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A FILOSOFIA DA CIÊNCIA* Rom Harré A maioria das pessoas supõe que os filósofos pensam a respeito de questões muito gerais e muito profundas, no coração das quais está o problema da relação entre o Homem e o Universo. Pensa-se em geral que os filósofos oferecem idéias sobre os propósitos gerais do viver e, inclusive, sobre os objetivos mais particulares que alguém deve estabelecer para si em sua vida cotidiana. Neste sentido, a filosofia da ciência seria uma discussão do lugar da empreitada científica no padrão geral da vida. Ela estaria provavelmente preocupada em fornecer uma justificativa última para o fazer científico, isto é, com a questão de se valeria a pena, de fato, fazer ciência. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que o acúmulo do conhecimento científico tem um impacto destrutivo sobre as condições para viver-se a melhor vida humana possível. Poder-se-ia pensar que o esforço dirigido à busca do conhecimento científico seria melhor empregado no cultivo da sensibilidade artística, no refinamento das maneiras e no embelezamento do ambiente. Eu não tratarei deste tipo de questões, embora eu esteja muito longe de pensar que discussões de tais questões gerais não tenham qualquer valor. [...] A filosofia tem quatro ramos principais: lógica, a teoria do raciocínio; epistemologia, a teoria do conhecimento; metafísica, a teoria dos conceitos e de suas relações; e a ética, a teoria da avaliação, particularmente da avaliação moral. Eu não me ocuparei aqui da ética. Nós iniciaremos [...] com uma descrição preliminar dos três primeiros ramos de estudo e discutiremos brevemente as relações entre eles. Através do estudo de exemplos de investigação de questões lógicas, epistemológicas e metafísicas, nossa compreensão destes ramos da filosofia se aprofundará. Lógica A lógica é o estudo dos cânones ou princípios do raciocínio correto. Para descobrir princípios lógicos a partir do estudo de exemplos, nós devemos ser capazes de reconhecer quando um fragmento de raciocínio é correto. Se nós soubéssemos, apenas pela referência aos princípios da lógica, quais argumentos são válidos e quais são inválidos, então nós não deveríamos ter qualquer necessidade de estudar exemplos de raciocínio para tentar descobrir princípios, porque nós já deveríamos conhecê-los. De fato, nós somos capazes de dizer se algum fragmento é correto ou incorreto sem conhecer ou aplicar de maneira deliberada quaisquer princípios de lógica, isto é, sem referência explícita a quaisquer cânones do raciocínio correto. O estudo da lógica nos permitirá dizer por que algum fragmento de raciocínio é correto ou incorreto. No entanto, uma vez que os princípios da lógica tenham sido extraídos de exemplos, é inevitável que eles devam ser usados como cânones, isto é, para exprimir os padrões aos quais o raciocínio deve conformar-se. Nós devemos ter cuidado com a suposição de que os princípios do raciocínio correto, digamos, na matemática são válidos para outros assuntos, digamos, na química. [...]. Neste livro, eu não faço quaisquer suposições acerca da possibilidade de transferência dos princípios da lógica de um campo para outro. Em particular, eu não assumirei que os * Tradução e edição feitas por Charbel Niño El-Hani a partir do texto original: Harré, R. 1992. The Philosophy of Science, In: The Philosophies of Science: An Introductory Survey. Oxford: Oxford University Press. princípios lógicos apropriados para a matemática devam ser apropriados para os métodos de raciocínio em todas as ciências naturais. A expressão escrita do conhecimento científico assume idealmente a forma de uma exposição fundamentada e sistemática. As conclusões serão apoiadas por razões. As hipóteses serão consideradas no que diz respeito ao balanço das evidências favoráveis e contrárias. Há certas relações lógicas entre as conclusões e as razões para aquelas conclusões. Outras relações lógicas são observadas entre as hipóteses e as razões que pedem sua rejeição ou modificação. Relações como estas são a matéria-prima da lógica. Elas devem conformar-se aos cânones ou aos princípios do raciocínio correto. Algumas considerações de fato apoiam uma conclusão; outras, não. Julgamentos acerca de questões como esta expressam o comentário lógico sobre o discurso. Princípios lógicos devem ser produzi-los para apoiá-los. E estes, por sua vez, podem ser sujeitos a apreciação crítica. Vamos agora examinar um exemplo de raciocínio científico. Em § 944 de Experimental Researches, Michael Faraday escreveu, a propósito de um conjunto de experimentos que demonstram ‘o poder do calor de produzir uma corrente estimulando a afinidade química’: ‘Eu não posso senão ver nestes resultados da ação do calor as provas mais fortes da dependência da corrente elétrica em circuitos voltaicos em relação à ação química das substâncias que constituem estes circuitos: os resultados estão perfeitamente de acordo com as influências conhecidas do calor sobre a natureza química. Por outro lado, eu não posso ver como a teoria do contato pode tomar conhecimento deles, exceto pela adição de novas suposições àquelas que a compõem’. As etapas em seu raciocínio podem ser apresentadas como segue: Se a corrente é produzida por uma ação química, então aumento nesta ação deve aumentar a corrente; nós sabemos que o aumento no calor aumenta a ação química, de modo que a aplicação de calor deve aumentar a corrente produzida. Ela de fato aumenta a corrente produzida, de modo que a ação química deve ser responsável pela corrente. Você está convencido? O raciocínio de Faraday está correto? O argumento pode ser submetido a análise adicional: O aumento do calor causa ação química aumentada O aumento do calor causa atividade elétrica aumentada Portanto A ação química causa a atividade elétrica Ou ainda mais esquematicamente: Se p, então q Se p, então r ___________ Se q, então r A forma deste argumento é válida? Ele é convincente? Como ele se apresenta, ele é correto ou incorreto? A colocação deste argumento num contexto experimental e teórico mais amplo mudaria a maneira como você se sente em relação a ele? Este exemplo é uma análise da estrutura de uma relação de evidência, uma vez que Faraday está, no argumento, propondo razões para aceitar-se uma hipótese. Este exemplo tem uma estrutura muito simples.[...]. Em algumas ciências, como a astronomia e a meteologia, fazer previsões é uma parte muito importante do trabalho dos cientistas. Nós devemos seguir as maneiras nas quais previsões são feitas e examinar os meios que justificam nossa confiança nelas. Princípios lógicos estão envolvidos na construção de previsões. Mas certas condições têm de ser satisfeitas para aplicá-los. Considere o que está envolvido na previsão de um eclipse lunar. Primeiro, as leis gerais dos movimentos lunares e solares devem ser conhecidas. Um astrônomo também deve saber onde o Sol e a lua apareceram no céu anteriormente. Para que tenha uma justificativa para a aplicação das leis do movimento solar e lunar, ele deve acreditar que o comportamento passado destes corpos celestes é um bom guia para seu comportamento futuro, isto é, ele deve acreditar que eles continuarão a parecer que se movem como eles sempre pareceram mover-se. Esta crença envolve a suposição de que o Sol e a lua são coisas materiais estáveis. Assim, um conjunto de suposições de diferentes graus de generalidade está envolvido na previsão. A aceitação de todas estas suposições é uma condição necessária para a aplicação do esquema lógico: De Posições anteriores do Sol e da lua E Leis dos movimentos solar e lunar _______________________________________ Inferem-se Tempos e lugares de eclipses lunares Epistemologia Epistemologia é a teoria do conhecimento. Nas investigações epistemológicas, nós refletimos sobre os padrões aos quais o conhecimento genuíno deve conformar-se. Nós tentamos caracterizaro tipo de conhecimento sobre um certo assunto que um dado método de estudo poderia produzir, e em que medida aquele tipo de conhecimento se conforma ao que se considera os padrões do conhecimento genuíno ou verdadeiro. A partir destas considerações, nós podemos ser capazes de formar alguma idéia de quais os tipos de fatos que nós nunca poderíamos chegar a conhecer. É o trabalho do epistemólogo demonstrar como o conhecimento pode ser distinguido da crença verdadeira, e a certeza, da probabilidade. Este estudo é uma parte importante da filosofia da ciência. Filósofos da ciência estão interessados em determinar até onde a confiança em métodos particulares de descoberta deve estender-se. Eles também se ocupam de questões epistemológicas mais gerais, tais como a de se o conhecimento acerca da existência das coisas e dos materiais é mais certo do que o conhecimento dos efeitos que as coisas e materiais exercem sobre os nossos sentidos. Filósofos e cientistas gostariam de saber se há qualquer parte do conhecimento científico que é certo, não estando sujeito a revisão sob quaisquer circunstâncias concebíveis. Há muitas outras questões epistemológicas importantes [...]. Por exemplo: ‘Como as novas descobertas afetam a situação do que nós pensamos que já sabemos?’ ‘A informação adquirida através do aprendizado de uma teoria é de tipo diferente daquele adquirido através da realização de uma observação?’ ‘Observações podem ser feitas sem que um cientista tenha alguma teoria em mente?’ ‘Todo o conhecimento é, em última análise, conhecimento teórico?’ A discussão de cada uma dessas questões levantará outras questões, algumas das quais serão epistemológicas, mas outras nos levarão à lógica e à metafísica. Como um breve exemplo introdutório da discussão de uma questão epistemológica, considere como nós poderíamos responder a questão: ‘O que nós realmente conhecemos?’ Isso não é tão fácil de responder, porque é possível lançar dúvida sobre os pedaços de informação que parecem mais certos, e sobre as verdades aparentemente mais factuais. Vamos tomar dois tipos diferentes de caso. Primeiro, suponha que você se pergunte: ‘Eu estou absolutamente certo de que estou, neste momento, olhando para a página de um livro?’ Dúvida pode ser levantada perguntando-se como alguém sabe que o resto do livro existe, quando está olhando apenas para uma página. Não é impossível que alguém vire a página e descubra um espaço vazio, em vez das outras páginas que normalmente se espera. Esta é uma hipótese que está aberta a teste empírico e aquela dúvida pode ser decidida. Outras dúvidas do mesmo tipo podem ser levantadas. Talvez a impressão esteja sendo lançada sobre uma página em branco por um projetor habilmente escondido. Talvez a impressão esteja sendo lançada sobre uma página em branco pelos poderes de imaginação eidética do ‘leitor’.1 Todas estas dúvidas podem ser, em última análise, decididas. Mas há um outro tipo de dúvida. É concebível que você esteja sonhando que está segurando um livro. De que maneira você poderia provar que não é este o caso? Estou inclinado a pensar que há um sentido de prova no qual nem você nem qualquer outra pessoa poderia provar para si próprios que estão realmente lendo um livro, e não sonhando. Não se poderia provar isso como se poderia provar um teorema em geometria. No entanto, uma pessoa tem o direito de dizer que sabe que está lendo um livro porque ter certeza de que se tem um livro diante de si não é de modo algum o mesmo tipo de coisa que provar um teorema. Pode-se provar que é um livro através das maneiras usuais em que livros reais são distinguidos de livros imaginários, e de livros sonhados. Deve-se concluir disto que a dúvida que eu estive levantando é absurda? Isso de fato mostra, de certa maneira, que este é o caso, porque provar que alguém está realmente lendo um livro real não requer ou admite o rigor da prova geométrica. O ponto de insistir nessas dúvidas é demonstrar a extensão das suposições que fazemos em nosso tratamento do mundo. Estas são suposições empíricas. Nós supomos que livros são fisicamente os mesmos por toda a sua extensão e nós supomos que a impressão está sobre a página. Estas são também suposições metafísicas. Supor que nem todas as nossas experiências são sonhos é uma suposição metafísica. Ela não admite teste empírico. Trata-se, na verdade, de uma suposição acerca do sistema conceitual que devemos adotar. Tratar do problema da realidade dos sonhos lado a lado com o problema da realidade do interior de um livro fechado é passar de um ceticismo razoável acerca de questões factuais para uma questão terminológica quase inteiramente sem proveito. Sonhar é um estado identificado por contraste com estar acordado. Se formos persuadidos a chamar todas as nossas experiências de ‘sonhos’, então teremos de introduzir um novo par de termos para demarcar a velha distinção entre sonhar e estar acordado, porque nós ainda teremos de distinguir entre sonhos acordados e sonhos sonhados. ‘Sonhar’ seria agora utilizado para todas as nossas experiências e não significaria mais ‘sonhar’. Significaria algo como ‘experimentar’. Isto é, ele cobriria tanto nosso estado presente de sonhar quanto nosso estado presente de estar acordado. É claro que, às vezes, há um proveito na proposição de 1 (N.T.) A imaginação eidética diz respeito à capacidade de uma pessoa de imaginar ou lembrar de algo como se estivesse diante de seus olhos. Em contraste com alguém acometido por uma alucinação, a pessoa é capaz de controlar o que ela vê. tal revisão terminológica por um filósofo. O novo uso de ‘sonhar’ não é nem o velho uso, nem é inteiramente sinônimo do que se queria anteriormente dizer com ‘experimentar’. Ele nos deixa com a sensação de que a experiência é gerada de dentro de nós mesmos e não é apenas o efeito do contato com outras coisas e criaturas sobre nós. Alguma mudança de visão ocorre com esta nova maneira persuasiva de utilizar a palavra ‘sonhar’ e talvez altere de fato nossas idéias sobre a experiência.2 Está claro, eu espero, que seria um erro muito sério colocar nossa crença de que estamos acordados, quando estamos acordados, como uma suposição igual à suposição da uniformidade do material num livro, ou à suposição da estabilidade do padrão climático sazonal, e assim por diante. Vamos perguntar novamente, ‘O que nós realmente conhecemos?’, em circunstâncias diferentes. Se todo o conhecimento científico deriva de observações do que acontece em nossa vizinhança imediata, como é possível dizer de maneira apropriada que nós conhecemos qualquer coisa acerca de regiões distantes do espaço e do tempo? Uma vez mais, se as observações estão limitadas ao que um cientista pode perceber – isto é, ver, sentir, tocar, provar, e assim por diante – o que podemos dizer da informação veiculada por uma equação química? Ela realmente descreve a distribuição e redistribuição dos átomos em moléculas, acontecimentos que não podem ser observados? Como é possível dizer de maneira apropriada que nós conhecemos qualquer coisa acerca do comportamento de coisas pequenas demais para serem observadas? Se nós aceitarmos estas dúvidas, uma equação química seria simplesmente uma descrição sumária das mudanças de cor, sabor, textura, e assim por diante, dos materiais que tomaram parte nas reações químicas que foram vistas na Terra, e das mudanças nas distribuições dos pesos das substâncias que ocorreram em laboratórios e fábricas terrestres. A visão de que era isto que as equações químicas expressavam foi sustentada por Sir Benjamin Brodie na década de 1860. [...]. Ao investigar-se a força dessas dúvidas, questões epistemológicas têm de ser respondidas. As teorias oferecem um tipo especial de conhecimento, diferente do conhecimento que obtemos através da observação e do experimento? Que tipo de conhecimento nós obtemos dos instrumentos? No estudo filosófico dos instrumentos,nós investigamos as diferenças entre o tipo de conhecimento obtido através do uso de instrumentos que melhoram e estendem nossos sentidos, como o microscópio, e o tipo obtido através do uso de instrumentos que detectam fenômenos que não podemos observar, porque não temos os sentidos necessários. Um papel coberto de limalha de ferro, ou uma pequena bússola, pode ser usado para detectar um campo magnético. Ao descrevermos o que nós aprendemos através do uso de instrumentos de detecção, é correto dizer que nós descobrimos fatos acerca de um campo magnético bem como fatos acerca da maneira como limalha de ferro e bússolas se comportam na proximidade de uma bobina de fios eletrificados? A descoberta das radiações ultravioleta e infravermelha apenas estende nosso conhecimento das cores? Estas questões levam, no fim das contas, a investigações acerca do objeto último das leis científicas. [...]. Algumas pessoas pensaram que, de maneira estrita, o conteúdo das leis científicas deve ser considerado confinado à estatística de conjuntos de números derivados das leituras dos instrumentos. Outros pensaram que as leis da natureza se referem ao comportamento de coisas e materiais reais que formam o mundo como nós o conhecemos. Outros ainda pensaram que elas nada mais descreviam senão as seqüências ordenadas de 2 (N.A.) Para uma discussão geral dessa ‘mudança de visão’, ver F. Waismann, How I see Philosophy (London: Macmillan, 1968), cap. 1. sensações que nós experimentamos. Em vez de tratar as leis da óptica geométrica como se elas se referissem à passagem de raios de luz através de diferentes sistemas de meios, eles os tratariam como se descrevessem as seqüências das sensações luminosas em nossos campos visuais. Metafísica Em nossos dias, os estudos metafísicos são mais modestos do que eles foram no passado. Ninguém que tenha alguma prudência escreve acerca do Universo, do Homem e de Deus. Na metafísica moderna, os conceitos mais gerais utilizados na ciência e na vida comum são investigados. Por exemplo, um metafísico moderno poderiam estudar os conceitos de espaço e de tempo utilizados na vida ordinária e compará-los com aqueles empregados na Relatividade Especial. Ele poderia examinar vários conceitos de causa, ou os conceitos de possibilidade e necessidade. A metafísica moderna tem como objetivo alcançar a clareza do pensamento através de um estudo cuidadoso dos conceitos. Isso é feito, em parte, mediante um estudo de vários aspectos do uso da linguagem. Um metafísico moderno tentará descobrir como vários conceitos são relacionados. Ele poderia investigar como nossos conceitos de coisas se relacionam com nossos conceitos de espaço. Ele poderia considerar se nosso conceito de direção temporal é conectado de maneira contingente ou necessária com nosso conceito de causalidade. Nos últimos anos, alguns desses problemas conceituais se moveram para o primeiro plano da ciência. [...]. Problemas conceituais acerca do espaço e do tempo surgiram nas teorias da relatividade. Problemas concernentes aos limites do conceito de indivíduo apareceram na biologia, particularmente nas discussões sobre as tentativas de especificar a unidade da evolução, isto é, o que evolui. As insatisfações recentes na psicologia giram, em parte, em torno de sentimentos de incerteza quanto à metafísica de conceitos como os de ‘pessoa’ e ‘ato’. A relação entre lógica e epistemologia Na filosofia da ciência, os três ramos do estudo filosófico não podem ser estudados com proveito de maneira isolada. As soluções propostas para problemas em um campo inevitavelmente afetam os tipos de soluções que são então possíveis em outros. Suponham que, ao considerar-se as relações lógicas entre a evidência a favor de uma lei e a lei, decide-se que não é apropriado falar-se de inferir-se a lei a partir da evidência. Esta solução poderia ser adotada porque se pensa que aquela maneira de falar sugere a existência de uma relação lógica onde não existe nenhuma. Os enunciados descrevendo a evidência serão enunciados particulares, da forma: ‘Neste experimento, quando a luz passou de um meio para outro, a razão entre o seno do ângulo de incidência e o seno do ângulo de refração era a mesma de outros experimentos que realizei’. A lei será expressa num enunciado inteiramente geral: ‘Em todos os casos de passagem de luz de um meio para outro, haverá uma razão constante entre o seno do ângulo de incidência e o seno do ângulo de refração’. A lei de Snell é inteiramente geral. Mas a lógica dedutiva não sanciona uma inferência do particular para o geral. Assim, falar-se de inferir a lei a partir da evidência é no mínimo equivocado, uma vez que faz com que sejamos tentados a pensar que a lei é uma conclusão derivada de premissas particulares de acordo com algum princípio da lógica. Se os princípios da lógica dedutiva não governam a obtenção de leis a partir de observações, então não se pode dizer que a verdade das leis segue, com rigor lógico, da verdade dos enunciados descrevendo a evidência a seu favor. Nós poderíamos derivar uma conclusão epistemológica disso, a saber, a de que, enquanto se pode dizer que nós conhecemos a verdade dos enunciados que descrevem experimentos particulares, não se pode dizer que saibamos a verdade das Leis da Natureza, que supomos estar baseada na evidência de alguma maneira. Nós poderíamos chegar a argumentar que, em vista disso, é equivocado, no fim das contas, falar da verdade das leis. Talvez, poder-se-ia falar nelas como conjecturas mais ou menos satisfatórias, deixando o caminho aberto, desse modo, para o surgimento de evidência nova e conflitante. Poder-se-ia argumentar que, enquanto se pode dizer que nós conhecemos aqueles fatos particulares acerca do mundo que formam a evidência a favor das leis, pode-se apenas dizer, de maneira apropriada, que nós temos uma crença numa lei. Não devemos dizer que nós conhecemos leis, porque isso implica que a lei é verdadeira. Não se pode conhecer o que não é verdadeiro. Considerações lógicas afetam a epistemologia no problema do estatuto das previsões. Nós podemos ter certeza da verdade de uma previsão? Previsões astronômicas chegam tão perto da certeza quanto podemos conseguir, de modo que servirão como exemplo. A posição de um planeta pode ser determinada com grande precisão. Enunciados descrevendo as posições que ele ocupou servem como premissas a partir das quais suas posições futuras podem ser inferidas com rigor lógico. [...]. Nós poderíamos estar tentados a pensar que as previsões são tão certas quanto os dados nos quais foram baseadas. É tentador pensar que a precisão da observação resulta automaticamente em melhoria da certeza da previsão. Observações acuradas são essenciais para previsões acuradas, mas a certeza é uma outra questão. A certeza de uma conclusão é a certeza do elo mais fraco na cadeia da dedução, isto é, da premissa menos certa. Se eu tenho certeza de que John tem cabelo ruivo, e tenho razoável confiança de que todas as pessoas ruivas são Celtas, então só posso ter razoável confiança de que John é Celta. Para utilizar-se os dados astronômicos para fazer uma previsão astronômica por dedução, uma teoria astronômica é necessária. Aquela teoria, consistindo em parte de leis, será geral. De acordo com os argumentos acima, não se pode saber se ela é verdadeira. No máximo, pode-se dizer que ela é a teoria mais satisfatória até então construída. A possibilidade de que ela possa ser abandonada por completo significa que ela é menos certa do que os dados astronômicos. Olhando para a questão deste ponto de vista, nós estaríamos inclinados a entender a teoria como o elo mais fraco na cadeia que leva dos dados à previsão. Mas a teoria é, às vezes, mais certa do que os dados. Se nós compararmos nossa confiança na correção de uma teoria com nossa confiança nos dados de observações e experimentos, eu acredito que haverá muitoscasos nos quais devemos estar mais inclinados a favorecer a teoria. Por exemplo, em geral sustenta-se que a teoria da evolução é correta, embora os dados nos quais ela está baseada sejam pouco confiáveis e incompletos. Nós podemos apontar ainda um outro fator complicador nesta questão. Nossas visões sobre a confiabilidade dos dados e até mesmo, em alguma medida, a maneira como os dados são interpretados dependem da teoria que é sustentada pelo pesquisador. Não há dados puros. Não importa de que maneira olhemos para elas, previsões baseadas em dados e obtidas mediante o uso de uma teoria não são mais certas do que a certeza sobre o mais duvidoso dos elementos que entram numa previsão. Se uma previsão não for satisfeita, e nós tivermos confiança na correção dos dados, e de sua interpretação, então a teoria terá de ser revisada, e, em casos extremos, talvez até mesmo superada. Este tipo de incerteza sobre o futuro se torna menor à medida que descobrimos mais fatos, e refinamos e elaboramos nossas teorias. Nós podemos estar muito mais certos agora sobre as posições futuras dos planetas, os efeitos da temperatura sobre as reações químicas, o progresso de um paciente acometido de uma certa doença, do que jamais pudemos no passado. E nossa certeza em tais questões deve certamente aumentar. Mas há uma armadilha filosófica aqui para os incautos. É muito fácil ser levado da concessão razoável de que não podemos jamais estar absolutamente certos agora sobre o curso futuro dos eventos a uma dúvida inteiramente despropositada sobre a possibilidade de qualquer conhecimento do que virá a ocorrer. Perguntando-nos se nós realmente sabemos qual é o resultado provável de algum processo, podemos facilmente escorregar para o pensamento de que nós realmente não sabemos o que é provável de acontecer. Se nós não sabemos que o dióxido de carbono irá tornar a água de cal leitosa, nós devemos estar prontos para a possibilidade de que, da próxima vez que passarmos dióxido de carbono através da água de cal, qualquer coisa possa acontecer. Ela pode tornar-se verde. No decorrer destas poucas sentenças, as dúvidas razoáveis que podemos ter sobre o resultado preciso de experimentos e a realização exata de previsões estão sendo transformadas em ceticismo, mediante a colocação de uma condição desnecessariamente estrita sobre o que deve contar como conhecimento. Se tudo que nós pudermos dizer que sabemos deve ser absolutamente certo, então é claro que não temos qualquer conhecimento do futuro, nem qualquer conhecimento de tudo o mais. Mas a distinção entre ter conhecimento do futuro e simplesmente adivinhar é um dos contrastes por meio dos quais o conceito de conhecimento ganha sentido. Estudos científicos não produzem informação que é absolutamente certa. Mas a ciência não é adivinhação. De fato, no sentido estrito de conhecimento de acordo com o qual não temos qualquer conhecimento do futuro, apenas as verdades da matemática contam como conhecimento. A relação entre lógica e metafísica Os exemplos acima foram da influência da lógica sobre a epistemologia. Há também casos nos quais idéias derivadas de reflexões epistemológicas influenciaram a lógica. Nós examinaremos alguns destes casos posteriormente. Agora, eu quero tratar brevemente de alguns exemplos das interações da lógica e da metafísica. O estilo em que as análises lógicas de proposições são feitas podem influenciar as visões de uma pessoa acerca das categorias metafísicas últimas. Uma maneira que os lógicos utilizam para analisar enunciados gerais é através do uso de predicados e de uma ferramenta lógica chamada de quantificador. Uma expressão tal como ‘é gasoso’ é chamada de um predicado. Nomes comuns podem ser substituídos por predicados sem qualquer perda aparente de significado. Em vez de ‘Este cavalo é marrom’, eu poderia dizer ‘Este animal é eqüino e é marrom’. Uma expressão como ‘Todos’ ou ‘Algum’ é chamada de quantificador pelos lógicos. É usual empregar variáveis x, y etc. com quantificadores da seguinte maneira: em vez de ‘Todos os cavalos são marrons’, nós escrevemos ‘Todos os que são eqüinos são marrons’, eliminando nomes em favor de predicados. Então, em vez do termo vago ‘que’, nós utilizamos uma variável, x, e reescrevemos a sentença uma vez mais como Para todo x, se x é eqüino, então x é marrom. Esta sentença significa o mesmo que ‘Todos os cavalos são marrons’. Utilizando este método de análise com a lei de que todos os gases têm o mesmo coeficiente de expansão, chega-se à sentença: Para todo x e para todo y, se x é gasoso e y é gasoso, então a taxa em que x se expande = a taxa em que y se expande. Em vez de ser sobre materiais, isto é, gases, a nova forma da lei parece ser sobre as propriedades de ser gasoso e de ser capaz de expansão. Uma expressão cunhada em termos de nomes parece ser sobre substâncias e coisas, enquanto uma expressão em termos de predicados parece ser sobre qualidades e processos.3 A adesão á lógica de predicados pode levar alguém a pensar que uma proposição é melhor expressa numa sentença empregando apenas predicados do que numa sentença utilizando nomes e adjetivos. É fácil, então, chegar a pensar que o modo de expressão através de predicados é de algum modo um reflexo mais preciso de como as coisas são, por assim dizer, uma expressão mais de acordo com a natureza, do que o uso de nomes. Este sentimento poderia ser expresso numa teoria metafísica de que ‘propriedade’ e ‘qualidade’ são categorias mais fundamentais do que ‘substância’ e ‘coisa’, e de que coisas devem ser tratadas como coleções ou colocações de propriedades e qualidades. Nesta visão, uma maçã não é algo que é doce, vermelho e redondo, mas é o nexo das qualidades da doçura, de ser redondo e de ser vermelho. As coisas nada mais são que colocações de qualidades? Esta é uma questão difícil e sua resolução é um problema da metafísica. Nós não podemos decidir a questão cientificamente. Não importam que experimentos nós poderíamos fazer, a questão ainda poderia ser levantada. É realmente uma questão conceitual. Os conceitos de coisas (thing-concepts) são analisáveis sem resto em conjunções de conceitos de qualidade (quality-concepts)? Algumas questões metafísicas são próximas de questões e problemas científicos e são conectadas com estes. A ciência não consiste apenas em fazer experimentos. Cientistas também estão envolvidos no desenvolvimento de um sistema adequado e auto-consistente de conceitos para compreender o mundo tal como revelado nos resultados dos experimentos. Na maioria das ciências, os conceitos de coisas abundam. Que papel eles desempenham? Eles são elimináveis? As condições para a aplicação de conceitos de coisas são violadas pelos conceitos requeridos pela física subatômica? Que suposições nós incorporamos em nosso sistema conceitual apenas por utilizarmos nomes como ‘nêutron’ e ‘próton’? Considerando-se a natureza do conceito de coisa, parte de uma resposta pode ser encontrada, uma vez que o uso de nomes e o emprego de conceitos de coisas são dois aspectos do mesmo compromisso metafísico. Nós também retornaremos a estas questões em nossa discussão detalhada dos problemas filosóficos da ciência. Nós veremos não somente que a lógica influencia a metafísica, mas que a metafísica também tem profundos efeitos sobre a lógica. A relação entre epistemologia e metafísica Eu já mencionei a teoria epistemológica de acordo com a qual tudo o que nós podemos afirmar que realmente conhecemos é que nós estamos tendo sensações particulares no presente. De acordo com a teoria, o conhecimento está confinado a tais fatos como o de que estou agora experimentando sensações de pressão em meus dedos, e nós podemos apenas inferir que estas são derivadas de eu estar segurando uma caneta. Que há agora uma mancha branca em meu campo visual e que há agora um zumbido em meus ouvidos são outros de tais fatos. Nós vimos que esta visão é baseada na exploração extravagantede reservas perfeitamente razoáveis acerca da possibilidade de conhecimento absolutamente certo sobre o mundo. Pareceu, entretanto, que, não importa de que alguém 3 Para uma discussão geral da questão dos nomes, predicados e quantificadores, ser W. V. Quine, From a Logical Point of View (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1953), cap. 1. poderia duvidar, não se poderia duvidar da verdade das atribuições de sensações e sentimentos presentes a alguém. Em vez de falar do papel diante de mim, que envolve suposições duvidosas sobre a existência do lado inverso da folha, e da permanência do papel no tempo, eu posso falar de uma mancha branca em meu campo visual e esta maneira de falar não envolve quaisquer suposições sobre a existência dos lados inversos de folhas, ou até mesmo da existência da folha quando não tenho consciência do papel, por exemplo, quando não estou olhando para ele ou sentindo-o. Manchas brancas em campos visuais não têm um lado de trás e não existem em outros tempos que não aqueles em que são experimentadas. Em vez de falar da caneta em minha mão, eu posso falar das sensações de pressão em meus dedos. Assim, argumentou-se, para propósitos científicos, nos quais a certeza absoluta parece ser um ideal, o objeto de estudo deve estar confinado àqueles itens acerca dos quais se pode ter certeza absoluta, isto é, às próprias sensações. Nesta visão, uma coisa deve ser tratada como nada mais que uma co-presença de olhares, sensações, gostos de um certo tipo. Se eu não estou tocando uma coisa, então, nesta visão, dizer que há uma coisa que estou vendo ou ouvindo significa implicar que, sob certas circunstâncias, eu experimentaria uma sensação de resistência nas pontas de meus dedos. O conceito de coisa parece ser substituível, para propósitos científicos, pelas conjunções de conceitos de sensação (sensation-concepts) potenciais e reais. Todo um sistema metafísico pode ser construído nesta base. Ele foi chamado de ‘fenomenalismo’. Todos os conceitos chave da ciência podem ser reinterpretados dentro desta teoria. O fato de que mudanças numa coisa podem produzir ou causar mudanças numa outra é tratado como redutível ao fato de que uma sensação de um tipo particular é usualmente seguida por uma sensação de um outro tipo particular na experiência das pessoas. Relações espaciais entre coisas são analisadas como relações temporais entre sensações. Por exemplo, a distância de uma coisa a outra poderia ser tratada como o número de sensações cinestésicas4 associadas com passos que eu tenho entre uma sensação de toque e outra. Sensações sucessivas no tempo se tornam as realidades últimas. Esta é uma doutrina metafísica e freqüentemente se supõe que ela é apoiada pela teoria epistemológica de que tudo que podemos conhecer com certeza é o fato de termos sensações no presente. [...]. As conseqüências da adoção de uma teoria metafísica para a epistemologia também podem ser profundas. Um exemplo notável e dramático disso é a Teoria Especial da Relatividade. Como todas as teorias importantes da física, ela é uma mistura de elementos empíricos e metafísicos. O elemento empírico é o fato alegado da constância da velocidade da luz em todos os referenciais inerciais. Esta é a hipótese de que a velocidade da luz será a mesma não importam quais sejam as velocidades relativas dos corpos a partir dos quais ela é medida. Por exemplo, que a velocidade será a mesma para a luz vindo de corpos dos quais a Terra está aproximando-se e para a luz vindo de corpos dos quais a Terra está afastando-se. O elemento metafísico da teoria corresponde a uma negação da inteligibilidade dos conceitos empíricos de posição e tempo absolutos. Qualquer sistema de objetos tem igual direito à proposição de que se encontra ‘absolutamente em repouso’. Qualquer um que seja escolhido como quadro de referência, os movimentos de todos os outros sistemas podem ser determinados com respeito a ele. Mas como qualquer outro sistema de objetos pode ser escolhido como o quadro de referência, os movimentos 4 N. T. De ‘cinestesia’: Sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos membros. determinados com respeito à primeira escolha não têm qualquer direito especial de serem descritos como absolutos. Assim, não há maneira de dizer quais movimentos são absolutos. Nenhum conceito empírico de movimento absoluto poderia ter aplicação. A teoria da relatividade supõe que há simultaneidade absoluta entre eventos, mas, de acordo com a teoria, nós nunca podemos determinar quais eventos são simultâneos em relação a quais, sem referirmo-nos a algum quadro de referência escolhido de maneira arbitrária. Assim, embora o conceito de simultaneidade absoluta seja inteligível, não se pode dar a ele aplicação empírica. Esta é a originalidade da teoria. O conceito de simultaneidade absoluta é eliminado da ciência em favor de um conceito empírico que torna possível julgamentos consistentes de simultaneidade, uma vez que tenha sido feita uma escolha de quais objetos se supõe estarem em repouso. A teoria metafísica acerca dos tipos de conceitos de movimento e simultaneidade que se pode admitir na ciência, juntamente com a suposição empírica da constância universal da velocidade da luz, leva quase diretamente a várias teses epistemológicas, tal como a tese de que qualquer que possa ser a relação real dos eventos no tempo, nós nunca podemos saber quais são absolutamente simultâneos em lugares diferentes. Espero que tenha ficado claro que problemas filosóficos são assumidos em qualquer prática científica. Nós temos de escolher alguns conceitos com os quais pensar acerca do mundo, e isso corresponde a criar ou aprender uma linguagem e aceitar um sistema de retratar e conceber as estruturas no mundo. Qualquer conjunto de conceitos que escolhamos, não importa em que medida eles possam carecer de conexão sistemática, envolve suposições metafísicas, epistemológicas e lógicas. Se nós escolhermos empregar conceitos de coisas, nós já estamos enredados numa metafísica que supõe a continuidade dos indivíduos no tempo (isto é, que os indivíduos perduram através de certas mudanças menores), porque aquela suposição é um aspecto essencial do uso de conceitos de coisas (isto é, que uma entidade perdura no tempo é uma das condições necessárias para que ela seja apropriadamente chamada de uma coisa). Um objetivo da filosofia da ciência é explicitar estes tipos de suposições, mediante a exploração dos conceitos que estão sendo empregados, de modo a ver exatamente o que está envolvido em utilizá-los, e descobrir se eles caem em algum tipo de sistema. Deve-se tentar ter clareza acerca de quais conceitos, exatamente, estão sendo empregados em qualquer empreitada intelectual. O valor deste estudo para a própria ciência deriva dos poderes adicionais que são conferidos a um cientista quando ele sabe explicitamente quais suposições estão envolvidas na linguagem e nos modelos que ele utiliza. Se as suposições são conhecidas, elas podem ser mudadas de maneira sistemática, explícita e controlada. Nenhuma quantidade de trabalho experimental pode sozinha determinar quais conceitos são os melhores para utilizar-se, porque fazer um experimento já requer alguma formulação de um problema e isso demanda o uso de alguns conceitos. Isso não significa negar que alguns conceitos são mais adequados do que outros. [...]. As seções anteriores são um esboço, e apenas um esboço, de alguns dos campos de estudo da filosofia da ciência. O próximo passo em nossa investigação será estabelecer de uma maneira ampla e geral o que é a ciência, o que os cientistas estão tentando fazer e como eles realizam sua tarefa. Por este meio, nós adquiriremos um vocabulário para falar acerca do processo científico e de seus produtos. Nós retornaremos então aos campos da lógica, epistemologiae metafísica para examinar algumas das teorias clássicas que se ocupam do conhecimento científico, e o que nós pensamos sobre suas possibilidades e limitações em contextos históricos reais, concernentes a episódios reais da pesquisa científica. O mundo como ele é e o mundo como ele é percebido Suponham que nós devêssemos perguntar a um leigo razoavelmente bem informado o que ele pensa que os cientistas fazem. Ele provavelmente diria que eles estudam várias coisas para tentar descobrir como elas se comportam, como elas funcionam e o que elas são. Alguns estão estudando vírus, outros estudam rochas, alguns estudam o comportamento de medusas, outros estudam a anatomia de tais criaturas, outros ainda estudam as estrelas, e químicos e engenheiros estudam materiais para tentar descobrir sua composição e como eles se comportarão em diferentes situações. Alguns desses materiais são coisas comuns com as quais estamos muito familiarizados; outros são mais raros. Estudar tais coisas e materiais envolve analisá-los, testá-los, estimulá-los e, então, fazer um relato detalhado de quaisquer descobertas incluindo uma teoria para explicar a origem, ou o comportamento, ou a composição das várias coisas estudadas. A totalidade das coisas e dos materiais é o mundo. A ciência tem resultados e aplicações práticas porque, uma vez que saibamos o suficiente acerca das coisas do mundo e dos materiais das quais elas são feitas, nós podemos fazer todo o tipo de coisas e produzir todos os tipos de efeitos que possamos ver como desejáveis. Por exemplo, é agora lugar comum a idéia de que apenas quando nós realmente compreendemos a natureza de uma doença, nós estamos realmente em posição de controlá-la. Para os filósofos, a primeira e mais elementar de todas as distinções é aquela entre o mundo como ele é e o mundo como ele se manifesta em seus efeitos sobre os objetos sensíveis – isto é, como ele é percebido por nós e detectado por instrumentos. Há teorias metafísicas que argumentariam que não há qualquer distinção entre estes dois supostos aspectos, que o mundo é exatamente como ele se manifesta em seus efeitos sobre os objetos sensíveis. Mas no momento eu irei varrer todas as teorias de lado e assumir uma visão ingênua. No fim das contas, as pessoas são perfeitamente capazes de distinguir entre o mundo como ele é e o mundo como ele se manifesta para elas. Esta capacidade é demonstrada em nossa habilidade de reconhecer e ter na devida conta as ilusões. Nós sabemos que pessoas distantes parecem menores do que pessoas próximas. Mas nós crescemos tão acostumados a admitir isso que nossos juízos sobre os tamanhos relativos de pessoas e coisas levam em conta suas distâncias relativas de nós sem reconhecimento explícito dos fatos da perspectiva. [...]. Nós podemos perfeitamente bem fazer muitas de tais distinções entre aparência e realidade. Observação e detecção Voltemos agora a considerar os efeitos do mundo sobre os objetos sensíveis. Há indubitavelmente dois tipos de tais efeitos. Primeiro, há os efeitos sobre as pessoas, no curso dos quais alguns filósofos e a maioria dos leigos se inclinam a dizer que as pessoas estão experimentando sensações e tendo sentimentos: Eu utilizarei o termo geral ‘sensação’ para descrever este tipo de efeito sobre uma pessoa. Às vezes, o objeto sensível não é apenas uma pessoa, mas uma pessoa mais um instrumento, do tipo especial que chamarei de ‘ampliador de sentidos’ (sense- extending), como um telescópio, um microscópio, uma sonda, um estetoscópio, e equipamentos similares, que permitem a alguém que sinta o que não se encontra na extremidade de seus dedos, ou veja alguma coisa que não poderia de outro modo ver, isto é, que não poderia ver sem seus óculos ou telescópios. O outro tipo de efeito que as coisas têm é sobre instrumentos que não são ampliadores de sentidos. Um exemplo desse tipo de instrumento é o eletroscópio. O instrumento é construído de maneira a ser protegido de correntes de ar. Duas folhas de ouro ficam penduradas num bastão central, que é conectado a um disco de cobre. Se um bastão eletrificado for trazido para perto do disco, as folhas de ouro divergem. Este instrumento é claramente sensível à eletrificação. Mas não é um instrumento ampliador de sentidos. Há uma curiosa sensação de prurido que nós experimentamos perto de uma coisa eletrificada, mas nós não estamos então percebendo uma carga elétrica como uma entidade que ocupa espaço. Nossos corpos estão agindo como eletroscópios. Um eletroscópio não estende nossos sentidos da maneira como um microscópio o faz. Trata-se de um aparato para detectar algo imperceptível. A detecção de um campo magnético mediante o uso de uma agulha de bússola é ainda mais distante da percepção, dado que não temos qualquer consciência de estarmos num campo magnético. A natureza e as suposições da experiência As pessoas muito raramente descrevem suas experiências em termos de sensações. É muito incomum que qualquer pessoa fale de manchas coloridas passando através de seu campo visual. Se alguém chega a falar dessa maneira, ela o faz para um médico, e esperamos que ele tente fazer algo a respeito. Nossa experiência compreende percepções tais como a de coisas em ação, cavalos correndo por exemplo, e materiais sofrendo processos, tais como água começando a ferver. Nós temos consciência de coisas em relação a outras coisas, por exemplo, de um cavalo ultrapassando outros contra os quais está correndo. Uma corrida de cavalos parece um acontecimento bastante comum, mas, ainda assim, metafisicamente é um assunto muito complicado. Deve haver um quadro de referência material relativamente permanente, constituído pela pista. Há objetos materiais em movimento, os cavalos, que devem continuar a existir do começo ao fim da corrida. Apenas pense nas suposições envolvidas na crença de que o cavalo que foi perdido de vista por trás de uma pessoa grande que está bloqueando a visão da pista é o mesmo cavalo que está liderando, após os cavalos terem tornado-se novamente visíveis. O que você diria para um apostador que persistisse na dúvida de que o cavalo que terminou em primeiro lugar foi aquele em que alguém havia apostado no começo da corrida, devido ao fato de que ele não esteve sob observação contínua todo o tempo? O que você diria para um físico que insistisse que elétrons existem apenas nos momentos em que estão interagindo com instrumentos? Para usar o conceito de uma coisa, é preciso assumir a existência das ‘coisas’ mesmo quando elas não estão sendo observadas ou detectadas. A justificação de tal suposição leva a toda uma constelação de problemas metafísicos. O mundo tal como é percebido por nós é feito de uma variedade de entidades, incluindo coisas e materiais nos quais ocorrem processos. Nossa linguagem ordinária nos permite dizer que podemos sentir, ouvir, provar, tocar e ver coisas e materiais sofrendo processos e em relações mutáveis umas com as outras. Percepções e sensações Foi suposto que as sensações são as unidades últimas nas quais nossa experiência pode ser analisada. Quando eu percebo uma coisa, digamos, uma taça, supõe-se que a experiência é analisável num grupo de sensações elementares tais como manchas coloridas em meu campo visual e sentimentos de pressão nas pontas de meus dedos. As sensações são a contribuição do mundo para a minha experiência. Uma taça, como eu a percebo, é vista e sentida por mim como um objeto sólido que tem um tipo de independência, capaz de ocupar diferentes lugares e de perdurar no tempo. Estes aspectos da minha percepção não são sensações e, acreditam alguns filósofos, não são efeitos do mundo sobre mim. Alguns filósofos acreditam que a organização das sensações em percepções, de manchas coloridas e pressões sentidas em taças, é algo imposto pela pessoa que tem a experiência. Supõe-se que as sensações são as unidades últimas das quais as percepções são compostas, bem como as unidades últimasnas quais toda a nossa experiência pode ser analisada. Um tratamento similar é freqüentemente proposto para os processos, para os quais as unidades elementares de composição e análises são eventos como o de ter uma sensação por um organismo sensível. [...] uma filosofia da ciência baseada na idéia de que a ciência se ocupa, na verdade, do estudo das sensações, e não das coisas que fazem com que experimentemos aquelas sensações [...] está associada à teoria metafísica que identificamos como fenomenalismo. Há alguma contribuição do conhecedor para o conhecido. Parte desta contribuição ocorre ao nível da experiência. Eu argumentarei que a contribuição mais importante vai do cientista para seu conhecimento científico quando ele está expressando este conhecimento em descrições de observações e teorias. Ela vem através da linguagem que ele utiliza para estes propósitos. Ao descrever o que vemos, nós utilizamos a linguagem das coisas que perduram no tempo. Ao explicar os acontecimentos dos quais temos consciência, nós utilizamos a linguagem das causas, isto é, nós descrevemos coisas e materiais agindo uns sobre os outros. Isso é verdade, também, para a linguagem que utilizamos para descrever e explicar o comportamento de instrumentos. O comportamento de um instrumento como um eletroscópio é descrito na linguagem de coisas e causas. Nós não descrevemos um eletroscópio como se ele apenas sacudisse suas folhas de ouro; nós falamos como se ele estivesse detectando um campo elétrico. Nós passamos, no pensamento, do efeito bruto para alguma realidade substancial, ao falarmos dessa maneira. Um campo elétrico é algo distribuído no espaço, perdura no tempo e tem poderes causais. Ele fará com que outras coisas aconteçam além da divergência das folhas de um eletroscópio. Descrito nesses termos, um campo elétrico começa a ganhar substância em nosso pensamento. Nós começamos a tratar o eletroscópio como um aparelho que detecta algo real, não apenas como algo que reage à presença de um bastão eletrificado. Alguns problemas filosóficos bastante profundos podem ser levantados acerca das suposições envolvidas em minha distinção entre o mundo como ele é e os efeitos que ele tem sobre nós e nossos instrumentos. Como podemos ter certeza da medida em que o mundo, como nós o percebemos, é o mundo como ele é? Como podemos ter certeza de que nossos instrumentos de detecção estão detectando substâncias e estados de coisas das quais nós não temos de outro modo consciência? Talvez o mundo real seja bastante diferente do mundo como nós o percebemos. De fato, ele poderia ser bastante diferente do que nós supomos que ele seja mediante nossa compreensão de nossos instrumentos. Talvez nós nunca entremos em contato com o mundo como ele realmente é. Então, é claro, nosso problema é deflacionado, porque o conceito do ‘mundo como ele é’ não tem qualquer aplicação, e nós podemos continuar estudando o mundo como ele parece ser. Há um outro problema de maior interesse. Suponham que, impressionados com as idéias de que o que nós percebemos é em parte dependente de como nós compreendemos o mundo, e de que há mais em ver do que apenas ter luz atuando sobre os olhos, nós tentamos alcançar uma verdadeira objetividade buscando apenas registrar as sensações que estamos tendo quando estamos percebendo coisas, materiais e processos. A verdadeira objetividade é encontrada dessa maneira? Parece que a verdadeira objetividade não poderia ser encontrada na direção do que nós percebemos porque nós admitimos que a percepção é uma espécie de compreensão, em vez de um simples efeito do mundo sobre nossos órgãos sensoriais. [...]. O mundo como ele se manifesta para nós é algum tipo de produto da operação de nossa compreensão e do efeito do mundo real sobre nós. Se nós não pudermos oferecer uma receita à prova de falhas para separar um elemento do outro, em que medida nós podemos confiar que o mundo como ele se manifesta é, de alguma maneira o mundo como ele é? Esta é a forma geral dos problemas considerados acima. No entanto, as ciências naturais com suas técnicas de construção de modelos não dependem da suposição de que o mundo como ele se manifesta é idêntico ou até mesmo muito similar ao mundo como ele é. De fato, nós construímos, nas ciências, um retrato do mundo como ele é que é conscientemente diferente, de muitas maneiras, do mundo como ele é visto, tocado, ouvido e provado. A objetividade absoluta da observação não é um ideal possível da ciência. Pensando e experimentando Isso leva naturalmente a uma consideração da parte intelectual da ciência, em oposição à parte observacional. Embora nós saibamos que estas não são partes verdadeiramente separadas do trabalho dos cientistas, podemos voltar nossa atenção para a parte da ciência que é feita através do pensamento, da imaginação, da fala, da elaboração de diagramas, e assim por diante, sem supor que fazer observações e utilizar instrumentos são atividades destituídas de conteúdo intelectual. Os cientistas não apenas nos oferecem descrições e classificações de coisas e materiais e de suas ações e interações, mas também nos dão explicações. Eles freqüentemente podem explicar por que existem as coisas que existem. Eles podem freqüentemente explicar por que as coisas e os materiais se comportam da maneira como o fazem. Tais explicações são usualmente dadas pela formulação de uma teoria. Uma teoria é expressa em sentenças, diagramas e modelos, isto é, em estruturas verbais e pictóricas. A lógica é a teoria geral das estruturas verbais e a teoria dos modelos icônicos é a teoria geral das estruturas pictóricas. A lógica e a teoria icônica dos modelos estão ambas envolvidas [...] na organização das sentenças em todas as atividades intelectuais dos cientistas. Várias imagens falsas destas atividades irão seduzir-nos à medida que procedemos. Uma é a idéia da ciência como o acúmulo de verdades separadas pela adição de fatos uns aos outros, cada um independentemente verificado por experimentos. Esta é, talvez, a visão mais usualmente sustentada e será a primeira para a qual dirigiremos nossa atenção crítica. O trabalho científico é um trabalho de imaginação tanto quanto é um trabalho de bancadas de laboratórios. É através da ajuda da imaginação disciplinada e controlada racionalmente que hipóteses quanto à natureza das coisas são inventadas. Nós devemos usualmente imaginar, primeiro, os mecanismo que produzem seu comportamento e que podem sugerir linhas férteis para os estudos posteriores. A ciência não é história natural, não é acúmulo de fatos. Ela é a construção de um retrato do mundo. Ela é uma empreitada intelectual que tem como objetivo compreender o mundo. O que a torna diferente de outras tais empreitadas, digamos, aquela dos construtores de obras de arte, é que ela é feita sob a disciplina do método experimental. E esta disciplina é severa. Uma teoria cujas conseqüências não são apoiadas pelo experimento e pela observação deve ser modificada, ou algum defeito no experimento, demonstrado. Tampouco a ciência consiste apenas na elaboração de leis e sistemas de leis matemáticas que cobrem adequadamente os resultados de experimentos quantitativos. A perseguição deste ideal apenas nos levaria diretamente à trivialidade. Uma teoria deve servir como base para a explicação, e não apenas ser um artefato de codificação. Para satisfazer esta demanda, uma teoria deve descrever os meios pelos quais os fenômenos que ela explica vêm a ocorrer. Uma teoria deve referir-se aos mecanismos da natureza, não apenas aos resultados quantitativos obtidos através do estudo daqueles mecanismos em ação. Tais resultados pertencem à parte disciplinar da ciência, raramente ao seu lado criativo. Descrição e explicação, observação e teoria, parecem ser aspectos demarcados de maneira metódica da mesma distinção. O que é observado pode ser descrito, se os recursos da linguagem forem suficientes, e tipicamente faz-se uso de teoriaao propor-se explicações científicas. Dificilmente pode ser considerada uma explicação científica dos fenômenos simplesmente descrever alguns outros fenômenos com os quais eles estão associados, a menos que se tenha alguma concepção de como essa associação é produzida. Então, aquela concepção é o que realmente está realizando a explicação e é o coração da teoria. Por exemplo, não é uma explicação científica da Aurora Boreal citar a atividade aumentada de manchas solares que regularmente antecedem o surgimento do brilho no céu. Uma explicação científica dirá por que e como as manchas solares estão associadas com a Aurora e isso envolve discussões sobre a natureza das manchas solares e as trajetórias dos elétrons que deixam o Sol. Estas discussões são relevantes apenas por que nós temos alguma idéia sobre a natureza da Aurora e sabemos bastante sobre as descargas de eletricidade em gases tênues. Em suma, para explicar a Aurora, nós descrevemos o mecanismo que produz o fenômeno e, assim, vemos por que manchas solares estão associadas com a Aurora. Ao fazê-lo, nós mencionamos muitas coisas além de manchas solares e da Aurora. [...]. Mas não se deve permitir que a insistência nas diferenças entre observação e teoria, e entre descrição e explicação, obscureça a extensão em que elas estão relacionadas. Descrições de observações não podem ser inteiramente independentes de teorias, seja na forma, seja no conteúdo. Não há modos de descrição que permaneçam invariantes em todas as mudanças da teoria. A maneira como as observações são descritas muda onde a teoria muda. A maneira aceita de explicar fenômenos entra no próprio significado dos termos utilizados para descrevê-los. Parece ser um consenso geral entre os filósofos, agora, que o ideal de um vocabulário descritivo que seja aplicável às observações, mas que seja inteiramente despido de influências teóricas, é irrealizável. Ao compreendermos uma descrição, nós precisamos ter consciência das explicações correntes dos fenômenos descritos. Tanto teorias científicas como metafísicas entram nas descrições e em nossas compreensões delas de várias maneiras. O envolvimento das teorias na descrição Teorias metafísicas: O uso de substantivos e adjetivos na descrição de um fenômeno tende a trazer consigo a teoria metafísica das substâncias e qualidades e, assim, implica as suposições desta teoria. Nós vimos como a eliminação dos substantivos em favor dos predicados envolveria uma mudança profunda nas suposições metafísicas e poderia levar à idéia de que a categoria de substância é menos fundamental do que a categoria de qualidade. É claro, alguém não tem necessariamente de fazer este movimento metafísico; poder-se-ia considerar a eliminação de substantivos em favor de adjetivos apenas uma questão de técnica lingüística. O envolvimento de teorias científicas no significado dos termos descritivos é bastante óbvia no caso das metáforas, uma parte comum e importante dos vocabulários descritivos. O uso do termo ‘corrente’ na descrição de fenômenos elétricos não está livre de ressonâncias da teoria dos fluidos elétricos. Mas outros termos, aparentemente neutros, também possuem em seus significados alguns elementos de uma teoria. Falar de ‘agentes’, ‘catalisadores’ e ‘compostos’ na química é usar um vocabulário cujos termos derivam seu significado, pelo menos em parte, da teoria atômica da mudança química. Compreender a descrição de uma substância como alfa-hexaclorobenzeno envolve uma compreensão da teoria estrutural da organização molecular. Eu penso que não seja exagero dizer que não há qualquer termo utilizado na descrição de observações sobre a natureza e o comportamento de coisas e materiais cujo significado possa ser capturado sem qualquer conhecimento da teoria ou das teorias relevantes. Em suma, ao aprendermos termos descritivos, estamos também aprendendo teorias. Se você aprendeu a identificar piridina apenas pelo seu cheiro, então você não sabe realmente o que a palavra ‘piridina’ significa. Exame da idéia de que as teorias não são descritivas As teorias diferem claramente das descrições das observações que elas são destinadas a explicar. Mas esta diferença implica que os termos usados numa teoria não são descritivos e não podem ser usados de maneira significativa para referir-se a outras coisas, outros estados, outros materiais, outros processos realmente existentes, além daqueles que elas estão explicando? Considerem um termo como ‘átomo’, que está sempre aparecendo em teorias na física e na química. Milhares de tipos de observações são explicados mediante referência a átomos. Sem esta noção, a física e a química teriam um conteúdo inteiramente diferente. E ainda assim ninguém jamais observou um átomo, com ou sem instrumentos ampliadores dos sentidos. Átomos individuais não foram vistos, nem escutados, nem tocados, nem sentidos, nem provados. Realmente existem, então, tais coisas? Certamente, o argumento epistemológico de que nós não podemos conhecê-los, como indivíduos, mediante uma familiarização direta com eles deve ser admitido. Segue disso que nós não podemos conhecê-los de modo algum? Se fosse este o caso, nós teríamos de dizer que a palavra ‘átomo’ não significa o que nós pensávamos que ela significava. Nós pensávamos que ‘átomo’ significava o menor pedaço quimicamente independente de material. Nós estivemos usando a palavra ‘átomo’ de modo que, se nós víssemos e tocássemos um pedaço de madeira, acreditando que ela fosse feita de átomos, nós poderíamos dizer, de maneira bastante apropriada, que nós havíamos visto e tocado uma grande massa de átomos. Se não é isso que ‘átomo’ significa, o que esta palavra significa? Se a teoria de que termos como ‘átomo’ não são descritivos e não se referem a coisas reais tem qualquer força, ela deve oferecer uma explicação do que tais termos significam. Uma teoria do significado da palavra ‘átomo’ poderia ser elaborada comparando-se seu papel com aquele de um outro termo bastante conhecido, ‘força’. Forças são tão não- observáveis quanto átomos. Qualquer idéia que possamos ter de sua presença deriva de nossa observação de seus supostos efeitos. Mas um pouco de reflexão sobre o papel do termo ‘força’ na mecânica clássica mostra que ele é usado para conectar as descrições dos estados de sistemas de coisas antes e após eles terem interagido. [...]. O termo ‘força’ é introduzido através da lei de ação e reação, isto é, pelo princípio de que, em toda colisão, por exemplo, forças iguais e opostas agem entre os corpos em colisão. O conceito de força também pode ser introduzido na explicação de tais fenômenos como a órbita de um satélite ao redor de um corpo pesado como a Terra. Uma ‘força de gravidade’ é inventada, igual e oposta a uma força centrífuga. As duas ‘forças’ permitem que as massas relativas dos dois corpos em questão e a velocidade e o raio da órbita do satélite sejam conectadas numa equação de movimento. Mas quando eles são dessa forma conectados, o termo ‘força’ desaparece. Ele estava cumprindo apenas um papel formal. Talvez ‘átomo’ tenha o mesmo papel na química. Talvez todo o discurso sobre átomos, suas propriedades e sua organização estrutural, nada mais seja do que um artifício pitoresco para conectar as descrições dos materiais envolvidos antes de uma reação química e seu estado após a reação ter completado-se. Poder-se-ia argumentar que nada factual é adicionado à descrição de uma reação quando o fato de que dois volumes de oxigênio se combinam com um volume de oxigênio para dar dois volumes de vapor d’água é explicado por referência à fórmula atômica: 2H2 + O2 = 2H2O Os fatos observados são explicados por referência à hipótese de que os gases em reação são constituídos por moléculas diatômicas. Alguém que desejasse distinguir o papel de ‘átomo’ do papel de ‘força’ na linguagem da ciência poderia insistir que ‘átomo’ tem de fato um significado acima e além de seu papel como um conectorde fatos em conhecimento organizado, sistemático, a saber, que ele significa a mais simples parte ou o mais simples pedaço quimicamente independente de um material. É correto insistir em seu significado independente? [...] Conceitos Ao falar sobre descrições e explicações, eu utilizei a palavra ‘conceito’. Ela não deve ser tomada como uma palavra funcionando da mesma maneira como a palavra ‘átomo’, mas, antes, como algo como a palavra ‘força’. Ela é usada para distinguir nossos atos de pensamento de nossos atos de escrita, desenho, planejamento e modelagem. Falar do conceito de ‘causa’ é falar da idéia de causalidade, como é demonstrado em nosso uso de um vocabulário causal, isto é, em nosso uso de expressões tais como ‘gerar’, ‘produzir’, ‘fazer’, ‘resultar’, ‘poder’, e assim por diante, como é demonstrado em nosso uso de engrenagens e transmissões mecânicas para produzir o que nós queremos, e como é demonstrado em nosso uso de modelos e diagramas de mecanismos para explicar os processos observados. Assim, falar de conceitos permite que uma discussão geral prossiga sem especificar exatamente a quais termos o conceito é aplicado: lingüísticamente, concretamente ou como revelado na ação. Conceitos científicos podem ser dispostos em dois grandes grupos. Há aqueles como ‘massa’, ‘comprimento’, ‘carga’, ‘força’, ‘vermelho’, ‘ouro’, ‘mamífero’, ‘momentum’, ‘valência’ etc., que nós chamaremos de ‘conceitos materiais’. Eles são conceitos de propriedades, tipos, qualidades e substâncias que podem ser usados na descrição de coisas, materiais e processos. Coisas e materiais têm massa, são vermelhos, adquirem momentum, exibem valência, e assim por diante. Há também aqueles que eu chamarei de ‘conceitos formais’, ou, alternativamente, conceitos ‘estruturais’ ou ‘organizacionais’. Os conceitos formais incluem ‘causação’, ‘existência’, ‘identidade’ e os conceitos temporais e espaciais. Identificar algum estado de uma coisa, ou a presença de uma coisa em certo lugar num certo tempo, como uma causa, não é atribuir a ela qualquer nova qualidade ou poder que não havia sido previamente atribuído a ela, mas antes vir a vê-la como relacionada de uma certa maneira a outros estados de coisas que são seus efeitos. Similarmente, dizer que algo existe não é atribuir-lhe uma característica especial ausente em coisas não-existentes. Quando se diz que duas coisas são idênticas, isso não descreve qualquer ligação física entre elas. Conceitos como ‘existência’ e ‘identidade’ impõem uma organização intelectual a nossas observações. Eles são usados para expressar nossa compreensão do que está acontecendo. Conceitos materiais e formais podem sofrer classificações adicionais. Por exemplo, emergiram algumas diferenças entre o papel do conceito de força na mecânica clássica e o papel do conceito de átomo na química clássica. O conceito de força parece funcionar de maneira a tornar difícil tratá-lo como referindo-se a influências reais entre coisas reais, enquanto o conceito de átomo de fato parece referir-se a algo acima e além das proporções dos reagentes. A hipótese atômica não é apenas uma maneira pitoresca de expressar a Lei da Proporção Integral. A palavra ‘átomo’ parece significar a menor parte dos materiais com os quais os químicos trabalham que se comportam quimicamente. A questão de se há átomos parece ser, de fato, uma questão empírica, ainda que possa ser jamais respondida de maneira inteiramente conclusiva. Outras distinções emergem. O conceito de momentum é usado para uma característica de corpos em movimento que não é observável por nossos sentidos, sejam desnudos ou ampliados, enquanto vermelhidão é uma característica observável das coisas. Vermelhidão é como a qualidade de ser liso, por ser uma característica observável, mas difere desta última por ser correlacionada simplesmente com um conceito quantitativo, a saber, o comprimento de onda da luz refletida de uma coisa para o olho quando estamos vendo algo vermelho. O comprimento difere da temperatura porque, enquanto o comprimento é medido através de coisas compridas, a temperatura é medida por algo diferente da energia interna de um material, a saber, pela expansão de uma coluna de fluido, ou por mudanças na condutividade elétrica, ou até mesmo por mudanças de cor. [...]. O objetivo da filosofia da ciência é elucidar os princípios assumidos pela ciência. Estes serão encontrados através de estudos em lógica, metafísica e epistemologia. Mas a filosofia da ciência deve ser relacionada ao que os cientistas realmente fazem e a como eles realmente pensam. [...]. Nós [devemos] ‘testar’ nosso pensamento filosófico mediante referência à prática real da ciência, porque nós não devemos formular ideais em nossa teoria da ciência que sejam incompatíveis com qualquer prática científica importante.
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