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ESCOLA DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS CRIMINAIS CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA LUCAS ROSA ZYNGIER A INGERÊNCIA COMO FONTE DO DEVER DE GARANTIDOR DO COMPLIANCE OFFICER Porto Alegre 2020 LUCAS ROSA ZYNGIER A INGERÊNCIA COMO FONTE DO DEVER DE GARANTIDOR DO COMPLIANCE OFFICER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Almeida Ruivo Porto Alegre 2020 LUCAS ROSA ZYNGIER A INGERÊNCIA COMO FONTE DO DEVER DE GARANTIDOR DO COMPLIANCE OFFICER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovada em: ___ de _____________ de ________. BANCA EXAMINADORA: _____________________________________ _____________________________________ _____________________________________ Porto Alegre 2020 RESUMO Não é novidade que, na conjuntura atual, o instituto do criminal compliance está se tornando cada vez mais essencial às grandes empresas, constituindo-se como um dos pilares da boa governança corporativa. Como consequência deste fato e da crescente divulgação de acontecimentos relacionados à macrocriminalidade econômico-financeira, a figura dos compliance officers – os quais são tidos como os “guardiões das boas práticas empresariais” – passou a receber considerável destaque. Ante este cenário, costuma-se questionar sobre a possibilidade destes profissionais serem criminalmente penalizados por condutas ilícitas ocorrentes no âmbito corporativo. A resposta mostra-se complexa, já que depende de uma multiplicidade de fatores. Motivado por esta dificuldade, o presente trabalho busca colaborar para uma melhor compreensão desta problemática. Para tanto, direcionar-se-á a abordagem para um ponto que não costuma receber a devida atenção por parte da doutrina: a ingerência como fonte do dever de garantidor do oficial de compliance nos delitos omissivos impróprios. Palavras-chave: criminal compliance. compliance officer. responsabilidade penal. ingerência. delitos omissivos impróprios. ABSTRACT It is not new that, in the current conjuncture, the criminal compliance institute is becoming increasingly essential to large companies, constituting itself as one of the pillars of good corporate governance. As a consequence of this fact and the growing dissemination of events related to economic and financial macro- crime, the figure of compliance officers - who are considered to be the “guardians of good business practices” - started to receive considerable prominence. In this scenario, it is customary to question the possibility of these professionals being criminally penalized for illegal conduct occurring in the corporate sphere. The answer proves to be complex since it depends on a multiplicity of factors. Motivated by this difficulty, the present work seeks to collaborate for a better understanding of this problem. To this end, the approach will be directed to a point that does not usually receive due attention from the doctrine: interference as a source of the duty of guarantor of the compliance officer in improper omissive crimes. Keywords: criminal compliance. compliance officer. criminal liability. interference. improper omissive crimes. SUMÁRIO 1) INTRODUÇÃO.................................................................................................6 2) DELITOS OMISSIVOS IMPRÓPRIOS.............................................................7 3) FONTES DO DEVER DE GARANTIDOR........................................................8 4) DEVERES FUNCIONAIS EXTRAPENAIS DO COMPLIANCE OFFICER.....11 5) INGERÊNCIA COMO FONTE DO DEVER DE GARANTIDOR.....................16 6) CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................21 7) REFERÊNCIAS.............................................................................................22 6 1) INTRODUÇÃO De modo a combater a macrocriminalidade econômico-financeira, passou a haver, por parte do Estado, um crescente incentivo – e, em segmentos mais sensíveis, uma imposição – às corporações para que implementassem sistemas de autofiscalização. Desta maneira, criar-se-ia um cenário propício para o estabelecimento da dita autorregulação regulada no âmbito empresarial. Nesta conjuntura, a ideia de governança corporativa ganhou notoriedade, posto que ela abarca um importante leque de práticas – dentre as quais se enfatiza o compliance – que objetivam proporcionar um funcionamento ético e autorregulado das companhias. Em razão disso, as atenções, em especial do grande empresariado brasileiro, recaíram sobre os programas de integridade e, consequentemente, sobre os compliance officers. Passou-se a questionar, então, sobre as possibilidades de responsabilização penal do referido profissional, o qual é tido, comumente, como um “guardião das boas práticas empresariais”. Esta temática tem sido amplamente debatida nos meios acadêmico e jurisprudencial, razão pela qual há uma série de opiniões dissonantes sobre ela. Entretanto, há um recorte específico desta matéria que merece maior atenção doutrinária: “Quais são as balizas a serem fixadas para que haja a imputação de determinada prática delitiva ao oficial de compliance a partir do instituto da ingerência (agir precedente criador de um risco para a ocorrência do resultado)?”. A partir desta dificuldade, surgiu a necessidade do presente trabalho. Deste modo, buscar-se-á estabelecer parâmetros capazes de possibilitar que os sujeitos em questão sejam criminalmente penalizados por condutas ilícitas ocorrentes na esfera corporativa. É o que se passa objetivamente a fazer. 7 2) DELITOS OMISSIVOS IMPRÓPRIOS Tendo em vista que o presente artigo explorará a temática da ingerência como fonte do dever de garantidor do compliance officer, revela-se valioso o fornecimento de um brevíssimo substrato teórico sobre os delitos omissivos impróprios. Os crimes comissivos por omissão não estão previstos na legislação sob a forma de um ilícito-típico específico, posto que são, na realidade, um produto da combinação de uma cláusula geral – também chamada de norma de ajustamento de tipicidade1 – com o tipo penal de um crime comissivo2. Neste seguimento, importante salientar que a referida cláusula é indispensável para a adequação típica, visto que as limitações semânticas do verbo nuclear de uma norma proibitiva inviabilizam um juízo de equivalência entre um ato comissivo e um omissivo. No Direito brasileiro, a cláusula de equiparação3, ora em questão, seria aquela constante no artigo 13, § 2º, do Código Penal. Tal regramento dispõe que será penalmente responsabilizado aquele que adotar conduta omissiva quando possuir um dever de agir para evitar o resultado e, aliado a isto, tiver condições concretas para atuar desta maneira. Neste ponto, enfatiza-se uma questão fundamental: a responsabilidade penal, neste caso, se dá pelo não impedimento do resultado e, não, pela causação deste4. Por fim, realça-se que os delitos omissivos impróprios estão estruturados com base no ideal de que certos agentes possuem um especialvínculo com a vítima ou com a fonte geradora de perigo. Diante disso, estes sujeitos passam a ser detentores de deveres peculiares, tornando-se garantidores do bem jurídico pertencente a uma pessoa determinada ou a outras atingidas pela fonte de 1 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. p. 187. 2 D’ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e Crimes Omissivos Próprios: Contribuindo à Compreensão do Crime como Ofensa ao Bem Jurídico. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 221. 3 Expressão utilizada por DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, t. 1, 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 916. 4 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Crimes omissivos no direito brasileiro. Revista de Direito Penal e Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, n. 33, 1982. p. 44. 8 perigo5. Brevemente: o Direito, de antemão, obriga certas pessoas a zelar pela incolumidade de bens jurídicos específicos6. 3) FONTES DO DEVER DE GARANTIDOR No que se refere às fontes do dever de garantidor, elucida-se que há três vertentes doutrinárias que buscam explicar esta questão, quais sejam: a) teoria formal; b) teoria material; c) teoria formal-material. A teoria formal, decorrente do pensamento naturalista e positivista dominante até o início do século XX7, teve notável aceitação na academia europeia até meados da década de 1930. Apesar disso, ainda hoje, possui importantes defensores, sendo uma relevante referência para a dogmática penal8. Esta corrente defendia que seria essencial a formatação das fontes do dever de garantia a partir dos ideais de certeza e de segurança jurídica, destacando que, para o Direito Penal, são relevantes os deveres jurídicos, devendo-se desconsiderar os ditos deveres morais9. Pode-se asseverar, portanto, que esta doutrina privilegia a interpretação restritiva, em prol do princípio da taxatividade da lei penal, construindo um ponto de vista a partir da excepcionalidade da responsabilidade omissiva10. Deste modo, destaca-se que a especial obrigação de agir deve estar, necessariamente, expressa nas fontes jurídicas formais, ou seja, a posição de garantia deriva de previsão legal ou contratual explícita. Entende-se que Feuerbach tenha sido o responsável por sistematizar os deveres de garantidor a 5 TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Rio de Janeiro: ILACP, 1996. p. 43. 6 MUNHOZ NETO, Alcides. Os crimes omissivos no Brasil. Revista de Direito Penal e Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, n. 33, 1982. p. 88. 7 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. t. 1. 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 934. 8 ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. t. 2. Buenos Aires: Thomson Reuters, 2014. p. 846-847. 9 DIAS, op. cit., p. 934. Em sentido similar: RUIVO, Marcelo Almeida. Os crimes omissivos impróprios como delitos de violação de dever no nacional-socialismo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 131, 2017. p. 241. 10 PRADO, Luiz Régis. Algumas Notas sobre a Omissão Punível. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 872, 2008. p. 447. 9 partir da lei e do contrato11. Para ele, o delito omissivo sempre pressupõe um especial fundamento jurídico (lei ou contrato), sem o qual não poderia haver nenhum crime por omissão12. Diante da insuficiência da teoria formalista para solucionar uma série de problemáticas, Armin Kaufmann confeccionou a teoria material do dever jurídico, almejando balizar os deveres de garantia desde perspectivas materiais e funcionais13. Para o autor, o diferencial do delito omissivo impróprio não reside na sua estrutura dogmática, mas sim em referenciais axiológicos14. Ante este cenário, a posição de garantia passa a ser sistematizada com fundamento em um plano jurídico-material e não meramente formal, sendo imperioso considerar o sentido social inerente aos diversos deveres15. Como consequência disso, a figura do garantidor passa a ter a finalidade de proteger um bem jurídico específico (dever de assistência, custódia) e de vigiar ou controlar determinada fonte de perigo ou risco (dever de supervisão, domínio)16. Válido realçar, outrossim, que a tese de Kaufmann é, atualmente, amplamente admitida na jurisprudência e na doutrina alemãs17. Relativamente à teoria formal-material, frisa-se que ela teve o seu surgimento ocasionado pelo fato de que inúmeros autores consideravam que seria temerário determinar as fontes do dever de garantia sob o enfoque exclusivo dos critérios materiais. Para eles, a adoção única destes parâmetros teria o condão de implicar uma expansão ilimitada de deveres especiais de agir, havendo flagrante violação do princípio da taxatividade da lei penal. Destarte, revelava-se imperiosa a conjugação entre os critérios materiais e os formais. 11 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 314. 12 FEUERBACH, Paul Johann Ansel Ritter von. Tratado de derecho penal común vigente em Alemania. Buenos Aires: Hammurabi, 1989. p. 66. 13 GÖSSEL, Karl Heinz. Sobre el estado actual de la teoría del delito de omisión. Idearium, Argentina, Mendoza, n. 8/9, 1982/1983, p. 16. 14 KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Madrid: Marcial Pons, 2006. p. 282-283. 15 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4ª Edição. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 565. 16 PRADO, Luiz Régis. Algumas Notas sobre a Omissão Punível. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 872, 2008. p. 448. 17 ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. t. 2. Buenos Aires: Thomson Reuters, 2014. p. 847. 10 Dentre os estudiosos que adotaram esta perspectiva, cita-se Jescheck18, Gössel19, Figueiredo Dias20 e Tavares21. Cada um destes autores, assim como os outros concordantes com este entendimento, estruturaram os seus estudos apoiados no ponto de vista basilar de que a posição de garantidor deriva tanto de fontes jurídicas formais quanto materiais, como é o caso da especial proteção de determinados bens jurídicos e do controle das fontes de perigo. Efetuadas as devidas considerações quanto às diversas teorias sobre as fontes do dever de garantia, revela-se pertinente explanar como a legislação penal brasileira se amolda diante desta miscelânea de compreensões. Conforme o já referido artigo 13, § 2º, do Código Penal, o omitente será responsabilizado quando devia e podia agir para evitar o resultado, sendo que tal dever decorre de três fontes: a) a lei que impõe obrigação de cuidado, proteção e vigilância; b) a aceitação voluntária, por meio de contrato, de um dever de atuar para impedir o resultado; c) o comportamento anterior que criou o risco da ocorrência do resultado (a chamada ingerência). Pode-se dizer, por conseguinte, que o ordenamento jurídico pátrio adota a teoria formal do dever jurídico, visto que, em síntese, o dever de garante se origina da lei, contrato ou ingerência, fontes estas expressamente previstas no Código Penal (fonte formal). Válido ressaltar, ainda, que a previsão do artigo 13, § 2º, do Código Penal foi fortemente influenciada pelo posicionamento de Mezger, segundo o qual a fundamentação do especial dever de agir se originaria a partir de: a) preceito jurídico; b) especial aceitação, seja ela contratual ou negocial; c) agir precedente; d) outras relações concretas da vida23. No que tange à ingerência, objeto do presente trabalho, pode-se descrevê-la como sendo a situação na qual há uma sucessão de duas condutas, sendo a primeira desencadeadora de um curso de risco ou perigo e a segunda 18 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4ª Edição. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 565. 19 GÖSSEL,Karl Heinz. Sobre el estado actual de la teoría del delito de omisión. Idearium, Argentina, Mendoza, n. 8/9, 1982/1983. p. 26. 20 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, t. 1, 2ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 938. 21 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 319. 23 MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p. 122-123 11 consistente no não impedimento do resultado típico24. Cumpre ressaltar, neste seguimento, que esta fonte da posição de garante não goza de aceitação unânime pela doutrina25, especialmente por conta da sua excessiva extensão. Por conta disso, buscar-se-á estabelecer limites mínimos para que haja a imputação de responsabilidade penal a partir deste instituto. 4) DEVERES FUNCIONAIS EXTRAPENAIS DO COMPLIANCE OFFICER O sistema de economia de mercado deve ser norteado por uma série de valores, como, por exemplo, equidade e transparência nas transações econômicas27, livre concorrência28, entre outros. Por esta razão, o Estado tem buscado desenvolver estratégias de combate às condutas que possam desvirtuar os referidos postulados. Contudo, a atuação estatal, por si só, mostra- se insuficiente para reprimir as transgressões ocorrentes no cenário econômico29. Diante deste fato, o Estado passa a requerer ajuda das empresas para diminuir a ocorrência de procedimentos econômico-financeiros desviantes30. Assim, passa a haver um incentivo – e, em segmentos mais sensíveis, uma imposição31 – às corporações para que implementem programas de 24 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. ¿Posición de garante derivada de legítima defensa? La paradoja de Rudolphi. Revista para el Análisis del Derecho. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, n. 4, 2018. p. 06. 25 Dentre os que rejeitam a ingerência como fonte do dever de garante destacam-se: WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán: Parte General. 11ª Edição. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997. p. 255; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 538 e seguintes. 27 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. p. 181. 28 SCHMIDT, op cit., p. 53. 29 Neste sentido: SCHMIDT, op cit., p. 181; MARTÍN, Adán Nieto. La privatización de la lucha contra la corrupción. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Econômico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 192. 30 MARTÍN, op cit., p. 192. 31 CAVERO, Percy García. Las políticas anticorrupción en la empresa. Revista de Derecho de la Pontifícia Universidad Católica de Valparaíso. Valparaíso: Pontifícia Universidad Católica de Valparaíso, n. 47, 2016. p. 227. 12 autofiscalização, de modo que se concretize a dita autorregulação regulada32 no âmbito empresarial. Neste contexto, o conceito de governança corporativa ganhou notoriedade, visto que ele abrange uma série de práticas que visam a proporcionar um funcionamento ético e autorregulado das corporações, como, por exemplo, accountability (prestação responsável de contas), disclosure (transparência), fairness (senso de justiça) e, principalmente, o compliance33. No Brasil, os deveres de compliance passaram a ostentar significativa relevância jurídica com o surgimento da Lei nº 9.613/98 e da Resolução nº 2.554/98 do Conselho Monetário Nacional. A partir deste momento, as instituições financeiras e as empresas de capital aberto tornaram-se obrigadas a, respectivamente, cooperar com procedimentos investigatórios de lavagem de capitais e a criar mecanismos de controles internos com o fim último de prevenir atos de corrupção, de lavagem de capitais ou qualquer outro capaz de influir negativamente no adequado funcionamento do sistema financeiro34. Em 2012 e 2013, respectivamente, foram editadas as Leis nº 12.683 e nº 12.846. A primeira delas alterou significativamente a Lei nº 9.613/98, estendendo as obrigações de compliance e o rol de sujeitos que devem cumprir os deveres de controle e comunicação. No que se refere à segunda, destaca-se que ela promoveu um estímulo à criação de programas de compliance. Alcança-se tal conclusão pela leitura do seu artigo 7º, VIII, segundo o qual será levado em consideração, no momento da aplicação de sanções, “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”. Tendo em vista a crescente importância dada ao compliance, as atenções do grande empresariado brasileiro foram recaindo, consequentemente, aos compliance officers. 32 VILA, Ivó Coca. ¿Programas de cumplimiento como forma de autorregulación regulada?. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 51. 33 ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança Corporativa: Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. p. 183-186. 34 SAAVEDRA, Giovani Agostini. Reflexões iniciais sobre o controle penal dos deveres de compliance. In: Boletim IBCCrim, 2011, nº 226, p. 13-14. 13 Ressalta-se que as características destes profissionais não possuem contornos homogêneos35, isto é, eles terão funções distintas de acordo com as peculiaridades de cada empresa. Apesar desta heterogeneidade, revela-se possível citar determinadas tarefas que costumam ficar ao encargo dos sujeitos em questão, como, por exemplo: promoção de normas de conduta; análise prévia dos riscos penais envolvidos nos procedimentos da empresa; confecção de canais de denúncia, entre outras36. Geralmente, as incumbências destes indivíduos se referem ao desenvolvimento e à manutenção da vigência de políticas e procedimentos internos ordenados com o fim de a empresa e seus funcionários não praticarem atos infracionais na persecução dos objetivos sociais empresariais37. Relativamente à posição do oficial de compliance no âmbito corporativo, frisa-se que ele ocupa um espaço imediatamente subordinado aos órgãos de direção, similar ao de um alto gerente. Além disso, ele possui independência em termos organizativos, econômicos e materiais, ainda que careça de faculdades executivas38. Costuma-se afirmar, inclusive, que este profissional será eficaz quando a sua atuação se der com suficiente autonomia em relação à companhia, mas tendo, simultaneamente, apoio total dos recursos desta39. Em suma, o setor de compliance se constitui, apenas, em mais um órgão auxiliar40. No que toca aos deveres do compliance officer, impende frisar que estes lhe são atribuídos por delegação41. Brevemente: os deveres de garante pertencem, originariamente, ao empresário, uma vez que a sua liberdade 35 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 168. 36 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. Salvar al Oficial Ryan (Sobre la responsabilidad penal del oficial de cumplimiento). In: PUIG, Santiago Mir (org.) et al. Responsabilidad de la empresa y compliance. Programas de prevención, detección y reacción penal. Madrid: Edisofer, 2014, p. 316. 37 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 168. 38 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 321. 39 McCONNELL, Ryan; MARTIN, Jay; SIMON, Charlotte.Plan Now or Pay Later: The Role of Compliance in Criminal Cases. Houston Journal of International Law. Houston: University of Houston Law Center, vol. 33, n. 03, 2011, p. 55. 40 PLANAS, op cit., p. 321. 41 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. La responsabilidad penal individual en los delitos de empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Dykinson, 2018. p. 123. 14 empresarial é acompanhada, necessariamente, pelo dever de cuidar para que a pessoa jurídica não lesione bens jurídicos de terceiros42. Afirma-se, por conseguinte, que o oficial de compliance recebe, em linhas gerais, a delicada tarefa de cuidado com as fontes de perigo e de proteção de bens jurídicos alheios. Quanto à referida delegação de funções, pertinente demonstrar como ela se concretiza. Inicialmente, o empreendedor delega a coordenação e a execução de tarefas a determinadas pessoas (gerentes financeiros, de produção, de qualidade etc.). Deste modo, o seu dever de garante, referente às instalações e às atividades de risco, sofre uma mutação, transformando-se em um dever de supervisão e vigilância da atividade dos funcionários citados43. Em um segundo momento, o empresário, atualmente titular do dever de supervisão e vigilância, realiza nova delegação, sendo que, desta vez, em face do compliance officer. Destarte, a obrigação do proprietário do empreendimento deixa de ser a de supervisão ativa (desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais), passando a ser de supervisão passiva (comunicar-se com quem executa materialmente os encargos de vigilância e controle, assim como tomar providências quando restar configurada determinada situação de perigo a bens jurídicos)44. Depreende-se, portanto, que o oficial de compliance possui o dever de supervisão ativa. Ademais, pode-se afirmar que este profissional assumirá: a) em parte, o dever de controle sobre os perigos da atividade empresarial, uma vez que o empresário não pode delegá-lo por completo; b) na totalidade, o dever de supervisão e vigilância sobre os indivíduos que atuam no ambiente corporativo45. 42 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 322. 43 SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín. La responsabilidad penal individual en los delitos de empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Dykinson, 2018. p. 124. 44 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 175. 45 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 176. 15 Apresentado o panorama geral acerca das incumbências do compliance officer, importante dar ênfase aos deveres específicos que ficam sob sua tutela, podendo-se destacar quatro deles: a) dever de implementar e desenvolver programas de prevenção de infrações; b) dever de recepção e gestão de denúncias; c) dever de iniciar investigações internas; d) dever de informação perante os órgãos superiores. Em síntese, a primeira obrigação referida diz respeito à atuação no sentido de instituir procedimentos direcionados a controlar e detectar condutas desviantes; promover a formação e o treinamento dos indivíduos que atuam na empresa, por meio da criação de normas de ética e de conduta, por exemplo; e criar canais internos de denúncia46. A respeito da segunda responsabilidade citada, realça-se que é parte imprescindível em qualquer programa de compliance, constituindo-se na tarefa que implica maior risco legal para o compliance officer47. Haverá, neste âmbito, a gestão de canais internos de denúncia, devendo-se estabelecer, também, instrumentos de proteção aos denunciantes (whistleblower). Sobre o dever de iniciar investigações internas, salienta-se que estas podem ser postas em prática diante de indícios de infrações, de modo pré- programado (inspeções rotineiras), por necessidade de avaliação de um procedimento em concreto, entre outras formas48. Por derradeiro, assevera-se que o oficial de compliance deve buscar o conhecimento acerca do cumprimento do Direito no ambiente corporativo e, caso constate que algo não está de acordo com o planejado, deverá transmitir as informações necessárias aos órgãos competentes para reparação das irregularidades49. 46 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. Posición de garante del compliance officer por infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ZAPATERO, Luis Arroyo; MARTÍN, Adán Nieto (org.). El Derecho Penal Económico en la era Compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 177. 47 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 180. 48 GÓMEZ-ALLER, op cit., p. 183. 49 PLANAS. Ricardo Robles. El responsable de cumplimiento (compliance officer) ante el derecho penal. In: SÁNCHEZ, Jesús-María Silva (org.). Criminalidad de Empresa y Compliance – Prevención y Reacciones Corporativas. Barcelona: Atelier, 2013. p. 324. 16 5) INGERÊNCIA COMO FONTE DO DEVER DE GARANTIDOR No momento em que o compliance officer adquire – por meio da sistemática da delegação de funções – o dever de supervisão ativa, ele se torna garantidor do desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais. Ao assumir deveres de garantia, o profissional em questão torna-se plenamente responsável a título penal50, visto que deixa de se configurar como extraneus, passando a se caracterizar como intraneus51. Destaca-se, nesta perspectiva, que a ingerência se constitui como uma forma de expressão da posição de garante por controle das fontes de perigo52, tendo como fundamento a confiança das pessoas na capacidade de o garantidor controlar perigos53. Ante esta vagueza semântica, depreende-se que esta fonte do dever de agir tende a acarretar um expansionismo da tutela penal. Deve haver, portanto, o estabelecimento de limites para a aplicação do instituto, sob pena de ilegitimidade da atuação das agências penais. A definição destes critérios limitadores encontra respaldo na seguinte concepção: não basta, simplesmente, a causação do risco de ocorrência do resultado para que haja a imputação de responsabilidade penal54. Infere-se isto a partir do fato de que as posições de garantidor embasadas em deveres de supervisão e controle de fontes de perigo estão vinculadas a uma imputável falta de diligência no cumprimento destes deveres, e não meramente à causalidade55. Propõe-se, então, a instituição de quatro parâmetros, cumulativos, para que seja possível responsabilizar penalmente um indivíduo, a partir da 50 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 243. 51 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Autorregulação, responsabilidade empresarial e criminal compliance. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 145. 52 ROXIN, Claus. Injerencia e imputación objetiva. Revista Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, n. 19, 2007. p. 154. 53 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral, 5ª Edição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 205. 54 Neste sentido: PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 17ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 145; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4ª Edição. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 568-569; MARTÍN, Luis Gracia. La comisión por omisión en el derecho penal español. Revista Nuevo Foro Penal. Medellín: Universidad EAFIT,n. 61, 1999. p. 154. 55 ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. t. 2. Buenos Aires: Thomson Reuters, 2014. p. 906. 17 ingerência: a) causação de um risco proibido56; b) relação de identidade entre a norma violada e o bem jurídico lesado; c) voluntariedade do atuar precedente perigoso57; d) domínio sobre a fonte de perigo por parte do agente causador do risco58. No que tange ao primeiro critério, elucida-se que o agir precedente deverá criar um risco que não seja permitido, isto é, terá de haver a violação de um dever de cuidado59, colocando determinado bem jurídico em perigo60. Tal exigência se deve em prol da coerência do sistema jurídico, visto que não faria qualquer sentido haver a autorização de determinada conduta, de um lado, e a sua punição pelo fato de restar configurada uma situação de perigo ex post, de outro61. O referido dever de cuidado, que fora transgredido, tem que estar expressamente delimitado em normas protetoras de bens jurídicos, em respeito ao princípio da taxatividade. Entende-se, também, que tais normas não precisam, necessariamente, ter sido editadas pelo Poder Legislativo, como é o caso da Carta-Circular/BACEN nº 3.461/09, da Resolução nº 1.445/13 do Conselho Federal de Contabilidade e da Circular SUSEP nº 445/12. Estes regulamentos, apesar de não serem oriundos de atos do legislador, estão axiologicamente voltados à tutela de bens jurídicos, conforme cláusula legal 56 Neste sentido: ROXIN, Claus. Injerencia e imputación objetiva. Revista Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, n. 19, 2007. p. 156-158; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral, 5ª Edição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 205; TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 373. 57 Neste sentido: CURY, Enrique. Derecho Penal. Parte General. 7ª Edição. Santiago: Ediciones Universidad Católica de Chile, 2005. p. 683; PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 17ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 145; MARTÍN, Luis Gracia. La comisión por omisión en el derecho penal español. Revista Nuevo Foro Penal. Medellín: Universidad EAFIT, n. 61, 1999. p. 129. 58 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1988. p. 536-537. 59 Neste sentido: TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Rio de Janeiro: ILACP, 1996. p. 71; SANTOS, op cit., p. 205; JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4ª Edição. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 568-569. 60 RUIVO, Marcelo Almeida. Os crimes omissivos impróprios como delitos de violação de dever no nacional-socialismo. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 131, 2017. p. 240. 61 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p. 373. 18 (artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 9.613/98) oriunda de processo legislativo legítimo62. Deste modo, não resta caracterizada infração ao princípio da legalidade. De modo a exemplificar a aplicabilidade do critério exposto, apresenta-se o caso de um compliance officer de uma instituição financeira “X” que, rotineiramente, desempenha de maneira deficiente as suas funções de controle e vigilância das fontes de perigo (deixando de cumprir deveres previstos na Carta-Circular/BACEN nº 3.461/09, por exemplo). In casu, haverá a criação de um risco proibido. Assim, na hipótese de haver a prática do delito de lavagem de capitais dentro do âmbito desta instituição, será possível, por este viés, a responsabilização penal do profissional em questão, pois o seu agir precedente arriscado violou um dever de cuidado que está previsto na norma protetora do bem jurídico lesado. Conforme o segundo critério, o comportamento prévio perigoso deverá violar uma determinada norma e, em decorrência disso, propiciar a causação de uma lesão ao bem jurídico que a norma infringida almejava tutelar. Vale dizer, por conseguinte, que o resultado ocorrido deve guardar relação direta com a transgressão do dever de cuidado. Em última análise, o sujeito responsável pela criação do perigo somente será garante dos bens jurídicos que tiver posto em perigo63. A título exemplificativo, expõe-se uma situação na qual um oficial de compliance, ao ser contratado por uma casa de câmbio, responsabilizou-se pela instituição de procedimentos internos direcionados a controlar e detectar condutas de lavagem de capitais. Contudo, o profissional em questão descumpria, reiteradamente, o dever de comunicação de transações suspeitas à Unidade de Inteligência Financeira – UIF. Criava-se, desta forma, um risco (proibido) ao bem jurídico (“X”) tutelado no referido delito. Certo dia, constatou- se que três altos gerentes da instituição financeira estavam se atribuindo falsa identidade para realização de operações de câmbio, incidindo no delito do artigo 21, caput, da Lei nº 7.492/86. Neste caso, revela-se inviável, por este viés, a responsabilização penal do oficial de compliance por este crime contra o Sistema 62 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. p. 191. 63 SÁNCHEZ, Cristóbal Izquierdo. Comisión por omisión. Algunas consideraciones sobre la injerencia como fuente de la posición de garante. Revista Chilena de Derecho. Santiago: Pontificia Universidad Católica de Chile, v. 33, n. 02, 2006. p. 330. 19 Financeiro, pois o seu agir precedente criou um perigo (que não se concretizou) ao bem jurídico “X”, o qual não guarda qualquer relação com o bem jurídico “Y”, que fora ofendido. Em outras palavras, a norma infringida tutelava um bem jurídico diverso daquele que foi, efetivamente, lesado. Nesta perspectiva, salienta-se, em adição ao que fora sustentado, que o sistema de compliance não será tido como deficiente pelo simples fato de ter havido alguma prática delitiva no seio da empresa. A constatação efetiva da precariedade dos procedimentos internos será aferida somente a partir da análise concreta do que foi e do que não foi implementado no compliance program64. O terceiro parâmetro proposto diz respeito ao fato de que o indivíduo deverá agir voluntariamente no momento da criação do risco para a ocorrência do resultado. Vale dizer, consequentemente, que o atuar precedente não pode decorrer de caso fortuito ou de culpa, sob pena de haver um excessivo esvaziamento do ânimo delitivo do autor do ato. Cumpre relembrar que a ingerência consiste na sucessão de duas condutas, sendo a primeira desencadeadora de um curso de risco e a segunda consistente no não impedimento do resultado típico65. Dessarte, percebe-se que há uma distância considerável entre o primeiro ato da cadeia causal, agir precedente, e a ofensa ao bem jurídico. Por esta razão, se entende que o início do curso de causalidade deve se dar a partir de um ato voluntário, sob pena de se tornar deveras frágil o vínculo entre o comportamento arriscado e a lesão ao bem jurídico. Por fim, o último critério estabelecido prevê que deverá ser comprovado que o compliance officer detinha, enquanto garante, o domínio sobre as fontes de perigo próprias da empresa66. Revela-se imprescindível, neste sentido, que o profissional em questão possua possibilidade fática e funcional de agir conforme os deveres de cuidado incidentes no caso concreto. Assim, veda-se a imputação 64 CAVERO, Percy García. Criminal Compliance. Lima: Palestra, 2014. p. 102-103. 65 GÓMEZ-ALLER, Jacobo Dopico. ¿Posición de garante derivada de legítima defensa? La paradoja de Rudolphi. Revista para el Análisis del Derecho. Barcelona: Universitat Pompeu Fabra, n. 4, 2018. p. 06. 66 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa.Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1988. p. 536-537. 20 objetiva do resultado quando se constatar a inexequibilidade do dever de compliance67. Importante atentar que é absolutamente improcedente a alegação (comumente apresentada) de que o oficial de compliance tem o poder e o dever de tomar medidas, inclusive as impraticáveis, para evitar todo ato ilícito ocorrido no ambiente corporativo68. Neste sentido, enfatiza-se que, se a ingerência não tem a funcionalidade de estabelecer uma responsabilidade geral do administrador do negócio69, muito menos seria razoável exigir-se tal obrigação de um compliance officer. Não se pode imputar responsabilidade penal a este último, como se isso fosse um preço pela ocupação do seu cargo, pois estar-se- ia afastando dos fundamentos da posição de garante baseados no dever de vigilância e controle. Em suma, somente será plausível a responsabilização penal do oficial de compliance, por este viés, quando este sujeito tiver condições plenas de confeccionar o compliance program com diligência e eficácia. Isto é, quando o garante delegante (empresário) deixar de fornecer ao garante delegado (compliance officer) o substrato mínimo para desenvolver seu trabalho, a função deste último seria apenas simulada, sendo inválida a delegação70 e, consequentemente, inexistente a posição de garantidor. 67 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direito penal econômico: parte geral. 2ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2018. p. 194. 68 COSTA, Helena Regina Lobo da; ARAÚJO, Marina Pinhão Coelho. Compliance e o julgamento da APn 470. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 22, 2014. p. 223. 69 ROXIN, Imme; LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Responsabilidade do administrador de empresa por omissão imprópria. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 112, 2015. p. 65. 70 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 243. 21 6) CONSIDERAÇÕES FINAIS Constatou-se que o compliance officer, após adquirir o dever de supervisão ativa, passa a ter o encargo de garantir o desenvolvimento de atividades de vigilância e controle sobre quem executa as tarefas empresariais. Por conta deste fato, torna-se possível, em linhas gerais, a responsabilização penal do referido profissional, visto que ele passa da condição de extraneus para a de intraneus. Contudo, para que esta possibilidade se torne concreta, deverá haver a fixação de balizas para a imputação da conduta delitiva, sob pena de se deslegitimar a atuação das agências penais e de se afastar dos fundamentos da posição de garante embasada nos deveres de vigilância e controle. Nesta senda, destaca-se a importância do estudo da ingerência como fonte do especial dever de agir, pois ela está diretamente vinculada à figura do garantidor baseada nos referidos deveres. Para que haja responsabilidade penal a partir deste instituto, deverá ser constatada uma falta de diligência no cumprimento dos deveres de vigilância e controle. Entretanto, este paradigma é, apenas, o ponto de partida. Por esta razão, o presente trabalho compilou quatro critérios cumulativos para a imputação do resultado a um indivíduo, a partir do agir precedente criador do risco para a ocorrência do resultado. São eles: a) causação de um risco proibido; b) relação de identidade entre a norma violada e o bem jurídico lesado; c) voluntariedade do atuar precedente perigoso; d) domínio sobre a fonte de perigo por parte do agente causador do risco. Elucida-se que não se almejou a definição de critérios exclusivos para o compliance officer, visto que o Direito Penal é uma estrutura una, sendo inviável a sua separação em Direito Penal Nuclear e Direito Penal Econômico, ainda que este último possua alguma autonomia disciplinar. Na realidade, buscou-se colaborar para uma melhor compreensão da problemática envolvendo a ingerência como fonte do dever de garantidor, especialmente quando envolve a figura do oficial de compliance. 22 7) REFERÊNCIAS ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança Corporativa: Fundamentos, Desenvolvimento e Tendências. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2009. BRASIL. Banco Central do Brasil. Circular nº 3.461, de 24 de julho de 2009. 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