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A nova esquerda e o dilema da igualdade

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA
Igualdade e identidade: um dilema à esquerda
Niterói
Maio de 2019
Rafael Valladão Rocha
Introdução
O objetivo deste breve texto é apresentar e discutir as diferentes acepções de igualdade no léxico político da Nova Esquerda. Para tanto, vamos analisar como o termo é abordado em obras contemporâneas do pensamento de esquerda. Selecionamos os seguintes textos: Esquerda e Direita, do cientista político italiano Norberto Bobbio; O progressista de ontem e o do amanhã, do historiador e cientista político estadunidense Mark Lilla; Dominação e Resistência, do cientista político brasileiro Luis Felipe Miguel; O socialismo no século 21, do sociólogo e cientista político argentino Atílio Boron. 
O que preocupa fundamentalmente os autores são as possibilidades de reinvenção da esquerda no cenário contemporâneo, caracterizado pela descrença na via revolucionária contra o capitalismo, e por alterações consideráveis nas sociedades contemporâneas em comparação às sociedades burguesas vistas por Marx e Engels. Se a crítica à economia capitalista persistiu, não persistiu a confiança no método revolucionário, dado o caráter genocida e antidemocrático de regimes socialistas como o soviético ou o chinês. O desgaste moral da revolução como opção viável ao sistema capitalista, associado à constatação da heterogeneidade socioeconômica das sociedades contemporâneas, conduziu as esquerdas a um esforço de autocrítica e de reflexão quanto ao futuro do pensamento e da práxis socialista.
Há um passado socialista de ambígua memória: reverenciado por radicais e rechaçado por moderados. E há um futuro que angustia os críticos da economia capitalista em todo o mundo, associados ao que convencionalmente chamamos de nova esquerda, em contraposição à esquerda bolchevique. Diante desse futuro, propõem-se vários caminhos para a realização de um projeto alternativo ao capitalismo. A despeito das diferentes perspectivas adotadas pelos autores quanto à apreciação desse problema, todos convergem na aceitação da igualdade como o guia axiológico por excelência. Concordam que a esquerda se orienta no sentido de minimizar as desigualdades sociais e maximizar as oportunidades de fruição da vida. Na terminologia de Bobbio, a igualdade é a “estrela-polar” das esquerdas.
A concordância quanto à centralidade da igualdade no projeto socialista, contudo, não significa concordância quanto aos meios materiais empregados para sua realização. É verdade que a afirmação da igualdade como valor fundamental das esquerdas já representa um avanço considerável, dado que, na Guerra Fria, a esquerda, representada pela poderosa União Soviética, aparentava preocupar-se mais fortemente com a indústria bélica e tecnologia de guerra. Apesar do prodigioso desenvolvimento técnico-científico alcançado pelo Estado soviético, já vimos que sua ruína em fins do século passado significou um golpe na possibilidade de resistência real ao capitalismo. E o que poderia ser recuperado do socialismo como alternativa ao capitalismo, para além da simples corrida armamentista protagonizada pelas duas potências que repartiram o globo a partir dos anos 50/60?
No plano dos valores éticos, Atílio Boron afirma que o socialismo deve orientar-se por ideais de solidariedade e de união popular contra o egoísmo consumista do capitalismo. O autor é peremptório em proclamar a “preeminência axiológica do socialismo como forma superior de civilização fundada no predomínio de valores altruístas, solidários e democráticos”. Para além da questão meramente ética, Boron faz uma crítica, sem especificar o destinatário, ao tipo economicista da União Soviética:
É preciso destacar que um socialismo renovado face ao século 21 não pode ficar reduzido à construção de uma nova fórmula econômica, por mais decididamente anticapitalista que esta seja. (...) Trata-se, então, da criação de um homem e de uma mulher novos, de uma nova cultura e de um novo tipo de sociedade, caracterizados pela abolição de toda forma de opressão e de exploração, o primado da solidariedade, o fim da separação entre governantes e governados e a reconciliação do homem com a natureza (BORON, 2010).
A realização de tão altos objetivos exige a combinação de fatores materiais e ideais. Além da efetiva mobilização dos recursos necessários à execução de políticas orientadas à diminuição das desigualdades, exige-se também uma consciência coletiva marcada por ideais enraizados o mais profundamente possível. Não por acaso, as dificuldades envolvidas na realização de um projeto socialista adaptado ao século 21 são arroladas e discutidas por todos os autores aqui selecionados. Todos se orientam pela igualdade e seus derivados (solidariedade, horizontalismo e senso de pertencimento à comunidade), e todos se defrontam com o desafio de propor um caminho praticamente viável e eticamente irrepreensível.
A estrela-polar de Norberto Bobbio
Importante intérprete do pensamento político ocidental, o cientista político italiano Norberto Bobbio deixou obras de acentuada relevância na contemporaneidade. Um opúsculo chamado Esquerda e Direita – razões e significados de uma divisão política é um pequeno grande livro. Nele, o autor primeiramente responde às críticas contra a díade esquerda/direita para então reafirmar a atualidade da díade como referência indispensável na análise política. Bobbio se esforça no sentido de esvaziar a díade de conteúdos contingentes e conjunturais, encarando-a como eixo formal de sustentação ideológica e pragmática da atividade política.
	Nesse sentido, a primeira crítica interessante do autor à literatura política de sua época se dirige à ausência de critérios tão objetivos quanto possível para a definição de esquerda e de direita. Ao encarar a discussão, Bobbio se depara com critérios mirabolantes e imprecisos que não permitem distinguir com clareza as fronteiras entre ações e ideias de esquerda e de direita. O autor propõe então a utilização do binômio igualdade/desigualdade como um referencial na diferenciação entre um campo e outro da atividade política. Note-se que Bobbio percebe uma tendência geral da psicologia humana em discernir a realidade a partir de polos opostos como céu/inferno, claro/escuro, seguro/inseguro, amigo/inimigo, etc. Em vez de recusar a inclinação do ser social em separar o mundo em dicotomias, Bobbio utiliza-a a seu favor e nos fornece uma chave dicotômica para a compreensão da díade esquerda/direita.
	Ao longo do desenvolvimento histórico das sociedades humanas, as ideias opostas de igualdade e desigualdade se cristalizaram em instituições adaptadas à configuração cultural de seus locais de origem. Entre os tupi-guarani, população nativa do Brasil, a igualdade marcante entre homens e mulheres comuns tinha por contrapeso a posição desigual ocupada pelo líder político-religioso. Na civilização feudal da Europa, a igualdade pertencia a grupos homogêneos como a nobreza ou o clero, que, por sua vez, não se reconheciam como iguais um em relação ao outro. Nas modernas sociedades capitalistas, a igualdade se tornou mero acessório formal das instituições liberal-democráticas, ao passo que a desigualdade socioeconômica se aprofundou em níveis nunca antes registrados. Ou seja, é sensato tomar o binômio igualdade/desigualdade como eixo definidor da díade esquerda/direita. Aonde existiu sociedade humana, existiu algum nível de igualdade contrastado por algum nível de desigualdade; níveis sempre mais ou menos legitimados a partir de justificativas morais.
	Atento às circunstâncias materiais que constrangem a pureza dos ideais, Bobbio nos indica as variáveis que determinam os maiores ou menores níveis de igualdade na sociedade política. Afinal, se há o impulso axiológico na direção da redução das diferenciações entre os homens, é necessário perguntar em que os homens serão iguais. Essas variáveis se referem a que grupos receberão recursos e ônus da vida social; a que ônus e bônus serãorepartidos entre esses grupos; a quais critérios orientam a repartição. Trata-se de perguntar: igualdade entre quem? Sobre o quê? Com base em quê? A combinação dessas variáveis gera uma diversificada gama de fenômenos. Independentemente de como se arranjem as variáveis, a igualdade permanece como o ideal superior a orientar a ação e o pensamento político.
	Bobbio afirma que a esquerda é caracterizada pelo esforço em maximizar a igualdade e minimizar as desigualdades, em contraposição à direita, complacente com as desigualdades ou francamente simpática às distinções entre os homens. No interior da esquerda, contudo, Bobbio identifica uma variação interessante entre uma doutrina igualitária e uma obsessão igualitarista. A primeira se refere tão somente ao esforço de atenuar os efeitos danosos da desigualdade e valorizar os benefícios oriundos da igualdade; a segunda se refere às tentativas tresloucadas de eliminar as diferenças incontornáveis entre os homens, como as diferenças de sanidade mental ou de mobilidade física. A primeira quer fornecer comida aos miseráveis, empregos dignos ao trabalhador, educação de qualidade aos jovens; a segunda quer abolir manicômios e cadeias com o objetivo de nivelar totalmente a vida social.
	Há também uma distinção interessante entre os tipos de igualdade e desigualdade. Bobbio opõe diferenças naturais a diferenças sociais, destacando sensatamente o que temos de comum com outros seres humanos e o que possuímos de atributos socialmente construídos. Em vista disso, a esquerda tende a ser crítica das desigualdades sociais porque enfatiza o caráter artificial das estruturas sociais, construídas ao gosto das forças dominantes na coletividade; a direita tende a desaprovar as tentativas de subversão das desigualdades consideradas usuais ou mesmo naturais. Diante da diversificação do corpo social, a esquerda valoriza a capacidade inventiva e criadora da coletividade, enquanto a direita atribui maior importância à proteção das diferenças que integram o repertório cultural. À disposição criadora da esquerda opõe-se o proverbial imobilismo da direita. Bobbio não deixa de fazer uma releitura da velha oposição entre o impulso transformador e o ímpeto conservador.
	Bobbio conclui que o pensamento e a prática da esquerda estão comprometidos com a redução das desigualdades sociais e ao abrandamento das desigualdades naturais. Uma política de esquerda deve incentivar a acessibilidade urbana a cadeirantes, deve investir na mudança em estruturas profundas que provoquem as desigualdades de raiz socioeconômica. A construção de uma sociedade igualitária e coletivista é o objetivo da esquerda, como se depreende da lógica contida em autores como Rousseau e Marx, críticos da propriedade privada, entendida como o pecado original da sociedade civil. Do senso egoísta de propriedade originou-se a dispersão dos indivíduos em coletividades desorganizadas e isoladas em seus próprios limites.
Antipolítica e pseudopolítica em Mark Lilla
A igualdade pressupõe um senso de pertencimento à mesma comunidade humana, seja ela uma nação de proporções continentais como o Brasil, seja ela uma pequena cidade universitária. Um senso de pertencimento não se confunde com homogeneidade de nenhuma natureza, como já nos disse Norberto Bobbio. Trata-se de aglutinar pessoas, unidas pelas condições objetivas de vida em sociedade, em torno de um pacto social que distribua igualmente direitos e deveres, com a finalidade de tornar a convivência mais justa – leia-se menos desigual.
	Em vista disso, o historiador e cientista político estadunidense Mark Lilla tece duras críticas à esquerda de seu país, identificada como liberal-progressista. Segundo o autor, os EUA foram infestados por ativistas hipersensíveis e individualistas, votados integralmente ao culto da vítima de injustiças sociais (negros, homossexuais, mulheres, etc). Escondida nas universidades, essa esquerda se desvencilhou da incômoda tarefa de conviver com a diversidade humana e se fechou em tribos ideológicas incomunicáveis com o mundo exterior – os impuros.
	Lilla analisa a gênese da política de identidades e localiza seus primórdios na era do governo Reagan, culturalmente marcada pelo individualismo e pela resistência a todo tipo de associação em torno de objetivos coletivos. Por meio da análise histórico-sociológica, Lilla nos apresenta a duas eras distintas na história estadunidense, chamadas pelo autor de dispensações: a de Roosevelt e a de Reagan. Embora Lilla atribua às dispensações o nome dos presidentes Franklin Delano Roosevelt e Ronald Reagan, não se deve limitar essas dispensações aos limites dos mandatos presidenciais. Ao contrário, a noção de dispensação se refere aos efeitos sociais e culturais produzidos ao longo de períodos temporais específicos.
	Primeiramente, Lilla aborda a dispensação Roosevelt, caracterizada pelo esforço de se criarem vínculos solidários e politicamente sustentáveis em meio às instabilidades econômicas e sociais provocadas na sociedade norte-americana a partir de 1929. Roosevelt teria reunido forças políticas, sociais e econômicas num mesmo projeto de recuperação econômica, tendo posteriormente engajado os EUA na guerra contra o nazifascismo, desempenhando um papel fundamental no combate ao Eixo. Logo após, Lilla nos coloca de frente ao individualismo endêmico da dispensação Reagan. O presidente que impulsionou o neoliberalismo e o consumo conspícuo, o Ronald Reagan reconhecido como o frasista antipolítico de “o melhor programa social é um emprego” ou “o governo não é a solução, o governo é o problema”.	 A ênfase no eu em contraposição ao nós não foi certamente inventada por Reagan, mas foi estimulada em sua presidência, aproveitando-se das raízes individualistas presentes na mentalidade estadunidense.
	Durante a dispensação Reagan, os problemas sociais referentes às coletividades se viram desafiadas pelos problemas sociais referentes às identidades. Passou-se do coletivo maior ao coletivo menor, ou seja, das complexas coletividades de estados nacionais como os EUA para grupos minoritários como os homossexuais, os negros, as mulheres, etc. Deixou-se de lado a identidade estadunidense e adotou-se a identidade dos oprimidos, sejam eles quem forem. E embora alguns desses grupos não sejam minoritários em termos quantitativos, eles o são em termos qualitativos pois se referem às parcelas organizadas desses grupos. No Brasil, por exemplo, negros e pardos são a maioria da população, mas negros e pardos ideologizados e cooptados por movimentos identitários permanecem minoritários.
	Esses grupos identitários, porém, não foram devidamente absorvidos pelo Partido Democrata, núcleo político-partidário do liberalismo progressista dos EUA. Se o fossem, o partido talvez exercesse sobre eles poder suficiente para neutralizá-los e mantê-los em posição inofensiva. O que aconteceu, ao contrário, foi a crescente ocupação do partido pelos grupos identitários, o que contribuiu significativamente para o esvaziamento popular dos Democratas. É verdade que o partido foi ocupado (ou se deixou ocupar) por elementos sectários como os identitários em função, parcialmente, do próprio esvaziamento dos partidos como instrumento usual de atividade política. Parte dos estadunidenses preferia se agrupar em movimentos sociais, não nos partidos tradicionais, como ocorreu durante a luta por direitos civis para os negros. Porém, os partidos foram eclipsados pelos movimentos sociais. Segundo Lilla:
O que restava eram movimentos e mais movimentos operando basicamente fora do Partido Democrata. As consequências dessa migração para fora do partido foram grandes. As forças que atuam na política partidária saudável são centrípetas: estimulam a aglutinação de facções e interesses para planejar objetivos e estratégias compartilhados. Forçam todo mundo a pensar, ou pelo menos a falar, sobre o bem comum. Na política dos movimentos, as forças são todas centrífugas, incentivando a divisão em facções cada vez menores, obcecadas com problemas exclusivos e praticandorituais de suposta superioridade ideológica (LILLA, 2018).
Os movimentos identitários afirmam um conjunto de características partilhadas apenas por seus membros particulares, diferentemente de noções mais generalistas como cidadania ou mesmo política. Lilla nos faz ver que a dispersão de interesses coletivamente inclusivos em interesses comezinhos de grupos sectários se fez, ao menos parcialmente, em função do esvaziamento de sentido coletivo da política. Engajar-se em questões coletivas parecia entediante e fútil.
Paralelamente ao individualismo crescente da dispensação Reagan, houve o crescente desprestígio da política como atividade digna de envolvimento individual. Um político não parecia ser um profissional admirável e meritório. Lilla afirma que o grupo identitário se enxerga como o provedor de “significado pessoal profundo” da política para os indivíduos que lhe servem de membros, os que não querem ser apenas um “dente numa enorme engrenagem”.
O indivíduo quer envolver-se no grupo identitário com o objetivo de compensar sua sensação de insignificância com a sensação lisonjeira de “lutar” por seus “direitos”, quando, na verdade, sua luta se resume a ações politicamente inúteis como promover gestos de rebeldia estéril que em nada facilitam a agregação básica da atividade política. Dessa afirmação circular do individualismo surge o problema da igualdade: como promover a política igualitária quando o esquerdista médio se sente especial demais paras se confundir na massa homogênea dos iguais. Ironia da história: o liberal estadunidense vê os apelos por igualdade geral e inclusiva com desconfiança e suspeita semelhantes às do nobre francês diante da gritaria jacobina por mais igualdade. Diz Lilla:
O liberalismo identitário baniu a palavra nós para os confins mais distantes do discurso político respeitável. Contudo, sem ela não existe futuro de longo prazo para o liberalismo. Historicamente, os liberais apelaram ao nós para assegurar direitos iguais, querem que nós tenhamos um sentimento de solidariedade para com os desafortunados e os ajudemos. Nós é onde tudo começa. (...) Mas, ao abandonar a palavra, os liberais identitários caíram numa contradição estratégica. Quando falam de si mesmos, querem afirmar sua diferença e reagem com petulância a qualquer indício de que sua experiência ou suas necessidades particulares estejam sendo apagadas. Mas quando cobram ação política para ajudar seu grupo X, exigem-na de pessoas que eles próprios definiram como não X e cuja experiência, dizem, não se comparam às suas (LILLA, 2018).
Eis a contradição: os grupos identitários afirmam sua própria identidade como uma insígnia que os distingue claramente do restante da coletividade. Mas, para viabilizar a execução de suas demandas por meio da “política”, fazem-no apelando ao sentimento de pertença a um grupo maior. Negam o envolvimento político ao se fixarem na afirmação circular das diferenças, mas dependem da política para atingir seus objetivos. Onde fica a igualdade? Como incluir os grupos identitários em políticas mais generalistas e relacionadas ao bem comum?
	Lilla não apenas critica a obsessão identitária com grupos minoritários, ele também coloca um problema relevante: como acomodar esses grupos autocentrados em políticas que se dirijam às grandes coletividades? Pois é certo que o tribalismo identitário não será eliminado tão cedo, então o novo objetivo colocado no horizonte é incluí-los num mesmo projeto político sem que tal inclusão implique necessariamente na dispersão da coletividade. Trata-se de conceder a tais grupos espaços de participação no interior da esquerda, sem que tais espaços sejam de todo alienados para o usufruto isolado de grupos minúsculos. Esse problema é abordado por Luis Felipe Miguel e Atílio Boron.
O problema da inclusão dos excludentes
Os grupos identitários são produto do desenvolvimento histórico das sociedades ocidentais, especialmente a estadunidense. Gerados em meio à prosperidade material proporcionada pelo capitalismo avançado, os grupos identitários se isolam do restante da coletividade com o fim de afirmar a própria especificidade em contraposição à relativa uniformidade presente nas grandes democracias de massas. Integrar-se à coletividade significa abdicar das particularidades que os tornam singulares e únicos. Em geral, o ativista identitário não quer diluir-se na massa popular. A política, porém, faz-se por meio da aglutinação de forças e interesses orientados segundo objetivos comuns, a despeito das diferenças internas a cada grupo. Coloca-se um desafio à esquerda: como incluir em sua ação política os grupos pseudopolíticos do identitarismo?
	Esse problema pode ser abordado em duas vias. Primeiramente, como esses grupos podem se mover no sentido de buscar uma aproximação efetiva com as esquerdas não ligadas ao identitarismo; depois, como as esquerdas generalistas podem se esforçar no sentido de unir forças aos identitários contra o capitalismo e a favor de uma sociedade mais justa. Luis Felipe Miguel nos diz que os grupos minoritários não devem ser negligenciados por nenhum projeto genuinamente democrático, o que impõe o dever de costurar políticas destinadas às maiorias sem necessariamente esmagar as minorias. Trata-se de incluir as minorias, não afastá-las do processo democrático. Esse imperativo democrático vem da tradição liberal, especificamente da obra de John Stuart Mill. Logo, não se trata ainda de reinventar o socialismo, mas apenas de atualizar os parâmetros liberais de inclusão e reunião de forças sociopolíticas.
	Para o cientista político, de nada adianta aos grupos majoritários se esforçarem em incluir as minorias em seu projeto político se, a despeito da necessidade imperiosa de união, os grupos minoritários não saírem do discurso autocentrado e passarem à união democrática que fala em nós. O anseio por autoexpressão das tribos identitárias não deve ser sufocado, mas, por sua vez, não deverá abafar a expressão das demandas e dos interesses genuínos do coletivo.
Não se trata de negar legitimidade a esse anseio por autoexpressão. Mas, se ele não faz o trânsito da voz individual para a voz coletiva, permanece no âmbito do pré-político. Em parte, também, porque a ação política exige um esforço de transcendência (o que não significa anulação) da individualidade: ela diz respeito à sorte comum daquelas e daqueles que participam de determinada comunidade. Por isso, ela não pode se reduzir à expressão do eu; ela precisa buscar aquilo que conecta cada um com outros (MIGUEL, 2018).
Não é difícil perceber as entranhas narcísicas do identitarismo: meu grupo, minha vida, minha voz. Acontece que não existe política em primeira pessoa. Luis Felipe Miguel questiona por que tal narcisismo se tornou tão comum e arrola duas respostas. Primeiramente, a revolução digital forneceu aos indivíduos usuários das redes sociais uma plataforma de comunicação virtual com o mundo; além disso, o testemunho pessoal é psicologicamente mais incisivo que o testemunho de uma época ou de determinada sociedade. 
Ora, se o dono de um perfil no Facebook pode emitir opiniões e juízos sobre tudo que acontece no mundo, e se tais opiniões e juízos não deixarão nunca de ser uma autoexpressão (por mais que evoque referenciais coletivos como “os negros”, “as mulheres”), então é fácil concluir que o monólogo escrito diariamente pelos indivíduos nas redes sociais só aprofunda o isolamento dos grupos identitários. Se é verdade que tal isolamento é facilitado pela crise de representação e de representatividade assinalada por Miguel, também é verdade que os meios institucionais de representação política não podem ser aprimorados em sua capacidade de representar se os grupos representáveis não se permitirem representar.
	Uma esquerda liberal progressista ou socialista não pode abdicar, porém, de incluir o maior número de grupos sociais possível em suas fileiras. Como diz Atílio Boron, “não existe um único sujeito da transformação socialista”. O sociólogo argentino é incisivo em afirmar que o socialismodeve ter por horizonte normativo uma constelação de valores solidários que não se encontram no céu capitalista. Portanto, não faria sentido repensar o projeto socialista sem a inclusão dos grupos identitários, por mais refratários que estes sejam à aglutinação. A máxima rousseauniana de “forçar o homem à liberdade” ganha sentido nesse contexto: as identidades singulares devem se acomodar no conjunto político-partidário do socialismo do século 21.
	Boron afirma que as sociedades burguesas originais eram marcadamente divididas entre a minoria exploradora e a maioria explorada. Sem grandes diversificações de classe, o corpo social da Inglaterra do século 19, por exemplo, era rigidamente hierarquizado entre burgueses e proletários, com uma minúscula classe-média formada por profissionais liberais de pequeno porte. Naquele contexto, a luta de classes se operava entre grupos relativamente homogêneos, sem grandes variações mesmo entre os operários urbanos e os camponeses, iguais na exploração pelo capital industrial ou rural. Contudo, as sociedades contemporâneas não são igualmente rígidas em sua divisão de classes. Há grupos situados nos setores médios a exigir participação no poder. Os partidos, entendidos por Boron como os agentes primaciais da revolução, devem incluí-los em suas fileiras sem perder de vista a necessidade de conquistar e exercer o poder.
	
Movimentos que se neguem a sequer pensar em tomar o poder e partidos que se desentendam da necessidade de representar genuína e democraticamente a ampla diversidade de interesses, valores, aspirações e esperanças das classes e camadas subalternas são uma receita perfeita para a perpetuação da dominação da burguesia e do capital imperialista. Movimentos que se estancam na mera expressão catártica de sua identidade, desprovidos de um projeto de poder (seja pela via insurrecional ou pela via institucional), não fazem outra coisa a não ser fortalecer a tirania das classes dominantes (BORON, 2010).
Faz-se necessário uma aclimatação dos partidos socialistas aos tempos modernos. Tempos de aprofundamento da exploração dos trabalhadores pelas classes dominantes, mas também de intensificação das opressões desvinculadas ao modo de produção capitalista. Em vista da vinda de novos grupos ao cenário político, a esquerda não deve ignorá-los por crer no protagonismo exclusivo do proletariado na revolta anticapitalista. Trata-se de unir forças, por mais que tais forças se mostrem refratárias à união. É preciso afinal forçar o homem à liberdade.
Bibliografia
1. BOBBIO, Norberto. Esquerda e direita: razões e significados de uma divisão política. Editora da UNESP. São Paulo, 1999.
2. BORON, Atílio. O socialismo no século 21: há vida após o neoliberalismo? Expressão Popular. São Paulo, 2010.
3. LILLA, Mark. O progressista de ontem e o do amanhã: desafios da democracia liberal no mundo pós-políticas identitárias. Companhia das Letras. São Paulo, 2018.
4. MIGUEL, Luis Felipe. Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. Boitempo. Rio de Janeiro, 2018.

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