperator est in sua terra) por exemplo, a recepção fora do 
Império, como na Europa ocidental, na Hungria e na Polônia. Só com a recepção 
prática surge a tradição, favorecida por Melanchton, de que o Imperador Lothar 
Von Supplinburg teria, em 1135, recebido expressamente o direito romano 
através de uma lei imperial: a mais tarde polemicamente designada “lenda 
lotática”. A formação ou a consideração desta tradição só foi possível 
precisamente quando se necessitou, após o desaparecimento daquelas 
convicções medievais, de uma nova legitimação do direito romano”[31]. 
O papel dos comentadores, ou pós-glosadores, também foi o de incorporar 
textos que não eram de Direito Romano e “romanizar” esses textos. Essa 
atividade tem de ser entendida no contexto dos fins da Idade Média, em que a 
questão das citações e respeito ao texto legal original não estavam dentre as 
preocupações principais. Porém, não se pode descartar a influência política para 
esses textos novos serem “romanizados”. Esse fato é ressaltado por Margadant, 
no seguinte trecho: 
“(…) os pós-glosadores aproveitaram de seus conhecimentos de 
direito justinianeo, em combinação com uma técnica muito especial de 
interpretação, permitida na Idade Média, mas que se consideraria extremamente 
criticável na vida acadêmica moderna, para “romanizar” vários novos ramos do 
direito, criando novas instituições ou doutrinas, freqüentemente de frases 
secundárias do Corpus Iuris (…)”[32]. 
Devido a esse papel dos glosadores e principalmente dos comentadores, o 
Direito romano antigo foi sendo alterado, transformado, reelaborado pelas 
interpretações e seleções. Na Idade Média não se pode dizer mais que o que se 
estudava nas universidades era o Direito romano tal qual existia em Roma, se é 
que a codificação escrita expressava realmente o Direito romano antigo. Essas 
“recepções”, que são reelaborações, permitiram que o Direito Romano chegasse 
ao mundo moderno, diferente do que aconteceu com o direito grego antigo, como 
afirma José Reinaldo Lima Lopes: 
“Apesar disso, é bom lembrar que o direito romano só nos chega porque foi 
“redescoberto” e verdadeiramente “reinventado” duas vezes na Europa 
ocidental: a primeira vez nos séculos XII a XV e a segunda vez no século XX, 
respectivamente pelos juristas da universidade medieval, glosadores e 
comentadores, e pelos professores alemães que tentaram a unificação jurídica 
nacional”[33] 
Assim, defende-se aqui a idéia de que a mudança dos glosadores para os 
comentadores teve relação íntima com a política[34] e, portanto, com os reis, 
com o Estado nacional que se formava e com uma criação do direito. A 
“recepção” do Direito romano na Idade média é muito mais obra da política do 
que da dita “perfeição técnica” do Direito romano, por isso ainda é moderna a 
afirmação de Koschaker: 
“Estou convencido da verdade invariável da minha tese: Ainda que o direito 
romano fosse mil vezes mais perfeito do que na realidade foi, não teria levado 
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um só estudante a ouvir os glosadores em Bolonha se aquele Direito não tivesse 
sido adotado, no próprio tempo, como o Direito do Imperium romanum. Certo 
que se tropeça freqüentemente na afirmação de que a difusão prodigiosa do 
Direito Romano na Europa se deve as suas excelsas qualidades intrínsecas, e a 
circunstância de ser o Direito tecnicamente mais perfeito do mundo já conhecido. 
Com isto se pretende justificar a recepção do Direito romano assim como o 
moderno ensino romanístico. (…) Má impressão poderia causar a afirmação feita 
por Teodoro Mommsen, o grande historiador da Roma antiga, de que o tal elogio 
do direito romano constitui uma verdadeira impertinência. É verdade que 
revelaria considerável falta de tato quem se apresenta diante de um povo com 
esta afirmação: vosso direito não serve: o direito romano é o melhor do mundo 
e nada podeis fazer de melhor, a não ser adotar o Direito Romano”[35] 
5. O papel dos glosadores e comentadores na recepção do Direito Romano, 
segundo Weber 
Max Weber é um profundo crítico da utilização do Direito Romano para 
aproximação com o direito moderno, uma vez que para ele essa aproximação 
era artificial, já que para entender o direito moderno era preciso estudar as 
instituições do capitalismo. O conhecimento de Weber sobre o direito romano 
decorre de seus estudos em direito. A própria tese de Weber tratava sobre o 
tema: “A história das sociedades comerciais na Idade Média”. Ao longo de sua 
extensa obra “Economia e Sociedade” há inúmeras referências ao direito romano 
e inclusive a recepção do Direito Romano na Idade Média. A recepção do direito 
romano na Idade média é tida como a mais importante revolução do pensamento 
jurídico, ou nas palavras de Weber: 
“Quanto à importância para a revolução do pensamento jurídico e também do 
direito material vigente, nenhuma delas pôde comparar-se à recepção do direito 
romano”[36]. 
Weber entende que a utilização do Direito Romano pela Idade Média teve como 
impulsionador um forte componente político, que era a estruturação dos Estados 
nacionais: 
“A recepção do direito romano, na medida em que cooperam nela os 
imperadores (Frederico I) e mais tarde os príncipes, deve-se principalmente à 
posição soberana do monarca estabelecida na codificação de Justiniano”[37] 
A recepção do direito romano na Idade Média não ocorreu propriamente pelo 
conteúdo deste direito, segundo Weber, mas sim no seu caráter formal. O 
conteúdo do Direito romano não foi o que foi recepcionado pelo Direito Medieval, 
mas apenas a forma, isto porque existia uma série de institutos jurídicos mais 
adequados à sociedade medieval. Nas palavras de Weber: 
“A recepção das disposições materiais do direito romano, ao contrário, em nada 
importavaprecisamente aos interessados no direito mais “modernos”, isto é, os 
burgueses; as instituições do direito mercantil e de bens de raiz urbanos da Idade 
Média correspondiam muito melhor às suas necessidades. Somente as 
qualidades gerais formais do direito romano eram as que, com a especialização 
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inevitavelmente crescente da vida jurídica, lhe possibilitavam a vitória por toda 
parte, menos onde, como na Inglaterra, existia uma instrução jurídica nacional 
que era protegida por interesses poderosos. Estas qualidades formais também 
condicionaram que a justiça principesca patrimonial do Ocidente não seguisse 
os caminhos de um cultivo genuinamente patriarcal da justiça material e do bem-
estar, como ocorreu em outras partes. Um fato fundamental que impediu isto foi 
a instrução formalista dos juristas, dos quais esta justiça precisava como 
funcionários, conservando para a justiça do Ocidente aquele grau de caráter 
formal-jurídico que lhe é específico, em oposição à maioria das outras 
administrações patrimoniais do direito. O respeito ao direito romano e à formação 
romanista dominava, por isso, tudo que os inícios da Época Moderna viam de 
codificações principescas –em sua grande maioria criações do racionalismo de 
juristas com formação universitária”[38]. 
Assim, o próprio Estado moderno não tem relações com o direito romano em seu 
conteúdo, mas apenas na forma do direito: 
“O direito racional do Estado ocidental moderno, segundo o qual decide o 
funcionalismo especializado, origina-se em seus aspectos formais, mas não no 
conteúdo, no direito romano”[39]. 
As universidades com um ensino formal de direito terá papel fundamental para 
Weber na sistematização do direito e na transformação do Direito romano: 
“A recepção do direito romano criou – e nisso fundamentação o ponto de vista 
sociológico, usa posição de poder- uma nova camada de honoratiores jurídicos: 
os juristas doutores, que receberam das universidades o diploma de doutor na 
base de sua formação jurídica literária. As conseqüências disso para as 
qualidades formais do direito foram muito importantes”[40]. 
A importância das universidades é destacada em Weber, uma vez que são elas 
que criam um direito formalizado e ligado a uma burocracia, que teve origens na 
estrutura eclesiástica. Esse direito das universidades era muito diferente do 
direito romano antigo, uma vez que neste existia um componente racional muito 
forte. Nas palavras de Weber: 
“(…) os juristas formados em universidades, constitui um tipo ocidental peculiar, 
e peculiar, antes de tudo, ao continente europeu, de que determinou, de maneira 
dominante, toda a estrutura política. A formidável influência póstuma do direito 
romano, sob a forma que havia assumido no Estado romano burocratizado da 
decadência, transparece, em nenhuma outra arte, mais claramente do no fato 
seguinte: a revolução da coisa pública, entendida essa expressão em termos de 
progresso no sentido de uma forma estatal racional foi, em todos os lugares, 
obra de juristas esclarecidos. Pode-se constatá-lo até mesmo na Inglaterra, 
embora as grandes corporações nacionais de juristas hajam, ali, combatido a 
difusão do direito romano. Em nenhuma outra parte do mundo se encontra 
qualquer analogia com esse fenômeno. (…) Nenhuma destas duas correntes foi 
capaz de racionalizar de maneira completa o procedimento legal. Para levar a 
bom termo esse propósito, foi necessário estabelecer contato com a antiga 
jurisprudência dos romanos que, tal como é sabido, resultou de uma estrutura 
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política absolutamente singular, pois que se elevou de cidade-Estado à categoria 
de império mundial. A obra foi primeiramente empreendida pelos juristas 
italianos, importando citar, a seguir, o Usus modernus dos pandectistas, 
os canonistas da alta Idade Média e, por fim, as teorias do direito natural 
elaboradas pelo pensamento jurídico cristão, que depois, se secularizaram. Os 
grandes representantes desse racionalismo jurídico foram a podesta italiana, os 
legistas franceses (que encontraram meios legais para solapar o poder dos 
senhores em benefício do poder dos reis), os canonistas e os teólogos que 
professaram as teorias de direito natural nos concílios, os juristas de corte e os 
hábeis juízes dos príncipes do continente, os teóricos do direito natural na 
Holanda e os monarcômacos, os juristas ingleses da Coroa e o parlamento, 
a noblesse de robe do Parlamento de Paris e, enfim os advogados da Revolução 
Francesa. Sem esse racionalismo jurídico, não se poderia compreender o 
surgimento do absolutismo real, nem a grande revolução”[41]. 
Weber é um dos poucos a apresentar como o Direito Romano foi utilizado pelos 
glosadores e comentadores, tornando o direito que era casuístico, um direito 
altamente abstrato, que poderia ser utilizado por diferentes países e ligado mais 
a princípios do que à casuística. A afirmação de que o direito romano teria caráter 
universal e por isso foi adotada na Idade Média, é apontada por Weber como 
uma inverdade e isso pode ser facilmente visto em uma análise das codificações 
romanas que eram casuísticas. A universalização da legislação foi feita pelos 
medievais, em especial, pelos glosadores, que descolaram as máximas de seus 
contextos social-histórico-temporal e transformaram estas em princípios, que 
proporcionavam uma racionalização e uma sistematização do direito. É isso que 
diz Weber no seguinte trecho: 
“Já na época imperial romana, o direito romano começara a torna-se um objeto 
de atividade puramente literárias. Naturalmente, isso significava algo muito 
diferente, por exemplo, da criação de “livros de direito” pelos honoratiores 
jurídicos medievais da Alemanha ou da França ou de compêndios de direito 
vigente, pelos juristas infleses- por mais importantes que tenham sido também 
as conseqüências destes, pois sob a influência do conhecimento filosófico, por 
mais superficial que fosse, dos juristas da Antiguidade aumentou 
consideravelmente a importância do elemento puramente lógico no pensamento 
jurídico. E isto tinha aqui – onde nenhuma vinculação a um direito sagrado e 
nenhum interesse teológico ou ético-material comprometiam este pensamento, 
forçando-o assim ao caminho de uma casuística puramente especulativa- 
conseqüências muito mais fortes para a forma da prática jurídica. Germes do 
princípio, segundo o qual aquilo que o jurista não pode pensar e construir não 
pode ter existência jurídica, encontram-se de fato já entre os juristas romanos. 
Máximas puramente lógicas como quod universitati debentur, ingulis non debetur 
ou quod ab initio vitiosum est, non potest tractu temporis convalescere e grande 
número de outras semelhantes, formam parte deste tipo de pensamento. Só que 
se trata de produções ocasionais, não-sistematicas, de uma lógica jurídica 
abstrata, as quais são acrescentadas como explicações à decisão pronunciada 
no caso individual, concretamente motivada, mas que em outros casos eram 
ignoradas e postas de parte, às vezes, até pelos mesmos juristas. O caráter 
substancialmente indutivo, empírico do pensamento jurídico não se alteroupor 
isso, ou apenas pouco. Mas a situação mudou completamente no momento a 
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recepção do direito romano. Primeiro intensificou-se, naturalmente, o processo 
de abstração das próprias instituições jurídicas, que se iniciara com o 
desenvolvimento do direito civil romano rumo a um direito imperial. Para 
possibilitar a recepção, as instituições jurídicas romanas (…) tinham de ser 
despidas de todos os restos de uma vinculação nacional e elevadas à esfera do 
logicamente abstrato, e o direito romano tinha que ser absolutizado como o 
direito “logicamente correto” por excelência. Isto ocorreu, de fato, no decorrer de 
mais se seiscentos anos de trabalho da jurisprudência do direito comum. Mas ao 
mesmo tempo o caráter do pensamento jurídico continuou deslocando-se para 
o lado formal lógico. Os ocasionais aperçus brilhantes dos juristas romanos, , do 
tipo das máximas citadas, depois de desligados da conexão com o caso 
concreto, como já se encontravam nas Pandectas, foram elevados ao último 
nível de princípios jurídicos, na base dos quais se argumentava dedutivamente. 
O que em alto grau faltara aos juristas romanos – as categorias puramente 
sistemáticas – foi criado agora”[42]. 
O papel dos glosadores é aqui ressaltado, uma vez que foram eles que tornaram 
o direito romano um direito sistematizado e de caráter universal, já que é um 
direito ligado à lógica e menos a casuística. Esse papel dos glosadores vai além 
da mera compilação das normas romanas escritas existentes e conhecidas à 
época. Os glosadores tiveram um papel de criação importante, pois eles criaram 
um novo direito, mais abstrato e mais formal do que o que existia na Roma 
antiga. A “hieginização” do direito romano antigo de toda sua relação com os 
fatos tornou possível a utilização do direito romano para pensar não só a Idade 
Média, mas também a Alemanha, quando da segunda recepção e para alguns 
romanistas, todo e qualquer direito civil na atualidade. A idéia defendida por 
Weber de que o direito romano da Idade Média não recepcionou o direito no seu 
conteúdo, mas na forma é dividida por outros historiadores[43]. 
Os “comentadores” com seus pareceres não são esquecidos por Weber, que 
aponta a atuação dos comentadores como suplementar aos códigos. 
“Laudos emitidos por faculdades constituíam no continente a autoridade última 
em casos jurídicos duvidosos, e aos honoratiores jurídicos típicos eram juízes e 
notários com instrução acadêmica, ao lado dos advogados. Onde quer que 
faltasse um estamento de juristas nacional organizado, o direito romano avançou 
vitoriosamente com a ajuda deles: com exceção da Inglaterra, do norte da França 
e da Escandinávia, conquistou toda a Europa, da Espana e até a Escócia e a 
Rússia. Na Itália, os portadores do desenvolvimento, por trás do qual estava 
quase toda parte o principado, eram, pelo menos de início, sobretudo os notários, 
ao passo que, no Norte, eram particularmente os juízes doutos dos 
príncipes”[44]. 
O que os juristas universitários da Idade Média criam é para Weber, um sistema 
do direito, uma ciência que proporciona regras para utilização das normas 
jurídicas, eliminando contradições. Mais do que um novo direito a Idade Média 
criara uma ciência do direito, que incluía inclusive regras e interpretação e de 
utilização do direito: 
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“Entretanto, na aplicação desse direito as situações de fato totalmente 
estranhas, desconhecidas na Antiguidade, apareceu no primeiro plano a tarefa 
quase exclusiva de construir juridicamente, sem contradições, a situação de 
fatos. Tornou-se assim, decisiva para o pensamento jurídico a única concepção, 
hoje predominante, do direito como um complexo, sem contradições lógicas 
internas e sem lacunas, de normas a serem aplicadas. (…) O que fomentou esse 
desenvolvimento foram necessidades intelectuais internas dos teóricos jurídicos 
e dos doutores por eles formados: uma típica aristocracia da cultura literária na 
área do direito”[45]. 
Esse aspecto da sistematização racional do direito que foi produzido na Idade 
Média, não era encontrado na antiguidade[46]. A formação da burocracia e a 
utilização formal do direito é fato essencial para Weber no Estado moderno e 
isso não está presente na antiguidade, como aponta Weber quando trata do 
direito romano e das Institutas de Gaio: 
“Por outro lado, faltava à vida jurídica, até a época imperial, muito mais do que 
se costuma admitir, não apenas caráter sintético-constitutivo como também 
caráter racional-sitemático. O direito praticamente vigente recebeu a sistemática, 
de certo modo definitivo, por intermédio da burocracia bizantina. Esta, no 
entanto, no que refere ao rigor formal do pensamento jurídico estava atrasada 
em relação à prática dos consulentes jurídicos da época republicana e do 
principado. E dentro da literatura dos consulentes jurídicos observa-se que a 
obra mais útil do ponto de vista sistemático, as Institutas de Gaio, um compêndio 
de introdução ao ensino jurídico, tem como autor um homem desconhecido, isto 
é, que durante a vida certamente não gozava de autoridade e, sobretudo 
encontrava-se fora do círculo dos honoratiores jurídicos. Desse modo, esta obra 
ocupa posição semelhante à dos modernos compêndios de repetidores, ao lado 
dos produtos de grandes teóricos do direito. Só que os produtos literários dos 
juristas práticos romanos, ao lado dos quais se encontrava, não tinham o caráter 
de um sistema jurídico racional, tal como nasce de um ensino acadêmico, mas 
continham quase sempre coleções, organizadas sem grande racionalidade, de 
decisões isoladas”[47]. 
Weber fala da ligação entre a recepção do Direito romano e o surgimento do 
capitalismo, como entende que faz Below em seu livro Die Ursachen der 
Rezeption[48]. Nas palavras de Weber: 
“Tem-se atribuído à recepção do direito romano tanto a decadência do 
estamento camponês quanto o surgimento do capitalismo. Sem dúvida, houve 
casos em que a aplicação de princípios do direto romano foi prejudicial aos 
camponeses, por exemplo, a nova interpretação dos antigos direitos da 
comunidade era considerado o proprietário, no sentido do direito romano, e que 
as propriedades dos membros da comunidade local camponesa como servidões 
significava que o chefe da comunidade era considerado como o proprietário, no 
sentido do direito romano, e que as propriedades dos membros da comunidade 
estavam sujeitas a servidões. Mas, por outro lado, a realeza da França dificultou 
extraordinariamente a desapropriação dos camponeses pelos senhores 
territoriais, precisamente pela atuação dos seus juristas versados em direito 
romano. Do mesmo modo, o direito romano não constitui em si a causa do 
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surgimento do capitalismo. A Inglaterra, o berço do capitalismo, nunca adotou o 
direito romano, porque ali existia em conexão com o tribunalreal um estamento 
de advogados que não deixava ninguém tocar nas intituições jurídicas nacionais. 
Dominava o ensino jurídico, recrutavam-se dele (e ainda recrutam) os juízes, 
impedindo ele, por isso, que as universidades inglesas ensinassem o direito 
romano, para não ver a posição de juiz ocupada por pessoas que não faziam 
parte dele”[49]. 
A ligação entre Direito romano e sua recepção, com o capitalismo, na medida 
em que o Direito recepcionado proporcionou a formação de uma burocracia, que 
foi utilizada pelo Estado moderno: 
“O ocidente, ao contrário, dispunha de um direito formalmente aperfeiçoado, 
produto do gênio romano, e os funcionários formados na base deste direito eram 
superiores a todos os demais como técnicos administrativos. Do ponto de vista 
da história econômica, este fato tornou-se importante porque a aliança entre o 
Estado e a jurisprudência formal favorecia indiretamente o capitalismo”[50]. 
Weber diz textualmente que a utilização do direito romano pelos juristas e pelo 
Estado, não foi obra dos burgueses, que não tiveram ganhos diretos com esse 
direito formalizado: 
“Mas nessa forma específica de tornar lógico o direito não tinham, de modo 
algum, participação decisiva, diversamente da tendência geral a um direito 
formal, necessidades da vida dos interessados burgueses num direito calculável, 
por exemplo, pois a esta necessidade, como mostra a experiência corresponde 
igualmente e muitas vezes até melhor um direito formal empírico, vinculado a 
precedentes judiciais. Ao contrário, as conseqüências da construção jurídica 
puramente lógica comportam-se freqüentemente, de modo totalmente irracional 
e disparatado em relação às expectativas dos interessados no comércio. Nisso 
tem origem o chamado caráter “alheio à vida” do direito puramente lógico”[51]. 
Para Weber a recepção do direito romano proporcionou a criação do 
pensamento formal jurídico[52], e é desse direito medieval que advém das 
instituições do direito moderno e não do direito romano. Assim, a recepção do 
direito romano, significa mais para Weber do que a própria utilização do direito 
romano antigo, mas de uma transformação do direito. Nas palavras de Weber: 
“Também todas as instituições características do capitalismo moderno, provém 
de outras fontes, e não do direito romano: o título de renda (o título de dívidas e 
o empréstimo de guerra) provém do direito medieval, influenciado por 
concepções jurídicas germânicas; também as ações originam-se no direito 
medieval e no moderno, sendo desconhecidas na Antiguidade; o mesmo se 
aplica à letra de câmbio, havendo contribuído para sua constituição o direito 
árabe, o italiano, o alemão e o inglês, a sociedade mercantil é um produto da 
Idade Média, conhecendo a Antiguidade somente o empreendimento 
por commenda, tanto a hipoteca com registro de cadastro de imóveis e o título 
hipotecário quanto a representação tem sua origem na Idade Média e não na 
Antiguidade. Decisiva tornou-se a recepção do direito romano somente na 
medida em que criou o pensamento formal-jurídico. De acordo com sua 
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estrutura, todo direito orienta-se ou por princípios formal-jurídicos ou por 
princípios materiais, significando os últimos o princípio utilitário e o do sentido 
natural de justiça, aplicados, por exemplo, na jurisdição do cádi islâmico. A 
justiça de toda teocracia e de todo absolutismo orienta-se em sentido material e 
de toda burocracia, ao contrário em sentido formal-jurídico. Frederico, o Grande, 
odiava os juristas porque aplicavam constantemente seus editos materialmente 
orientados à sua maneira formalista, colocando-os deste modo, ao serviço de 
fins, dos quais ele nada queria saber. O direito romano foi aqui (como também 
por outra parte) o meio para extirpar o direito material, em favor do formal”[53]. 
A recepção do direito romano na Idade Média é tida por Weber como uma 
criação com base em códigos principescos (no caso o de Justiniano), que tinha 
como base assegurar o poder os próprios príncipes na Idade Média e que teve 
como principal colaborador os juristas que se formaram nas universidades. Estes 
juristas criaram pela primeira vez um direito racional, focado no formalismo, 
sistematizado, que buscava a universalidade e desconsiderava o casuísmo. 
Weber não aceita a idéia da mera transposição do direito romano, pois entende 
que há uma criação dos juristas medievais e que essa foi fundamental para 
entender todo o direito a partir de então. A racionalidade criada pelos juristas 
medievais é que, segundo Weber, irá proporcionar uma das condições para o 
aparecimento do capitalismo, que é o direito um certo grau de racionalidade. 
A proposta desse artigo de entender a recepção do direito romano na Idade 
média como uma tradição inventada, que perpetuava a heteronomia, não é 
totalmente excludente da interpretação proposta por Weber. A racionalização do 
direito e sua formalização, a formação de uma burocracia estatal são aspectos 
importantes e não excluem que esse direito recebido fosse heterônomo. 
6. O direito romano recepcionado na Idade média, como uma tradição 
inventada de uma sociedade heterônoma 
O Direito Romano recepcionado não é o mesmo direito romano antigo, pois eles 
são produtos de sociedades diferentes. Usar um pelo outro somente pode ser 
sinônimo de desconhecimento das fontes de uma História do Direito ou crença 
na tradição inventada na Idade Média. 
“O direito romano do qual falamos, e com o qual operaram os juristas ocidentais, 
não é o direito dos romanos históricos, mas aquele revivido pela Idade Média e 
depois utilizado para sistematizar e codificar o direito moderno e contemporâneo. 
Lembrando a fase de Jhering, a ‘terceira vez’ em que Roma deu leis ao mundo 
já não era a vez ou a voz da Roma clássica. Tratava-se antes de um eco, não 
de uma vós própria”[54]. 
Os reis no fim da Idade Média constroem conjuntamente com os juristas 
universitários a idéia de continuidade do Direito romano, para legitimar seu poder 
perante o poder ainda forte dos nobres. Essa continuidade precisa ser construída 
para se garantir a centralização do poder político em torno do rei. A idéia de um 
novo império e a de um direito romano que se utilizava dessa noção, também foi 
utilizada pelos juristas acadêmicos para essa aproximação, que nada tinha de 
ingênua, como aponta Koschaker: 
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“Sabemos que desde o século XI e especialmente na época dos Staufen, se 
acredita na idéia de que o imperador alemão é sucessor dos imperadores 
romanos. Desse pensamento resulta que o direito romano, como o direito 
do imperium romanum é Direito imperial, e como tal, direito próprio do império 
no ocidente. Como direito imperial que era, pretendeu reger os países do 
ocidente da Europa (…) Estas idéias foram as que utilizaram os glosadores. Para 
eles o imperium romanum não havia nem caducado, e estava vivente no império 
cristão do ocidente, por essa razão, o Direito desse império não poderia nem 
deveria ser outro que o Direito Romano. Só havia um imperium, e, portanto, um 
só direito, o romano, deveria regê-lo. Unum esse ius, cum unum sit imperium seafirma nas questões de iuris subtilitatibus, obra que se não é de Irnério, pertence 
com toda certeza a época dos glosadores. O direito romano representa desse 
modo a universalidade do império, e o viver secundum legem romanan, é a prova 
relação com este”.[55] 
O que chegou ao conhecimento dos modernos é um parlimpsexto do Direito 
romano antigo. Há diversas camadas de direitos que se sobrepõem quando se 
estuda o Direito romano e uma dessas camadas foi criada na Idade Média com 
os glosadores e comentadores e os reis. Porém, não se pode fazer uma 
destilação, buscando a pureza, pois as camadas se intercalam impedindo um 
trabalho arqueológico exato, que distinga a produção de cada sociedade. Não 
se pode também afirmar que há somente o Direito romano antigo, desprezando-
se o importante papel dos juristas medievais e seu papel inovador no modo de 
se encarar o direito como uma ciência. 
A “recepção” aponta para a elasticidade do direito romano antigo, que pode ser 
adequado, com reservas e novas interpretações, para uma sociedade medieval. 
Há nessa discussão pelo menos dois direitos distintos: o romano antigo e o 
romano medieval. Esses direitos são diferentes, pois são criações de sociedades 
diferentes, uma em que havia escravos, tinha foco na política, no poderio bélico 
para conquista de territórios, que acreditava em uma religião poli-deística (no 
início, quando não era cristã); e outra que vinha buscando deixar um passado 
feudal, que tinha uma religião centralizada em um deus único, etc.. As 
instituições sociais são muito diferentes, levando a acreditar que esse 
apagamento levava a uma aproximação da sociedade medieval com a 
sociedade romana, que representava uma sociedade com “valores elevados” 
que deveriam ser retomados. Esse é exatamente o que faz as sociedades 
heterônomas, que como afirma Castoriadis: “Essas sociedades oculta o fato de 
que elas mesmas criaram suas próprias instituições”[56]. 
Os reis medievais não afirmavam que suas regras deveriam ser seguidas para 
o aumento de seu poder frente à outros nessa sociedade, mas atribuíam a uma 
legislação antiga o poder de retomar valores e instituições perdidas. Os reis 
medievais não atribuíram às suas leis uma inspiração divina, mas atribuíram a 
um povo que se “divinizava” um direito que era criado nas universidades de 
direito da Idade Média[57]. 
O novo assume uma cara antiga, secular. O direito novíssimo ganha respeito e 
legitimidade quando foi colado à um direito que apesar de recém redescoberto é 
colocado como se tivesse sobrevivido à séculos. Afasta-se o direito local, o 
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direito dos costumes, que poderiam dar privilégios e retirar a possibilidade do 
poder querido pelos reis medievais fortes e toda uma rede de pessoas ligadas a 
eles (nobres, burocratas, etc.). 
Não se pode crer na existência de recepção de um direito, quando este foi fruto 
de uma decisão que não consultou o povo, que seria destinatário daquele direito. 
A recepção do direito romano na Idade Média foi um instrumento de legitimação 
de um poder heterônomo, em que não predominou a participação daquela 
sociedade para quem as normas foram feitas. Longe de ser uma “recepção”, foi 
uma imposição. 
Se o direito é criação social, entende-se que o melhor seria que ela fosse criação 
que busca autonomia. Essa autonomia é construída no âmbito da ética e da 
política, sendo somente possível na democracia, como aponta Castoriadis: 
“A autonomia não é uma liberdade cartesiana, menos ainda a sartriana, a 
fulguração sem densidade e sem engajamento. A autonomia no plano individual 
significa o estabelecimento de uma nova relação entre o eu e o seu inconsciente, 
não ara eliminar este último, mas para conseguir filtrar a arte de desejos que 
assa nos atos e nas palavras. Esta autonomia individual tem pesadas condições 
instituídas. Precisamos pois, de instituições de autonomia, de instituições que 
dêem a cada um uma autonomia efetiva enquanto membro de uma coletividade 
e que permita desenvolver sua autonomia individual. Isto só é possível pela 
instauração de um regime verdadeiramente- e não apenas em palavras- 
democrático. Em um regime assim, participo efetivamente na instauração das 
leis sob as quais eu vivo”.[58] 
Estudar a história mostra que esses raros momentos de um direito autônomo 
são possíveis e que longe de serem utopias, eles são nortes para se caminhar e 
se buscar uma sociedade mais igualitária, em que o bom, o belo e o justo possam 
ser deliberados pro todos e nunca impostos. A história do Direito aponta para 
diversos direitos possíveis e para um movimento de transformação que faz parte 
da criação humana 
 
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