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MATERIAL DIDÁTICO TÓPICOS ESPECIAIS EM SAÚDE COLETIVA U N I V E R S I DA D E CANDIDO MENDES CREDENCIADA JUNTO AO MEC PELA PORTARIA Nº 1.282 DO DIA 26/10/2010 Impressão e Editoração 0800 283 8380 www.ucamprominas.com.br SUMÁRIO UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO ................................................................................. 03 UNIDADE 2 – ÉTICA E BIOÉTICA ......................................................................... 05 2.1 Ética na prática da enfermagem ........................................................................ 05 2.2 Ética na saúde pública e na pesquisa epidemiológica ...................................... 11 2.3 Responsabilidade ético-legal do enfermeiro...................................................... 15 2.4 COFEN e as comissões de ética ....................................................................... 19 UNIDADE 3 – HUMANIZAÇÃO E A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO ..................................................................................................... 25 UNIDADE 4 – A GESTÃO DOS RESÍDUOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE (RSS) ...................................................................................................................... 36 4.1 Os Resíduos dos Serviços de Saúde – RSS ..................................................... 36 4.2 Coleta, tratamento e destinação ........................................................................ 38 4.3 Os principais riscos dos resíduos de saúde ...................................................... 40 UNIDADE 5 – A SEGURANÇA DO PROFISSIONAL DE SAÚDE ......................... 45 5.1 Cuidados com o estresse do profissional .......................................................... 45 5.2 A questão da biossegurança – cuidados pessoais e coletivos .......................... 49 UNIDADE 6 – O PAPEL DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO ÂMBITO DA SAÚDE COLETIVA .............................................................................................................. 54 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 57 3 UNIDADE 1 – INTRODUÇÃO Reservamos este momento ao qual chamamos de “Tópicos Especiais” porque existem certos temas e conteúdos que merecem um momento especial para reflexão. Evidentemente que todos esses temas têm relação com as disciplinas estudadas, que a título de exemplo encontra na unidade ‘ética e bioética’ um tema que permeia toda e qualquer profissão. A humanização, assunto da segunda unidade, também faz parte do universo dos profissionais que lidam com o processo saúde-doença do ser humano. Aqui veremos seu nascimento e a Política Nacional de Humanização, que em última instância, busca efetivar os princípios do SUS no cotidiano das práticas de atenção e gestão da saúde, qualificando a saúde pública no Brasil e incentivando trocas solidárias entre gestores, trabalhadores e usuários. A preocupação com a questão ambiental é um motivo mais que suficiente para vermos o gerenciamento dos resíduos dos serviços de saúde, como de fundamental importância na preservação da qualidade da saúde e do meio ambiente e como um tópico que precisa ser discutido quando se trata da gestão de serviços de saúde, principalmente em relação aos hospitais, ambulatórios e unidades de saúde. Claro que a gestão correta dos resíduos dos serviços de saúde implica em segurança para os profissionais de saúde, assim como devemos dar atenção devida às consequências de problemas que acometem esses profissionais como o estresse e outras situações que levam o profissional ao adoecimento e/ou perda da qualidade do trabalho. Fechamos este módulo apresentando algumas defesas de duas pesquisadoras acerca da interface existente entre as Ciências Sociais e Humanas no âmbito da Saúde que são de extrema validade e só vem a contribuir para que ambas as áreas tenham sempre o ser humano como foco principal de sua atenção. Ressaltamos em primeiro lugar que embora a escrita acadêmica tenha como premissa ser científica, baseada em normas e padrões da academia, 4 fugiremos um pouco às regras para nos aproximarmos de vocês e para que os temas abordados cheguem de maneira clara e objetiva, mas não menos científicos. Em segundo lugar, deixamos claro que este módulo é uma compilação das ideias de vários autores, incluindo aqueles que consideramos clássicos, não se tratando, portanto, de uma redação original e tendo em vista o caráter didático da obra, não serão expressas opiniões pessoais. Ao final do módulo, além da lista de referências básicas, encontram-se outras que foram ora utilizadas, ora somente consultadas, mas que, de todo modo, podem servir para sanar lacunas que por ventura venham a surgir ao longo dos estudos. 5 UNIDADE 2 – ÉTICA E BIOÉTICA O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Resolução COFEN- 240/2000 revogado pela Resolução COFEN nº 311/2007) é um documento-guia que focaliza os valores que devem fundamentar o conhecimento, a atitude e a prática de toda e qualquer pessoa que desenvolve ações de enfermagem, tendo como referência que a vida é o direito mais fundamental de todo ser humano. Para que os significados desses valores se tornem concretos, eles precisam ser aplicados à realidade dinâmica dos elementos centrais do trabalho de enfermagem, ou seja, quando aplicados em situações junto às pessoas envolvidas – cliente, população, equipe de enfermagem e de saúde – e quando aplicados na prática institucional e na profissão em si (TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). Merece destaque que o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, ou seja, daqueles formalmente habilitados a agir desenvolvendo ações de cuidado profissional, focaliza o outro, seja o assistido-cliente, seja o assistente-profissional, com respeito e como seres livres e autônomos, capazes de agir livremente e de fundamentar com responsabilidade suas formas de agir. 2.1 Ética na prática da enfermagem Deveria ser ponto fechado que o cuidado ao ser humano é o objetivo final quando se trata do binômio saúde-doença, e temos todo um suporte teórico- prático que veio se construindo ao longo da nossa evolução. Suporte este que envolve conhecimentos, evolução das teorias, filosofias e outras ciências que se somam, como, por exemplo, o agir ético, no entanto, ainda precisamos lançar algumas reflexões sobre a ética e bioética, por uma série de fatores que vamos resumir em “não agir com ética”. De todo modo, o simples fato da disponibilidade de um determinado conhecimento ou tecnologia não é argumento válido o bastante para aplicá-lo em toda e qualquer situação da prática profissional. Sempre será necessário analisar os aspectos positivos e negativos de qualquer ação, tendo por referência os valores que dão origem à mesma, seja para a pessoa assistida, seja para grupos lazar Realce 6 da população. O estudo e análise desses aspectos, ou seja, do valor de uma ação, é o que se denomina, no seu sentido amplo, ética (TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). A ética pode ser entendida como o “estudo dos juízos de apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de visto do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto”. (FERREIRA, 2004). Nesse sentido, a ética sempre irá referir-se ao valor da ação humana, à ação de um ser consciente, racional e com liberdade para optar por este ou aquele valor para fundamentar o seu agir em determinadas situações da vida. A pessoa, o ser humano, é o valor central de tudo quanto nos rodeia. Contudo, mesmo com essa liberdade de agir decada ser humano, o valor deste agir é constituído concretamente mediante relações com outros seres humanos. Assim, os orientadores da validade dos valores do agir de cada ser humano são o convívio e o aprendizado das regras e valores de diferentes grupos humanos. Falar em ética nos reporta quase que automaticamente para a moral! Esta palavra moral tem sua origem no latim (more) e remete aos usos e costumes. O conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupos ou pessoa determinada, é denominado moral. Como conjunto de normas e costumes, ao mesmo tempo em que tende a regulamentar o agir das pessoas, a moral oportuniza refletir sobre o valor do agir humano. Com esse entendimento, a ética é o estudo, a análise, a discussão da moral do agir humano em determinada realidade. Enquanto a regra moral é ideal e se fundamenta no respeito a essas regras a partir de convicções próprias de cada ser humano, a regra legal é uma norma prática, de aplicação compulsória e faz agir por obrigação externa, por conformidade à lei. Nesse sentido, o questionamento quanto à eticidade de determinada ação ocorre quando existem dúvidas quanto à adequação moral de cada escolha, quando a escolha envolve proposições opostas ou uma situação com apenas duas possibilidades de ação difíceis ou penosas, ou seja, um dilema ético (TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 7 A ética, de forma geral, ocupa-se da análise do que é bom (ou correto) e do que é mau (ou incorreto) no agir humano. A ética aplicada, nessa mesma linha de pensamento, trata de questões relevantes à pessoa e à humanidade. A partir de 1960, a preocupação mundial com as questões morais em diferentes setores da sociedade fez emergir, segundo Clotet (1997), entre outras: ética dos negócios, em que a questão da corrupção e abusos econômico- financeiros passaram a ser objeto de discussão; ética ambiental, envolvendo principalmente os valores a fundamentar a defesa da preservação e proteção do meio ambiente; bioética, cujo objeto de estudo ético tem como realidade a vida dos seres humanos em geral, significando um diálogo para formular, articular e resolver dilemas que emergem das propostas de pesquisa e intervenção sobre a vida, a saúde, o meio ambiente. Ao focalizar a reflexão ética no fenômeno da vida, e considerando o dinamismo dos eventos vitais, as temáticas tratadas pela Bioética podem ser subdivididas em: aquelas que emergem dos conflitos entre o progresso das ciências e os direitos humanos, como a fecundação artificial, a clonagem; e aquelas presentes no cotidiano das pessoas, como a eutanásia, o aborto, a violência. A Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão moral, decisões, condutas e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar. (REICH, 1995 apud TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). Com esse entendimento, a Bioética envolve o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da atenção à saúde, conduta esta examinada à luz dos valores e princípios morais (GONÇALVES, 1994). No que se refere aos cuidados e à atenção à saúde, e tendo por base a sua diretriz central, os valores que fundamentam o agir no setor saúde podem ser agrupados em: lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 8 orientados por recursos – na situação em que a diretriz central são os recursos, predomina o valor do custo-benefício, isto é, a relação entre o custo de investimentos em recursos financeiros, materiais e recursos humanos e o benefício de alcançar o máximo de saúde; orientados por doenças – quando a diretriz central é a doença, o valor presente é de que qualquer problema de saúde pode ser eliminado pela aplicação de tecnologias médicas e de saúde. Nesse contexto, ela é entendida como a ausência de qualquer doença, entendida por sua vez como apresentando um fundamento físico-biológico particular, passível de ser diagnosticado pelo profissional de saúde. Assim, o valor positivo da assistência de saúde é o adequado tratamento dos indivíduos que apresentam uma doença, contribuindo para a eliminação de sinais e sintomas físico-biológicos, caracterizados como situação de anormalidade; orientados por decisões políticas – o agrupamento das ações que envolvem decisões políticas trazem em destaque os valores e interesses das lideranças políticas, que em princípio expressam os problemas de saúde da população de uma região ou país, envolvendo implicitamente a questão do direito como cidadão, a saúde e equidade no acesso a serviços; orientados por valores de clientes e familiares – o agir no setor saúde que tem como diretriz central os clientes e seus familiares, apresenta como valor central os valores daqueles que se beneficiam da assistência à saúde. Nessa situação, as necessidades concretas de assistência de saúde da pessoa ou de grupos da população são concebidas não como uma concepção abstrata, mas, tendo por referência problemas vivenciados, como a única forma possível de garantir o preenchimento do seu direito à saúde e ao bem-estar. Os valores da atenção à saúde podem ser refletidos e analisados, no sentido ético, tendo por fundamento princípios morais. Os princípios que orientam a análise de dilemas éticos, tanto aqueles que emergem da vida em geral quanto aqueles que envolvem o setor saúde (como os valores da prática profissional), lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 9 são o respeito à autonomia, à beneficência, à não-maleficência e à justiça (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 1994 apud TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). A concepção central que fundamenta o princípio da autonomia é a autogovernabilidade, a de que cada pessoa é soberana para decidir tudo o que se refere ao seu corpo, ao seu pensar e ao seu agir. Nesse princípio, está implícita a perspectiva social de respeito a outro ser humano, ou seja, o respeito à autonomia de modo recíproco. O princípio do respeito à autonomia tem como valor fundamental que cada ser humano é capaz de decidir sobre o que é melhor para si mesmo e para seu grupo. Assim, não considerar essa capacidade, seja negando a liberdade pessoal e social de agir, seja omitindo informações disponíveis que subsidiam o julgamento do seu agir, significa faltar com respeito a essa autonomia. Alguns trechos do Juramento Profissional do Enfermeiro focaliza como valor central o respeito pela autonomia daquele que é assistido e a responsabilidade pelo seu agir profissional. Vejamos: “respeitando a dignidade e os direitos da pessoa humana, exercendo a enfermagem com consciência e fidelidade” [...] “respeitar o ser humano desde a concepção até depois da morte”. Paralelamente, faz-se importante destacar que o reconhecimento, total ou parcial, da capacidade de julgamento e decisão de uma pessoa pode variar de acordo com a cultura do grupo ou sociedade que integra. Dessa forma, aqueles que na nossa sociedade são considerados legalmente imaturos (menores de idade), aqueles considerados incompetentes para fazerem julgamentos ou se autogovernarem (doentes mentais) ou aqueles institucionalmente impedidos de exercerem a sua liberdade de ação (presidiários) requerem proteção da sua autonomia para, em última instância, não serem desrespeitados como seres humanos. O princípio da beneficência tem o bem como fundamento básico de toda e qualquer ação profissional de saúde, isto é, o valor moral de agir em benefício de outros. Com esse entendimento, a assistência à saúde visa sempre os interesses do cliente, da família e dacomunidade. lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 10 A beneficência distingue-se da benevolência; enquanto a primeira refere- se à característica da ação que visa o bem, a segunda caracteriza a atitude de boa vontade de uma pessoa em relação à outra. O bem visado pela ação do enfermeiro – e explicitamente detalhada no seu juramento profissional – é a vida, tanto na dimensão individual como coletiva (“respeitar o ser humano desde a concepção até depois da morte”; “atuar junto à equipe de saúde para o alcance da melhoria do nível de vida da população”) (TOCANTINS; SILVA; PASSOS, 2003). O princípio da não-maleficência tem como valor máximo que qualquer ação deve, em primeira instância, não infligir dano intencional (primum non nocere). Esse princípio também está explícito no juramento profissional do enfermeiro – “não praticar atos que coloquem em risco a integridade física ou psíquica do ser humano”. Muitos autores entendem que o valor da ação profissional “não causar dano” é complementar ao valor do princípio da beneficência, especificando que uma ação benéfica deve priorizar em primeiro lugar “não colocar em risco a saúde e a vida” e em segundo lugar “maximizar os benefícios”. Essa priorização, denominada “dever prima facie”, justifica-se pelo fato de, ao prevenir um dano intencional, o profissional está concretamente visando um bem. A distribuição justa, equitativa, apropriada e universal no que se refere aos benefícios dos serviços e das ações dos agentes de saúde é o valor que compõe o princípio da justiça aplicado ao setor da saúde e à prática profissional, também chamado Justiça Distributiva. É um dos valores implícitos no juramento do profissional enfermeiro: “atuar junto à equipe de saúde para o alcance da melhoria do nível de vida da população”. O Princípio da Justiça Distributiva inclui o entendimento de que o Estado, nos seus diferentes níveis, tem como dever promover o direito à saúde universal, isto é, o bem-estar coletivo. Apesar de todos os valores sociais deverem ser distribuídos igualmente – critério da equidade –, uma distribuição desigual tem valor moral positivo desde que redunde em vantagem para todos, especialmente os mais necessitados. lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 11 Nesse contexto, é importante não confundir os termos justiça e direito; a justiça refere-se a um critério moral, enquanto o direito é concretizado no convívio em sociedade. Uma das áreas na qual a Ética sempre ocupou um lugar de destaque é a da saúde, particularmente em questões que envolvem vida e morte. Com a evolução e a diversificação das práticas no setor saúde, emerge a particularidade de diferentes ações profissionais, entre as quais, os de Enfermagem, que por sua vez fundamenta-se em valores distintos. O conteúdo nuclear da enfermagem pode ser descrito por meio de três conceitos centrais: ser humano – aquele que é assistido e recebe cuidados de enfermagem, podendo estar representado por uma pessoa, uma família, uma comunidade ou grupos da sociedade; meio ambiente – representado pelos arredores institucionais imediatos, a comunidade ou o entorno social, que se relaciona de modo direto e/ou indireto com o ser humano; saúde – expresso pelo bem-estar, individual e/ou coletivo, decidido mutuamente pelo ser humano assistido e o enfermeiro. A articulação da especificidade destes conceitos aponta para os valores e a direção de seus fatos e eventos, valores estes expressos no Código de Ética desses profissionais que veremos mais adiante. 2.2 Ética na saúde pública e na pesquisa epidemiológica A saúde pública em última definição tem como objeto o processo saúde- doença da coletividade, observado em suas dimensões biológica, psíquica e sociocultural. A saúde deve ser compreendida como a expressão do maior grau de bem-estar que o indivíduo e a coletividade são capazes de alcançar através de um equilíbrio existencial dinâmico, mediado por um conjunto de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, ambientais, comportamentais e biológicos. 12 Há diversificados conceitos sobre o que vem a ser saúde pública, variando conforme a cultura de cada país, o papel aceito para a esfera estatal na saúde, o modelo dos sistemas de saúde existentes, as crenças e a compreensão das pessoas acerca do processo saúde-doença e também sobre o valor e a responsabilidade social em relação à saúde dos indivíduos. Assim sendo, não se poderia pensar em uma noção de saúde pública de caráter universal. Porém, conforme Paim e Almeida Filho (2000), a saúde pública deve ocupar-se da dimensão biológica, das relações entre o homem e o meio ambiente residencial, de trabalho e de lazer, da reprodução das formas de consciência e de comportamento e das relações sociais e econômicas. Poeticamente, ela é uma arte e uma ciência, que busca promover, proteger e restaurar a saúde dos indivíduos e da coletividade, e obter um ambiente saudável, através de ações e serviços resultantes de esforços organizados e sistematizados da sociedade. Saúde pública é o que a sociedade faz coletivamente para assegurar as condições nas quais as pessoas podem ser saudáveis, o conjunto de práticas e saberes que objetivam um melhor estado de saúde possível das populações (ZOBOLI; FORTES, 2003). O campo da saúde pública é inter e multidisciplinar, envolve saberes da teoria e da prática, tem estrutura em órgãos estatais que atuam de várias maneiras, principalmente normalizando e regulando as ações, como por exemplo, a vigilância epidemiológica, zoonoses, saúde do trabalhador, doenças endêmicas, mas também atua no setor privado e/ou por organizações não governamentais. As ações da saúde pública podem ser simples ou complexas, indo de unidades básicas até setores altamente complexos em hospitais especializados. Educação, nutrição, meio ambiente também são campos/áreas que fazem parte das ações em saúde pública. Enfim, essas características inter e multisetorial e inter e multidisciplinar nos levam para a questão da ética e bioética que envolve uma gama de profissionais, cada um com atribuições específicas, mas que em rede tem como objetivo final a promoção da saúde que atuam tanto no individual como no coletivo (ZOBOLI, 2003). 13 Vamos focar no viés da autonomia individual x interesses da coletividade, mas de antemão frisamos: vamos lançar mais questionamentos do que soluções! Estas vocês irão refletir e buscar alternativas ao longo de suas caminhadas. Por autonomia, entende-se que o sujeito pode escolher, dentre várias alternativas, o que é melhor para si, de acordo com seus valores, expectativas, prioridades, necessidades e crenças (claro que de maneira racional e quando tem capacidade de discernimento). Quanto aos interesses da coletividade, estes podem ultrapassar os interesses individuais como, por exemplo, uma campanha de vacinação, a fluoretação da água. No caso do controle e erradicação de uma doença contagiosa, claro que o benefício também é individual, mas a intenção maior seria a coletividade (ZOBOLI; FORTES, 2003). Pois bem, as ações de saúde pública intentam interferir no processo saúde-doença da coletividade, atuando em seus condicionantes, desencadeantes e determinantes em múltiplos setores da atividade humana, com a finalidade de proporcionar um melhor estado de saúde das populações. Nessa busca, podem surgir confrontos e conflitos entre os interesses individuais e os coletivos, entre a liberdade individual e o bem-estar ou a segurança da coletividade. As ações de saúde pública podem gerar conflitos morais, pois muitas vezes limitam ou restringem liberdades e decisões individuais, ensejando o bem comum ou evitando consequências antissociais. Assim o faz emnome da supremacia do interesse público sobre o individual, como se dá, por exemplo, com as ações de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, controle de zoonoses e saúde do trabalhador. Essa interferência da saúde pública sobe a autonomia individual nos leva de volta aos princípios éticos da beneficência e da não-maledicência. Fato é que no exemplo dado da fluoretação da água, muitas pessoas não gostam, não querem que a água que chega a suas casas venha carregada de produtos químicos, e como o setor de distribuição de água não tem como separar água fluoretada de água pura, envia a fluoretada. Assim, ela está passando por 14 cima da autonomia individual e fazendo prevalecer os direitos da coletividade. Fica a deixa para vocês: correto ou errado?! Como resolver? Lembremos que a noção ética utilitarista do “maior benefício para o maior número de pessoas” está contida em boa parte das ações de saúde pública, como nos procedimentos de vacinação em massa. Não é necessário que se justifique a importância da imunização em massa como foi e é feita para a poliomielite, mediante a utilização da vacina Sabin, que levou à erradicação da doença em nosso país. Contudo, sendo uma vacina de vírus vivos atenuados que é eficaz, entre outros motivos, pela possibilidade de disseminação ambiental, sabe-se que os vírus poderão atingir pessoas que tenham o sistema imunológico comprometido, como é o caso das pessoas com AIDS. Esse risco de causar danos, conhecido pelos sanitaristas, é de baixa probabilidade, mas existe. Assim, continuamos a utilizar o processo de vacinação em razão dos milhares de crianças protegidas, mesmo havendo risco para alguns. Quanto ao campo da pesquisa epidemiológica, também é imprescindível rever e atentar para as contradições entre o individual e o coletivo porque a pesquisa epidemiológica apresenta especificidade própria, necessitando, além dos aspectos gerais que envolvem as pesquisas com seres humanos, da interação com as ciências naturais, sociais e políticas (MARQUES, 1996; RIBEIRO, 2002). Novas tecnologias no campo da saúde, rápida disseminação dos conhecimentos científicos, ampliação dos movimentos em favor dos direitos individuais, a indústria querendo se fortalecer em termos de maximização de lucros, são todos motivos para se preocupar e agir eticamente. A verdade é que as pesquisas epidemiológicas exercem um papel social, buscando solucionar problemas de saúde que atingem determinada população, portanto, considerando esses aspectos, tais estudos devem atender a protocolos e padrões bioéticos definidos pela comunidade científica e fundamentados em conceitos de ética e moral que garantam a segurança dos participantes das pesquisas e atendam aos quatro princípios básicos da bioética: autonomia, não- maleficência, beneficência e justiça (VENTURI et al, 2008). 15 2.3 Responsabilidade ético-legal do enfermeiro Desde a Antiguidade, existem normas regulando as relações das pessoas em sociedade, estabelecendo regras para o convívio social, os direitos e deveres dos indivíduos, mas também impondo sanções ou reprimendas a quem não as cumprisse (FREITAS, 2007) e na enfermagem não é diferente! Devemos nos lembrar de que todo comportamento humano está condicionado a determinadas normas sociais e às pessoas e, na atualidade, estão sujeitas a um ambiente muito mais legalista que veio se construindo ao longo da institucionalização das profissões e no decorrer da evolução humana, é claro. As leis, em seu conjunto, formam as legislações e o ordenamento jurídico dos Estados/Países que direcionam a vida das pessoas, das empresas, entre outros, e as profissões de livre exercício como a Enfermagem, por exemplo, não foge a essas regras. Também para ela temos as regulamentações que estabelecem quem é esse profissional e como pode e deve exercer com autonomia seu ofício. No caso da enfermagem brasileira, compete ao Congresso Nacional (Câmara e Senado) criar a Lei do Exercício Profissional, que tem eficácia para todos os enfermeiros que atuam no território nacional e determina as competências que lhes cabe. Os legisladores e os operadores do Direito (juízes, promotores, advogados) costumam apontar um velho princípio, segundo o qual a ignorância das leis não constitui argumento para defesa. Dessa forma, é indesculpável e inadmissível que o enfermeiro alegue não saber ou não conhecer as leis do nosso ordenamento jurídico ou a lei específica do exercício profissional. Assim, a ninguém é permitido alegar desconhecimento das regras sociais (dentre as quais as leis) para se eximir de responder por seus atos. Nesse sentido, vejamos o que diz o art. 21 do Código Penal brasileiro, com redação pela Lei nº 7.209/84: Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. 16 Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. Portanto, o indivíduo responde por sua conduta, quando consciente, livre e capaz de entendimento das consequências do seu ato, ou seja, quando capaz de discernir o que é permitido nas leis do seu país. Mas, além das normas jurídicas, existem usos e costumes que precisam ser conhecidos em cada sociedade e cultura. A importância do conhecimento da legislação geral e também da legislação profissional de enfermagem deve-se a dois motivos, basicamente: em primeiro lugar, porque a legislação possibilita a criação ou a extinção de direitos e obrigações. Por outro lado, sabe-se que ninguém se isenta de cumprimento da lei alegando desconhecê-la. Daí a obrigação de todas as pessoas conhecerem as normas específicas da sua profissão, mas também o ordenamento jurídico de seu País. Ademais, o aprofundamento no estudo da legislação auxiliará na conquista de novos espaços de atuação, luta pelos direitos da categoria e consciência das obrigações éticas e legais. Não cabe ao momento contar a evolução da legislação para a profissão, no entanto, vale lembrar que tudo teve início com o Decreto nº 791, de 27 de setembro de 1890, determinando a criação da primeira escola profissional de enfermeiros e enfermeiras no Hospital Nacional de Alienados; que em 1932, veio o Decreto 20.931, que pretendia regulamentar e fiscalizar o exercício da medicina, odontologia, medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira. Atualmente, a Lei do Exercício nº 7.498/86, art. 11, inc. I, m, estabelece que ao enfermeiro compete, privativamente, cuidados de enfermagem de maior complexidade técnica que exijam conhecimentos de base científica e capacidade de tomar decisões imediatas. As atividades elementares de enfermagem são aquelas que compreendem ações de fácil execução e entendimento, baseadas em saberes simples, que não requerem conhecimento científico, adquiridos por meio de treinamento e/ou da prática; requerem destreza manual, restringem-se a situações de rotina e de repetição, não envolvem cuidados diretos ao paciente, 17 não colocam em risco a comunidade, o ambiente e/ou a saúde do executante, mas contribuem para que a assistência de enfermagem seja mais eficiente (Resolução COFEN nº 186/1995). Em se tratando da responsabilidade da Enfermagem, podemos analisar sob dois aspectos: primeiro, a responsabilidade pode ser uma imposição legal ou moral de restabelecer o dano ou prejuízo acarretado. Dessa maneira, o pai é o responsável legal pelo filho menor, devendo cuidar de seu sustento físico. Mas um parente abastado financeiramente poderia sentir-se obrigado, do ponto de vista moral, a contribuir para o sustento e educação de seu sobrinho. A obrigação é originariamente do pai, maso tio poderá sentir-se moralmente responsável por ele. De acordo com Oguisso e Schmidt (1999), a responsabilidade moral tem origem na transgressão de norma moral, cujo terreno é a consciência individual. O segundo aspecto consiste em que não existe responsabilidade jurídica se a violação de um dever não produzir dano pessoal, material ou moral. A responsabilidade ética se caracteriza pela infração ética, a qual pode estar prevista no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (CEPE). Assim, um comportamento profissional pode ser tido como antiético mesmo não havendo previsão no CEPE sobre ele. Os arts. 16 e 24 do CEPE mencionam a obrigação dos profissionais de enfermagem de prestar assistência livre de danos ou de riscos decorrentes de negligência, imperícia ou imprudência. Tal norma descreve a conduta esperada do profissional, a fim de evitar a ocorrência de quaisquer daquelas modalidades de culpa no exercício de atividades de enfermagem. Como se vê, a norma em si é genérica, cabendo-nos a interpretação e aplicação em cada caso concreto. Dessa forma, se alguém age de maneira desatenta, inábil ou imprudente, e com isso expõe o cliente a riscos desnecessários a determinado malefício, deverá responder por isso. A conduta do profissional poderá ser questionada pela família do cliente, por outros profissionais da área da saúde ou pelo próprio cliente perante as 18 instâncias adequadas para tal, como a comissão de ética de enfermagem ou o serviço de ouvidoria e qualidade da instituição. Poderá ocorrer de o cliente, sentindo-se lesado pela ação ou omissão do profissional de enfermagem, questionar a conduta deste em instâncias externas à própria instituição de saúde, como os serviços de proteção dos direitos do consumidor e o Conselho Regional de Enfermagem. Mas pode recorrer diretamente ao Poder Judiciário, no intuito de ver reparada a suposta lesão ao seu direito. Quanto à responsabilidade penal, verifica-se que diversos artigos do CEPE encontram consonância com o Código Penal (CP). Por exemplo, o art. 45 do CEPE proíbe “provocar aborto ou cooperar em prática destinada a interromper a gestação” e encontra paralelo nos arts. 125 a 128 do CP que tratam da matéria, que vedam a prática abortiva, exceto nos casos previstos em lei, sob pena de quem a praticar incorrer em um ilícito penal, sujeitando-se à pena privativa de liberdade. A responsabilidade profissional transcende os aspectos ético e penal, podendo ser de natureza civil. Na esfera cível, tendo como parâmetro a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil vigente), discute-se a responsabilidade do profissional, diante da ocorrência de prejuízo a outrem (o cliente) e a reparação ou ressarcimento do dano acarretado por culpa profissional, bem como o valor da indenização à vítima. A responsabilidade civil consiste na obrigação de indenizar, e, de acordo com o art. 927 do Código Civil, “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Ademais, o Parágrafo único desse mesmo artigo, estabelece que Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Trata-se, na verdade, da questão da obrigação de meio ou de resultado. Via de regra, quando o enfermeiro se vincula à obrigação de prestar determinado serviço, aplicam-se lhe os princípios da obrigação de meio. Nesta, o profissional 19 se obriga a usar de prudência e diligência normais na prestação de um serviço para atingir um resultado, sem, contudo, se vincular a obtê-lo (OGUISSO; SCHMIDT, 1999). 2.4 COFEN e as comissões de ética Em 12 de julho de 1973, por meio da Lei nº 5.905, foi criada a entidade de fiscalização do exercício profissional de enfermagem, em níveis federal e estadual (Conselhos Regionais de Enfermagem ou CORENs). Conforme preceituava essa lei, o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) organizou três quadros distintos para fins de inscrição: quadro I (enfermeiros), quadro II (técnicos), quadro III (auxiliares de enfermagem, práticos de enfermagem e parteiras práticas). A Lei nº 5.905/73 determinava que fosse adotado como critério da categorização de enfermagem o disposto na Lei nº 2.604/55, a qual regulamentava o exercício da enfermagem antes de ser substituída pela Lei nº 7.498/86. O técnico de enfermagem, categoria surgida em 1966, não estava incluído nessa lei, que é de 1955. O COFEN, fundamentando-se na legislação de ensino, decidiu criar o quadro II para incluir essa categoria (OGUISSO; SCHMIDT, 1999). A filiação ao sistema COFEN/COREN é obrigatória e abrange todas as categorias profissionais de enfermagem. A votação nas eleições para compor a diretoria é compulsória, sob pena de pagamento de multa, correspondente a uma anuidade. Cada categoria vota em candidatos de seu quadro. O conselho é a única entidade de classe de vinculação obrigatória para o exercício profissional. Com respaldo na Lei nº 5.905/73, os conselhos regionais e o Conselho Federal de Enfermagem são órgãos com poder de fiscalização e regulamentação das atividades de enfermagem nas áreas de sua jurisdição territorial (no caso dos conselhos regionais) e em nível nacional, em se tratando de provimentos ou resoluções emanadas do COFEN. Ademais, é da competência legal dos conselhos regionais e do Conselho Federal de Enfermagem a aplicação de penas aos profissionais de enfermagem que cometam infrações ao Código de Ética de Enfermagem. Assim, o art. 18 da Lei nº 5.905/73 preceitua o seguinte: 20 Aos infratores do Código de Deontologia de Enfermagem poderão ser aplicadas as seguintes penas: I. Advertência verbal. II. Multa. III. Censura. IV. Suspensão do exercício profissional. V. Cassação do direito ao exercício profissional. A referida lei, em seu § 10 do art. 18, destaca que as penas previstas nos incisos I, II, III e IV são da alçada dos Conselhos Regionais, enquanto a pena do inc. V é de competência exclusiva do Conselho Federal, ouvido o COREN interessado. A Lei nº 5.905, de 12 de julho de 1973, ao criar os conselhos de fiscalização do exercício profissional de enfermagem, estabeleceu suas competências. Com o correr dos anos, aumentou o contingente de profissionais de enfermagem, e hoje a enfermagem é o grupo numericamente mais expressivo da área da saúde. O COFEN (2001) normalizou a criação da Comissão de Ética de Enfermagem nas instituições de saúde, em 1994, e o COREN-SP baixou um Regimento para criação, formação e funcionamento das Comissões de Ética de Enfermagem (CEE), que foi oficializado, incentivando-se a criação delas nos hospitais. Esse Regimento estabelece que o órgão representa o COREN, em caráter permanente junto às instituições de saúde, com funções educativas, fiscalizadoras e consultivas do exercício profissional e ético dos profissionais de enfermagem nas referidas instituições. São finalidades da CEE as que constam do art. 30 do referido Regimento, que englobam as explicitadas na Resolução nº 172/94 do COFEN: garantir a conduta ética dos profissionais de enfermagem da instituição de saúde, pela análise das intercorrências notificadas por meio de denúncia formal e auditoria; zelar pelo exercício ético dos profissionais de enfermagem da instituição; 21 colaborar com o COREN no combate ao exercício ilegal da profissão e na tarefa de educar, discutir, orientar e divulgar temas relativos à ética dos profissionais de enfermagem. A Resolução do COFEN e o Regimento do COREN são instrumentos legais importantes, mas insuficientes para a existência de uma CEE eficiente que atenda às necessidades de assessoria, consultoria e orientação dos profissionais de enfermagem nas instituiçõesde saúde. Por isso, é necessário que o COREN e as instituições de saúde invistam na formação de profissionais que irão atuar na CEE, preparando-os adequadamente. Convém lembrar que a formação curricular na graduação não propicia esse preparo para enfermeiros, e a maioria deles nunca trabalhou em uma instância como essa. A falta de investimentos nessa formação poderá comprometer a intenção de fortalecer a atuação dos órgãos de fiscalização nas instituições de saúde. Por essa razão, o COREN precisa assessorar de forma permanente os membros da CEE, envolvendo também as chefias de enfermagem, em especial as de escalão mais elevado. É imprescindível o apoio da gerência, diretoria ou chefia do serviço de enfermagem para que a CEE possa desempenhar seu papel, provendo local adequado para reuniões, orientações, consultas e acompanhamentos dos casos comunicados, pois não basta a existência de profissionais motivados para desenvolver as atividades desse órgão. É mister também apoio do COREN para orientar os membros da CEE, as gerências de enfermagem e os profissionais, desde o momento da instauração do processo eleitoral até a posse e o desenvolvimento de suas atividades. Dentre vários estudos nessa linha de ação, existem alguns interessantes citados por Freitas (2007) que valem ser expostos: Ao tratar das infrações éticas envolvendo pessoal de enfermagem, em um hospital público, de grande porte, destinado ao ensino, verificou-se que, de um total de 62 denúncias, 90% partiram dos próprios funcionários do hospital e que os enfermeiros foram responsáveis pela maioria delas (72,5%) (MENDES; CALDAS JUNIOR, 1999). Esses dados foram corroborados por outro autor que 22 constatou que, de um total de 114 ocorrências ou infrações éticas, no período de 1995 a 2002, 97,37% delas haviam sido comunicadas pelos enfermeiros da instituição. Acredita-se que tal fato se deva à maior autonomia e tomada de decisão do enfermeiro para encaminhar as ocorrências para a apreciação da CEE. Em relação aos estudos mencionados, convém ressaltar as seguintes denúncias: maus-tratos aos pacientes (ofender, humilhar, não alimentar, agredir fisicamente e assediar sexualmente), indisciplina (agressões físicas entre membros da equipe, não-cumprimento de ordens superiores, desrespeito a colegas, dormir durante o serviço, algazarra, jogos, arrombamento de porta), negligência (descuido de material coletado de paciente, quebra de material hospitalar, não-atendimento às solicitações do paciente, ausência da vigilância necessária do paciente), falsidade ideológica (registro no prontuário de ações não realizadas), imperícia (erros cometidos por incapacidade técnica do denunciado), ineficiência (desempenho incompleto de grande parte das tarefas solicitadas), imprudência (adoção de procedimento inadequado com conhecimento de suas possíveis implicações no que se refere a danos para o paciente), entre outros. Daquele total de 114 ocorrências encaminhadas à CEE, 47,2% foram caracterizadas como tendo sido causadas por negligência dos profissionais envolvidos, 28,4% decorreram de imprudência, 11,8% foram causadas por imperícia, 8,3% estavam relacionadas à indução ao erro do profissional de enfermagem (prescrição médica inelegível, por exemplo) e 4,2 % referiram-se à omissão propriamente dita, ou seja, não realização de um procedimento prescrito ou solicitado pelo médico ou pelo enfermeiro (não fazer mudança de decúbito, por exemplo). Esse estudo revelou também que a categoria mais envolvida com as ocorrências éticas foi a do auxiliar de enfermagem, independentemente de fatores como: negligência, imperícia ou imprudência dos profissionais envolvidos. Tal fato se justifica pelo aumento crescente de auxiliares de enfermagem na prestação de cuidados diretos de enfermagem, em substituição aos atendentes de enfermagem, que somente poderiam exercer atividades elementares de enfermagem, conforme Resolução COFEN nº 185/1995 por não terem formação específica regulada em lei (FREITAS, 2007). 23 Com relação aos direitos e deveres do paciente, Gauderer (1991) destaca o direito do paciente de obter informações sobre seu caso, por meio de cópias do seu prontuário, cujos registros devem estar em letra legível, incluindo exames, bem como o conteúdo desses documentos, tais como: anotações, evoluções, prescrições, laudos, avaliações, entre outros. Esse mesmo autor aponta que o paciente, o cônjuge ou os filhos têm o direito de gravar ou filmar atos médicos realizados, requerer que profissionais se reúnam para discutir a patologia para a tomada de decisão mais adequada, morrer dignamente, escolher o local e a maneira que julgar melhor para morrer, recusar tratamentos dispendiosos e de resultado imprevisível. O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem é um parâmetro para avaliar direitos e deveres dos profissionais dessa área, seja em relação ao paciente, ao colega, às entidades de classe e à sociedade em geral. Além dos deveres dos profissionais, há também os deveres dos usuários dos serviços e das ações de saúde. Kfouri Neto (2001) ressalta alguns deveres do paciente como seguir orientações ou prescrições técnicas, pois o descumprimento desobriga o profissional de continuar lhe prestando cuidados. Entretanto, o paciente não pode ser abandonado em meio à assistência; por isso, deve-se assegurar o acompanhamento por outro profissional, igualmente capacitado para tal, evitando, assim, a alegação de que houve abandono ou quebra da continuidade da assistência e, por conseguinte, infração ética do profissional no que tange ao dever de não expor o paciente à situação de risco ou causar-lhe dano. Cooperar com a assistência ou o tratamento constitui obrigação do paciente, o qual deve informar todos os dados que sejam de interesse para esse fim e que forem necessários para a elucidação de diagnóstico e implementação de condutas técnicas. Dessa forma, ele estará contribuindo para que o processo assistencial ocorra de maneira eficaz. No que se refere ao enfermeiro, exige-se que este profissional seja capaz de ouvir o paciente, investigar cuidadosamente suas queixas, respeitar suas crenças e convicções, tratá-lo com respeito em sua dignidade, aplicando todos os esforços, meios e recursos disponíveis, a fim de 24 aliviar o sofrimento, e ajudar nas medidas terapêuticas, sem riscos desnecessários ou previsíveis. Orientar os profissionais de enfermagem, por meio de um processo educativo-reflexivo permanente, é missão precípua da CEE, visando à prevenção de ocorrências éticas danosas ao paciente no exercício da profissão. Desse modo, ao lembrar alguns desses direitos e deveres dos profissionais de saúde, e da enfermagem, convém frisar que tais obrigações devem ser sopesadas diante de cada caso concreto, seja pela chefia imediata, seja pela CEE, seja por outras instâncias internas ou externas nas instituições de saúde. 25 UNIDADE 3 – HUMANIZAÇÃO E A POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO Quando se fala em Humanização da Saúde, muitos pensam em ambientes hospitalares, pois é lá que nos acostumamos a ver cartazes, panfletos, enfim, explicações dessa “humanização”, mas seu significado vai além disso. Começando pela instituição “hospital”, neste século XXI, embora ainda tenha características de instituição voltada ao cuidado terapêutico, vem mudando e se adequando aos “tempos modernos”, daí começarmos a falar de humanização por meio deles. Foi através da Portaria nº 30 de 11 de fevereiro de 1977, que o Brasil aprovou e adotou, via Ministério da Saúde, os conceitos e definições preconizados pela Organização Mundial de Saúde para os campos de serviços sanitários, especialmente de assistência médico-hospitalar. É dessa portaria que retiramos o conceito de hospital como sendo: parte integrante de uma organização Médica e Social,cuja função básica, consiste em proporcionar à população Assistência Médica Sanitária completa, tanto curativa como preventiva, sob quaisquer regime de atendimento, inclusive o domiciliar, cujos serviços externos irradiam até o âmbito familiar, constituindo-se também, em centro de educação, capacitação de Recursos Humanos e de Pesquisas em Saúde, bem como de encaminhamento de pacientes, cabendo-lhe supervisionar e orientar os estabelecimentos de saúde a ele vinculados tecnicamente. Estamos bem longe dos anos 1970 e essa instituição que veio passando por várias mudanças, hoje se encontra num misto de busca pela eficiência, rapidez e acerto em diagnósticos, prática de sua função social que passa pela humanização. Esta tendência surgiu pela necessidade de garantir o desenvolvimento futuro da medicina e da saúde, já que são vislumbradas alterações nesta dinâmica hospitalar, com as quais o atendimento da doença está se deslocando para o atendimento aos cidadãos, ou seja, o foco desloca-se da ênfase na intervenção tecnológica para ações sustentadas, nas relações humanas (ANTUNES et al. 2007). 26 Como diz Mello (2008) no documento “Humanização da Assistência Hospitalar no Brasil: conhecimentos básicos para estudantes e profissionais”, o significado da humanização da assistência hospitalar precisa ser compreendido dentro de um panorama bastante amplo. Nos dicionários Aurélio e Enciclopédia Delta Larousse, a palavra humanizar tem como definição “tornar humano, dar condição humana a, (...)”. Conceito simples, enxuto, mas vago... Por humanização entende-se menos a retomada ou revalorização da imagem idealizada do Homem e mais a incitação a um processo de produção de novos territórios existenciais (BENEVIDES DE BARROS; PASSOS, 2005). Neste sentido, não havendo uma imagem definitiva e ideal do Homem, é preciso aceitar a tarefa sempre inconclusa da reinvenção da humanidade, o que não pode se fazer sem o trabalho também constante da produção de outros modos de vida, de novas práticas de saúde. Tais afirmações indicam, segundo Pereira e Barros (2009), que na gênese do conceito de humanização há uma tomada de posição de que o homem para o qual as políticas de saúde são construídas deve ser o homem comum, o homem concreto. Deste modo, o humano é retirado de uma posição-padrão, abstrata e distante das realidades concretas e é tomado em sua singularidade e complexidade. Há, portanto, na gênese do conceito, tal como ele se apresenta no campo das políticas de saúde, a fundação de uma concepção de ‘humanização’ crítica à tradicional definição do humano como “bondoso, humanitário” (FERREIRA, 2004). Esta crítica permite arguir movimentos de ‘coisificação’ dos sujeitos e afirmar a aventura criadora do humano em suas diferenças. Humanização, assim, em sua gênese, indica potencialização da capacidade humana de ser autônomo em conexão com o plano coletivo que lhe é adjacente. Para esta capacidade se exercer, é necessário o encontro com um outro, estabelecendo com ele regime de trocas e construindo redes que suportem diferenciações. Como o trabalho em saúde possui “natureza eminentemente conversacional” (TEIXEIRA, 2003), entendemos que a efetuação da humanização lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 27 como política de saúde se faz pela experimentação conectiva/afetiva entre os diferentes sujeitos, entre os diferentes processos de trabalho constituindo outros modos de subjetivação e outros modos de trabalhar, outros modos de atender, outros modos de gerir a atenção (PEREIRA; BARROS, 2009). De acordo com a Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, que será apresentada mais adiante (BRASIL, 2003), humanização é o aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos e diz respeito à mudança na cultura da atenção dos usuários e da gestão dos processos de trabalho. Segundo Mello (2008), os termos humanização, humanização da assistência hospitalar ou humanização em saúde já são de domínio público, embora haja certo estranhamento e resistência por parte de muitos profissionais da saúde em aceitá-los. O argumento principal é que a humanização é inerente à prática de quem cuida de seres humanos. No entanto, as pesquisas de satisfação e insatisfação aplicadas aos usuários dos serviços de saúde no país apontam para a grande insatisfação da população com o atendimento prestado, enquanto as reportagens na mídia sobre o “estado da saúde” mostram um triste panorama nas organizações de saúde de nosso meio, salvo algumas relevantes exceções. Nos serviços de saúde, essa intenção humanizadora se traduz em diferentes proposições: melhorar a relação médico-paciente; organizar atividades de convívio, amenizadas e lúdicas como as brinquedotecas e outras ligadas às artes plásticas, à música e ao teatro; garantir acompanhante na internação da criança; implementar novos procedimentos na atenção psiquiátrica, na realização do parto – o parto humanizado e na atenção ao recém-nascido de baixo peso – programa da mãe-canguru; amenizar as condições do atendimento aos pacientes em regime de terapia intensiva; lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 28 denunciar a “mercantilização” da medicina; criticar a “instituição total” e tantas outras proposições (PUCCINI; CECÍLIO, 2004). No campo das políticas públicas de saúde, humanização diz respeito à transformação dos modelos de atenção e de gestão nos serviços e sistemas de saúde, indicando a necessária construção de novas relações entre usuários e trabalhadores e destes entre si. A humanização em saúde volta-se para as práticas concretas comprometidas com a produção de saúde e produção de sujeitos (CAMPOS, 2000), de tal modo que atender melhor o usuário se dá em sintonia com melhores condições de trabalho e de participação dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde (princípio da indissociabilidade entre atenção e gestão). Este voltar-se para as experiências concretas se dá por considerar o humano em sua capacidade criadora e singular inseparável, entretanto, dos movimentos coletivos que o constituem. Orientada pelos princípios da transversalidade e da indissociabilidade entre atenção e gestão, a humanização se expressa a partir de 2003 como Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2004). Como tal, compromete- se com a construção de uma nova relação, seja entre as demais políticas e programas de saúde, seja entre as instâncias de efetuação do Sistema Único de Saúde (SUS), seja entre os diferentes atores que constituem o processo de trabalho em saúde. O aumento do grau de comunicação em cada grupo e entre os grupos (princípio da transversalidade) e o aumento do grau de democracia institucional por meio de processos congestivos da produção de saúde e do grau de corresponsabilidade no cuidado são decisivos para a mudança que se pretende (PEREIRA; BARROS, 2009). Transformar práticas de saúde exige mudanças no processo de construção dos sujeitos dessas práticas. Somente com trabalhadores e usuários protagonistas e corresponsáveis é possível efetivar a aposta que o SUS faz na universalidade do acesso, na integralidade do cuidado e na equidade das ofertas em saúde. Por isso, falamos da humanização do SUS (HumanizaSUS) como lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 29 processo de subjetivação que se efetiva com a alteração dos modelos de atenção e de gestão em saúde, isto é, novos sujeitos implicados em novas práticas de saúde. Pensar a saúde como experiência de criação de si e de modos de viver é tomar a vida em seu movimento de produção de normas e não de assujeitamento a elas. Podemos, então, definir humanização como a valorização dos processosde mudança dos sujeitos na produção de saúde. Mas, como surgiu? Qual a necessidade dessa, digamos, reinvenção da humanização? Nos anos 90, o direito à privacidade, a confidencialidade da informação, o consentimento em face de procedimentos médicos praticados com o usuário e o atendimento respeitoso por parte dos profissionais de saúde ganham força reivindicatória orientando propostas, programas e políticas de saúde. Com isto veio se configurando um “núcleo do conceito de humanização cuja ideia é a de dignidade e respeito à vida humana, enfatizando-se a dimensão ética na relação entre pacientes e profissionais de saúde” (VAITSMAN; ANDRADE, 2005, p. 608). Cresce o sentido que liga a humanização ao campo dos direitos humanos, principalmente aos direitos dos usuários, valorizando sua inserção como cidadãos de direitos. As alianças entre os movimentos de saúde e os demais movimentos sociais, como por exemplo, o feminismo, desempenham aí papel fundamental na luta pela garantia de maior equidade e democracia nas relações. A XI Conferência Nacional de Saúde (CNS) que aconteceu em 2000, tendo como título “Acesso, qualidade e humanização na atenção à saúde com controle social”, procurou interferir nas agendas das políticas públicas de saúde. De 2000 a 2002, o Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar (PNHAH) iniciou ações em hospitais com o intuito de criar comitês de humanização voltados para a melhoria na qualidade da atenção ao usuário e, mais tarde, ao trabalhador. Tais iniciativas encontravam um cenário ambíguo em que a humanização era reivindicada pelos usuários e alguns trabalhadores e, por vezes, secundarizada por gestores e profissionais de saúde. Por um lado, os lazar Realce lazar Realce 30 usuários reivindicam o que é de direito: atenção com acolhimento e de modo resolutivo; os profissionais lutam por melhores condições de trabalho. Por outro lado, os críticos às propostas humanizantes no campo da saúde denunciavam que as iniciativas em curso se reduziam, grande parte das vezes, a alterações que não chegavam efetivamente a colocar em questão os modelos de atenção e de gestão instituídos (BENEVIDES; PASSOS, 2005). Entre os anos 1999 e 2002, além do PNHAH, algumas outras ações e programas foram propostos pelo Ministério da Saúde voltados para o que também foi definindo-se como campo da humanização. Pereira e Barros (2009) destacam: a instauração do procedimento de Carta ao Usuário (1999); o Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares (PNASH – 1999); o Programa de Acreditação Hospitalar (2001); o Programa Centros Colaboradores para a Qualidade e Assistência Hospitalar (2000); o Programa de Modernização Gerencial dos Grandes Estabelecimentos de Saúde (1999); o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (2000); a Norma de Atenção Humanizada de Recém-Nascido de Baixo Peso – Método Canguru (2000), dentre outros. Como inferem Benevides e Passos (2005), ainda que a palavra humanização não apareça em todos os programas e ações e que haja diferentes intenções e focos entre eles, podemos acompanhar a relação que se vai estabelecendo entre humanização qualidade na atenção-satisfação do usuário. Com estas direções foram definidos norteadores para a Política Nacional de Humanização (Brasil, 2004). Atualmente, a humanização enquanto política pública de saúde, vem-se afirmando como criação de espaços/tempos que alterem as formas de produzir lazar Realce 31 saúde, tomando como princípios o aumento do grau de comunicação entre sujeitos e equipes (transversalidade), assim como a inseparabilidade entre a atenção e a gestão. Este movimento se faz com sujeitos que possam exercer sua autonomia de modo acolhedor, corresponsável, resolutivo e de gestão compartilhada dos processos de trabalho. Grosso modo, a Política Nacional de Humanização nasceu como forma de oposição à violência institucional existente nos hospitais brasileiros, e isso se concretiza com atos em que se nega a subjetividade dos sujeitos e a sua completude, quando lhes reduzem a meros objetos. Desta forma, humanizar é modificar o modo de se fazer e produzir assistência hospitalar. É modificar toda a sua estrutura (RODRIGUES, 2013). Quando um sujeito é hospitalizado ocorre uma ruptura em sua vida normal. Ele se torna vulnerável em todos os aspectos e sentidos. Medo, angústia e ansiedade são apenas alguns dos sentimentos acometidos quando da hospitalização e tratamento. Evidente que existem vários procedimentos invasivos que lhe causam esses sentimentos, além da dor quando acometido de doença. No entanto, se bem feita e acompanhada a sua anamnese, parte desses sentimentos pode ser transformada em cuidado, atenção e contribuir para uma relação mais agradável entre profissionais e pacientes. Ou seja, se os profissionais conhecerem a história do paciente e tratá-lo com os cuidados que o ser humano merece, as chances de recuperação, pelo menos do emocional, serão bem maiores. O que vinha acontecendo, de acordo com o modelo filantrópico no qual se baseou a rede hospitalar brasileira, em linhas gerais, era o descaso com a população de maneira geral, além de falta de estrutura e recursos humanos e técnicos. Passamos por uma fase, no século XIX, em que hospital significava local de morrer. Rego (1983) conta que o período que compreende fins do século XIX e começo do século XX fora caracterizado pelo alto índice de óbitos que ocorriam nos hospitais, devido à precária infraestrutura e conhecimentos médicos precários, tanto que o hospital ficara conhecido e assimilado pela população como lugar destinado a morrer, deste cenário nasce o que mais tarde seria conhecido lazar Realce lazar Realce 32 como o hospital privado, pois diante de tantos acontecimentos médicos instituíram “casas de saúde” uma espécie de hospital nas suas próprias residências se contrapondo ao sistema hospitalar vigente visto como “antecâmara da morte”. Fazendo um recorte no tempo, chegamos à Constituição Federal de 1988. A saúde passa a ser dever do Estado e nasce o Sistema Único de Saúde (SUS), que pretendia oferecer saúde a todos os brasileiros, sem distinção de qualquer gênero, que ofereceria saúde não só curativa mais pautada sobre os eixos, promoção que busca eliminar ou controlar as causas das doenças, proteção que procura prevenir riscos e exposições das doenças atuando diretamente na vida das pessoas e, por fim, a recuperação que são as ações que evitam mortes e sequelas quando já estão com o patógeno instalado (MELLO, 2008). A criação do SUS marcou a década de 80 numa proposta de oferecer a população brasileira saúde de qualidade, pautada nos princípios de integralidade, universalidade e equidade. Já os anos 90, mostraram as dificuldades em se implantar o SUS e com elas cresceram as críticas, a desumanização e impessoalidade da atenção à saúde (JUNGES; DODE, 2009 apud RODRIGUES, 2013). Desde a criação e implantação do SUS, existem várias criticas à sua metodologia, prática e execução. Críticas ao atendimento desumano, à falta de recursos necessários para os procedimentos mais básicos, infraestrutura precária, precariedade em recursos humanos e técnicos, à baixa remuneração, à equipe hospitalar (BRASIL, 2001). Assim, no ano 2000, repetindo, na XI Assembleia Nacional de Saúde, a humanização foi apontada como uma necessidade para que o SUS funcione como proposto, ao mesmo tempo em que representa um grande desafio na sua implantação, pois humanizar equivale à mudança, não somente no corpo técnico, mas mudanças organizacionais, humanizar é mudar a forma de se promover saúde, é mudar o rosto do hospital enquanto instituição (RIOS, 2009). São princípios norteadores da PNH: 1) Valorização das dimensões subjetiva e social em todas as práticas de atenção e gestão no SUS, fortalecendoo compromisso com os direitos do lazar Realce lazar Realce 33 cidadão, destacando-se o respeito às questões de gênero, etnia, raça, orientação sexual e às populações específicas (índios, quilombolas, ribeirinhos, assentados, entre outros). 2) Fortalecimento de trabalho em equipe multiprofissional, fomentando a transversalidade e a grupalidade. 3) Apoio à construção de redes cooperativas, solidárias e comprometidas com a produção de saúde e com a produção de sujeitos. 4) Construção de autonomia e protagonismo de sujeitos e coletivos implicados na rede do SUS. 5) Corresponsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e de atenção. 6) Fortalecimento do controle social com caráter participativo em todas as instâncias gestoras do SUS. 7) Compromisso com a democratização das relações de trabalho e valorização dos profissionais de saúde, estimulando processos de educação permanente. A PNH (2004, p. 10) estabeleceu as seguintes metas a serem consolidadas ao longo de sua implementação que não nos cabe no momento analisar e criticar se foram ou não atingidas. 1. Reduzir as filas e o tempo de espera com ampliação do acesso e atendimento acolhedor e resolutivo baseados em critérios de risco. 2. Todo usuário do SUS saberá quem são os profissionais que cuidam de sua saúde, e os serviços de saúde se responsabilizarão por sua referência territorial. 3. As unidades de saúde garantirão as informações ao usuário, o acompanhamento de pessoas de sua rede social (de livre escolha) e os direitos do código dos usuários do SUS. 4. As unidades de saúde garantirão gestão participativa aos seus trabalhadores e usuários, assim como educação permanente aos trabalhadores. lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 34 Resumindo, as diretrizes da PNH têm seu alicerce no tripé – usuário, funcionário e gestor – para construção da “Qualidade de Vida” na integralidade humana. Vale guardar... As ações de humanização englobam muitas e diversificadas práticas profissionais que vêm sendo introduzidas no tratamento de pessoas hospitalizadas (a psicologia, a terapia ocupacional, a arteterapia, a contação de histórias, a arte do palhaço, as artes plásticas, o toque terapêutico, a massoterapia, entre outros) (BARAÚNA, 2007). Nas ações da humanização, procura-se resgatar o respeito à vida humana, a nossa e a do paciente. Mais do que isso, humanizar é adotar uma prática na qual o enfermeiro, o profissional que cuida da saúde do próximo, o pedagogo, enfim, toda a equipe multiprofissional do hospital, encontre a possibilidade de assumir uma posição ética de respeito ao outro, de acolhimento do desconhecido, do imprevisível, do incontrolável, do diferente e singular, reconhecendo os seus limites (CEMBRANELLI, 2007). Quando falamos, portanto, em “humanização do atendimento”, não falamos apenas em resgatar o mais bonito do humano ou o quanto somos “maravilhosos”, mas resgatar-nos de uma forma mais inteira, mais coerente em todas essas nossas dimensões da comunicação. Temos que ser capazes de não ficar imaginando que “em algum lugar do planeta” nos comunicaríamos muito bem, mas sim entendermos que a nossa habilidade de comunicação passa pela verdade de sermos capazes de nos relacionar com quem existe à nossa volta; que as pessoas que nos rodeiam são os nossos professores de comunicação, e que melhorar a nossa comunicação significa conquistar o melhor de nós mesmos, significa colocarmos a atenção em dimensões que, muitas vezes, não a pomos (SILVA, 2007). De acordo com Brasil (2004), a humanização em hospitais e outras unidades de saúde envolve essencialmente o trabalho conjunto de diferentes profissionais, de toda a equipe. O trabalho interdisciplinar pode favorecer a uma multiplicidade de enfoques e alternativas para a compreensão de aspectos que lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce lazar Realce 35 estão envolvidos no atendimento ao paciente. Isto tudo pode colaborar para o estabelecimento de uma nova cultura de respeito e valorização da vida humana no atendimento ao paciente. É necessário mudar a forma como essas instituições se posicionam frente ao seu principal objeto de trabalho – a vida, o sofrimento e a dor de um indivíduo fragilizado pela doença. De nada valerão os esforços para o aperfeiçoamento gerencial, financeiro e tecnológico das organizações de saúde, pois a mais extraordinária tecnologia, sem ética, sem delicadeza, sem respeito, não produz bem-estar. Muitas vezes, desertifica o homem (BRASIL, 2004). lazar Realce 36 UNIDADE 4 – A GESTÃO DOS RESÍDUOS DOS SERVIÇOS DE SAÚDE – RSS Vamos falar dos resíduos de saúde, mas não custa lembrar que resíduos engloba uma gama grande de produtos, coisas, restos de alimentos, vasilhames, papel, papelão e outros que consideramos lixo. Genericamente, dizemos que lixo é o conjunto de resíduos sólidos resultantes das atividades humanas, entretanto, não podemos esquecer que o que é lixo para uns pode ser alimento para outros. Antes de partirmos para os resíduos de saúde, cabe ainda fazermos um alerta para nós mesmos: para o fato de que nunca na história da humanidade se produziu tanto lixo como nesse século XXI. Desperdícios de um lado, utilização irracional dos recursos da natureza de outro lado vão nos custar muito caro, essa é a verdade! 4.1 Os Resíduos dos Serviços de Saúde – RSS Os resíduos sólidos dos serviços de saúde (RSSS), apesar de representarem uma pequena parcela da totalidade de resíduos sólidos gerados no meio urbano, cerca de 1%, oferecem um preocupante risco sanitário e ambiental perante um gerenciamento inadequado, pois são possíveis fontes de propagação de doenças, que podem contribuir para o aumento da incidência de infecção hospitalar, além de apresentarem um risco ocupacional intra e extraestabelecimento de saúde, principalmente em relação aos RSSS perfurocortantes acondicionados de maneira incorreta (SCHNEIDER; DUARTE; ORLANDIN, 2001 apud SALES et al., 2009; SILVA; HOPPE, 2005). Os RSSS são definidos como aqueles resultantes de atividades exercidas por prestadores de assistência médica, odontológica, laboratorial, farmacêutica e instituições de ensino e pesquisa médica relacionados tanto à saúde humana quanto veterinária que, por suas características, necessitam de processos diferenciados em seu manejo, exigindo ou não tratamento prévio à sua disposição final (SILVA; HOPPE, 2005; BRASIL, 2005). 37 A normatização do gerenciamento dos RSSS é regulada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), através da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 306/04, e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a Resolução n° 358/05, que definiram as diretrizes sobre o gerenciamento dos RSSS, considerando princípios da biossegurança, preservação da saúde pública e do meio ambiente. Além disso, também estabeleceram a atual classificação dos RSSS em cinco grupos principais: Grupo A – resíduos com risco biológico; Grupo B – resíduos com risco químico; Grupo C – rejeito radioativo; Grupo D – resíduos similares ao doméstico; Grupo E - resíduos perfurocortantes. O gerenciamento dos resíduos é dividido em manejo interno e manejo externo ao estabelecimento de saúde (SALES et al., 2009). De maneira simplificada, os resíduos dos serviços de saúde compreendem todos os resíduos gerados nas instituições destinadas à preservação da saúde da população e são assim classificados de acordo com a NBR 12.808 da ABNT: TIPO NOME CARACTERÍSTICA CLASSE A – RESÍDUOS INFECTANTES A.1 Biológicos Cultural, inoculo, mistura de microrganismos e meio de cultura inoculado provenientes de laboratório clínico ou de pesquisa, vacina vencida ou inutilizada, filtro de gases aspirados de áreas contaminadas por agente infectantes e qualquerresíduo contaminado por estes materiais. A.2 Sangue e hemoderivados Sangue e hemoderivados com prazo de validade vencido ou sorologia positiva, bolsa de sangue para análise, soro, plasma e outros subprodutos. A.3 Cirúrgicos, anatomopatológicos e exsudato Tecido, órgão, feto, peça anatômica, sangue e outros líquidos orgânicos resultantes de cirurgia, necropsia e resíduos contaminados por estes materiais. A.4 Perfurantes e cortantes Agulha, ampola, pipeta, lâmina de bisturi e vidro. A.5 Animais contaminados Carcaça ou parte de animal inoculado, exposto a microrganismos patogênicos ou portador de doenças infectocontagiosas, bem como resíduos que tenham estado em contato com eles. A.6 Assistência a pacientes Secreção e demais líquidos orgânicos procedentes de pacientes, bem como os resíduos contaminados por estes materiais, inclusive restos de refeições. 38 CLASSE B – RESÍDUOS ESPECIAIS B.1 Rejeitos radioativos Material radioativo ou contaminado com radionuclídeos, proveniente de laboratório de análises clínicas, serviços de medicina nuclear e radioterapia. B.2 Resíduos farmacêuticos Medicamento vencido, contaminado, interditado ou não utilizado. B.3 Resíduos químicos perigosos Resíduo tóxico, corrosivo, inflamável, explosivo, reativo, genotóxico ou mutagênico. CLASSE C – RESÍDUOS COMUNS C Resíduos comuns São aqueles que não se enquadram nos tipos A e B, por sua semelhança aos resíduos domésticos, não oferecem risco adicional à saúde pública. 4.2 Coleta, tratamento e destinação A higiene ambiental dos estabelecimentos assistenciais à saúde – EAS –, ou simplesmente serviços de saúde (hospitais, clínicas, postos de saúde, clínicas veterinárias, entre outros), é fundamental para a redução de infecções, pois remove a poeira, os fluidos corporais e qualquer resíduo dos diversos equipamentos, dos pisos, paredes, tetos e mobiliário, por ação mecânica e com soluções germicidas. O transporte interno dos resíduos, o correto armazenamento e a posterior coleta e transporte completam as providências para a redução das infecções (MONTEIRO et al., 2001, p. 80). Sobre as áreas hospitalares, estas são classificadas em três categorias: 1. Áreas críticas: que apresentam maior risco de infecção, como salas de operação e parto, isolamento de doenças transmissíveis, laboratórios, entre outras. 2. Áreas semicríticas: que apresentam menor risco de contaminação, como áreas ocupadas por pacientes de doenças não-infecciosas ou não- transmissíveis, enfermarias, lavanderias, copa, cozinha, entre outras. 3. Áreas não-críticas: que teoricamente não apresentam riscos de transmissão de infecções, como salas de administração, depósitos, entre outras (MONTEIRO et al., 2001). 39 Existem regras a seguir em relação à segregação (separação) de resíduos infectantes do lixo comum, nas unidades de serviços de saúde, quais sejam: todo resíduo infectante, no momento de sua geração, tem que ser disposto em recipiente próximo ao local de sua geração; os resíduos infectantes devem ser acondicionados em sacos plásticos brancos leitosos, em conformidade com as normas técnicas da ABNT, devidamente fechados; os resíduos perfurocortantes (agulhas, vidros, entre outros) devem ser acondicionados em recipientes especiais para este fim; os resíduos procedentes de análises clínicas, hemoterapia e pesquisa microbiológica têm que ser submetidos à esterilização no próprio local de geração; os resíduos infectantes compostos por membros, órgãos e tecidos de origem humana têm que ser dispostos, em separado, em sacos plásticos brancos leitosos, devidamente fechados; os resíduos infectantes e especiais devem ser coletados separadamente dos resíduos comuns. Os resíduos radioativos devem ser gerenciados em concordância com resoluções da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN; os resíduos infectantes e parte dos resíduos especiais devem ser acondicionados em sacos plásticos brancos leitosos e colocados em contêineres basculáveis mecanicamente em caminhões especiais para coleta de resíduos de serviços de saúde. Tais resíduos representam no máximo 30% do total gerado. São muitas as tecnologias para tratamento de resíduos de serviços de saúde. Até pouco tempo, a disputa no mercado de tratamento de resíduos de serviços de saúde era entre a incineração e a autoclavagem, já que, em muitos países, a disposição em valas sépticas não é aceita (MONTEIRO et al., 2001). Recentemente, com os avanços da pesquisa no campo ambiental e a maior conscientização das pessoas, os riscos de poluição atmosférica advindos 40 do processo de incineração fizeram com que este processo tivesse sérias restrições técnicas e econômicas de aplicação, devido à exigência de tratamentos muito caros para os gases e efluentes líquidos gerados, acarretando uma sensível perda na sua parcela de mercado (MONTEIRO et al., 2001). Os processos comerciais disponíveis que atendem às premissas fundamentais são a incineração (de grelha fixa ou de leito móvel), fornos rotativos, pirólise, autoclavagem, micro-ondas, radiação ionizante, desativação eletrotérmica e tratamento químico. O único processo de disposição final para esse tipo de resíduo é a vala séptica, método muito questionado por grande número de técnicos, mas que, pelo seu baixo custo de investimento e de operação, é o mais utilizado no Brasil. A rigor, uma vala séptica é um aterro industrial Classe II, com cobertura diária dos resíduos e impermeabilização superior obrigatória, onde não se processa a coleta do percolado (MONTEIRO et al., 2001, p. 192). 4.3 Os principais riscos dos resíduos de saúde Os resíduos de serviços de saúde apresentam riscos que, se bem gerenciados, não resultam em danos à saúde pública e ao meio ambiente. Assim como os resíduos gerados pela comunidade, o potencial de risco dos RSS aumenta quando os mesmos são manuseados de forma inadequada ou não são apropriadamente acondicionados e descartados, especialmente em situações que favorecem a penetração de agentes de risco no organismo. Os principais riscos a que os trabalhadores estão sujeitos são: a) Risco biológico Considera-se risco biológico a probabilidade da ocorrência de um evento adverso em virtude da presença de um agente biológico. Os pré-requisitos necessários para o desenvolvimento de uma doença infecciosa são: presença do agente infeccioso; número suficiente do agente; hospedeiro suscetível; porta de entrada do agente no hospedeiro, que deve estar presente ou ser criada. 41 Na literatura, há registros de muitos acidentes envolvendo resíduos perfurocortantes (criação da porta de entrada) com sangue e outros fluidos orgânicos (possíveis presença e concentração do agente infectante), envolvendo tanto o pessoal da atenção à saúde como o da limpeza e coleta dos resíduos, muitas vezes, com baixa resistência e sem imunização. Para diminuir o risco de transmissão de doenças por sangue e fluidos orgânicos, devem-se: não reencapar, entortar, quebrar ou retirar manualmente as agulhas da seringas; colocar os recipientes coletores para o descarte de material perfurocortante próximo ao local onde é realizado o procedimento; descartar todo resíduo perfurocortante e abrasivo, inclusive os que não foram usados, em recipiente exclusivo, resistente à perfuração e com tampa, sem ultrapassar o limite de 2/3 da capacidade total; fornecer equipamentos de proteção individual ao pessoal da higienização e coleta dos resíduos, de acordo com o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA – do estabelecimento, e exigir o seu uso correto (atentar para a possibilidade de haver agulha dispersa no chão); seguir as orientações do PGRSS do estabelecimento. b) Risco físico Exposição dos profissionais a agentes físicos como, por exemplo, a temperaturas extremas durante
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