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1 A MITOLOGIA E A FILOSOFIA GREGA: duas criações culturais originais. Autor: NUNES, César Da Filosofia do Amor ao Amor à Filosofia: Um estudo pedagógico de ética sexual, Editora Letras Livres, Campinas, 2010 (p. 1-74) A cultura grega passa a constituir-se numa das mais vibrantes expressões e registros da riqueza e originalidade da cultura humana. Não há como considerar a trajetória da civilização ocidental, em suas múltiplas expressões, sem o compêndio da cultura mitológica, filosófica e cultural da Grécia, como a síntese de todas as formas culturais do mundo antigo. A Grécia representa uma das mais importantes culturas da sociedade e civilização humana que, nesta aurora civilizatória, constituíram as principais matrizes da condição humana em sociedade. Se considerarmos que os homens vivem em sociedade e em sociedade constroem as significações e determinantes morais, as instituições e estruturas de vida, haveremos de considerar que a Grécia vivenciou uma das peculiares expressões da condição humana, com desdobramentos culturais e institucionais marcados na trajetória histórica de toda a civilização ocidental. Na cosmovisão clássica, de origem grega, que posteriormente foi assimilada culturalmente pelos romanos, num processo de aculturação histórica, os deuses eram entidades superiores imortais, estabelecidas pelo homem como respostas ideais, que eram concebidas e representadas de maneira ideológica, referentes aos mistérios da natureza e da vida. Concretizavam-se as leituras e sentidos da existência sob a forma de mitos. Embora tivessem o princípio da imortalidade, personificavam as qualidades e as contradições humanas. Podiam ser questionados e até escarnecidos, sem que isso representasse uma atitude sacrílega. Classificavam-se em divindades primordiais: Caos, Terra, Eros, Érebo, Céu, Noite, Éter, Dia, Mar, Titãs, Cíclopes, Hecatônquiros; divindades superiores, que formavam o Conselho do Olimpo: Júpiter, Juno, Vesta, Ceres, Apolo e Dionísios, conforme a tradição romana, Diana, Minerva, Mercúrio, Vênus, Vulcano, Netuno, Marte e, mais tarde, Baco; havia ainda as divindades siderais: Sol, Lua e a Aurora; divindades dos ventos: Bóreas, Zéfiro, Euro, Noto e Éolo; divindades das águas: Oceano, Nereu, Proteu, as Ninfas e os deuses fluviais; divindades alegóricas: Justiça, Fortuna, Vitória, Paz, Amizade, Sabedoria, Verdade, Prudência, 2 Liberdade. O legado mitológico greco-latino é um dos mais significativos nichos culturais civilizatórios ocidentais. Uma das mais ricas expressões dessa híbrida condição que reunia a articulação entre as forças divinas e a natureza humana encontra-se na representação de JANO, um dos mais antigos dos deuses romanos, considerado um dos deuses primordiais. Segundo uma versão oral primeva, identifica-se ao Caos grego, tendo originado o próprio mundo. De acordo com outra tradição, antes de ser divinizado, Jano era um mortal, habitante da Tessália. Dirigiu-se para o Lácio, onde foi acolhido por Camese, rei da região, que com ele haveria de compartilhar o poder. Nessa versão o rei Jano edificou uma cidade sobre o monte Janículo. Depois da morte de Camese, passou a reinar sobre toda a região. Acolheu Saturno, que fora expulso da Grécia por Júpiter. Como recompensa, o deus conferiu-lhe o poder de conhecer o passado e o futuro. Durante seu reinado, época de paz e prosperidade, Jano introduziu o uso dos barcos e da moeda. Civilizou os aborígines, primeiros habitantes do Lácio, ensinando-lhes o cultivo do solo, criando cidades e estabelecendo leis. Após sua morte, foi divinizado pelos homens e mulheres de seu reino, a Tessália. É considerado o deus de todas as portas, aquele que guarda o interior e o exterior das moradas e das cidades. É também o deus tutelar das viagens, especialmente das partidas e regressos; por extensão, tornou-se protetor de todas as vias de comunicação. Protege ainda o início e o fim de todas as atividades. Sob o epíteto de Matutinus Pater, preside o começo do dia. O primeiro mês do calendário romano, januarius, deriva de Jano. Unindo-se a Juturna, Jano teve o deus Fontus; com Camise, Tiber, epônimo do rio Tibre; e com Venília, Canente. Durante a guerra entre romanos e sabinos, fez surgir uma fonte de água fervente no caminho dos sabinos, impedindo-os de atacarem o exército de Roma. Para comemorar o acontecimento, o templo de Jano permanecia de portas abertas em tempo de guerra, fechando-as durante a paz. Sua festa, chamada Agonium (sacrifício), era celebrada no dia 9 de Janeiro. Como deus do passado e do futuro, do início e do fim, das portas que se abrem e se fecham, Jano era representado com duas faces contrapostas, tendo numa das mãos uma chave e na outra uma varinha. Com tal contradição expressava a ambígua condição, humana e divina, como uma dialética natureza. Temos como hipótese motivadora a consideração de uma tensão superadora presente no pensamento de Platão. Como expressão mais genuína de seu tempo, sua filosofia expressaria, em termos ideológicos, a crítica à paidéia arcaica, de natureza aristocrática, na qual o próprio Platão fora educado, por um novo ideal, exigido pela 3 polis, pela filosofia e ética nascida da democracia e da política. Podemos dizer que Platão inaugura e torna corrente o sentido original do que seja a filosofia e o filosofar, de seu tempo a nossos dias. A paidéia arcaica, com seus instrumentos técnicos e estratégias de comportamento, com suas fontes mitológicas derivadas de Homero e Hesíodo, detinha também uma preclara dieta sexual. A filosofia propunha superar essa paidéia das sensações por uma dieta de controle e equilíbrio. Os estudos histórico-filosóficos de HAVELOCK (1996) nos sustentam, com a seguinte consideração, opondo a educação pela poesia à educação da alma, pela palavra e normatização dos pensamentos e condutas, situando as devidas passagens em referência às mudanças materiais e institucionais de uma Grécia rural para uma nova ordem, urbana e racional, onde a positividade da escrita passa a ser distinção da cidadania: Por conseguinte, a história da poesia grega é também a história da primitiva paideia grega. Os poetas fornecem material para o currículo. Platão concede a liderança em educação sucessivamente a Homero, Hesíodo, aos trágicos, aos sofistas e a si próprio. À luz das hipóteses de que a Grécia estava passando da não- alfabetização, por meio da alfabetização profissional, para a semi- alfabetização e depois para a alfabetização total, essa ordem faz sentido. O poema épico havia sido par excellence o veículo da palavra conservado durante toda a Era das Trevas. Naquela época, deve ter sido também o principal veículo de instrução. Até mesmo na forma puramente oral o poema épico, auxiliado pela técnica formular, assumia em parte a aparência de uma versão autorizada. Uma vez traduzidas para o alfabeto, as versões mais rigidamente padronizadas tornaram-se acessíveis aos objetivos educacionais. A tradição associou-se algumas formas educacionais à era de Sólon e certo recuo do texto homérico a Pisístratos. É possível ligar os dois fatos e concluir que o que aconteceu, talvez durante um longo período, foi o a acomodação das versões escritas e entre si para uso escolar. O rapsodo era também o professor. Ele, assim como o poeta - e as duas profissões sobrepunham- se, como mostra a carreira de Tirtaios, respondia às tradições da alfabetização profissional. 1 Pode parecer estranho, e mesmo inusitado, um retorno a Platão, em tempos tão voláteis e desarraigados como os dias de hoje. Mas, para nós, esse retorno foi precisamente uma escolha, a de encontrar na filosofia a proeminente e original reflexão sobre o amor, a sexualidade, a felicidade, como dimensões humanas inalienáveis. Trata- se ainda de uma estratégia de legitimidade, de demarcação de campo, de recurso ao centro de podersimbólico. Não há como contestar Platão, na escolha do tema, não se trata de consideração fortuita, acidental, tópica. Platão constitui uma teoria do amor e da 1 HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus,1996, pg.63-64. 4 sexualidade. Por que nos afastamos dela, o que explicaria o silêncio milenar, o expurgo temático, a marginalização institucional, no conjunto das filosofias que o sucederam? Muitos podem argumentar que Platão debate a questão do amor ainda na forma do mito, sendo uma investigação propedêutica à filosofia. Talvez seja verdadeiro. Não nos preocupamos com uma tipologia hierarquizada de temas e de suas supostas diretrizes ou categorias definidoras de graus de importância; o que queremos é reconhecer que a filosofia, em sua mais lídima e genuína tessitura, é tributária de uma reflexão sobre educação sexual e ética sexual. Mesmo que o mito seja sua forma primária e radical, no sentido de ir ou revelar as raízes. Optar pelo resgate do pensamento de Platão não significa deixar de lado a rigorosa sistematização de Aristóteles. Mas se torna uma necessidade o reconhecimento de que o Platão que conhecemos passou pela lupa de Aristóteles. E se torna, no mínimo honesto, aceitar o que afirma BERGSON (2005): Aristóteles imediatamente deixou de lado esse elemento mítico da filosofia platônica e é por isso que não viu nenhuma transição do inteligível para o sensível: por isso fez a Idéia descer nas coisas. E essa interpretação tornou-se a interpretação tradicional: Platão tornou- se, antes de tudo, o filósofo da teoria das Idéias. 2 Intentamos encontrar em Platão uma ampla e verdadeira teoria do amor. Não igualmente como um cotejo irracional ou negativista. Como um complemento essencial das múltiplas expressões da vida e da história humana. A grande expectativa de nosso tempo, que vive uma espécie de mal estar, experimenta certo espasmo da racionalidade, pode ser considerada como um contexto desafiador. Ainda BERGSON (2005) nos orienta quando afirma: Filósofos houve que levaram esses mitos a sério e puseram a filosofia mítica de Platão no mesmo patamar que a outra. Era natural que isso ocorresse em um meio religioso no qual todas as religiões estavam em conflito.Compreende-se que Plotino tenha sido marcado pela exposição que Platão dava de certas idéias no fundo mitológicas, que tenha buscado nele uma justificação do paganismo e que, justamente para isso, tenha atribuído a essa filosofia uma importância capital e interpretado todos as filosofias gregas à luz dela. Nessa época, a vida interior havia se tornado intensa. Matizes inteiramente novas de sentimentos haviam vindo à luz. As pessoas estavam mais aptas a procurar uma trilha do verdadeiro ao lado da idéia. Enfim, a idéia de ter que aprender o mito por uma via outra que a da razão nada mais tinha de chocante. 3 2 BERGSON, Henri. Cursos sobre a Filosofia Grega. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pg. 28. 3 BERGSON, Henri. Op.cit., pg. 29. 5 Também Aristóteles encerra uma teoria do amor e da sexualidade. Mas não tencionamos discorrer sobre ela, ao menos no atual ensaio. Suas diretrizes são outras. Aristóteles ousa contestar seu mestre, até mesmo neste tema, e parte de outra premissa, seu pressuposto original funda uma segunda proposição arquetípica dos discursos e representações da sexualidade no Ocidente: a sexualidade humana como vis, como força natural basilar voltada para a procriação, mas marcada pela possibilidade de contenção e significação ética, elevação estética, trilha e forma de um equilibrado cultivo da eudaimonia, da nobre e circunspecta autoregulação subjetiva, notadamente expressiva e prazerosa. A Ética a Nicômacos traz ensinamentos esotéricos para os discípulos do Liceu no tocante à sexualidade. A Ética a Eudemos, a Ética Maior, a sua famosa enciclopédia de Biologia, enfim, sua produção teórica, vasta e densa, inteira e plenamente, encontra-se eivada de observações e notas, conceitos e disposições de sentido, sobre o sexo, a identidade sexual e a procriação. É correto considerar que não poderíamos falar da produção aristotélica de um consistente e específico tratado sobre a sexualidade. Os contornos deste conceito somente serão delineados na sociedade burguesa do século XVIII. Os tempos escravistas de Atenas não contêm esta preocupação. Mas a sexualidade está ali, entremeando a política, a Ética, a Paidéia, os tratados de ciências, as lições de bem viver, as preleções morais e apelos meritórios dos ideais sociais; a sexualidade está sempre presente, faz parte indelével das potencialidades exigentes da moderação de costumes esperada daqueles que se encontram na trilha de busca da eudaimonia, da soufrosine, filosófica, militar e política. Quem se dedica ao estudo da Filosofia, despertado por esse cuidado teórico, não haverá de sentir qualquer estranhamento ao encontrar as categorias e sentidos da sexualidade grega registrados nos escritos de Platão e Aristóteles. Mas algum espanto, este estado inicial de pathos a que sempre se referia Aristóteles, há de permanecer em nossos corações e mentes. Que razões haveria para tal assepsia da sexualidade do campo e produção da Filosofia? Onde encontraríamos razões para tentar justificar este corte perfeccionista, este bisturi histórico que exorcizou e descarnou o sexo do corpo e o corpo de sua ontológica sexualidade? Quais seriam as marcas desta erradicação milenar, nos discursos e práticas das Ciências Humanas, da reflexão exigente sobre o sexo e a sexualidade? Que memória temos deste corte ontológico e histórico? Que relações há entre esta expropriação e a dessublimada e compulsiva exposição das práticas e 6 vivências sexuais em nosso tempo? E, por último, onde radicar as possibilidades de superação desta tradição? Tantas perguntas. Poucas respostas, muita esperança de novos ventos, que nascem de novas praias. Este é o horizonte desta reflexão filosófica. No dizer milenar de Sêneca concentra-se nossa disposição de encontrar temas e elementos que nos permitam entender nossa militância teórica e política: “nenhum vento pode ser a favor de quem não sabe para onde vai!” Trata-se de buscar nas entranhas da historiografia clássica da Filosofia as marcas e registros dos cortes efetivados sobre a investigação do sexo e sexualidade. Mas não se reduz a uma pesquisa arqueológica, em seu sentido hodierno, mas uma pesquisa que visita a história para produzir a realidade da política, ou da educação. E, nesse propósito, concentra-se a tese-guia na possibilidade de novas forças sociais, manejadas por sujeitos históricos emancipatórios, estarem gestando o futuro, as reconciliações ontológicas, o cerzimento definitivo de cesuras conceituais, fissuras semiológicas e seqüestros estéticos, que determinaram clivagens entre o pensar e o ser, o sentir e o educar, o conviver e desejar. O bem estar e a justiça são nossos propósitos. A justiça, no entanto, não é apenas a conquista sacrificante e penosa de uma virtude social, como se diria hoje em dia. Consiste em viver em harmonia: consigo mesmo e, em decorrência, com os outros; esta última parte é, segundo Platão, uma conseqüência do conhecimento e do amor. O presente ensaio reflexivo segue o método próprio da Filosofia, o de investigar as causas e a origem primordial dos fenômenos, dos conceitos e objetos. Mas não se reduz a uma arqueologia diletante, ávida de curiosidades tópicas, nem tampouco a uma geneologia nobiliárquica, mas sim se propõe a ser uma investigação criteriosa que forneça um modelo, uma associação paradigmática entre a educação, a filosofia e a temática da ética sexual. Dessa forma, começamos por apresentar as motivações e os referenciais históricos da pesquisa, contextualizando a experiência culturalda Grécia Clássica e sua importância para as sociedades ocidentais. Contrasta a rica e original construção de mitos e símbolos, expressa no imaginário mitológico grego e sua potencialidade de sentidos e possíveis interpretações. Nessa consideração recupera uma articulação entre a riqueza mitológica e a significação primitiva, arcaica, da sexualidade entre os gregos. O voluntarismo sexual e a diversidade passional dos deuses era a representação invertida das camadas sociais dominantes, nos assuntos e ofícios do amor e do sexo, da religião, da educação e do trabalho, da guerra e da política. 7 A Filosofia e a Ciência são duas dimensões originais da cultura humana criadas pelos gregos. A civilização e a cultura gregas clássicas constituem-se numa das mais notáveis criações de toda a história da humanidade, uma das páginas mais espetaculares do grande livro da história social dos povos e grupos humanos. Concentrados em somente dois fecundos e originais séculos os gregos produziram um conjunto de conceitos, obras e referências que marcaram definitivamente a civilização e sociedades ocidentais em todos os tempos e épocas posteriores. Distantes dos gregos por 2.500 anos, ainda voltamos a estes para buscar entender nossa cultura e sociedade. Mas temos consciência das significativas dificuldades em alcançar a genuinidade da filosofia e da cultura grega. Estudar os gregos após sua desagregação histórica pode ser uma temeridade, se não pudermos apor as justificativas contextuais. O crepúsculo da Antiguidade fora determinado, em grande parte, por duas novas realidades, uma de natureza objetiva e material, como primeira causa, a crise do sistema escravista e suas formações sociais e políticas e, a segunda, de natureza ideológica, consubstanciada na emergência da concepção cristã, nascida da síntese cultural-ética das mundividências greco-latina e judaica, em processo de intrínseca fusão ou articulação dialético-histórica. Essas duas realidades apresentam uma considerável transformação na cultura grega antiga, filtrada pela cosmovisão cristã emergente. A ética sexual antiga, marcada pela dieta do pater familiae aristocrata, de conformação esotérica, isto é, rigidamente estamental, privilegiada, separada da grande representação instigada sobre a massa de escravos e servos, passa a ser superada e paulatinamente substituída por uma generalização universalista, agora voltada para todos, a partir das disposições proselitistas, catequéticas e missionárias da Igreja institucionalizada nos aparelhos burocráticos decadentes do Império romano moribundo. Fusões e superações, aculturações e marginalidades marcam esse longo e profundo processo, histórico e ideológico, que se estende do século III a.C ao século V depois de Cristo! Embora tenhamos esse quadro histórico e político em consideração, este não é, no momento, o nosso contexto mais próximo. O que pretendemos é superar essa síntese histórica pela consideração de um momento anterior, o embate da paidéia arcaica, de natureza homérica e musical, com as novas disposições éticas, estéticas e educacionais, representadas no ideal da filosofia proposto por Platão e personificado em Sócrates, principalmente nos assuntos que envolvem a sexualidade e o amor. Entendemos que Platão propõe uma filosofia do amor 8 para chegar ao verdadeiro amor da filosofia. Esse é o escopo central de nossa investigação. Partimos da consideração de que os povos antigos marcaram a cultura ocidental em campos muito diferentes. Tanto o Egito teocrático quanto a rica e fecunda Mesopotâmia tinha criado notáveis instituições sociais e culturais alguns milênios antes dos gregos. Mas nada é minimamente comparável ao “milagre grego”. Eram sociedades agrárias, economias de base agrícola, sociedades escravocratas, civilizações de regadio, formadas por uma justaposição de reis divinizados, sustentados por uma forte nobreza sacerdotal e uma aristocracia militar que concentrava poderes econômicos e ideológicos de maneira absoluta e radical. E produziram marcas institucionais e civilizatórias que atravessaram os milênios seguintes à sua original criação e produção social. O grande Egito e os diversos povos mesopotâmicos constituíram civilizações brilhantes, com uma trajetória de descobertas e invenções memoráveis, conhecimentos técnicos destacados e admiráveis conquistas, mas nada ainda pode chegar próximo ao que produziram os gregos. Do Egito temos as pirâmides, notáveis monumentos funerários dos faraós e da casta sacerdotal nobre; temos ainda algum considerável conhecimento astronômico para prever as enchentes do Nilo e a escrita pictográfica inventada pelos escribas da corte. Os mesopotâmicos, tomados por grandes impérios semíticos que venceram os belicosos sumérios, habitantes originais desta rica região entre-rios, são marcadamente mais práticos e destacadamente preocupados com a vida na terra, com a felicidade material e o bem-estar terreno. A astronomia e as práticas animistas e fetichistas que desenvolveram na magia retratam esta preocupação fundamental, essa notável pragmática preocupada essencialmente com a felicidade real e palpável. Duas formas diversas de sociedades agrárias, a primeira teocrática e especulativa e a segunda pragmática e operacional. Todavia, a despeito de suas diferenças, são igualmente expressões sociais de uma mesma formação econômica e política, sustentadas pela massa de escravos, que manejavam laboralmente a terra e sustentavam a agricultura primitiva, mantendo em pé todo o conjunto da sociedade escravocrata antiga. Em Creta surge a primeira civilização urbana ocidental, sustentada sobre a prática do comércio. Os cretenses são oriundos das migrações asiáticas que ocuparam o Mediterrâneo por volta do III milênio a.C. A matriz histórica do que hoje entendemos como “Grécia” pode ser identificada como a original civilização cretense. Por volta de 9 3.000 a.C hordas de povos oriundos da Ásia Menor tornaram a planícies montanhosas gregas e produziram notáveis ocupações nestes territórios continentais. Deste período restaram os legados de Crossos e Festos, ainda hoje monumentais. Podemos considerar esse período como a inspiração primeira da grandiosa civilização minóica. Um segundo ciclo ocupacional deu-se entre 1.700 a.C e 1.100 a.C. Os povos migrantes, de tradição asiática, junto com os grupos continentais, pressionados por terremotos e erupções vulcânicas continentais ocuparam ilhas e ilhotas gregas constituindo um segundo vertiginoso momento e movimento migratório cretense. O símbolo deste período é Micenas, a portentosa cidade-estado, construída na região denominada Argólida, a cidade-natal de Agamenon, considerado o “criador” da cultura Grega. Em 1.400 a.C Creta sofreu um devastador terremoto desmontando definitivamente o período micênico. Homero registra este acontecimento, fato estrutural de sua obra. Os historiadores referem-se a esse período como a Idade das Trevas, a conjuntura inspiradora da mitologia grega arcaica. HAVELOCK (1996) identifica esse período como um arcabouço primitivo da Grécia. Afirma: A chamada Idade das Trevas da Grécia é aquela época que, talvez por volta de 1175 a.C. ou pouco depois, segue-se à queda de Micenas. A palavra "Trevas", empregada nesse contexto, é ambígua. Ela se refere à própria condição grega como constituída num baixo nível de cultura, ou simplesmente se refere a nossa própria visão dos gregos nesse período? No segundo sentido, a Idade das Trevas termina pelo aparecimento de Homero e de Hesíodo, ou mais corretamente, pelo aparecimento de quatro documentos conhecidos por nós como a Ilíada, a Odisséia, a Teogonia e Os trabalhos e os dias. Independente da sua composição original - que, pelo menos no caso de Homero, era oral - foram as primeiras composições a alcançar a alfabetização, um acontecimentoou um processo que por ser situado aproximadamente entre 700 e 650 a.C. Esse fato parece ter assegurado sua canonização e certamente lhes conferiu um monopólio real como representantes da condição pré-alfabetização. Com relação a Homero, isso é normalmente aceito. É igualmente verdade, embora num sentido mais complexo, com relação Hesíodo. 4 Em 1.700 e 1.400 a.C duas grandes invasões devastam ainda mais a Grécia Continental. Uma diversidade de povos e culturas fundem-se em processos sociais e políticos de enfrentamento e disputas. Os jônios, oriundos do norte, aos poucos foram se fundindo com a população nativa. Os aqueus invadiram os núcleos continentais em 4 HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus,1996, pg.133. 10 1.400 a.C e logo se constituíram em classes dominantes nestes lugares. Os micênicos constituíram se como sujeitos históricos, na representação épica da aristocracia referencial de Homero. Os aqueus mantinham extensas redes mercantis pelo mediterrâneo. Dominavam a agricultura e o comércio litorâneo mediterrâneo. Eram uma ameaça ao Egito, por volta de 1.200 a.C e por estes eram chamados peliset, radical que designa os “filisteus”, povos que se estabeleceram ao sul da Grécia e deram nome às diversas regiões que ocuparam, com destaque para a atual Palestina. Os aqueus são os povos personagens da trama homérica, da Guerra de Tróia, mais conhecida como Ilíada, e tantos outros fatos simbólicos memoráveis. O nome grego da cidade de Tróia é Ílion, do qual deriva-se a epopéia da Ilíada. Em 1.100 a.C a mais dramática invasão tomou conta da Grécia – os dórios, povos bárbaros do norte, ocupam militarmente a Grécia. Os aqueus, esgotados por guerras internas (Tróia) não puderam resistir e frear as invasões dórias, violentas e cruéis. Perderam o poder marítimo e a grandeza urbano-aristocrata-mercantil. Os fenícios dominam o Mediterrâneo. A Grécia é uma região pedregosa, montanhosa, seca e rude. Uma região cortada por áridos vales encadeados de montes e montanhas. Nas poucas planícies férteis surgiram comunidades agrárias isoladas que quando esgotavam sua capacidade de sobrevivência cruzavam as montanhas limítrofes e buscavam novos lugares de sobrevivência. Algumas alcançavam o mar e buscavam dominar outros povos e regiões, procuravam fundar colônias, aliciar vassalos e produzir escravos. Entre os séculos VIII a.C e VI a.C inúmeras colônias foram fundadas pontilhando o continente e ilhas de inúmeras cidades gregas. Com as colônias em expansão houve um notável renascimento do comércio e renovadas rotas gregas com o Oriente. A Grécia pós-clássica desestruturou a base micênica. A realeza perdeu seu núcleo e identidade, afrouxaram-se as tradições aristocráticas. Sucessões de conflitos, lutas internas, guerras de sucessão, quebras de linhagens dinásticas e da hereditariedade abriram espaços para tiranos e usurpadores. A grande discussão, sobre a matriz do poder, atinge os cidadãos, ocupando os debates, as expressões mitológicas, ilustrando os discursos e aguçando as experiências, até culminar na original e exemplar experiência da “democracia ateniense”. Homero é o grande divisor de águas da história Grega. A despeito de sua riqueza literária, sua biografia é escassa e confusa. Há suspeitas de que toda uma linhagem de sacerdotes-poetas tenham sido denominados “Homeros”. Os dois grandes poemas homéricos, a Ilíada e a Odisséia, foram concluídas por volta do século IX a.C. A Guerra 11 de Tróia, tema central da Ilíada, aconteceu por volta do século XII a.C, entre 300 a 400 antes de Homero. Esta obra é considerada um marco da civilização humana. Trata-se de um relato épico e poético de um acontecimento pré-dórico escrito por um poeta pós- dórico. Esta distância permite identificar inconsistências e erros cronológicos. Homero realiza os relatos, idealiza os motivos, ameniza os conflitos, amortece as dimensões e personagens. Homero relata de maneira simbólica e mítica os atos e movimentos racionais de uma aristocracia emancipada e esclarecida que agia no papel de classe dominante. Esse é o contexto da rica produção mítica. Os mitos e deuses expressam os conflitos de uma determinada formação social, inscrevendo-se nos mitos e relatos fantásticos a dinâmica da vida material e política. Nossa investigação dessa fecunda tradição mitológica tem como objetivo explicitar a igualmente rica e contraditória vivência da sexualidade, atribuída aos deuses e titãs, mas na verdade sendo a expressão da vida real e cotidiana das diversas cidades e suas classes constituintes. A sexualidade nas tradições primevas: os ritos de fertilidade ou Dioníso versus Apolo. Começaremos descrevendo a identidade e excentricidade da vida sexual dos deuses, expressa na mitologia. Nossa intenção reside em demonstrar que a sexualidade sempre foi componente estrutural da cultura grega. Diferentemente de outros povos daquele tempo, que certamente vivenciavam uma igualmente rica diversidade sexual, mas não a registraram com tamanho empenho e notoriedade, os gregos atribuíram aos deuses uma vida faustosa e voluntariosa, nos assuntos do amor e do sexo. Apresentaremos alguns dos principais deuses do panteão grego. O deus de maior popularidade entre os gregos certamente foi Apolo, considerado o deus da luz e da ordem. Representado como uma das doze divindades do Olimpo, sendo filho de Zeus e Latona, que era a dileta filha de Uranos. Nasceu na ilha de Delos onde, com a ajuda de Netuno, sua mãe se refugiara da perseguição de Juno. Diariamente, Apolo transportava o carro do sol para o alto do céu; depois, guardava-o atrás das montanhas. Assim, era responsável pelos dias e pelas noites. Uma vez por ano, viajava para o país dos Hiperbóreos; nessa ocasião, atribuía-se a causa do inverno na Terra. Como deus da luz, cabia-lhe proteger os campos, os navegantes, os artistas e os médicos. Por vezes, assumia também um caráter funesto, provocando mortes súbitas e enviando terríveis epidemias de peste. 12 De todas as suas atribuições, a que mais importância assumiu entre os gregos foi a de desvendar os ditames do Destino. Para tanto, possuía vários templos espalhados pela Grécia, onde, através das pitonisas, respondia às consultas e freqüentes perguntas dos fiéis sobre acontecimentos futuros. De todos os seus templos o mais célebre estava situado em Delfos, no mesmo local onde Apolo, pouco depois de seu nascimento, matara a serpente Píton, usurpando sua força e poder. Deus de grande beleza, viveu diversas aventuras sentimentais, geralmente mal sucedidas ou trágicas. Dentre seus amores destacam-se as ninfas Corônis, Dafne, Cirene; a princesa Marpessa; a profetisa Cassandra; os jovens Jacinto e Ciparisso, para elencar alguns. Com a ninfa Corônis o deus Apolo teve um filho, Esculápio, mais tarde fulminado pelos Cíclopes, por ordem de Zeus. Furioso com o crime Apolo exterminou os emissários de seu pai. Como punição foi enviado a terra para servir a um mortal. Encontrou hospitalidade junto ao rei Admeto, filho do rei Feres, de cujos rebanhos se tornou guardião e protetor, vivendo entre os pastores. Nessa ocasião, venceu Mársias numa disputa musical, e foi sagrado pelas Musas como protetor das artes. Ao final do castigo, obteve permissão para reintegrar-se no Olimpo. Apolo é representado sempre jovem, com uma expressão de saúde, beleza e formosura, sua imagem é sempre de um deus sem barba e geralmente é esculpido como um homem nu; somente quando assume a atribuição específica de deus das artes, aparece vestido com longa túnica. Já Dionísio ou Dioniso era a expressão de uma outra tradição mítica e religiosa, provavelmente anterior à ocupação dórica. Era o deus do vinho e da embriaguez, da colheita e da fertilidade. Sua gênese é complexa porque supostamente reunia elementosdiversos, tomados da Grécia e de países vizinhos, em um longo processo de aculturação. Filho de Zeus e Sêmele, foi educado no vale de Nisa pelas Ninfas, segundo a tradição mais corrente. Já adulto descobriu a uva, a vinha, a vindima e seus usos. Enlouquecido por Juno, andou errante pelo Egito, pela Síria e pela Frígia, onde a deusa Cibele o iniciou em seu culto. Dioniso assim aprende as artes de Cibele, a deusa-mãe da Trácia. Em todos os países ensinava aos homens o trato da videira e a fabricação do vinho. Fatigado de tantas viagens, voltou à Grécia e recuperou a sanidade graças a Cibele. Na Trácia foi mal recebido pelo rei Licurgo, a quem puniu severamente. Em seguida, chegou à Índia, país que conquistou pela força de suas armas e por seu poder místico. Montava um carro puxado por panteras e ornado de ramos de videira e hera. Acompanhava-o um cortejo de Sátiros, Silenos e Bacantes. Voltando à Beócia 13 introduziu em Tebas as festas dionisíacas ou bacanais. Penteu, o rei da cidade, opôs-se ao seu culto e ele, como de costume, lançou mão do vinho para impor-se; embriagou as mulheres e levou-as a matar o soberano. Em Orcômeno, onde reinava Mínias, procurou convencer o povo a juntar-se à comitiva do vinho. As festas das colheitas da uva eram em sua homenagem, marcadas por manifestações de êxtase e delírios religiosos e sensuais. Observa-se aqui uma intrínseca articulação entre as práticas econômicas, os rituais de fertilidade e técnicas de produção, e as práticas sexuais e religiosas. Há uma vigorosa integração das condições materiais e o imaginário cultural, e a sexualidade encontra-se sempre representada como uma das mais destacadas forças e expressões da cultura e identidade humana, grupal, coletiva e individual. Para o método de investigação que escolhemos manejar na presente pesquisa há uma correspondência entre as formações materiais e econômicas e as diversas formações sociais e culturais. Essa correspondência não é considerada como um determinismo, mas sim em movimentos de ações e reações, o que configura a interdependência das esferas sociais, educacionais e filosóficas com as bases materiais da sociedade. As filhas do rei, Alcítoe, Arsipa e Leucipa, recusaram-se a acompanhá-lo e receberam atroz castigo. Quando andava por uma praia Doniso foi raptado por piratas, que acabaram transformados em delfins; só escapando Acetes, que se opusera ao plano dos companheiros. O deus dirigiu-se em seguida à ilha de Naxos, onde esposou Ariádne. 5 Por fim, adquiriu o direito de participar da assembléia olímpica. Desceu aos Infernos e recuperou Sêmele, levando-a para a comunidade divina com o nome de Tione 5 Ariadne era uma bela mortal que foi transformada em deusa. Filha de Minos e Parsífae. Apaixonou-se por Teseu quando este foi a Creta para lutar contra o Minotauro. Deu ao herói ateniense um novelo de fio que lhe possibilitou sair do Labirinto. Para escapar à cólera de Minos, Ariadne acompanhou Teseu em sua fuga, mas este abandonou-a na ilha de Naxos, um dos locais favoritos de Dioniso. Impressionado com a beleza da jovem, o deus esposou-a e levou-a para o Olimpo. Como presente de núpcias, ofereceu-lhe uma coroa de ouro, obra de Vulcano. Após sua morte, essa coroa foi colocada no céu, sob a forma de constelação. As festas dionisíacas ou bacanais eram as festas romanas celebradas em honra a Baco, o deus romano que representaria o deus grego Dioniso. Embora não fossem iguais em todas as regiões, identificavam-se sempre pelo caráter orgíaco e pela presença de mulheres tomadas de delírio. As Bacantes eram mulheres que se tornavam seguidoras de Baco ou Dioniso. Acompanhavam-no em sua lendária viagem à Índia. Não eram sacerdotisas, mas ocupavam lugar de destaque na religião e no culto a esse deus. Empunhavam o tirso, espécie de lança enramada de hera. Cobertas apenas por peles de leão, celebravam as orgias com gritos e danças desnorteadas,. Mergulhavam em êxtase místico e adquiriam uma força prodigiosa, de que muitos heróis foram vítimas. Também eram chamadas Mênades, que significa “mulheres possuídas ou possessas”. 14 ou Dione. Os gregos consideram Dioniso protetor das belas-artes, em particular do teatro, originado nas representações que faziam por ocasião das festas em honra ao deus. Eram chamadas de dionísias ou dionisíacas. Na Frígia e na Trácia eram caracterizadas por sacrifícios humanos e orgias. Na Grécia, embora o caráter orgíaco fosse conservado, a vítima era um animal. Dessas festas destacavam-se as Antesterias, onde se provava o vinho novo; as Oscofarias, que acompanhavam a colheita. As Grandes Dionísias ou festas urbanas celebravam-se no mês de março e possuíam também caráter artístico e celebrativo ou sacrifical. Nelas, além do canto e da dança, havia representação de cenas mitológicas da vida de Dionísio. A tais festas liga-se a origem da tragédia e da comédia. As Pequenas Dionísias ou Dionísias Campestres eram comemoradas em dezembro, após a vindima, quando fechavam o grande ciclo de trabalho agrícola. A mais destacada punição enviada pelos deuses para castigar um país de um crime ou sacrilégio cometido por um de seus habitantes era a Esterilidade. Dioniso era o deus que definia tal punição. Ao ser mal recebido por Licurgo, rei da Trácia, tornou seu reino estéril: os rios secaram, a terra fendeu-se, a vegetação desapareceu. Para apaziguar o deus foi preciso matar Licurgo, o rei adversário de Dioniso, o rei impenitente. Atribuía-se originalmente a esterilidade às fêmeas e mulheres, mais tarde, em tradições dionisíacas tardias, passou a variar de gênero. A esterilidade passou a atingir também os homens; Egeu, por exemplo, não teve filhos com suas duas primeiras mulheres. Nos casamentos sem filhos, os esposos perguntavam aos oráculos as razões da cólera dos deuses e os meios para aplacá-la. Era uma das consultas mais freqüentes a Dioniso. Uma das mais curiosas expressões do culto a Dioniso consiste no costume de ostentar uma escultura de barro de um pênis, com proporções sempre exageradas, para o cultivo do símbolo sexual masculino, considerado como símbolo da fecundidade. Na Grécia, era conduzido em procissão, nas festas de Dioniso. Os ministros encarregados de conduzir o falo nas festas em honra a Dioniso eram chamados de falóforos. As festas falológicas eram realizadas em honra a Príapo, que segundo a mitologia hesiodaica, nascera com um pênis descomunal por inveja de Juno. Abandonado pela mãe na encosta de um monte foi criado por pastores e agricultores, passou a proteger os rebanhos, jardins e plantações, vinculando sua virilidade à fecundidade da terra e dos rebanhos, na imagem de um bode. 6 6 Príapo era tido como filho de Dioniso e Afrodite, assim como Eros. Graças aos malefícios de Hera, que alimentava grande inveja de Afrodite, Príapo nasceu com falo descomunal. Sua mãe, temendo ser 15 O que entendemos por orfismo também deriva do culto a Dioniso, transmitido por um sacerdote primordial denominado Orfeu. Este teria sido o primeiro a receber a revelação de certos mistérios dionisíacos, como o vinho e a fecundidade, e os teria transmitido a alguns iniciados, sob a forma de poemas musicais. Os órficos revelavam seus segredos somente a aqueles que se dispunham a seguir determinado “caminho de vida”. Acreditavam na imortalidade da alma e na sua transmigração através de vários corpos, recurso indispensável à purificação. A alma aspiraria a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, mas, para isso, era preciso receber a ajuda de Dioniso. O deus Dioniso completava a libertação, já preparada por determinadas práticas, como a abstinência de certos alimentos ou o silêncio. Há certos traços do pitagorismo nessa tradição, sobretudo em suas versões urbanas. Os seguidoresdo orfismo possuíam uma concepção própria sobre a origem do universo e do homem. No início existiria um ovo, do qual saiu Eros, o Amor, o princípio de todas as gerações que se sucedem. Graças a ele foram criados os outros deuses e o próprio universo. A origem do homem estaria ligada a um crime: os Titãs, inimigos dos deuses do Olimpo, mataram Dioniso, o deus-menino. O crime causou sofrimento e indignação em Zeus, o deus maior do Olimpo. Sua morte foi vingada por Zeus que, com seus raios, destruiu os Titãs, reduzindo-os a cinzas. Destas cinzas foi constituída a raça humana, marcada por dupla natureza: a de Dioniso e a dos Titãs. O homem é, então, o campo onde se defrontam forças antagônicas de luz e sombra, bem e mal. E, derivando uma liturgia redentora dessa leitura teológica, o caminho de salvação proposto pelos órficos consiste em libertar a alma do corpo, tido como seu sepulcro 7 . O ridicularizada pelos deuses, abandonou-o na montanha. Os pastores recolheram-no, educaram-no e renderam culto à sua virilidade. Protetor dos jardins e dos pomares, Príapo tinha o poder de desviar o mau-olhado das colheitas. Como símbolo da fecundidade participava do cortejo de Dioniso ou Baco. Durante uma festa do deus do vinho, pretendeu violentar Lôtis, por quem estava apaixonado. Príapo era particularmente venerado na cidade asiática de Lâmpsaco,. Também foi objeto de culto na Itália. Foi assimilado a algumas divindades agrestes, sobretudo a Pã. A iconografia registra sua representação com chifres e orelhas de bode, e tem como atributos ornamentais o domínio dos instrumentos de jardinagem. 7 Orfeu – Filho de Éagro ou de Apolo com uma musa: Calíope, Polímnia ou Urânia, segundo tradições diversas. De origem trácia, distinguiu-se por seus dons de músico e poeta. Com seu canto suave, abrandava a natureza e fascinava animais, plantas e até mesmo as pedras. Alguns autores atribuem-lhe a invenção da lira; para outros, contudo, ele apenas aperfeiçoou esse instrumento, aumentando o número de cordas: as sete primitivas passaram a nove, pois nove eram as Musas veneradas por Orfeu. Na condição de poeta e cantor, participou das viagens dos Argonautas. Com sua arte, colocou em movimento a nave Argo, paralisada por uma força misteriosa; estimulou os marinheiros; aplacou as tormentas marítimas; impediu os navegadores de ouvir o feiticeiro canto das sereias. Dentre as lendas relativas a Orfeu, a mais célebre confere-se a sua união com a Ninfa Eurídice. Quando esta morreu, o poeta desceu aos Infernos para buscá-la. Seu canto harmonioso e pungente convenceu as divindades do reino dos mortos e, por alguns momentos, transformou a face dos Infernos, fazendo cessar os suplícios dos grandes condenados: Sísifo deixou de rolar sua pedra; a roda de Ixião parou de girar; Tántalo não sentiu fome e nem sede; as 16 corpo seria a matéria titânica, intrinsecamente má. Dessa tradição órfica deriva o conceito de orgia, um ato místico caracterizado por excitação entusiástica do espírito, nas cerimônias e festas religiosas, de natureza coletiva. As orgias eram comuns especialmente no culto a Dioniso e permitiam excessos e atitudes licenciosas. Os iniciados, seminus, coroados de hera e com os cabelos revoltos, corriam pelas ruas. Gritavam evoé, uma saudação a Baco, o nome latino de Dioniso, e brandiam os tirsos. Os participantes dessas cerimônias chamavam-se orgiastas, e os sacerdotes que a presidiam, orgiofantes. Uma das sínteses culturais dessas tradições expressa-se no culto ao bode, símbolo do Sol e de seu dom de fecundar e regenerar. Os gregos e os romanos davam sua forma a várias divindades campestres que adoravam: Pã, os Faunos, os Sátiros, Silvano. Príapo, filho de Dioniso e Afrodite, era figurado com chifres, orelhas felpudas e patas. As mulheres estéreis ofereciam-se a esse bode sagrado para obterem fertilidade. O culto do bode passou da Lídia para a Grécia; da Etrúria chegou até Roma, onde tomou características especiais. Nas Lupercálias, festas realizadas anualmente em 15 de fevereiro, as mulheres eram açoitadas, nas costas e no ventre, com tiras de pele de bode para se tornarem fecundas. Mesmo a cerimônia do casamento, uma festa agrícola primitiva, era vinculada a essa tradição dionisíaca. Na Antiguidade, todo casamento era colocado sob a proteção de certas divindades. Estas velavam particularmente pela proteção e mútua compreensão do casal e pela fecundidade da união. Na véspera do casamento, a noiva oferecia seus brinquedos a Diana, ou a Ártemis grega, e Vênus, ou a Afrodite helênica, para obter sua benevolência. No dia das núpcias, invocava-se Juno, a deusa das esposas, e comiam-se Danaídes interromperam a inútil tarefa de preencher um tonel sem fundo. Após retornar do mundo das sombras, inconsolável por perder, Eurídice para sempre, Orfeu passou a vagar pela Grécia, chorando a ausência da esposa. Várias mulheres assediaram-no e a todas ele recusou. As Bacantes, enfurecidas com seu desprezo despedaçaram-no à margem do rio Hebro, na Trácia. Levadas pelas águas, a cabeça e a lira do poeta foram ter à ilha de Lesbos, onde os habitantes do lugar, ou as Musas, conforme outra versão lhes deram sepultura, variantes da lenda relatam que a lira de Orfeu foi transformada em constelação por Júpiter ou dedicada a Apolo. Segundo uma tradição, a tumba de Orfeu localizava-se na embocadura do rio Meles, na Ásia Menor. Após a morte do poeta, uma peste teria assolado a Trácia. O oráculo informara à população que a calamidade era uma punição pelo assassínio de Orfeu. Para afastá-la, deveriam encontrar a cabeça do poeta e render-lhe honras fúnebres. Ao cabo de intensas buscas, alguns pescadores finalmente acharam a cabeça na foz do rio Meles. De acordo com uma lenda téssala, o oráculo de Baco afirmara que, se as cinzas do poeta vissem a luz do sol, a cidade de Leibetra, na Tessália, onde elas se encontravam, seria devastada por um porco. Os habitantes não deram crédito à profecia. Entretanto, uma tarde de verão, um pastor dormia sobre a tumba de Orfeu e, possuído pelo espírito do poeta, pôs-se a cantar. Ouvindo-o, os camponeses interromperam o trabalho e correram para a tumba. A multidão acabou derrubando as colunas do monumento e o sarcófago apareceu. Na noite seguinte, uma violenta tempestade caiu sobre a cidade, fazendo transbordar o rio Sis (porco, em grego). Várias casas de Leibetra desabaram sob a força das águas, cumprindo a profecia. Orfeu era venerado pelos gregos como o inspirador de uma religião que levou seu nome: o orfismo. 17 bolos que favoreciam a concepção. O deus propiciador e protetor do casamento era Himeneu. Várias são as versões de sua filiação, ora filho de Apolo e de uma musa chamada Calíope, ou das ninfas Clio ou Urânia, ora nascido de Baco ou Vênus, ou de Magnes, segundo variantes da lenda. Ateniense de grande beleza, mas de condição modesta, Himeneu apaixonou-se por uma jovem nobre. Quando esta e algumas companheiras dirigiram-se a Elêusis para sacrificar animais em honra a Ceres, foram raptadas por piratas. Himeneu matou os raptores, levou as jovens para lugar seguro e retornou a Atenas, prometendo devolver as moças com a condição de que lhe permitissem esposar a amada. O acordo foi aceito e, em lembrança dessa proeza, Himeneu passou a ser invocado nos casamentos para propiciar felicidades aos noivos. Segundo outra versão, Himeneu cantava nas núpcias de Baco e Ariadne, quando perdeu a voz. Há também uma tradição segundo a qual Himeneu teria morrido no dia de seu casamento, ligando, assim, seu nome à cerimônia nupcial. O canto entoado nessa cerimôniarecebeu o nome de Himeneu. Na atual versão reduz-se ao substantivo Himno ou hino. Seus atributos ou ornamentos básicos eram compostos por uma tocha, uma coroa de flores e, às vezes, o porte de uma flauta. Os gregos e romanos adoravam Cibele, uma das principais deusas da Frígia, freqüentemente chamada a Mãe dos Deuses ou Grande Mãe. Segundo tal tradição mitológica, era filha do Céu e da Terra, esposou seu irmão Saturno e dele teve cinco filhos: Zeus ou Júpiter, Vesta, Ceres, Juno, Plutão e Netuno. Era honrada na Ásia Menor, de onde seu culto se estendeu por todo mundo grego e atingiu a cultura e mitologia romana. Enquanto Ceres é a deusa da natureza cultivada pelos homens, Cibele personifica a natureza no seu poder vegetativo e selvagem. Está entre as divindades da fertilidade e partilha com Júpiter, na mitologia romana, o poder sobre a reprodução das plantas, dos animais, dos deuses e dos homens. É conhecida sob vários nomes: Ops, Réia, Boa Deusa. Segundo a região, seus sacerdotes chamam-se Curetes, Coribantes, Dáctilos, Cabiros. Não há lendas a respeito de Cibele, salvo a que relata seus amores com o pastor Átis, e que é a origem ou a transposição dos mistérios orgíacos e órficos da ressurreição. Em Roma, as festas da deusa Cibele e de seu amor Átis constituíram uma liturgia só. Eram celebradas de 15 a 27 de março e inspiravam-se na lenda do jovem pastor: recordavam desde o seu nascimento até a sua morte e ressurreição. Cibele é representada num carro puxado por leões ou acompanhada desses animais, símbolo da força; tem na mão uma chave, que abre a porta da terra, onde estão encerradas as riquezas; na cabeça sustenta pequenas torres que significam as cidades sob sua proteção. 18 Dessa tradição deriva o culto a Ceres, divindade latina da vegetação e da terra. Inicialmente confundia-se com Telus, personificação da Terra nutritiva. Suas festas, das quais se destacavam as Cereálias e as Fornicales, eram celebradas no fim da semeadura e da colheita. Eram as festas da deusa Fórnax, a protetora dos grãos e fornos onde se coziam os pães. As fornacálias, ou numa versão posterior fornicálias, eram festas coletivas no fim das colheitas. Nessa ocasião a vida ordinária era suspensa e as orgias e festas dionisíacas associavam a fertilidade, a fecundidade e a renovação da natureza e da vida. Dessa tradição resulta a condenação cristã das fornicações. Com o tempo, Ceres tomou características próprias e passou a ser venerada em todo o Lácio; porém só adquiriu maior importância quando foi assimilada a Deméter, deusa grega cujo culto foi introduzido em Roma por volta de 496 a.C. Nessa ocasião, como a cidade fosse castigada pela miséria, consultaram-se os livros Sibilinos, que ordenaram a edificação de um templo a Dionisio (Baco) e a Deméter. A guarda desse templo foi dada aos edis plebeus, que já presidiam o mercado dos grãos. Tornou-se assim uma associação religiosa e econômica. Sob a influência da deusa grega, Ceres adquiriu novas atribuições: tornou-se protetora do matrimônio, mas também era ligada aos ritos fúnebres. Na época do auge do Império, foi venerada especificamente como a deusa das colheitas e da germinação. Suas lendas constituem a mais original transposição das lendas atribuídas a Deméter. 8 8 Deméter era considerada uma das doze divindades do Olimpo, nascida da união de Saturno e Cibele. Era a deusa protetora do cultivo da terra, da agricultura, sua proteção favorecia, sobretudo, a germinação do trigo. Unindo-se a Iasião, filho de Júpiter e Electra, teve Pluto, o deus da abundância. Em grego, o vocábulo pluto passou a representar a riqueza. Transformou-se em égua para escapar à perseguição de Netuno. Este tomou a forma de cavalo e amou-a vertiginosamente. Da união dos dois nasceu o veloz Arião. De Júpiter, ou Zeus na tradição mitológica grega, Deméter teve Prosérpina, que Plutão raptou e levou para seu reino. Inconsolável com a perda da filha, a deusa saiu à sua procura. Durante nove dias e nove noites vagou pela terra, sem comer, sem banhar-se, sem repousar. No décimo dia, o Sol, o deus Hélios, revelou-lhe o autor do rapto. Enraivecida Deméter decidiu não voltar à morada dos deuses enquanto Prosérpina não lhe fosse devolvida. Tomou a forma de uma velha e foi visitar Elêusis, onde encontrou abrigo na corte do rei Céleo. Metanira, a esposa do rei, acolheu-a como nutriz de seu filho mais novo, Demofoonte. Ao jovem Triptólemo, outro filho de Céleo, Deméter ensinou a arte de lavrar os campos, semear a terra e colher os cereais. Enquanto a deusa permaneceu longe do Olimpo, a terra tornou-se estéril; fome e epidemias ameaçavam os mortais. Preocupado com a devastação d a fome que aconteciam todos os campos, Zeus pediu a Plutão que devolvesse Prosérpina à mãe. O deus dos Infernos concordou; porém, antes de deixar a amada partir, fê-la comer um bago de romã. Assim, prendeu-a para sempre aos Infernos, pois quem ingerisse qualquer alimento nessa região ficava eternamente obrigado a retornar. Diante desse fato, estabeleceu-se que Prosérpina passaria um período do ano com sua mãe e outro com Plutão. O primeiro corresponde à primavera, em que os novos rebentos, as flores e sementes saem dos sulcos, assim como Prosérpina deixa a morada subterrânea e dirige-se para o Olimpo. O segundo é o da semeadura de outono: os grãos de trigo são enterrados, do mesmo modo que ela volta para o convívio de Plutão. Os Mistérios de Elêusis, celebrados no culto à deusa, na Grécia, interpretam esta lenda como um símbolo contínuo de morte e ressurreição. Deméter disputou com Vulcano a posse da Sicília e com Baco a da Campânia, que para os romanos era o que explicaria a riqueza da região da Campânia em vinhas e trigais. Seus atributos são a espigas e o narcíso; seu pássaro é o grou e a vítima 19 Outros mitos e tradições orais e escritas revelam ainda mais o imaginário grego sobre sexualidade e amor, os humores dos deuses e dos homens, as relações polêmicas e contraditórias entre heróis, deuses, homens e mulheres. Nas divindades anteriormente descritas denota-se a vinculação da sexualidade como procriação, como reprodução da vida, dos alimentos, das sementes. Noutras representações divinas a sexualidade é um capricho do humor, uma busca de prazer. O mito de Ártemis, uma das doze divindades do Olimpo, filha de Zeus e Latona, irmã gêmea de Apolo, é um desses casos paradigmáticos, para se observar a relação e compreensão da sexualidade desse tempo. Teria a deusa nascido na ilha de Delos, mas escolheu viver na Arcádia. Nessa região montanhosa e selvagem entregava- se a seu maior prazer, a caça. Acompanhava-a um séquito de sessenta Oceânidas e vinte Ninfas, em Roma recebeu o nome de Diana. Deusa cruel e vingativa atingia impiedosamente com suas flechas todos aqueles que a insultavam ou ousavam menosprezar sua mãe. Assim temperamental e cruel, juntamente com Apolo, exterminou os filhos de Níobe, que se vangloriara de ter maior prole do que sua mãe Latona. Atribuem-se lhe mortes súbitas, bem como aquelas ocorridas durante o parto. Participou do combate contra os Gigantes e, com a ajuda de Hércules, matou um deles. Dentre suas vítimas contam-se também os Aloídas e o monstro Búfago. Na guerra de Tróia lutou ao lado dos troianos. Ainda foi ela que exigiu o sacrifício de Ifigênia, filha do chefe grego Agamenon, mas salvou-a no momento em que ia ser imolada, segundo a trama da Ilíada. Castigou os que atentaram contra um de seus principais atributos, a virgindade. Quando Orion tentou seduzi-la ou, segundo outra versão, procurou violentar uma de suas companheiras, Diana enviou um escorpião que o picou mortalmente. Converteu em cervo o caçador Acteon, que morreu estraçalhado por seus próprios cães. Segundo uma versão de Hesíodo metamorfoseou Calisto em ursa, porque se deixara seduzir por Zeus,tomada de ciúme do pai divino. Na Táurida Diana aparece como uma deusa cruel à qual são sacrificados os estrangeiros, por razões diversas. É representada num carro puxado por dois touros, com um archote na mão e uma lua crescente sobre a testa. Em Éfeso, onde estava seu mais célebre santuário, era tida como deusa da fecundidade; ao invés de recusar-se ao amor, entrega-se a ele e, com que prefere nos sacrifícios celebrados em sua honra é a porca. Deméter é representada sentada, com tochas nas mãos ou segurando uma serpente. No século V a.C. o culto de Deméter foi introduzido em Roma, onde a deusa se identificou com Ceres. 20 seus múltiplos seios, nutre os homens e a terra. Na Grécia, entretanto, figura sempre como caçadora e casta. Essa dualidade de representação, entre o contraditório e seu contrário, ao invés de constranger nossa análise, a enriquece. Percebe-se que, em ambas as tradições, as dimensões da guerra, da religião, da vida moral, da política, das virtudes e dos vícios, as relações políticas e familiares, a produção e o cotidiano, todas estão enxovalhadas pela sexualidade, por suas seduções e sedições, pelos sentimentos que dela derivam e a engendram. Não se esconde a sexualidade na caixa de Pandora. Não é esse o seu lugar, seu lugar é a vida, a praça, a rua, o mundo dos homens e deuses, mulheres e deusas. Outro grande referencial mitológico ocidental pode ser encontrado nas narrações trágicas de Édipo e Electra, resgatadas e ressignificadas na Modernidade. S. FREUD (1857-1925), e toda a tradição psicanalítica subseqüente a seu trabalho original e criativo, tornariam essa digressão mítica uma referência para sua ciência e um paradigma exemplar para a interpretação dos papéis sexuais hegemônicos na tradição patriarcal ocidental moderna. Segundo a narração mítica, Édipo era filho de Laio, rei de Tebas, e de Jocasta. Advertido pelo oráculo de Delfos de que um de seus filhos o mataria Laio abandonou o menino no monte Citerão. Alguns pastores encontraram-no e como tivesse os pés inchados, chamaram-no Édipo (o termo, em grego, significa “pés inchados”). Em seguida, conduziram-no a Pólibo, rei de Corinto. O soberano coríntio e Peribéia, sua esposa, adotaram-no como filho. Já adulto Édipo ouviu de um cidadão coríntio indiscrições e desonras sobre sua origem. Consultou então o oráculo de Delfos, que lhe revelou que mataria o pai e esposaria a mãe. Tentando evitar o cumprimento da predição, deixou Corinto, pois estava convencido de que Pólibo e Peribéia eram seus verdadeiros pais, e temia cumprir o oráculo contra quem amava. Para fugir de seu destino buscou a fuga, refugiando-se nos campos. Entre Delfos e Tebas, numa passagem estreita entre rochedos, desentendeu-se com um desconhecido e matou-o, depois de uma dura luta. Desse modo, confirmou-se a primeira parte do oráculo: o desconhecido era Laio, rei de Tebas, que fugia de um levante de usurpação de seu trono. Indo para a cidade de Tebas, Édipo deparou com a Esfinge, monstro que propunha aos viajantes um enigma e que, não obtendo resposta satisfatória, devorava-os. Édipo, porém, decifrou a questão e a Esfinge, desapontada, precipitou-se do alto de um rochedo. Em reconhecimento a sua façanha, Creonte, usurpador do trono de Laio, regente de Tebas, passou-lhe o trono e concedeu-lhe a mão de Jocasta, a rainha aprisionada. 21 Da libertação da cidade do jugo da Esfinge e da união com Jocasta derivou um tempo de prosperidade e bonança. Dessa união incestuosa, nasceram quatro filhos: Etéocles. Polínice, Antígona e Ismena, todos de trágico destino. Depois de alguns anos de reinado feliz, o herói viu a população do país dizimada por uma epidemia. Novamente recorreu ao oráculo e este declarou-lhe que a peste só cessaria quando o matador de Laio fosse banido de Tebas. O soberano maldisse o assassino e buscou tomar providências para localizá-lo. Consultou o adivinho Tirésias e, através de suas revelações, acabou chegando à verdade, o assassino de Laio era ele próprio. Jocasta, envergonhada ante ao acontecimento do incesto, enforcou-se. Édipo vazou os próprios olhos com seu punhal e, expulso da cidade, passou a levar vida errante pelas cidades e estradas. Acompanhava-se apenas de sua filha Antígona. Etéocles e Polínice recusaram- se a interceder em seu favor e ele os amaldiçoou. Depois de longas viagens chegou á Ática, onde encontrou asilo junto a Teseu. Seus filhos e Creonte tentaram fazê-lo retornar a Tebas, pois um oráculo previra que o país que tivesse sua tumba seria protegido pelos deuses. Édipo, contudo, recusou-se a voltar e morreu em Colona, um lugarejo próximo de Atenas. Assim, garantiu ao povo ateniense vitória permanente sobre os tebanos, segundo o oráculo. Trata-se de um modelo mítico relido e interpretado por S. FREUD como representação do idílio amoroso que envolve a relação da criança com seus pais, numa das fases de sua cristalização educativa e psicossocial. A tradição científica subseqüente a FREUD resgatou o mito de Electra, buscando superar a suposta identidade patriarcal, considerada unilateral, para entender os papéis sexuais, propostos por FREUD. Resgatam, assim, um outro rico e polissêmico texto mítico grego. Electra, a filha de Agamenon e Clitemnestra, seria a representação do modelo feminino de internalização dos papéis sexuais. Sua história retrata que, quando sua mãe e Egisto assassinaram Agamenon, seu pai, Electra e seu irmão Orestes viram-se ameaçados da mesma sorte. Mas Clitemnestra poupou-a e reduziu-a à condição de escrava. Segundo certos autores, Electra salvou Orestes, confiando-o a um tutor, que o levou para longe de Micenas. Temendo que um filho de Electra vingasse a morte de Agamenon, Egisto casou-a com um camponês, instalado longe da cidade. Conforme outra versão encerrou-a no palácio. Com o retorno de Orestes, Electra incitou-o a matar os assassinos do pai. Lutou, depois, ao seu lado, contra o povo, que, diante de seu crime, os condenou à morte. Quando Orestes saiu em busca da estátua de Diana da Táurida, Aletes, filho de Egisto, apoderou-se do trono. Nessa ocasião, Electra deixou Micenas. Retornou mais tarde com 22 o irmão para matar Aletes. Electra casou-se com Pílades, companheiro de Orestes. Teve dois filhos: Medonte e Estrófio. A riqueza de detalhes desse relato arquetípico justificaria a sua estratégica apropriação pala tradição psicanalítica. Mas os mitos parecem não ter fim quando relatam os dramas e aventuras da sexualidade em suas vidas de deuses e heróis. A questão do amor como prazer, por exemplo, a disputa perene entre o homem e a mulher encontra em Hera ou Juno uma de suas brilhantes exteriorizações temáticas, quando se faz a pergunta, quem teria maior prazer no amor, o homem ou a mulher? Vejamos a explicação mítica. Na história de Hera, uma das doze divindades do Olimpo, filha de Saturno e Cibele essa disputa é exemplar. Segundo uma versão primeva, de Homero, foi a deusa e todos os seus irmãos devorados pelo pai e salva por intercessão de Zeus. Casou-se com o senhor dos deuses, compartilhando de seus atributos e reinando com ele sobre o Olimpo. Dessa união nasceram Vulcano, Marte, Ilítia e Hebe. Como vingança por Zeus haver dado origem a Minerva sem sua participação, Hera ou Juno gerou sozinha o monstro Tifão. Ciumenta e vingativa perseguiu não só as amantes de Zeus, mas também os filhos das uniões ilegítimas do esposo. Ion, Latona, Calisto, Alcmena e Dioniso, entre outros, foram vítimas de sua ira. Tentou impedir o nascimento de Hércules e perseguiu-o por toda vida, submetendo-o a pesados trabalhos e castigos. Por ter enviado uma tempestade que assolou o navio do herói, Juno foi amarrada por Zeus ao monte Olimpo, com uma bigorna em cadapé. Foi libertada por Vulcano. Discutiu com o marido, afirmando ser o homem quem obtinha maior prazer no amor, enquanto Zeus afirmava que a favorecida era a mulher. A contenda foi arbitrada pelo adivinho Tirésias, que decidiu em favor de Zeus. Segundo uma versão, Juno, irritada, cegou o mortal. Na disputa que travou com Minerva e Vênus, prometeu ao troiano Páris, juiz da contenda, o poder sobre todo o universo. Preterida, vingou-se, enviando uma tempestade que se abateu sobre o navio do herói, quando este raptou Helena; além disso, durante a guerra de Tróia sua ira perseguiu os troianos. Esposa do senhor dos deuses era venerada como protetora de todas as esposas e mães, a quem ajudava nos partos e era invocada como protetora dos nascimentos. Seu culto assumiu caráter muito importante na Grécia, segundo a Ilíada e Odisséia, mas foi em Roma que assumiu ainda formas mais portentosas, onde era adorada especialmente nas festas Matronaliae, celebradas em fevereiro. As festas matronais são uma das principais fontes dos carnavais primitivos. 23 Durante essas celebrações, as mães recebiam presentes do esposo e dos filhos. Juno é representada como jovem e bela mulher, severa e casta. Veste uma longa túnica e um véu. Tem na cabeça um diadema. Na mão, traz o cetro, em cuja ponta há um cuco e uma granada (pedra preciosa), símbolo do amor conjugal e da fecundidade. Seu pássaro preferido é o pavão, em cuja calda a deusa colocou os olhos de Argos. A identificação das mulheres, entre a contradição da leveza e a força de sua personalidade pode ser retratada na comparação entre a representação das Ninfas e o ofício das Parcas. Aqui apresenta-se uma radical expressão dessa fantástica identidade ou contradição. As Musas eram consideradas como as filhas de Zeus e Mnemósine. Alguns autores, como Hesíodo, entretanto, consideram-nas filhas do Céu e da Terra; outros, de Píero e Antíopa ou Pimpléia, e terceiros, ainda, de Zeus e Pimpléia. Na tradição mais corrente, derivada de Homero, eram nove ao todo o conjunto de Ninfas, a saber: Calíope, Clio, Érato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Talia, Terpsícore e Urânia. Segundo uma versão primitiva, talvez de origem micênica, elas eram Ninfas habitantes das montanhas, das margens dos rios e das fontes. Deste ambiente bucólico foram depois elevadas à condição das divindades inspiradoras da poesia e do canto. Os poetas apoiavam-se em seus dizeres para não correrem o risco de contar coisas falsas aos homens, embora não raro transmitissem essa verdade como predição. Durante o tempo em que permaneciam no Olimpo as Musas entreteriam os deuses com seus coros e danças. Além da arte, presidiam o pensamento sob toadas, ordenando as palavras e suas formas: Eloqüência, Persuasão, Sabedoria, História, Matemática e Astronomia. Considerava-se que ditavam aos reis as palavras necessárias para apaziguar as querelas e restabelecer a paz entre os homens. Habitavam o monte Helicão, na Beócia, a região da Piéria, na Trácia, ou o monte Parnaso, na Fócida. No monte Helicão, lugar cheio de bosques e fontes, as Musas estavam colocadas sob a dependência de Apolo, que dirigia seus cantos em torno da fonte Hipocrene. Primitivamente, as Musas eram representadas como virgens de comprovada castidade. Puniam severamente quem ousasse tocá-las. Mais tarde, essa idéia modificou-se havendo mesmo relatos sobre suas uniões e seus filhos. Originário da Trácia, onde está seu mais antigo santuário, o culto das Musas estendeu-se para a Beócia, adquirindo maior importância em torno do monte Helicão. Em Delfos, eram veneradas no templo de Apolo. Possuíam santuários ainda em Esparta, Trezena, Sícion e Olímpia, nas múltiplas ilhas e em várias cidades da Magna 24 Grécia. Em sua homenagem eram feitas libações de leite, mel e água. Representavam- nas como mulheres de rosto sorridente ou preocupado, segundo a função que se lhes conferia, com vestidos folgados e mantos ornamentados. As famílias ofereciam presentes e flores, e altares eram feitos e ornados em bosques em sua homenagem. Já as representações das Parcas eram diametralmente diversas. As Parcas eram a representação latina das Moiras gregas. Originalmente Parca significava “parte”, tanto podendo ser aplicada à consideração da vida, da felicidade, da riqueza ou do infortúnio. Cada ser humano possuía a sua Parca. Depois, essa abstração tornou-se uma divindade, assemelhando-se a Ceres, sem ter, entretanto, o mesmo caráter violento e sanguinário. Aos poucos, desenvolveu-se a idéia de uma Parca universal, dominando o destino de todos os homens. E, finalmente, passou-se a conceber três Parcas. Filhas de Zeus e Têmis, ou, segundo outra versão, da Noite, personificavam o Destino, poder incontrolável que regula a sorte de todos os homens, do nascimento até a morte. Nem mesmo os deuses podiam transgredir suas leis, sem pôr em perigo a ordem do mundo. Seus nomes correspondiam a suas funções: Cloto, a fiandeira tecia o fio da vida de todos os homens, desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, que determinava-lhe o tamanho e enrolava o fio, estabelecendo a linha da quantidade e qualidade de vida que cabia a cada um; Átropos, a irremovível, cortava-o quando a vida que representava chegava ao fim. Como deusas do Destino, as Parcas presidiam os três momentos culminantes da vida humana: o nascimento, o matrimônio e a morte. São representadas como velhas arcadas e feias ou, mais freqüentemente, como mulheres adultas de aspecto severo. Curiosamente se observa a abstração do poder matriarcal nas mãos das Moiras, assim como nas Ninfas, retratando, aqui e acolá, os elementos que haveriam de compor a identidade cultural feminina, histórica e contingente, nos séculos e culturas subseqüentes. Podemos acrescentar nesta díade o mito de Volúpia, a dileta filha de Eros e Psiquê. Personifica o prazer, sob todas as formas. É descrita como uma jovem lânguida e sensual. Dengosa, sedutora, caprichosa e vivaz, estaria sempre seduzindo os homens e extraindo-lhes seu tempo e prazer. Sua sedução era representada como contumaz, não haveria como resistir. Possuía um templo em Roma, era cultuada pelas moças, em busca de um amor cheio de vida. Já sua mãe, Psiquê, tinha outra identidade. Era representada como uma jovem princesa tão bela que de todas as partes acorria gente para admirá-la. Passou mesmo a ser objeto de culto, sobrepondo-se a Afrodite ou Vênus, cujos templos se esvaziaram. A 25 deusa indignou-se com o fato de uma simples mortal receber tantas honras. Pediu a seu filho Eros, o deus do Amor, que atingisse a jovem com suas flechas, fazendo-a enamorar-se do homem mais desprezível do mundo. Entretanto, ao ver a princesa, o próprio Eros se apaixonou por ela e, contrariando as ordens da mãe, não lançou suas setas. Enquanto as irmãs de Psiquê casaram-se com reis, a jovem mortal, cobiçada por um deus, permaneceu só. Apreensivo, seu pai consultou o oráculo de Apolo. Este aconselhou o soberano a levar a filha, vestida em trajes nupciais, até o alto de uma colina. Lá, uma serpente iria tomá-la como esposa. As ordens divinas foram executadas e, enquanto a jovem esperava que se consumasse seu destino, surgiu Zéfiro. O doce vento transportou-a até uma planície florida, às margens de um regato. Esgotada por tantas emoções, Psiquê dormiu. Quando acordou, estava no jardim de um palácio de ouro e mármore. Ouviu, então, uma voz que a convidava a entrar. À noite, oculto pela escuridão, Eros amou-a. Recomendou-lhe, insistentemente, que jamais tentasse vê-lo. Durante algum tempo, apesar de não conhecer o amado, Psiquê sentia-se a mais feliz das mulheres. Saudosa de suas irmãs pediu ao marido para vê-las. Zéfiro encarregou-se de levá-las ao palácio. Invejosas da riqueza e felicidade de Psiquê as jovens insinuaram a dúvida em seu coração. Declararam que o homem que ela amava, e que pensava amá-la, ela na verdade o desconhecia, pois não tinha ainda visto seu rosto, e estimulavam a pensar que era na verdade o terrível monstro previsto pelo oráculo. Aconselharam-na, então, a preparar uma armadilha para ver seu rosto, levar escondida para a cama uma lâmpada e uma faca afiada: com a primeira, veria o rosto do marido; com a segunda, poderia matá-lo, se fosse mesmo o monstro. À noite, enquanto Eros dormia, Psiquê apanhou a lâmpada e iluminou-lhe o rosto. Viu, então, o mais belo jovem que já existira. Emocionada com a descoberta, deixou cair uma gota do óleo da lâmpada no ombro do deus. Este despertou sobressaltado e foi embora, para não mais voltar. Afastando-se, disse-lhe em tom de censura: “O amor não pode viver sem confiança”. Cheia de dor, a jovem pôs-se a errar pelo mundo, implorando o auxílio das divindades. Entretanto, como não quisessem desagradar a Afrodite, nenhuma delas a acolheu. Psiquê resolveu dirigir-se à própria Afrodite. A deusa encerrou-a em seu palácio e impôs-lhe os mais rudes e humilhantes trabalhos: separar, segundo a espécie, grande quantidade de grãos misturados; cortar a lã de carneiros selvagens; buscar um frasco com água negra no rio Estige. Na primeira tarefa, Psiquê foi ajudada pelas formigas. Na segunda, os caniços da beira de um regato sugeriram-lhe que recolhesse os fios de lã deixados pelos carneiros 26 nos arbustos espinhosos. E, na terceira, uma águia tirou-lhe o frasco da mão, voou até a nascente do Estige e trouxe-lhe o líquido negro. Finalmente, Afrodite incumbiu-a de ir aos Infernos para obter um pouco da beleza de Prosérpina. Uma torre descreveu-lhe o itinerário para o reino das sombras. Orientou-a também a oferecer o óbolo ao barqueiro Caronte e abrandar a ferocidade do cão Cérbero, oferecendo-lhe um bolo. Bem sucedida na prova, Psiquê voltava com a caixa contendo a beleza, quando resolveu abri-la. Imediatamente, foi tomada de profundo sono. Eros, que a procurava, acordou-a, picando-a com a ponta de uma flecha. Em seguida, o deus do amor dirigiu-se ao Olimpo e pediu a Zeus para casar-se com a mortal. Foi atendido, mas, antes, era preciso que Psiquê recebesse o privilégio da imortalidade. O próprio Zeus ofereceu ambrosya, o néctar dos deuses, à jovem, tornando-a imortal. O casamento celebrou-se solenemente entre deuses. Estes excertos extraídos da rica tradição mitológica grega revelam a fecundidade temática da sexualidade e sua relação intrínseca com as questões da vida dos homens e mulheres. A sexualidade perpassa todas as construções materiais e simbólicas, estrutura as causas das guerras e dos amores, explica os sentimentos de amor e ódio, expressa a pluralidade de escolhas e desafios da vida social, pessoal e coletiva. A tradição mitológica grega registra um infindável tesouro de vivências, e se torna, até hoje, num dos mais ricos e fecundos laboratórios de sentido para entender a condição sexual e afetiva humana. Toda pesquisa que busque perscrutar a significação da sexualidade humana haverá de considerar o conjunto de sentidos e símbolos atribuídos pela cultura greco-latina a essa inexpugnável dimensão humana, subjetiva e social, personificada nos mitos. Estudar a mitologia grega, nessa perspectiva, significa apreender a totalidade de sua significação, nos termos daquela consciência e representação conjuntural. O fenômeno da pólis e a alvorada da Filosofia. Se tomarmos a definição de filosofia como o máximo de consciência possível de uma determinada sociedade num igualmente determinado tempo, certamente haveremos de considerá-la uma das mais importantes construções históricas e sociais da civilização humana. Nesse parâmetro a filosofia seria o registro das concepções e vivências, da produção e socialização das idéias e condutas dominantes que uma determinada época constrói sobre si, ou ainda o conjunto de resultados simbólicos que determinadas sociedades puderam erigir. É certa que esta definição, longe de prescrever uma suposta 27 superioridade aventada à identidade da consideração da filosofia, exigiria esforços de ricas articulações entre o saber filosófico, a literatura, as artes, as ciências, enfim, com todas as formas de expressão e produção humanas. A criação da filosofia é uma das grandes criações da humanidade. Representa uma transformação da explicação mítica sobre a origem do mundo e das coisas, o abandono do recurso aos mitos e deuses como causas da realidade para a proposta de uma racionalidade inteiramente nova, capaz de explicar as contradições e diversidades do mundo. HAVELOCK (1996) assim se expressa, a respeito da identidade da filosofia e sua filiação platônica: Qualquer procura atenta do uso no século V arrisca-se a perder a questão principal, a de que as pistas para a história do vocabulário "filosófico" e, portanto, para uma história da idéia de filosofia, são integralmente fornecidas pela própria República, onde o tipo de pessoa simbolizado por essa palavra é identificado simplesmente como o homem que está pronto para desafiar o domínio do concreto sobre nossa consciência e a trocá-lo pelo do abstrato. 9 Embora seja pertinente operar essa comparação, não se considera mais ser apropriado identificar, por exemplo, a rica tradição mitológica como constructos pré- científicos ou pré-racionais; na verdade são estas grandes construções simbólicas que retratam o universo ou atmosferas de sentido condensadas em determinadas épocas por grupos sociais diversos. A filosofia representa uma nova forma de conceber o mundo e as coisas a partir das conquistas mercantis e da nova organização social predisposta pelas forças econômicas escravistas das cidades gregas dominantes na Antiguidade. Nada mais. Não se acentua uma superioridade epistêmica, própria de uma categorização de natureza positivista e linear-evolucionista, mas pretende-se entender a mitologia como uma forma de significações de outra natureza racional. A raiz dessa interpretação encontra-se na investigação das transformações materiais. Depois de vivenciar uma organização clânica e tribal, marcada por relações de ancestralidades comuns, os grupos sociais gregos evoluem para uma organização política definida sociologicamente como basiliarquia, um núcleo teocrático controlado por um chefe militar ou religioso intitulado anax ou basileus, uma espécie de rei-tribal. Tal líder vivia, grosso modo, cercado de uma casta sacerdotal, com as hostes militares sob seu comando controlava o simplificado universo político. Centrado na agricultura e na guerra este núcleo constituía a base do que entendemos por proto-cidade, um núcleo 9 HAVELOCK, Eric. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus,1996, pg. 296. 28 social ou aldeamento que haveria de constituir a base do que entendemos por cidade. Sem dúvida a experiência da pólis grega é uma experiência magistral e paradigmática, uma instituição única que superava a concepção de aldeamento ou fortaleza. A mitologia, sobretudo a cristalização da herança homérica e hesiodaica, que surgira do manejo e da apropriação dos grupos sacerdotais, da rica tradição oral que prevalecia nos círculos populares reincidentes na terra, vai aos poucos sendo recolhida pelos sacerdotes-escribas que a cristalizam numa suposta tradição legítima e legitimadora das relações sociais vigentes. Compreendemos a produção da tradição homérica escrita como a sistematização reguladora da tradição oral vivenciada por diferentes grupos sociais, em distintas sociedades ou agrupamentos clânicos primitivos. As diversas lutas, o universo militar, as honras e riquezas, predições e vaticínios, castigos, prêmios e vinganças retratam esta constante instabilidade das proto-cidades envolvidas em ininterruptos conflitos entre si. A tradição homérica centraliza toda a história política e cultural dos gregos
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