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AULA 1 ANTROPOSOFIA APLICADA À SAÚDE Prof.ª Iracema de Almeida Benevides 2 CONVERSA INICIAL O presente curso é dirigido a profissionais de saúde, e tem como objetivo apresentar uma visão global da Medicina Antroposófica como um sistema médico complexo, que integra o panorama das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS). Nessas cinco aulas interativas, o aluno irá: conhecer as principais características do sistema da Medicina Antroposófica, com histórico e pioneiros no mundo e no Brasil; conhecer os conceitos básicos que orientam o sistema e os conceitos de saúde e doença nessa perspectiva; compreender o escopo de atuação das diferentes profissões da saúde orientadas pela Antroposofia, com doferentes formações; compreender como a Medicina Antroposófica pode complementar a abordagem convencional em algumas situações de saúde; conhecer os princípios da Medicina Antroposófica para o bem-estar e a melhoria da qualidade de vida. O sistema médico-terapêutico que será apresentado nesse curso foi desenvolvido na Europa no início do século XX, como uma ampliação da abordagem convencional em saúde, tendo como pilares a abordagem individualizada de cada paciente, considerando sua totalidade: constituição física, história de vida, desenvolvimento e saúde emocional e mental, relação com religiosidade e espiritualidade, além da sua relação com a natureza. Ou seja, é uma abordagem cuja visão considera o ser humano em sua integralidade, como corpo, alma e espírito. O termo Medicina e Terapias Antroposóficas (MTA) refere-se a profissões da saúde e abordagens terapêuticas que foram desenvolvidas com base na Antroposofia. Desde o seu surgimento, esse sistema adota um modelo de atuação multiprofissional. Além da medicina, outras profissões da saúde que foram ampliadas são: enfermagem, odontologia, nutrição e psicologia. A terapia artística antroposófica, a massagem rítmica, a euritmia, a quirofonética, a reorganização neurofuncional e o aconselhamento biográfico são exemplos de 3 abordagens novas, inspiradas nesse conhecimento. A nomenclatura PICS corresponde, no Brasil, ao termo, recorrente na literatura internacional, Traditional Medicine/Complementar and Alternative Medicine (TM/CAM), que recentemente foi alterado para Traditional Complementary and Integrative Medicine (TCIM), pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sobre as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS), é importante ressaltar que abrangem os sistemas médicos complexos e os recursos terapêuticos. A sociológica Madel Luz (2000; 2005), desenvolveu o conceito de Racionalidades Médicas, e descreveu o fenômeno da “crise da saúde”, como um dos fatores relacionados ao aumento da demanda pelas medicinas integrativas e complementares. Por considerarem o indivíduo em sua totalidade, as abordagens integrativas e complementares são consideradas mais eficientes, gerando satisfação e bem-estar. Barros (2000; 2008) pesquisou os referenciais que compõem o modelo integrativo de cuidados em saúde, destacando que são fundamentados no vínculo e na empatia, no conceito de que o paciente deve estar no centro do cuidado, em uma visão ampliada do processo de saúde e doença, com base em evidências científicas. As profissões da saúde estão construídas sobre o modelo biomédico, que valoriza a dimensão biológica dos fenômonos, a fragmentação e a especialização do conhecimento. TEMA 1 – ORIGENS DA MEDICINA ANTROPOSÓFICA A palavra antroposofia tem origem no idioma grego e significa “sabedoria sobre o ser humano”. Esse nome foi atribuído por Rudolf Steiner (1861-1925), filósofo e professor austríaco que desenvolveu as bases desse conhecimento e movimento cultural e científico do século XX, que busca integrar ciência, arte e espiritualidade. Ele propôs iniciativas para vários campos de atuação, entre eles educação, medicina, arquitetura e agricultura. Steiner conferiu ênfase especial ao desenvolvimento de um novo olhar para as ciências, propondo um paradigma que revitalizasse o racionalismo dominante no pensamento europeu a partir do século XVI. Um importante capítulo nessa trajetória de estudos do filósofo, que acompanha o método de pensamento da Antroposofia até os dias de hoje, é a 4 fenomenologia proposta por Goethe (Johann Wolfgang von Goethe, 1749-1832). Além de poeta e escritor, Goethe era também cientista natural, e seus estudos sobre a natureza apontavam para as metamorfoses presentes nas espécies vegetais e animais. Observar a natureza com o olhar desenvolvido por Goethe é um recurso muito utilizado para o estudo das plantas medicinais, por exemplo. Na filosofia, Steiner destacava a riqueza de possibilidades presentes no pensamento humano, e sobretudo a liberdade humana. Os seres humanos são parte integrante da natureza, porém estão em uma condição diferente de minerais, vegetais e animais, por seu pensar, sentir e agir. Essa qualidade do pensar sobre si e sobre o mundo é resultado da presença, em nós, de uma essência (espiritual) denominada “Eu” humano, responsável também pela nossa individualidade. Em relação ao sentir, outro aspecto de grande relevância para a Antroposofia é a inclusão das diferentes formas de arte na vida humana: desenho, pintura, música, canto, teatro, movimentos. A arte fala diretamente à nossa alma, nosso sentir, nossas emoções. Uma forma artística especialmente desenvolvida no âmbito da Antroposofia é a Euritmia. Em relação ao “agir”, Steiner ressaltou que o mais importante é que o conhecimento pudesse influenciar áreas práticas e campos do conhecimento. Assim, diversos saberes foram influenciados pela Antroposofia: a Pedagogia Waldorf, a Agricultura Biodinâmica e a Medicina Antroposófica são apenas algumas dessas áreas. Figura 1 – Steiner e Wegman Crédito: CC/PD. 5 Na Medicina, o desenvolvimento da “arte médica ampliada pela Antroposofia” ou Medicina Antroposófica, origina-se do trabalho conjunto da médica holandesa Ita Wegman (1876 – 1943) com o doutor Rudulf Steiner. Os conceitos e princípios da Medicina Antroposófica serão desenvolvidos mais adiante. Ita Wegman foi a médica responsável pelo desenvolvimento das bases da Medicina Antroposófica em conjunto com Steiner. Escreveram juntos o livro Elementos fundamentais para uma ampliação da arte de curar. Propôs aplicações para enfermagem, massagem e diversas terapias antroposóficas. Saiba mais Para conhecer um resumo das biografias de Rudolf Steiner e Ita Wegman, acesse: HISTÓRIA e fundadores. ABMA – Associação Brasileira de Medicina Antroposófica. Disponível em: <http://abmanacional.com.br/institucional/a- medicina-antroposofica/historia-e-%20fundadores/>. Acesso em: 1 ago. 2019. TEMA 2 – A TRAJETÓRIA DA MEDICINA ANTROPOSÓFICA NO BRASIL A medicina antroposófica teve seu início, no Brasil, em 1956, na cidade de São Paulo (SP), pelas mãos de Gudrun Kröekel Burkhard, médica brasileira formada pela Universidade de São Paulo (USP). Ela conheceu a Antroposofia por meio de seu pai, Walter Kröekel, que era terapeuta naturista. Gudrun realizou sua formação nessa abordagem em uma instituição de medicina antroposófica pioneira, e posicionada entre as mais prestigiosas da Europa, a Clínica Ita Wegman (atualmente Clínica Arlesheim), situada na Suiça. Ela é autora de vários livros, dentre eles Novos Rumos da Alimentação, Tomar a vida nas próprias mãos e Bases Antroposóficas da Metodologia Biográfica. Nos primeiros anos, a Dra. Gudrun atendia seus pacientes no Instituto Weka, fundado e dirigido por seu pai, Walter Krökel. Atuava como médica generalista, ampliando com a prática da Medicina Antroposófica. Em paralelo, atuou como médica escolar na escola Waldorf Higienópolis (atualmente Escola Waldorf Rudolf Steiner). Nesse período os medicamentos antroposóficos ainda não eram produzidos no país e ospacientes os importavam da Alemanha ou Suíça. Atendia também pacientes oncológicos que desejavam utilizar o Viscum album como tratamento complementar do câncer. Algumas 6 vezes viajou para outros estados como no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e, também, outros países como o Chile, para tratar de pacientes com câncer. (Benevides, 2017) Em 1969, com o apoio da Associação Beneficente Tobias, a Dra. Gudrun inaugura a primeira clínica de Medicina Antroposófica no Brasil, a Clínica Tobias, situada no bairro Alto da Boa Vista, na capital de São Paulo, com oito leitos para internação. A Clínica Tobias passa a congregar um significativo número de médicos antroposóficos, além de profissionais das terapias antroposóficas (terapia artística, massagem rítmica, euritmia e outras): Cresce o anseio pela expansão do trabalho multidisciplinar e, em 1967, após esforços para aquisição do terreno no Alto da Boa Vista, em São Paulo, é colocada a Pedra Fundamental da Clínica Tobias. Esse impulso é concomitante com a criação da Associação Beneficente Tobias, que vem a ser a proprietária e mantenedora do patrimônio. A inauguração da clínica acontece na época de Pentecostes de 1969. (Benevides, 2017) Os cursos para médicos, no país, começaram a abordar a prática clínica antroposófica no final dos anos 1980, com a vinda do Dr. Otto Wolff, médico antroposófico alemão. Houve então a criação da Associação Brasileira de Médicos Antroposóficos (ABMA), incentivada pela também médica alemã Dra. Rita Leroi, durante sua segunda visita a São Paulo, em 1982. Nos anos 1990, houve ampliação com a instituição de cursos livres, porém com carga horária compatível com cursos de pós-graduação lato sensu em diferentes regiões. Conforme podemos ler no capítulo em Luz e Afonso (2014), a formação médica é a primeira formação a ser estruturada no Brasil, tendo a ABMA como entidade responsável por esse processo. Além da formação médica, outras formações são impulsionadas, como é o caso da Terapia Artística Antroposófica, da Massagem Rítmica, além de Psicologia e Odontologia, para citar alguns exemplos. Futuramente vamos abordar a formação nas Terapias Antroposóficas e demais profissões da saúde ampliadas pela Antroposofia. TEMA 3 – TRAJETÓRIA DA MEDICINA ANTROPOSÓFICA NO CONTEXTO SOCIAL A trajetória da MA no âmbito social e comunitário está descrita por Benevides (2018), que situa seu início nos anos 1970, na favela Monte Azul em 7 São Paulo (SP), com ações de atenção primária a saúde (APS) realizadas por profissionais com perfil generalista: O ambulatório médico terapêutico da Associação Comunitária Monte Azul contribuiu para inspirar e formar muitos profissionais de saúde, médicos e terapeutas, adaptando a MTA ao público com poucos recursos financeiros. O Ambulatório passou por muitos processos de aprimoramento e mantém-se ativo como espaço de formação prática, acolhendo profissionais das diversas formações antroposóficas na área da saúde e também profissionais das PICS da Secretaria Municipal de Saúde do município. Um marco histórico no processo de institucionalização da MA foi a realização de concursos públicos para médicos antroposóficos no município de Belo Horizonte, nos anos de 1994 e 1996 no PRHOAMA – Programa de Homeopatia, Acupuntura e Medicina Antroposófica, sendo criadas quatro vagas para médicos antroposóficos. A experiência no município de São João Del Rei, em Minas Gerais, iniciada também na década de 1990 tem sido um importante destaque da MA no âmbito da APS no SUS, tendo alcançado a criação do Centro de Referência de Medicina Antroposófica, desenvolvido e implementado um modelo próprio de aplicação de terapias externas antroposóficas, viabilizado a assistência farmacêutica e atividades de plantio das espécies medicinais, além de um marcante trabalho de envolvimento comunitário através da Associação Comunitária Yochanan. Outro importante espaço pioneiro de prática da Medicina Antroposófica com caráter iminentemente público e social é a iniciativa mantida pela Associação Antroposófica Estada Real (AAER), fundada em 2005 no município de Matias Barbosa (MG): o Ambulatório de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (APICS). TEMA 4 – A MEDICINA ANTROPOSÓFICA NA PNPIC E NO SUS Em 2006, a Medicina Antroposófica foi incluída na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), publicada por meio da Portaria n. 971/2006, no formato de Observatório das experiências de MA no SUS, após aprovação da Portaria n. 1.600/2006, que posteriormente passou a ser considerada como parte integrante da PNPIC. Citando Benevides (2018): A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) foi criada por meio da Portaria nº 971 em maio de 2006 contemplando a Fitoterapia, a Homeopatia e a Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura. O Termalismo e a Crenoterapia foram incluídos em um segundo momento, da mesma forma que a MA, contemplada na forma de Observatório das experiências de MA no SUS em uma portaria específica, nº 1.600/2006, passando a ser considerada como parte integrante da PNPIC. [...] 8 Entre os códigos que a Portaria nº 85/2006 criou, o código 134-007 possibilita a identificação de serviços com PICS orientadas pela Antroposofia no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Isso representou um avanço quanto ao registro da presença desse tipo de serviço e dos profissionais em atuação nos mesmos. Após doze anos de PNPIC, em março de 2018 houve um avanço normativo com a publicação da portaria GM 702 de 21 de março de 2018, que institucionalizou dez novas abordagens de PICS no SUS, alterando a inserção original do Termalismo Social / Crenoterapia e da Medicina Antroposófica / Antroposofia Aplicada à Saúde. A condição de Observatório definida na Portaria n. 1600 de 2006 foi substituída por uma inserção plena, que descreve diversas modalidades e abodagens incluídas no sistema da Medicina Antroposófica: terapia medicamentosa, Terapias Externas Antroposóficas, Banhos Terapêuticos (esses dois últimos são parte da Enfermagem Antroposófica), Massagem Rítmica, Terapia Artística Antroposófica, Euritmia, Quirofonética, Cantoterapia e Aconselhamento Biográfico. Atualmente, é possível registrar as ações do sistema da Medicina Antroposófica nos sistemas de informação do SUS. TEMA 5 – REGULAMENTAÇÃO DOS MEDICAMENTOS ANTROPOSÓFICOS O sistema da Medicina Antroposófica desenvolveu um conceito para a criação de medicamentos, campo da farmácia antroposófica. As substâncias minerais, vegetais e animais são transformadas em medicamento, seguindo protocolos específicos descritos em farmacopeias. A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n. 26/2007, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), contempla o registro de medicamentos dinamizados industrializados homeopáticos, antroposóficos e anti-homotóxicos. Em 2018, a Anvisa atualizou e ampliou a descrição e normatização para os medicamentos antroposóficos por meio dos seguintes instrumentos: RDC 238/18; IN 25/18, IN 26/18 e 27/18. 9 REFERÊNCIAS BARROS, N. F. A Construção da Medicina Integrativa: um desafio para o campo da saúde. São Paulo: Hucitec, 2008. _____. A Construção de novos paradigmas na medicina: a medicina alternativa e a medicina complementar. . In: CANESQUI, A. M. (Org.). Ciências sociais e Saúde para o Ensino Médico. São Paulo: Fapesp, 2000. p. 201-213. BENEVIDES, I. Histórico da Medicina Antroposófica no Brasil: dos primeiros anos até a fundação da ABMA. ABMA – Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, 3 out. 2017. 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