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D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo, Ática, 1990. Pressupostos míticos Os gregos antigos tiveram grande facilidade em inventar histórias fabulosas que, antes do progresso racional e científico, servissem para explicar as origens dos fenômenos naturais e do comportamento humano. A mitologia grega é o conjunto destes mitos ou fábulas. Mircea Eliade (p. 22) aponta as seguintes características do mito, assim como é vivido pelas sociedades primitivas: 1) o mito é a história fantástica dos atos de entes sobrenaturais (deuses, semideuses ou seres de ascendência divina); 2) esta história é considerada, no momento de sua invenção pelo povo, verdadeira, porque se refere a realidades (a criação do mundo, do fogo etc.); 3) a história mítica se relaciona sempre com uma criação, narrando como algo passou a existir ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar etc, foram estabelecidos; essa é a razão pela qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) o conhecimento do mito proporciona o conhecimento da origem das coisas, chegando-se, consequentemente, a dominá-las e a manipulá-las à vontade; com efeito, não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação; 5) de uma maneira ou de outra, vive-se o mito, no sentido de que se é impregnado do poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados; a diferença entre “mito” e “lenda” reside, a nosso ver, no fato de que o primeiro implica a crença: quando esta cessa de existir na alma do povo, o mito se torna lenda. A mitologia grega se caracteriza pelo seu aspecto antropomórfico: os deuses são representações plásticas de virtudes e vícios humanos, elevados a um alto grau de expressividade. As vezes, os deuses são descritos com traços até zoomórficos, especialmente em seus epítetos: Hera, a “de olho bovino”, Atena, a “de olhos de coruja” etc. As divindades acusam as mesmas deficiências e sofrem dos mesmos problemas dos mortais, dos quais são configurações: comem, bebem, dormem, adoecem, amam, odeiam, vingam- se, atemorizam-se, sentem-se inseguras. O mesmo Zeus, pai de todos os deuses, teme a poderosa Hera e usa de muita diplomacia para acalmar as facções divinas dissidentes. A única qualidade que distingue os deuses do Olimpo (lugar ideal, espaço utópico, mais do que uma montanha determinada), além do desmedimento de suas paixões, é a imortalidade, atributo que os humanos não possuem. Diferentemente da concepção moderna da divindade, que não tem início nem fim, o deus da Antiguidade se diferencia do homem apenas pela não-morte, pois o mito registra seu nascimento. A competência dos deuses é limitada: seu poder está condicionado aos desígnios do Destino, considerado uma força cósmica, misteriosa, superior ao próprio Júpiter. Os deuses e os homens lutam em vão contra a vontade do Destino, que deve sempre realizar-se. D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo, Ática, 1990. Literatura grega Período Arcaico (do século VIII ao V a.C.) As primeiras manifestações culturais do povo grego estão relacionadas intimamente com suas atividades existenciais: as lutas pela conquista de novos territórios (poesia heróica ou épica), o ensinamento da cultura da terra (poesia telúrica ou didática), a expressão de sentimentos fundamentais do indivíduo em relação à divindade ou aos homens (poesia lírica).A divisão nesses três gêneros — épico, didático e lírico — nos guiará para o estudo das obras mais importantes desta primeira fase da literatura grega. Poesia épica A questão homérica Os dois poemas épicos da Grécia Antiga, compostos ao redor do século VIII a.C., foram atribuídos pela tradição clássica a Homero. A lenda envolve totalmente a figura deste poeta, pois suas notícias biográficas são fantasiosas, nenhum dado sendo historicamente provado. Basta dizer que oito cidades do mundo helenístico disputam a honra de terem sido a pátria de origem do imortal poeta. Maior do que a dúvida sobre a identidade histórica de Homero é o problema da atribuição da autoria de A ilíada e de A odisseia a um único poeta. No começo do século passado, o erudito alemão Fr. A. Wolf (Prolegomena a Homero), influenciado pelas idéias românticas sobre o gênio criativo da coletividade nacional e baseado nas constantes repetições e nas aberrantes contradições (os famosos “cochilos” de Homero), que se encontram nas duas epopéias, lança a tese de que os dois poemas atribuídos a Homero não são senão coletâneas de vários cantos heróicos, de origem anônima e popular, transmitidos oralmente de geração para geração e redigidos pela sociedade dos “Homeristas”, fundada por Pisístrato de Atenas. O argumento básico é que a escritura não era conhecida na Grécia antes do século VI a.C. A esta tese se opõe, no começo do nosso século, o pensamento dos críticos positivistas que, fundamentados em descobrimentos arqueológicos, demonstraram a existência da escrita na Grécia e na Ásia Menor, antes do século X a.C., atribuindo a autoria de A ilíada e de A odisseia a um único poeta, Homero. A nosso ver, a verdade, como sempre, está longe dos extremismos. Se, de um lado, a criação artística coletiva e anônima é um mito romântico, em que hoje ninguém pode mais acreditar, de outro lado, a análise textual dos dois poemas acusa repetições, contradições e diferenças estilísticas que levam a pensar numa originária pluralidade de autores. Ocorreu que, ao redor do século X, na Iônia, perto da Ásia Menor e berço da civilização grega, se criaram uma série de lendas e de cantos épicos, no começo curtos e isolados, que tinham como núcleo central o longo assédio dos navios gregos à cidade de Tróia. Os principais heróis gregos e troianos tiveram suas façanhas enaltecidas em versos épicos, que eram recitados durante as celebrações patrióticas, as festividades religiosas e os banquetes das cortes e dos ricos senhores. Evidentemente, muitos destes cantos se perderam e o que nos legou a tradição foram apenas os dois poemas homéricos. Homero, ou outro rapsodo de nome desconhecido, teve o mérito inestimável de reunir e de dar forma artística a este material épico primitivo. A ilíada é formada pela rapsódia (o étimo significa “costura”) dos cantos que tratavam da brigad e Aquiles e Agamemnon, de batalhas entre gregos e troianos, de intervenções de deuses pró ou a favor ora de um ora de outro litigante, da amizade de Aquiles para com Pátroclo, da confecção das armas de Aquiles, do catálogo dos navios gregos, da luta mortal entre Aquiles e Heitor, dos funeraisde Pátroclo e de Heitor, do amor paternal de Príamo. A odisseia é essencialmente o canto da volta acidentada do herói grego Ulisses para sua terra de origem, após a destruição de Tróia. Mas, dentro desta história encaixante, existem as narrações de outras histórias encaixadas, talvez objetos de cantos épicos antigamente separados. Citamos, por exemplo, a “telemaquia”, a viagem de Telêmaco, filho de Ulisses, a Pilos e a Esparta, que tem um nexo bastante frouxo com o restante do poema. Que o redator de A ilíada, Homero jovem, e o redator de A odisséía, Homero adulto, como sustentam alguns críticos, ou dois poetas diferentes, como opinam outros, não inventaram os assuntos poemáticos, mas trabalharam sobre o material épico preexistente, é um fato incontestável. Lendas recentes e antigas, poesia ritual sobre a morte e a descida aos Infernos, lembranças de guerras gloriosas e do exílio dos aqueus na Ásia, mitologia contemporânea e lembranças de antigos deuses transformados em heróis e conserva dos com todo o aparato ritual que seu culto comportava,eis tudo o que encontramos em A ilíada e A odisséia. Já que o poeta compõe com tantos materiais diversos um poema do qual cada parte era feita para ser cantada separadamente e cujo conjunto deve ter sido composto parceladamente, deveremos espantar-nos pelo fato de encontrar essas contradições, ou o que chamamos falta de lógica rigorosa, de “composição”, talvez até duma unidade de estilo e de inspiração? [p. 163]Enfim, o mistério sobre o autor ou os autores de A ilíada e de A odisséía não fere o brilho das duas criações artísticas, cujos valores estéticos e humanos tiveram reflexos nas melhores produções literárias do Ocidente, constituindo os fundamentos da cultura humanística. Pressupostos históricos A ilíada e A odisseia são poemas épicos que têm como referente histórico a Guerra de Tróia, antiga cidade do litoral da Ásia. Vários povos habitantes da Grécia, unidos numa confederação, apósl ongos anos de assédio, conseguiram invadir e incendiar a cidade bem fortificada. Nos dois poemas homéricos, os gregos são chamados de aqueus (também de argivos ou dânaos), povo de raça indo-européia que, descendo das planícies da Rússia e da Polônia, ao redor do ano 2000 a.C., começou a invadir a Grécia central e a insular, de civilização muito refinada, cujo centro era Creta. Estes aqueus, descritos como loiros, barbudos, pastores de bois e de carneiros, criadores de cavalos, amantes de pilhagens, ladrões de mulheres, procuraram dominar e assimilar acivilização minóica que reinava nas terras banhadas pelo mar Egeu, ora através de pactos amistosos (o lendário casamento do chefe aqueu Atreu com Érope, neta do último Minos), ora através da força bruta (saque de Cnossos, ao redor do ano 1400 a.C.). O domínio dos aqueus sobre os cretenses levou à passagem gradativa da civilização minóica para a civilização micênica, cujas cidades mais florescentes foram Corinto, Tirinto e a própria Micenas. Nos fins do século XII a.C., a invasão dórica pôs fim à hegemonia de Micenas, e tribos de aqueus emigraram para o litoral da Ásia Menor. Através da Confederação Acaia, os gregos mantinham o domínio do mar Egeu (talassocracia): no assédio a Tróia utilizaram nada menos do que 1186 navios. Os troianos, ou dárdanos, pertenciam à mesma estirpe dos aqueus, sendo uma tribo de outro ramo de indo-europeus, os hititas, que tinham invadido a Ásia Menor, séculos antes; O fundo histórico dos poemas homéricos, a Guerra de Tróia, é constituído por uma das numerosas expedições da Confederação Acaia, com vistas à ocupação de Ílion, cidade da costa asiática, por volta do ano1180 a.C. As notícias sobre aqueus e troianos são todas incertas e imprecisas, porque se trata de povos de sociedade pré-histórica e de civilização pré-helênica, que ocuparam regiões da Ásia Menor, do Egito, da Grécia central e das ilhas do mar Egeu, antes que deles e da mistura com outras tribos surgisse a civilização grega, unificadora de cultura e de costumes políticos, religiosos, sociais e morais. Pressupostos míticos Os gregos antigos tiveram grande facilidade em inventar histórias fabulosas que, antes do progresso racional e científico, servissem para explicar as origens dos fenômenos naturais e do comportamento humano. A mitologia grega é o conjunto destes mitos ou fábulas. Mircea Eliade(p. 22) aponta as seguintes características do mito, assim como é vivido pelas sociedades primitivas: 1) o mito é a história fantástica dos atos de entes sobrenaturais (deuses, semideuses ou seres de ascendência divina); 2) esta história é considerada, no momento de sua invenção pelo povo, verdadeira, porque se refere a realidades (a criação do mundo, do fogo etc.); 3) a história mítica se relaciona sempre com uma criação, narrando como algo passou a existir ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar etc, foram estabelecidos; essa é a razão pela qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) o conhecimento do mito proporciona o conhecimento da origem das coisas, chegando-se, conseqüentemente, a dominá-las e a manipulá-las à vontade; com efeito, não se trata de um conhecimento exterior, abstrato, mas de um conhecimento que é vivido ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação; 5) de uma maneira ou de outra, vive-se o mito, no sentido de que se é impregnado do poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados; a diferença entre “mito” e “lenda” reside, a nosso ver, no fato de que o primeiro implica a crença: quando esta cessa de existir na alma do povo, o mito se torna lenda. A mitologia grega se caracteriza pelo seu aspecto antropomórfico: os deuses são representações plásticas de virtudes e vícios humanos, elevados a um alto grau de expressividade. Às vezes, os deuses são descritos com traços até zoomórficos, especialmente em seus epítetos: Hera, a “de olho bovino”, Atena, a “de olhos de coruja” etc. As divindades acusam as mesmas deficiências e sofrem dos mesmos problemas dos mortais, dos quais são configurações: comem, bebem, dormem, adoecem, amam, odeiam, vingam-se, atemorizam-se, sentem-se inseguras. O mesmo Zeus, pai de todos os deuses, teme a poderosa Hera e usa de muita diplomacia para acalmar as facções divinas dissidentes. A única qualidade que distingue os deuses do Olimpo (lugar ideal, espaço utópico, mais do que uma montanha determinada), além do desmedimento de suas paixões, é a imortalidade, atributo que os humanos não possuem. Diferentemente da concepção moderna da divindade, que não tem início nem fim, o deus da Antiguidade se diferencia do homem apenas pela não-morte, pois o mito registra seu nascimento. A competência dos deuses é limitada: seu poder está condicionado aos desígnios do Destino, considerado uma força cósmica, misteriosa, superior ao próprio Júpiter. Os deuses e os homens lutam em vão contra a vontade do Destino, que deve sempre realizar-se. Apresentamos, como exemplo, omito do julgamento de Paris, criado para explicar a causa da Guerra de Tróia, que é o fundamento lendário da épica clássica: Écuba, esposa de Príamo, rei de Tróia, no último dia de gestação de um dos seus cinqüenta filhos, teve um sonho terrível: uma tocha acesa incendeia a cidade, destruindo homens, animais, casas. O profeta Ésaco interpreta o sonho desta maneira: Páris, o filho nascedouro dos soberanos de Tróia, será a causa da desgraça dos troianos. Para afugentar o agouro fatídico, Príamo e Écuba decidem livrar-se do recém-nascido, abandonando- o no monte Ida. Mas o destino terá de cumprir-se: o bebê não morre, pois é encontrado e criado por pastores. Adulto, o pastor de Ida é designado por Júpiter a ser o juiz da disputa entre três deusas, Afrodite, Atena e Hera, acerca da posse do pomo da Discórdia, lançado pela deusa Éris “para a mais bonita”. Páris, desprezando o poder, que lhe oferecia Hera, e o saber, que lhe prometia Atena, entrega o pomo a Afrodite, que lhe garantia aposse da mulher mais bonita da terra. Após este julgamento, o jovem vai à cidade de Tróia para participar de um torneiro em honra da memória do filho de Écuba acreditado morto, com o propósito de reaver um touro roubado pelos servos de Príamo. E reconhecido pela irmã Cassandra, profetisa ,que vê no jovem o predestinado a ser a causa da destruição de Tróia. Apesar do sonho de Écuba, da profecia de Ésaco e da premonição de Cassandra, Páris reconquista seu lugar de príncipe troiano . Afrodite, para manter a promessa, induz o jovem a viajar para Esparta; é a esposa do rei Menelau, Helena, a mulher mais bonita da Grécia, pois sua mão fora disputada por noventa e nove príncipes. Bem acolhido na corte grega, o príncipe troiano se apaixona pela linda esposa de Menelau e esta por ele. Durante uma ausência do rei de Esparta, os dois fogem para Tróia.Para vingarem a desonra sofrida por Menelau, os príncipes de várias póleis gregas, antigos pretendentes à mão de Helena, por obediência ao pacto estipulado por Ulisses de defenderem a união do casal, organizam a expedição contra Tróia, e, após dez anos de lutas, a cidade é destruída e Menelau retoma a posse de sua esposa Helena. Como podemos perceber pelo mito do julgamento de Páris, a vontade do Destino acaba sempre se sobrepondo aos desejos dos homens e dos deuses: Páris não podia morrer porque estava predestinado a ser a causa da destruição de Tróia. Este mito explica por que encontramos, em todos os poemas épicos do Classicismo e da Renascença, a deusa Vênus sempre ao lado dos troianos e de seus descendentes (romanos e latinos, portugueses inclusive), enquanto Juno e Minerva defendem constantemente os interesses dos gregos.
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