Buscar

XAVIER, Ismail O olhar e a cena - Pt I - A representação clássica, do melodrama à ironia de Hitchcock

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 63 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 63 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 63 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Ismail Xavier 
O olhar e a cena 
\1elodrama, Hof6,wood, Cinema Novo, Nelson R odrigues 
• • Cosac & Naify cmematecabrasileua 
~, 1 ll ',/11 N/11 1 , '1 111 1 
111 !• llldlf 1Vii•1, ,11111 I 
l 1111IPl111 11 ,1111<1 
11/1 \11111 \ IH I I IW 
l )l1qpi1 111u~/lo 
,l ll .' !,ll lrn I IN O 
1111 ... 1,·aç .... o da capa 
RLG INA SILVEIRA 
P,·eparação 
CE CÍLIA OLIVEIRA RAMOS 
Revisão 
FLORENCIA FERRARI 
GIS LAI NE MAR IA DA SI LVA 
Foto do autor 
ELAI NE RAMOS 
As pesqu isas que deram origem a este 
livro receberam o apo io do CNPq 
UNIOADE . ..... f.~ ........ J 
Nº CHr-.. · · •. 
... =l'9 l. 4~09 L 
C\ ~ 
-- ~-. l=;)( 
-ro .... ,~o .~':-\ Gq~~ 
a:., • l. O. ~loG) . ~ )( , .. ! 
~() 3'-\ ~ .. : 
.-:-.',·.~~- o&_ ~·e;· i 
CP0: . . ~3---'f iôj~l 
~-~ - r,~ " J •1111 eoa aa J 
Catal ogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro 
[ Fundação Nacional do Livro] ~1 Xavier, Ismail [l 947l 
I sma il Xavier: O olhar e a cena - Melodrama, Hollywood, 
Cinema Novo, Nelson Rodrigues 
São Paulo : Cosac & Naify, 2003 
384 p., 73 fotogramas 
ISB N 85-75 03-231-3 
1. Ci nema 2. Ci nema brasi leiro e norte-americano 
3. Crít ica 4. Ismail Xavier 
COSAC & NAI FY 
RUA GE NE RAL JARDIM, 770, 2° ANDAR 
01223-010 SÃO PAU LO S P 
Tel [55 lll 3218-1444 
Fax [55 lll 3257-8164 
info@cosacnaify.com.br 
www.cosacnaify.com.br 
Ate nd imento ao professor: [55 ll l 3218-1466 
coo 791 
-~\ -~\ 
1 
·, -
i 
1 
! 
1 
7 Introdução 
Parte I 
A REPRESENTAÇÃO CLÁSSICA, DO MEL ODRAMA 
À IRONIA DE HITCHCOCK 
CAPÍTULO 1 
3 1 Cinema: revelação e engano 
CAP ÍTULO 2 
59 O lugar do crime: a noção clássica de representação e a 
teoria do espetáculo, de Griffith a Hitchcock 
CAPÍTULO 3 
H5 Melodrama ou a sedução da moral negociada 
1 1 
., 
AP ÍTULO 4 
Parábolas cristãs no século da imagem: 
·,t! egoria e melodrama em Hollywood 
1 ·1rte II 
P .LÍTICAS DA REPRESENTAÇÃO: 
"A VIDA COM O ELA É" NO CINEMA E NA TELEVISÃO 
r C AP ÍT U LO Í 
1 1\ 
11 
1 1 \ 
: i n ma político e gêneros tradicionais: 
:, 'for a e os limites da matriz melodramática 
C Al'ÍT 1. 6 
1 ,1 mor·il r ligiosa ao senso-comum pós-freudiano: 
i maµ; ·ns la hist' ria nacional na teleficção brasileira 
1.A l'Í'l'lll .0 7 
N1 •l. ·0 11 llc drigu s no cinema (1952-99): 
, 111 0 1:i ·o ·s 1 · 11111 1 ' r urs 
Parte .111 
O CIN E MA NOVO LÊ NELSON RODRIGUES 
CAP ÍTULO 8 
225 Boca de Ouro: O mito, a mídia, a cena doméstica e a cidade 
CAPÍTULO 9 
2 5 5 A falecida e o realismo a contra pelo de Leon Hirzsman 
CAPÍTULO IO 
285 Pais humilhados, filhos perversos: 
J abor filma Nelson Rodrigues 
CAPÍTULO II 
32 3 Vícios privados, catástrofes públicas: 
a psicologia social de Arnaldo J abor 
365 Sobre o autor 
373 Índice onomástico 
379 Índice de filmes citados 
l 11 trodução 
1,: 1 · 1 i vro reúne textos publicados em ocasiões distintas e com variados 
p1•1> p sitos. No entanto, nele persistem certas interrogações que derivam 
d1 • 1>r·ob lemas enfrentados na crítica dos filmes cuja interpretação se enri-
1p11•n· :_1 partir do cotejo com formas da encenação teatral herdadas pelo 
1 111 (• rn :1. Tem aqui particular relevância a concepção da cena tal como for-
11111 l.1da desde o século XVIII, quando emergiu o drama sério burguês e a 
l1ipn1 \' ' da "quarta parede" foi assumida para valer nos palcos. A leitura 
1111 l'i I ni s . ·e insere, portanto, num horizonte histórico que será objeto de 
, 11 • 11 1 ·s:ío apenas quando necessário, mas haverá sempre, como moldura 
Jl,1' 1,il , 11111 a atenção à forma como operam, na indústria cultural do século 
, 1•1 11 •ro:; como o melodrama e uma geometria do olhar e da cena que 
11 .i , 11,1• ini ·iou com o cinema, mas nele encontrou um ponto de cristaliza-
1, ,111 d1· ·11 >r111 poder na composição do drama como experiência visual. 
p11>j \ l'Í O d·1 imagem na tela consolidou a descontinuidade que separa o 
11 111• 11n d:1 1- r~ nuance e o espaço onde se encontra o espectador, condi-
1,, 1, 1 p,11'. 1 q11 a cena se dê como uma imagem do mundo que, delimitada e 
, 1111 ild11 r:1 la, não apenas dele se destaca mas, em potência, o representa. 
1 l\' ino lo ral, estará aqui em foco a passagem do teatro e da lite-
1 111 1, ,1 "º ·incrn a num sentido amplo que ultrapassa o caso da "adapta-
,, 111 " '1',11 p:1ssag 111 é observada a partir de filmes que se debateram com 
1 11 ,1tll1,•.10 do ·sp tácu1 ilu ionista encontrada no cinema clássico e no 
1, 11111 q11 · o i11 sp ir u. Haverá casos de sintonia com tal tradição e casos de 
I '" 1111" 1·1·í1 ir:1 d i'llll' d la. De qualquer modo, tudo sempre dentro de li-
11111, 111w pr ','t' rv.1111 a luali clacl o lhar /cena, a separação dos terrenos que 
7 
1>n1ni 1e 11111 :1 in 1 ·ri r tação dos filmes apoiada na análise de como intera-
µ; ·111 a 'S I ruLUra dramática, o teor da cena e o lugar do espectador. Desta-
·o I rês pó lo · de atenção. 
Em primeiro lugar, há a questão do olhar e da cena no cinema produ-
zido em Hollywood, posto aqui em confronto com as suas matrizes tea-
trais, notadamente o melodrama do século XIX. Privilegio dois momentos 
desse cinema, o de sua formação e o de seu apogeu, representados por dois 
mestres em situações opostas: D. W. Griffith, a encarnação plena do melo-
drama, e Alfred Hitchcock, a figura da ironia e da autoconsciência radical 
da representação. Focalizo também experiências mais recentes que, embo-
ra mais complexas do que o cinema de Griffith, revelam a continuidade dos 
códigos e dos valores que marcaram o sistema clássico desde sua formação. 
Em segundo lugar, há a questão dos gêneros dramáticos tal como se 
manifesta em exemplos paradigmáticos, de grande eficácia junto ao 
público, extraídos do cinema e da televisão brasileiros. Focalizo um cine-
ma político que incorpora fórmulas da indústria cultural, como é o caso 
de Hector Babenco, e uma teleficção voltada para a representação da his-
tória recente, como o fizeram as minisséries de Gilberto Braga. Esses são 
dois exemplos de representação da experiência social que, ressalvada a 
sua inserção no cinema de "grande público" ou na televisão, colocam o 
problema da relação entre o realismo e as fórmulas do melodrama, seja 
quando estas se manifestam em uma agonia marcada por conflitos irre-
conciliáveis (Babenco ), seja quando elas conformam a comédia românti-
ca como espaço de conciliação (Braga). 
Em terceiro lugar, há o conjunto de ensaios em que examino o vasto 
terreno das adaptações da obra de Nelson Rodrigues para o cinema ao 
longo de quatro décadas. Trata-se da mais significativa experiência den-
tro do eixo das relações entre cinema e literatura dramática no Brasil, país 
em que tais relações não demonstram grande densidade quando obser-
vadas no percurso maior do século xx. Trabalho, portanto, com uma das 
exceções, principalmente em sua expressão numérica: são vinte filmes, de 
1952 a 1999. Um longo percurso, portanto, no qual a variedade de cami-
nhos na leitura de peças e folhetins espelha o confronto de tendências mais 
8 
µ; ·rais que marcou o cinema brasileiro entre os anos 50 e os anos 90. As 
111
estões discutidas nas duas primeiras partes do livro repercutem nesta 
1 •r eira pela observação do confronto entre os filmes que adotam os pa-
cl rões consagrados da indústria cultural (seja Hollywood ou a novela da 
'l'V) e os inseridos no contexto do cinema moderno de autor. Renovam-se 
,1í as tensões entre o realismo, o melodrama e as formas mais irônicas de 
.i propriação dos gêneros tradicionais, pois o cinema, no diálogo com a 
obra do dramaturgo, privilegiou os romances-folhetim, as tragédias cario-
1,,1s ~ as crônicas, afastando-se das peças mais enigmáticas em que se faz 
11 i.1is nítida a distância em face desses pólos mais convencionais da repre-
u-11,ação. Em meu percurso, a ênfase recai sobre a relação entre o Cinema 
N 1,vo e Nelson Rodrigues, um bom laboratório para analisar um exemplo 
d,
1 
r ,tação entre olhar, cena e sociedade, emque se debatem diferentes 
pi 
1
Ií1 i •as da representação que nos dizem muito sobre o processo cultural 
l,1 ,11.; il •iro entre 1960 e 2000. 
11 AI Ci\N E DO DISPOS ITIVO 
t 11111 0 r I :; rva Eric Bentley, o jogo da representação define uma equação 
11 1
1
11
1,na p h qual, dentro de certa moldura, A encarna B para o olhar de e 
( q 11 1, i·siô fora dela). Apresentada desse modo, a equação é simples mas, 
1 111 ,11 1,1 :i ' pção mais ampla, ela dá o tom no contexto contemporâneo, 
111
, i, nll di sp : iti vos que articulam o olhar e a cena vão além do teatro, da 
1 111111
,·.i , da foto grafia, do cinema, do vídeo e dos modos de composição 
1111 1,1 1 i.1. 1-:n v lv m outras formas de relação com o mundo fora de tais 
11111 id111•a. , •o rn as interações e os jogos de poder de grande incidência 
1 111 1111 ,., 1 vida o rdinária. A crescente importância da imagem num amplo 
1 
I " ,
1 11 11 d , ai i vi d ades e relações é parte constitutiva de uma nítida onda 
ili 
1
,.,
1
11·,il i'l., 1<;:Jo eh periência, quando se projeta na cena pública o que 
111 1, · 1» 11., v.i rt·s rvad o à intimidade, e se define um cotidiano pontuado 
I" 111 qt 11, j.'1 ~ • dia .-no ·ticou como "sociedade do espetáculo". A fórmula 
1 11 1
ii
1 11
1,1 p11 r C it y I ,1) rei~ z avançar o debate sobre as implicações po-
ltt li 
I 
il i· .,1 11 vp:1r:1ç10 ' 111 r o ob ·ervador e a performance, quando se 
9 
·,qil u,•.1111 n~ ·11 ·.1 111 0:, d.1 i111.11 \v 111 ço 11H • 1' ·1i r li •. 1-:sse '· 11111 di spwii li vo qu , 
di vid ' a vici a :o ·i:il •n1r ' ~11 o r 'S • obse rvador •s, a )'' nL ·s ·a ri smá1i ·os 
que galvaniza m - e f iéis seguid rc:; scdu,.i los p I glamour e pela ·1[ arên-
cia. Temos aí a tônica dos proces o de criação de imagem na publicidade 
e na campanha eleitoral, e também no que se observa de melodrama e ·i-
mulação nos tafk-shows da TV, num contexto de cultura em que o mundo 
do ser e o da imagem se confundem, consagrando a demanda do olhar 
como subjugação consentida, procurada. A apropriação comercial do Big 
Brother diz respeito a uma versão do panóptico para entretenimento, quan-
do a figura da vigilância contínua e opressiva se traveste de uma amena 
cumplicidade de voyeurs e exibicionistas à cata de fama e de emprego. O 
panóptico, então, se afirma pelo seu avesso e se faz prótese, extensão do 
corpo, invertendo o sentido e a natureza do olhar: do pesadelo da vigilân-
cia (no qual somos objeto do olhar), passamos ao engodo de um "tudo 
ver" (no qual somos sujeitos do olhar), que termina por se mostrar uma 
outra forma de controle, agora feito a partir da superoferta de imagens 
gerada por um sistema que constrói um mundo visível ao alcance do con-
trole-remoto. Tal sistema amplia o meu olhar e me coloca como sujeito 
que aparentemente "tudo percebe" em face dos espetáculos, recolhenclo 
o que suas táticas de ilusão propõem como um mundo de verdade. 
Um ponto a ressaltar diante dessa configuração geral é que a dinâmi-
ca entre olhar e cena na esfera dos meios de comunicação e nas estruturas 
da informação social ( como o telejornalismo) é uma versão mais comr · e-
xa e difusa daquilo que, dentro da sala escura, marcou de forma mais níti-
da a experiência do espectador do filme clássico, do ponto de vista da 
experiência psicológica e da função social de tal dispositivo, ressalvadas 
algumas diferenças que, no fundo, não invalidam o que há de sugestivo 
nessa aproximação. Na análise dos filmes de Hitchcock, percebe-se como 
seus dramas e comédias constroem_ metáforas notáveis referidas a proces-
sos mais gerais da indústria cultural e da esfera pública do século xx. Na 
análise dos filmes brasileiros que destaco neste livro, é também possível 
observar uma discussão sobre os mecanismos da mídia e seu mitos - tema 
recorrente em Babenco, no teatro de Nelson Rodrigues e no cinema que 0 
IO 
1
,1 q11 11 11 l•, 111 11 111, .11111 1t .1111 111 ,1111l•di ,ll;,111 p.11·., 11•,,1.11•q11 ·:10 ·s la i111a •· ·m ' 
l 1111 1111 ,1 li•v, 1111 ,,d ,1• 1H ",l1' livrn , 1• 111 ,, pr ·ll·ns:10 d ' s1il,s1i1uir análi se · mai · 
111 ., , 11 11' d1• 11• 1 ·11 1 111 \0 1111 \'111 sc11 1 ró1, ri o 1 •rr ·no, mas julgando que o 
1,1,.,111 11 1111 d11 1·i11 c111.i il111ni11 a ·0111 ro r a lidútica aspectos essenciais, 
1, ,1, ,
1
111• 1• 11•j. 11 1111~. ,1 r 111 osao q11 ' · ·1·ú im[licadonaestruturados filmes. 
, , 1 11 d1• ,·11.ildo J.1bor, li ú o p r ·ur: do cineasta ao jornalista; e o esti-
1, ,1, 11 ,1 1111 1ii1•,1 110s dú um 'X ·mpl de oh ervação da vida pública e da 
1 
,1111, 1111 111 111 1111 rra nd • 1· at ro. Operação cujo desafio decisivo é definir 
,. 
1
, 111 111 il1•,1111 ,',1i ·o 1u • lá nta de cada conjuntura ou do país em geral. 
•, ,, !1 .1 ll)( l:i 11rna g·1111 a de experiências na sociedade moderna (e pós) 
p
11 
ti , , 1 ,1111 d:1 l' 11I ron ização ci o olhar e da teatralização cio· cotidiano, tais 
1 
I" 111 •1111,1•111 :10 d ·ixam, portanto, de incorporar em seu dinamismo formas 
, 
111
, 1 11111 111 1·: 11n uma xpressão técnica, material e comercial no dispositivo-
' 1
11
, 111 ,1 q11 1· :.d ·m os e tar longe de ser a instância exclusiva do consumo de 
1111 11•t111 , 11 1:1: 1 ides r visto como a mais paradigmática.
1 
O efeito-câmera 
, 111 ,l ,•11 ,1 1111111 ap·n·elho as formas da cultura potencializadora do olhar, e 
,1, 
1
,111,11·i·r1a g ·orn triado ato de criação (ou assunção) de imagem que 
11, ,11•, 1, v1 ·orno con titutivo da identidade, da formação do sujeito: jogo 
,11 , qll' ll1 0.' •m que está implicada a presença (ou projeção imaginária) de 
11111 ,11'11•1,vs , (um espaço, um tempo, um enredo, seres em relação). Nesse 
, 
1
,. 11
111 
dt· inl rações está sempre em pauta a "outra cena", metáfora pela 
'111 ,il ,1 psi "1nálise se apropria do que descreve a experiência teatral para 
11,1 1•1 ,111 d •bate cultural o campo do inconsciente, com suas formulações 
11, q1· 1.10 pr ·sentes nas práticas de leitura da imagem. 
11 ,,ra xistir em sociedade, em especial no império do marketing e da 
, 1,i,1 p1·1 i~·'i , precisamos criar a cena, estar disponíveis diante de um olhar 
1 
1 livrn O cinema e a invenção da vida moderna, Leo Charney e Vanessa Schwartz 
(1,, f"•,) (Sfo Paulo: Cosac & Naify, 2001) evidencia como no final do século XIX se 
l l l'•l 1111i11 so ialmente uma forma do olhar que encontrou no cinema sua expressão 
1 ,1111 ,li •:,<.: 1ue foi, inversamente, alimentada por essa nova técnica do imaginário. 
\ 1
1
,, 1 qu e se ampliou e se complicou no século xx, com a nitidez maior dos fenôme-
111 1 1 k massa e, numa fase seguinte, com o horizonte de co-extensividade entre real 
,, J,,, ,,µ; ·111 , fato e espe~áculo. 
II 
que nos Loma om o i j ' LO, nos oí''r' · 'r ·0 111 0 ' "P LÍ1culo, ·um1 rindo os 
protocolos de sua ge metria e de seu desempenho. Há var iada.- formas 
dessa geometria e de seus componentes, lugares específicos de manifesta-
ção que se mesclam ao mundo prático e se expandem sem fronteiras cla-
ras no dia-a-dia, no núcleo familiar, nos confrontos em sociedade, em 
tudo o que a crítica da cultura já observou sobre o poder, o erotismo e a 
sedução, na esfera pública e na vida privada. 
Diante dessa pletora de espelhos, meu terreno é mais restrito, e 
parte da produção do olhar e da cena em práticas já institucionalizadas 
como lugares de representação. Mesmo aí, a questão da "moldura" (da 
separação dos terrenos) não é tão simples como parece. Começo com um 
exemplo literário que condensa, de forma inspiradora, muitos pontos tra-
tados ao longo do livro no exame dessa constelação envolvendo a narra-
tiva, o teatro, a vida e o cinema. 
O ESPECTADOR REAL E O VIRTU AL UM SIS TE MA DE PRO JEÇÕES 
A uma certa altura de No caminho de Swan, primeiro volume do romance 
de Marcel Proust, o narrador de Em busca do tempo perdido recorda uma 
experiência em que o dispositivo do olhar e da cena tem papel decisivo.2 
Marcel (esse é seu nome), num passeio solitáriopelo campo, se detém pa-
ra descansar junto a uma casa isolada que pertence a uma família de ami-
gos de seus pais, os Vinteuil. É quase noite quando ele se acorda e, estandi 
próximo à janela, logo se vê na posição do voyeur a observar a filha do 
dono da casa recém-falecido. As circunstâncias dessa morte geraram fofo-
cas na sociedade sobre o papel que teria aí desempenhado o constrangi-
mento do pai diante da renúncia a um "perfil de honradez" para a senho-
rita Vinteuil , cuja relação com uma amiga de "má fama" na região já 
ocupara Marcel em passagem anterior do livro. 
2. Ver Marcel Proust, No caminho de Swan, v. 1 de Em busca do tempo perdido, trad. 
de Mário Quintana (Porto Alegre/Rio de Janeiro: Globo, 1981), pp. 138-43. 
12 
1 tili .i d , Vi 111 '11il r • ·<.· be ,1 :imi!-(a- rnrnorada. A conv rsa que as duas 
1111 , 11 111 •w o l'('r · · · ,1 doi s o lhar ' S. ! lá o I Mar el, ·1ssumiclo com certo 
oi , , 111 il 111 111 ck se p< · mai s a ouvir, cml ora o seu relato se refira, com 
1d 1 ,,., ;1 l't• 1ns). I•: h{i o o lh ar ci o pai morto que se apresenta na sala atra-
' d, · 11111 l' l' lra lo ·< lo ado às pressas sobre a mesinha junto ao sofá, pela 
1 ili,, , q1 1,111do p ·r · ·b u 1ue a amiga estava chegando. É diante desse olhar, 
1111,, 1 11•1·011li , ' ido pelas duas, que se faz a cena. A clona da casa montou o 
1, 1,11111 t ' , 11 :1 in1 •ração com a amiga, age de começo a fim como que para 
11 , ,1 11,11· p:11 -rno. Parece ser essa a condição para que ela entre no papel 
, 11111 11 q1 1:il nã s pode dizer por certo que esteja identificada ~essa é a 
, '111111.111 d · Marce l). É ela quem chama a atenção da amiga para a presença 
,1., 11·11·;11 o, ·o m que a induzindo a uma atitude (a outra é ofensiva na 
11 l1 •11•11 (•i. 1 a Vinteuil e ameaça cuspir na imagem). A filha de Vinteuil, por 
11 , v ''I,, s · opõe timidamente a tal ameaça, com um afeto e uma ambigüi-
,11il1• d · i111 •nção que repõem o que o narrador vê como um pequeno tea-
1111 d.i•; luas moças, "profanações rituais" que ele supõe fossem de hábito 
1111 ,11 Hlo o sr. Vinteuil estava vivo. A cena evolui e tem uma descrição psi-
' , ili 11• i ·:1 bastante sutil, com o narrador empenhado em apontar as contra-
il11,11,· • p •r cptíveis na atuação da filha , sua forma de resolver as tensões 
1 111,·1• o qu há de perverso em tais rituais e o que há de "bom coração" 
11o1 q11 ,•l:r que o assume, não por acaso de forma rudimentar, deixando ver 
1 1•, 1,1 ;i í' lação nas palavras e nos gestos. O caráter da ação e da fala sugere 
111 p1. 1111 0, como diz Marcel, eles não são espontâneos mas sim uma repre-
1•111.i c.;:io na qual o que há de sadismo é mais do que tudo um teatro do mal 
1111 qua I a moça se permite atuar ( expressar, dizer) porque, de outra forma, 
11.111 l':rria as coisas assim. Fosse inteira no gesto, não estaria empenhada em 
,, 1 ir a atitude na conversa com a amiga (e sob um olhar, no fundo, inter-
11 ,ili 'l,ad , mas que se materializa ali no retrato) . 
A composição da cena e as nuances que o narrador nela percebe ( ou 
11 ' oj ' la) encaminham para um comentário: estaria aí em jogo uma perfor-
1,1 ,111 ·e que mostra como, em plena v ida, uma afetação sádica dá funda-
111 1· 111 0 ao que o "teatro de bulevar" oferece todos os dias. Ou seja, vemos 
11111 melodrama. Define-se, nessa composição, o olhar simbólico da lei 
13 
(1 ai) com a ondição para o teatro do mal, sendo que a moral internali-
zada e a deli cadeza se revelam raízes contraditórias do comportamento 
perverso. 3 A visão do narrador acentua a presença dos dois lados da moe-
da, a combinação num mesmo gesto dos contrários, a ambigüidade que se 
faz de todas aquelas nuances que, no melodrama encenado no palco, desa-
parecem para tornar claro e distinto o que, de fato, está misturado na vida. 
Como sugere a passagem, a mise-en-scene do mal na experiência vivida 
pode ter intrincados fatores: ser e aparência, auto-imagem e olhar externo, 
internalização da lei e transgressão, estupidez e delicadeza. 
Como observador, Marcel comenta o melodrama, mas em verdade 
já está ele próprio numa situação paradigmática do gênero - olha pela 
janela (situação modelar no cinema de Griffith, embora dentro de outro 
quadro de motivações). Ele escuta a conversa sem ser notado -longa tra-
dição teatral, de muitas tramas. Claro que seu comentário, mais rico do 
que posso aqui resumir, se concentra na situação das jovens e no que essa 
despertou como reflexão sobre o teatro da vida surpreendido num mo-
mento que evoca sua transfiguração mais indecorosa, de rédea solta, no 
melodrama. Essa breve passagem do romance expºõe com toda a maestria 
do autor dados essenciais do dispositivo do olhar e da cena como revela-
ção nada simples da intimidade. 
Em primeiro lugar, há o teor das palavras e dos gestos que suscita o 
comentário sobre o teatro do mal, a profanação ritual que permite associar 
sensibilidade melodramática e sadismo; isso encontrará ressonâncias em 
diferentes personagens do meu percurso, desde a misoginia das figuras 
masculinas de Hitchcock ao acting out e ruptura do decoro familiar bem 
próprios às personagens de Nelson Rodrigues.4 
3. Sobre a questão do melodrama como teatro do bem e do mal, ver cap. 3 deste livro. 
4. Em outra tonalidade, serão freqüentes tais "profanações rituais" juvenis tanto no 
folhetim como no teatro de Nelson Rodrigues. Basta lembrar o "teatro do mal" con-
duzido por Glorinha, a filha do empresário Sabino em O casamento e, no mesmo 
romance, a cena grotesca do homossexual que se exibe para o olhar do pai (velho 
paralisado por um derrame e preso à caéleira de rodas) como vingança diante da 
figura antes repressora. 
1°:1n ~ 'p;un I lugar, há o plano fo rmal, este da geometria que põe em 
p1 "1 1· 11 ~·:i os doi olhares cruzados, o de Marcel e o do pai. Diante do pri-
11wil'O, a · ·n a das moças é indiferente; elas não sabem de sua presença, o 
11,,11 11 1':lm, umprindo involuntariamente o requisito de um teatro dotado de 
q11 :i 1·1:1 pé! r de: a cena se absorve em si mesma. Diante do segundo, a cena 
11· ·xil ·; la não seria o que é na sua ausência, embora aí o retrato do pai 
u•jc1 11ma instância simbólica, portanto distinta de uma platéia que respira. 
( di ·positivo de Marcel ajuda a pensar o que, no confronto entre 
11 lli :1r cena, compõe essa dialética de absorção e exibicionismo que 
111.ir ·a a tradição hollywoodiana e também outros contextos em que está 
1 r ·s ·nte uma performance pautada pelas regras da representação conso-
lidada · ao longo do século xvm, notadamente dentro dos princípios do 
1k 1111 a sério burguês cujo principal ideólogo foi Denis Diderot, figura a 
q 11 ' este livro fará reiteradas referências. 
O jogo instituído por este binômio, o olhar e a cena, supõe regras 
q11 ' podem mudar; convenções e invenções que têm uma história. Desta, 
vou observar um campo delimitado, dentro do qual diferentes dispositi-
vo. marcaram encontro em nome da "impressão de realidade" ou da cena 
i 111 sionista que se oferece ao olhar como uma "fatia de vida". Tal campo 
ni:ío envolve apenas a plena visualidade do espetáculo - o cinema e o tea-
1 ro - mas também o mundo imaginário na literatura, lá onde estão tam-
b ; 111 presentes as questões do "ponto de vista" do narrador e dos modos 
cl • composição textual da cena. Embora na passagem citada seja notória a 
·omposição desse binômio, Marcel está longe de ser o narrador solicitado 
p 'lo projeto ilusionista e por seu ideal de autonomia da cena. Trata-se de 
u 111 romance reflexivo que pensa a sua própria condição enquanto se faz, 
uma obra modernista. O narrador não "deixa a ação correr" nem se em-
penha em permanecer à sombra, isento de comentários, para que o efeito 
de uma ação contínua possa alcançar a força de uma visão direta, não 
mediada, como se estivéssemos diante do fato. 
A idéia da autonomia da cena e o ataque aos narradores "intrusos" 
(como essede Proust) se fizeram nítidos, nos anos 20, numa vertente da 
crítica que privilegiou o "ponto de vista" como a categoria central na eles-
15 
crição da forma literária, pensando em certa evoluç:ão do romance do sécu-
lo XIX na qual o cinema iria se engatar. Tal vertente valorizou o poder da 
cena e sua capacidade de sugestão, procurou aproximar narração e olhar, 
afinando a literatura ao universo da representação visual clássica, estabele-
cendo um elo entre a composição textual e as questões implicadas na com-
posição de um quadro ou da cena no teatro. Não surpreendem, nessa teo-
ria, as freqüentes metáforas que remetem ao campo do olhar, em especial 
à figura da janela, para falar da criação de perspectivas pelo narrador.5 Na 
janela, em dado momento, até mesmo o narrador de Proust se põe literal-
mente. Ele compõe a cena, mas para logo interrompê-la com ironia, frus-
trando qualquer curiosidade, pois não demora para que a senhorita Vin-
teuil venha fechar os postigos, ainda sem se dar conta da presença de 
Marcel. Cai o pano desse teatro, o ato se encerra. Há o corte para antepor 
o comentário, fazer as ilações que ensejam a liberdade do narrador na con-
dução do espaço e do tempo, fora do que o fluxo das ações exigiria, pois a 
sua reflexão importa mais do que o desenlace da cena melodramática das 
moças. O ponto forte da passagem é a articulação entre a cena breve e o 
longo comentário, não o respeito a um ideal da representação em que a 
vida mesma pareça estar desfilando diante do leitor. Estamos nas antípodas 
do eclipse do narrador, portanto em total dissonância em face da particular 
teoria da representação a que estou me referindo. Uma teoria que foi inci-
siva na demanda por aquela forma da mimese que o cinema narrativo esta-
va a revigorar como lugar por excelência da potencialização do olhar e da 
cena, da busca da "impressão de realidade" que tanto empenhou o teatro 
5. O livro paradigmático dessa vertente teórica é o de Percy Lubbock, A técnica da 
ficção (São Paulo: Cultrix, 1976), cuja primeira edição é de 1921; Lubbock se colo-
cava como discípulo de Henry James e procurou esquematizar, perdendo nuances, 
uma taxonomia extraída dos célebres prefácios do escritor às suas obras na edição, 
publicada em Nova York (1907-09). Ver Henry James, A arte do romance; antologia 
de prefácios. org., trad. e notas de Marcelo Pen (São Paulo:: Globo, 2003). Trato dessa 
questão em maior detalhe no cap. 4, quando discuto essa convergência entre a pos-
tura de Lubbock acerca do romance e o que se vê no cinema clássico e em sua incor-
poração do melodrama. 
h1 1rguês em seu projeto ilusionista. Há nesse projeto uma astúcia que a pas-
'1t1gcm de Proust, com seu sistema de projeções, ajuda a pensar. 
/\ IJ IALÉTICA DE ABSORÇÃO E EXIBICIONISMO: A ASTÚCIA DA REPRESENTAÇÃO 
A 1 · ria e a prática do teatro ilusionista resultaram de um longo processo 
11111i1 0 bem analisado no livro de Pierre Frantz, L 'Esthétique du tableau dans 
/1• théât:re du XVIII' siecle, que apresenta um histórico da mudança na concep-
11·. o de mimese e do lugar do espectador na época dos filósofos iluministas.6 
No s ' culo xvm, o teatro assumiu com maior rigor a "quarta parede" e fez 
,1 111ise-en-scene se produzir como uma forma de tableau que, tal como uma 
11•111 ornposta com cuidado pelo pintor, define um espaço contido em si 
111 •~ mo, sugere um mundo autônomo de representação, totalmente separa-
do el a platéia. Como queria Diderot, a "quarta parede" significa uma cena 
,11 11 01 astante, absorvida em si mesma, contida em seu próprio mundo, 
f•,11 \lrando o olhar externo a ela dirigido, evitando qualquer sinal de inte-
11•1 1 · p lo espectador, pois os atores estão "em outro mundo". Ele atacava, 
pm1a 111 0, o exibicionismo, o escancaramento da "teatralidade" (ou seja, 
11 id o o que, pelo exagero, denunciasse a cena como algo para "ser notado", 
1111110 na encenação percebida por Marcel mas sabendo que não era seu o 
, ill1. 1r q~1 ca talisava o teatro da filha). O filósofo era contra os chamados 
"fJp lp ·s 1c teatro" que revelam a condição de estarmos diante de um espe-
1,11 ·1 ti o, , · ja porque houve desmedida no gesto, seja porque se perdeu o bom 
1•11t10 nas reviravoltas do enredo.7 Nisso, a representação burguesa, desde 
r, 1•1· l' i~rt· · Frantz, L'Est!zétique du tableau dans !e théâtre du XVIU ' siecle (Paris: 
1•111,, 1, , H). 
1 1,: 11,11 1 11 qui apo iado na fo rmulação de Michael Fried quando analisa a posição de 
1 1 d ,•1·0 1 di:i n1 el a pinrnra e sua demanda de composição do quadro como "cena 
,d 1111 1 vid<1 l' ll1 .- i 111 sma", mas não assumo in totum o ponto de vista do historiador 
1111111• ,11111·ri •;1110, 1 ois conco rdo, nesse particular, com os reparos que Pierre Frantz 
li1 ,1 le11•111 ,1 rn mo ·ri d vê a questão da "teatralidade". Ver Michael Fried, Absortion 
1111 d l'/11·111111'11/l(y, /Ja iming an.d ih.e Belzolder in the Age of Diderot (Berkeley: Univer-
l1 y 11 1 ( :,dili ,rni :1 Pr ·ss, 1980). 
17 
·111 fi , pro 'urou prcs ·rvar s prece ito ari totélicos de decoro e verossimi-
lhança que chegaram até os manuais do roteiro cinematográfico, e acoplou 
a eles as novas exigências endereçadas ao ator e ao cenário na criação desse 
"mundo autônomo", pois agora a dimensão visual da representação envol-
via um cuidado com a reprodução de detalhes que fugia completamente do 
teatro clássico em que a palavra detinha a supremacia. 8 
No teatro, a quarta parede "protegia" a ficção da realidade, mas se 
ela "constituía uma barreira para o espectador, também o era para o ator 
que devia permanecer preso a essa esfera se quisesse permanecer perso-
nagem". 9 No cinema, tal aprisionamento ganha mais força, pois o espaço 
imaginário se projeta na pura superfície (a luz na tela); não há atores no 
espaço da sala, o que auxilia na produção do efeito de autonomia da fic-
ção. Mas são necessários determinados cuidados para garantir o efeito ( o 
ator não deve olhar para a câmera). Para tanto, foram construídas as re-
gras do cinema clássico que guarda um lugar para o espectador fora do 
circuito dos olhares que se instala dentro da cena, atento para que a geo-
metria da representação se preserve e a ficção se proteja do real, mantida 
a separação entre olhar e mundo diegético. No entanto, como foi observa-
do desde Béla Balász , a força das emoções, o dinamismo da imagem e o 
processo de projeção-identificação criam no espectador cinematográfico 
um senso de "estar dentro da cena". Senso que não se cria, com a mesma 
intensidade, diante de um quadro ou de uma encenação teatral. 1º Esse 
salto imaginário para o "outro espaço" é favorecido pelo cerco que o olho 
variável do cinema pode fazer em torno de qualquer situação dramática, 
em especial através do campo/ contracampo. 11 D o teatro ao cinema, leva-
se ao paroxismo e, ao mesmo tempo, se redefine o que está implicado no 
efeito ilusionista, pois torna patente o duplo sentido da cena, de aparente 
absorção em si mesma e real exibicionismo. 
8. Pierre Frantz resume isso muito bem, op. cit., pp. 4-5. 
9. Frantz, op. cit. , p. 62. 
ro. Ver Balász, Theory of Film (Nova York: Dover, 1970). 
r r. Para a noção de "olho variável", ver Jacques Aumont, O olho interminável: cine-
ma e pintura (São Paulo: Cosac & Naify, 2003). 
r8 
Indiferença ao olhar (simulada) e exibição (de fato); viver da con-
v ·nção da quarta parede e, no entanto, saber onde está o olhar para o 
1ual tudo se faz. Essa astúcia da representação - ou esse paradoxo, para 
11 sa r o vocabulário de Diderot quando aplicado à condição do ator -
·ompõe o solo do efeito ilusionista. Este se mostra algo mais do que uma 
questão de geometria. A absorção é uma aparência de absorção; e a exte-
ri o ridade do olhar é apenas uma condição para toda uma gama de inte-
r ·sses e investimentos de desejo a partir dos quais outra dialética tem 
l 11 gar: de um lado, a maquinação do prazer do olhar, o voyeurismo,o fas-
· í n io da imagem (que se exibe); de outro, a lição de moral, Ó conteúdo 
proclamado da mensagem, as sublimações e a contenção puritana nas 
l<'>rmulas narrativas. 
Essa dialética de absorção e exibicionismo é coextensiva à experiên-
r i:1 do cinema clássico e foi a partir dela que Hitchcock elaborou o seu co-
111 •ntário dirigido ao dispositivo do olhar e da cena, ao fascínio e ao desejo 
cl ' imagem. Otimizando de forma irônica as regras do jogo, o cineasta ata-
l'011 cm seus múltiplos aspectos essa questão nuclear da representação, 
principalmente emjanela indiscreta e Um corpo que cai, filmes que expõem 
·0 111 muita clareza uma teoria do cinema em que seus próprios filmes estão 
i11 s •ridos. E o fez a partir de narrativas que se estruturam em torno do 
•x ·rcício obcecado do olhar pelo protagonista cuja fantasia romântica se 
projeta na cena em que atua a figura feminina. As configurações são dis-
1 i n Ia. · c nforme o filme, e o que interessa focalizar, nesses casos, é a relação 
·111 r e· e olhar e o dispositivo que se constrói para ativá-lo, seja o teatro 
cl • .Ju ly (que se exibe) sendo Madeleine (absorta) para o olhar de Scottie, 
t' lll Um corpo que cai; seja o teatro de Lisa que se faz imagem para o olhar 
ti · J ff em.Janela indiscreta (ver caps. r e 2) 
() 11 Oll DA CENA 
·1·.i1 ·o rn o indicam os casos citados, a tradição aqui focalizada privilegia 
11111.1 clivisã.o de papéis: quase sempre o olhar é masculino, e o objeto do 
n llt :1r ', a fi ·ura feminina. As instâncias de voyeurismo masculino não 
19 
devem, no entanto, nos fazer esquecer que a vontade de saber dirigida à 
intimidade é comum a todos ( essa vontade discretamente assumida pelo 
narrador de Proust). Tudo o que é assunto por excelência da fofoca e da 
curiosidade ( com freqüência, mórbida, macabra, como bem nos lembram 
tantos ficcionistas, de Hitchcock a Bufi.uel, de Dostoiévski a Nelson 
Rodrigues) compõe a rede de segredos e revelações prosaicas de que se 
alimenta o melodrama. E esse apetite não lhe é exclusivo, pois aí se mo-
vem também a comédia romântica e o filme policial, gêneros que abriga-
ram (e abrigam) os motivos que a obra de Hitchcock retoma para expli-
citar a estrutura do jogo nas relações entre o cinema (olhar), a figura 
feminina ameaçada (a cena) e o crime (a fantasia) . 
Tal como a imagem do pai na cena de Proust, esse jogo em muitos 
casos se acresce do olhar que vem de um retrato como pressão moral dos 
ausentes sobre a cena dos vivos; presença direta, a mais elementar, da 
própria representação dentro da cena. O quadro ou a fotografia na pare-
de é na maioria dos casos parte de uma decoração pomposa do espaço 
doméstico, não aquele simples objeto disposto pelo estratagema da per-
sonagem na mesinha ao lado do sofá. Em geral, o que temos são retratos 
emoldurados, mais comumente pinturas a óleo, que exercem uma função 
no drama, porque sentinelas de uma tradição. Agem sobre as persona-
gens como um olhar que zelá e inspira, desde Griffith (como veremos 
no caso de The White Rose no cap. 4), quando o retrato da mãe recebe a 
atenção do herói a cada passo. Esse é um motivo melodramático que 
mais tarde deslocou seu sentido em filmes de outro gênero, como Os cor-
ruptos, de Fritz Lang, em que a imagem da mãe no escritório do gangster 
assume uma conotação irônica que o herói-detetive assinala. O filme 
noir e o gênero gótico exploraram o efeito dessa presença fantasmática, 
marca da autoridade da figura ausente que pesa sobre a família, em espe-
cial sobre uma nova figura trazida por força de um casamento, dispositi-
vo que Toda nude'{_ será castigada, de J abor, incorpora na sua dimensão 
gótica ao compor a cena da entrada de Geni (antes do casamento) na ca-
sa antiga e deserta que fora o cenário da vida conjugal de Herculano com 
a falecida (ver cap. ro). 
20 
A crítica francesa 12 comenta a variedade dessas situações que não se 
resumem, é claro, ao tom fantasmático do gótico, e nos lembram o quanto 
a tendência de Hollywood é expor pintura de mau gosto, tal·como o fez 
_l abor (enfim, não há em Toda nuder. apenas o motivo tropicalista no trato 
com o excesso e o kitsch). Os quadros estão lá como signos de uma tradi-
~·ão familiar que constrange Geni, sinal do que virá depois. Com uma dife-
r nça, pois não se tematiza a força de um olhar específico, intimidador, no 
·s1ilo Rebecca (Hitchcock) , ou o fascínio de uma enigmática semelhança, 
,. ·radora de obsessão ( como o retrato de Carlota, com seu coque e o colar 
/'~11 ídico em Um corpo que cai). Isso diminui a participação dos quadros na 
1 rtI ma, como de resto acontece em outras adaptações de Nelson Rodrigues, 
:wlvo duas exceções: Sabino, o pai-empresário de O casamento (Jabor), 
:i rarra o retrato (foto) da filha e o manipula aflito, e 
ti ' id ntifica com ele (ou melhor, com ela). O filme 
//.,·,,pente, de Alberto Magno, pelo recurso constan-
1 · :1 simbolismos, faz uso reiterado de quadros em 
sua n grafia; em particular, monta um dispositivo 
q 11 ' faz. a paródia do uso convencional, pois a pre-
'l ( ' 11 ·:1 do pai na vida das filhas casadas é representa-
i l.1 :11 r.ivé do confinamento do ator que o interpreta 
t lcn 1 r l de uma moldura, como um quadro na parede, 
11 111 u cliícr nça de que ele pode se manifestar. 
, , . Vn M:1r Vcrn t, "Inextinguible regard" e Dominique Paini, "Un Détour pour 
11• 11·11,1 rd". !ris - Revue de Tlzéorie de l'Image et du Son, n. 14-15, outono de 1992. 
N111 11 1· 1·1> "81 · ·i:il: " retrato pintado no cinema" . 
2T 
O retrato, ou o espelho, dentro da cena se articula a outro motivo 
central de interesse particular aqui: o "tornar-se imagem" da mulher como 
figura da sedução, no limite como Jemme fatale. No cinema, há a tradição 
que inclui os retratos de mulheres fascinantes, objetos da obsessão mascu-
lina, como em Laura, de Otto Preminger, ou também as imagens do femi-
nino extraídas de uma tradição pictórica mais antiga que privilegia figura-
ções do que se entende como perversões do sexo, uma visão misógina que 
se expandiu pela indústria cultural. 13 O casamento e A dama do lotação (N e-
ville) são filmes em que a iconografia do feminino sob suspeita marca sua 
presença em chave irônica, quando o clichê decadentista se faz motivo de 
um comentário que não exclui a referência ao espelho como tematização 
da vaidade, quando a obsessão pela imagem, tal _como no mito de Narciso, 
é tratada como anúncio de morte. Esse é um motivo que atinge até mesmo 
um exemplo notório de virilidade: o Boca de Ouro, no filme de Nelson 
Pereira dos Santos (ver cap. 8). 
13. Ver Eram Dijkstra, Idols of Perversity: Fantasies of Feminine Evil in Fin-de-siecle 
Culture (Nova York: Oxford University Press, 1986). 
22 
VIDA EM FAMÍ LI A, NATUREZA DA SOCIEDAD E 
Peter Szondi comenta a oposição de Diderot aos golpes de teatro, ao aci-
dente imprevisto demais, à reviravolta que se evidencia arbitrária.14 Para 
o teórico alemão, isso deriva do fato de que o filósofo associa tais dispo-
sitivos dramáticos aos termos da vida pública do Antigo Regime, marca-
da pela corrupção, pelo arbítrio do rei, pela ciranda dos favores e traições, 
pela galeria de degenerados de uma ordem em decadência que daria lugar 
a todos os caprichos da sorte e traições. A isso ele opõe os valores de seres 
solidários que associam racionalidade e bem comum, gente hónesta que, 
na composição dos próprios dramas de Diderot, só encontra um terreno 
possível de manifestação: o espaço privado da família nuclear, palco de 
suas peças; mundo em que haveria tal horizonte de harmonização das 
vontades, base de um teatro que se estrutura para afirmar a vida em famí-
lia como um reduto de civilização e de resolução dos conflitos. Como 
Rousseau, seu pressuposto é a bondade natural do homem, depósito de 
entimentos que ele localiza no espaço doméstico, em oposição à esfera 
pública corrompida. 15 
Essa oposição foi incorporada ao melodramacanônico do século X IX 
e ao cinema mudo, simplificada na forma do conflito entre as virtudes da 
casa e os perigos da rua (vida urbana moderna), num quadro associado a 
esquemas maniqueístas, ou na forma do elogio à função materna e à do-
mesticidade como espaço sagrado (ver cap. 4). Além disso, encontrou ao 
14 . Ver Peter Szondi, "Tableau and Coup de Théâtre: On the Social Psychology of 
1 iderot's Bourgeois Tragedy" , in On Textual Understanding and Other Essays 
(M inneapolis: University of Minnesota Press, 1986). 
, 5. egundo Szondi, os pressupostos do drama burguês encontraram melhor 
·xprcssão no escritor inglês contemporâneo de Diderot, George Lillo (autor de 
'/1, e London M erchant), cuja dramaturgia podia afirmar os valores de classe para 
;ri '•111 ci o terreno da família nuclear, ou seja, na vida em sociedade e nas profissões, 
11111a v C1/. qu e a revolução contra o absolutismo já era fato em seu país e a esfera pú-
1, l i ·a j5 podia ser assumida como progressista, civilizatória, segundo a razão. Ver 
l'(' t ' " Sw ncli , op. cit., pp. 126-28. 
longo da história do cinema versões mais elaboradas, notadamente em fil-
mes que fazem o elogio à autenticidade de heróis condenados pela "boa 
sociedade", obras que buscam maior realismo na representação do poder 
e na descrição de seus estratagemas para combater a vilanização, por 
exemplo, de bandidos. Uma constante no cinema brasileiro dos anos 6o-
70, tal vertente encontrou sua melhor realização no cinema de Babenco, 
como em Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. Há aí o herói cujo caráter 
não é o que se desenha numa primeira aparência (construída por quem 
explora sensações), e o empenho do filme é construir um ponto de vista 
para realçar a boa índole de figuras que se enredam numa vida contraditó-
ria entre a boa matriz familiar perdida ( que, no entanto, permanece dentro 
deles), o sadismo e o interesse político (ver cap. 5). Nessa representação, 0 
teatro do mal é identificado com os rituais de tortura e a ostentação de 
cinismo como método de repressão de um Estado perverso. 
Filme de gênero, Um corpo que cai, de Hitchcock, ilustra a força do 
estratagema e a eficácia do cálculo a serviço de projetos individuais, mas 
não trata o manipulador na tônica do melodrama, nem tem como horizon-
te a questão social, movendo-se num mundo burguês no qual focaliza a 
vitória irônica do interesse sobre o derramamento sentimental. O assassi-
nato da mulher pelo marido é aí a figura do crime perfeito - a invisibi-
lidade do autor é seu princípio, o que faz de Elster um antimelodrama 
) 
enquanto mal eficaz em sua feição discreta e realista que administra bem 
sua vantagem. Seu dispositivo é racional, lucrativo, como a indústria do 
cinema. Como bom roteirista, sabe montar o melodrama e dirigir a cena, 
estando fora dela. Explora o jogo de paixões e ilusões românticas, tirando 
vantagem da dialética de absorção e exibicionismo que, esta sim, vai co-
mandar a relação entre o olhar (masculino) e a imagem (feminina)16dentro 
do cenário que ele monta. Canastrão a seu modo, não perde, no entanto, o 
controle do processo. Pode abandonar a cena ileso, deixar suas persona-
gens à própria sorte, levados pelas obsessões que catalisou e cujo desdo-
16. Ver minha leitura do filme no cap. r, ponto em que a redução do ideal iluminista à 
razão instrumental da indústria cultural encontra uma metáfora no esquema de E[ ter. 
bramento é a conjunção de paixão e morte (referida no filme à ópera Tris-
tão e Isolda, de Wagner, citada na música de ·Bernard Hermann). 
Em contraste com a discrição envernizada do estratagema de Elster, 
a conjunção de paixão e morte se consuma dentro de outras variantes mais 
exasperadas e menos elegantes, envolvendo tipos humanos em que, sejam 
burgueses ou populares, da casa ou do bordel, humanidade não rima com 
recato. Passamos à esfera dos tipos encontrados na ficção de Nelson Rodri-
gues. A conjunção amor-morte se dá nesse caso, ora como desejo expresso 
que tem a feição melodramática das juras adolescentes da paixão - "você 
promete que morre comigo" -, ora como resultado de vinganças em que 
mulheres feridas, longe da discrição, fazem questão de proclamar o seu 
gesto, tecendo complicada trama ou "fazendo cena". Nada de operações à 
sombra; o que interessa é o escândalo. Prevalece aí a linguagem dos ator-
mentados que não se contêm e para quem é central o valor de exibição do 
gesto, até mesmo quando conspiram. Patrício, por exemplo, é o manipula-
. dor do jogo em Toda nude{ (peça, não o filme), mas seu calculismo destru-
tivo é contraditório, sem a relação ultra-racional de meios e fins de um Els-
ter que sabe muito bem onde está o seu lucro. Na trama de Patrício, a lógica 
é outra: o rancor e o ódio ao irmão prevalecem na empreitada e não sur-
preende que esta termine com uma revelação perversa feita a Geni que é 
mais um golpe de teatro do que ação conseqüente visando o autobenefício. 
Longe da utopia de Diderot, a vida em família é aí um jogo corrosi-
vo. Seu terreno é o do excesso, do golpe de teatro, dos dispositivos que se 
afinam a protocolos explorados pelo melodrama no aspecto "culinário" do 
espetáculo, mas se afastam do gênero nos seus pressupostos, pois o desas-
tre, em Nelson Rodrigues, deriva de conflitos irreconciliáveis, longe da 
dinâmica de desequilíbrios e correções apta a fazer vingar o bom sentimen-
10 a razão em nome do bem comum. Não se excluem de todo as vanta-
µ; ·11 · materiai , ma vale muito mais o campo das instabilidades e caprichos 
do d s jo, o que torna as personagens mais surpreendentes, na ciranda de 
í', il sas apar ' ncias revelações inusitadas. Estamos longe do que muitos crí-
1 iro~ :1p< 111 am m a marca por excelência do herói trágico - suportar o 
•1 ql"1·i111 c111 > dt> Ínrin ·1 •stói a, uardar no silêncio a dignidade, não "baixar 
o nível". Aqui, tal como no melodrama, é preciso "dizer tudo" , embora já 
não mais como um veículo da verdade que repõe os méritos da inocência, 
mas como um "fazer-se imagem", marcar passagens de dissimulação, e~al-
tação ou histeria, quando o fazer cena oferece uma resolução ( ou auto-sa-
tisfação) para impasses, cisões internas, contradições entre o sentir e o 
agir, como nos ensina a passagem comentada pelo narrador de Proust. 
O folhetim e o teatro de Nelson Rodrigues são pródigos nesse tea-
tro sadomasoquista a que se refere Marcel. É difícil aí encontrar a monta-
gem de uma operação que não se exiba para os outros, permaneça em sur-
dina, discrições que são mais próprias a uma tradição realista. O que 
quero ressaltar se ilustra bem tomando como exemplo o motivo da desi-
lusão e da amargura que leva uma figura feminina ao suicídio. Emma 
Bovary, no romance que é um paradigma nesse terreno, sela o seu desti-
no com uma consciência tácita de que Charles Bovary chegará ao conhe-
cimento, pois não cogita em destruir as provas do adultério. No entanto, 
ela não conspira para tanto, não tece a teia como antecipação (para si) de 
um gozo advindo da retaliação humilhante dirigida ao marido. Ela pade-
ce, de forma horrível, uma morte surda, sem proclamações, absorta no 
seu desastre. As personagens de Nelson Rodrigues, no ódio ao marido, na 
frustração e no desencanto, partem para a agressão que supõe um teatro e 
um espectador. Geni grita no microfone do gravador: "Herculano, você 
pensa que sabe de tudo; você não sabe de nada". O seu relato de mulher 
agonizante é ataque direto que visa desabar o castelo de cartas do marido. 
E Zulmira, a seu modo, costura a trama para que o pobre Tuninho chegue 
ao conhecimento do adultério de forma humilhante, pedindo ao rico 
Pimentel, o ex-amante dela, o dinheiro para a pompa do enterro. São 
cenários de transgressão e culpa em que a entrega amorosa se transforma 
no seu contrário e deve ganhar expressão (ver caps. 9 e ro). 
No jogo entre o olhar e a cena, Nelson Rodrigues assume a "teatra-
lidade". O solo em quese move supõe a dissolução do homem honesto de 
Diderot. É o terreno minado pela consciência já acumulada do lado pro-
blemático da "expressão autêntica", pelo senso ele que o comportamento 
e desdobra e envolve construção de imagem, exibicionismo, presença do 
11·.i 1ro ond(• ·1 · 11 ,10 p,11· · · ·ria •s1ar. lnq o:sív •l 1r~1ba lll'1r no ponto I qui -
lil >ri o ·xi ,·id o por 11111 d oro o rr lato ao 111 0111 cnto de afirmação ci os va-
lores b11rg 11 'S s ·111 qu a famíli a e a casas faziam redutos ele harmonia e 
, i,1 · ·rida 1 . Toei um percurso cio teatro moderno nos separa de tal uto-
1 i,1, ·0111 0 1 m mostram os desencantos de Ibsen, Strindberg e Tchekhov, 
11 0: quais e ·paço privado se torna o lugar da rivalidade, da humilhação 
t' dos jog s el e poder. Em outras palavras, um inferno, como o será na cena 
do dramaturgo brasileiro, ponto onde convergem influxos do teatro mo-
d ·rno ·rn alisacl o por Peter Szondi, do melodrama e do cinema. 17 
Estamos no ponto em que parece impossível uma versão inocente da 
' t' !Ht "absorvida em si mesma", correlata a uma vivência ela clau;ura do-
m '•stica como reduto de humanidade e inocência. Com a contaminação 
r ·cí1 roca cio público e do privado, aquilo que o drama de família desenha 
·0111 0 jogo ele poder e extroversão compulsiva elas personagens, ou como 
·apricho de pequenos tiranos, pode se projetar de novo como um estilo de 
:,ção na vida pública. No limite, um traço de cultura, como o fazem as crô-
ni ·as ele Arnaldo Jabor na observação do espetáculo da vida política brasi-
l ·in . Nesse caso, saímos do campo em que o exame da relação entre o 
o lhar e a cena focaliza o cinema, procurando aí as metáforas para certo 
'S latuto mais geral da imagem na sociedade. Chegamos ao outro pólo da 
questão, onde é a própria dinâmica social que se desenha através das cate-
gorias do teatro, da ótica de um cineasta que se diverte ou se exaspera con-
for me o lugar em que se manifesta a desrazão na vida pública (ver cap. u). 
1 ONTES 
s textos aqui reunidos foram reproduzidos com nenhuma ou mínimas 
alterações, com exceção dos que compõem os capítulos 3, 6 e 7 que sofre-
ram ampliações; a intervenção maior se deu na fatura do capítulo 7, bem 
distinto de sua primeira versão. Os textos que compõem a terceira parte 
do livro ("O Cinema Novo lê Nelson Rodrigues") não foram alterados. 
17. Ver Peter Szondi, Teoria do drama moderno (São Paulo: Cosac & Naify, 2001) . 
27 
CAP Í'l' UI. 1, d " ' incma:rev la ão e cngano", in. A.Novais(org.). Ool/zar. 
São Paulo: Comp_anhia das Letras, 1988. 
CAPÍTULO 2, de "El lugar del crimen: la noción clásica de la represen-
tación en la teoría dei espectáculo, de Griffith a Hitchcock", in E. Russo 
( org. ). lnterrogaciones sobre Hitchcock. Buenos Aires: Ediciones Simurg, 
2001. [versão modificada do capítulo "Cinema e teatro", in Ismail Xa-
vier (org.), O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996.] 
CAPÍTULO 3, de "Melodrama, ou a sedução da moral negociada". Novos 
Estudos Cebrap , n. 57, 2000 . 
CAPÍTULO 4, de "Parábolas cristãs no século da imagem". Imagens, n. 5. 
Campinas: Editora da Unicamp, ago. -dez. 1995. 
CAPÍTULO 5, de "Cinéma politique et genres traditionels: force et limites 
de la matrice mélodramatique". Cinémas d'Amérique Latine, n. 1 , Dos-
sier: Le Mélo, pp. 46- 51. Toulouse: 1993. 
CAPÍTULO 6, de "From the Religious Moral Sense to the Post-Freudian 
Common Sense: Images of National History in Brazilian Tele-fic-
tion". Studies in Latin American Culture, v. 17, 1998. 
CAPÍTULO 7, de "Nelson Rodrigues no cinema (1952-1998)" . Cinemais, n. 
r9, out.-dez. 1999. 
CAPÍTULO 8, de "O mito, a mídia, a cena doméstica e a cidade em Boca de 
Ouro, de Nelson Pereira dos Santos". Novos Estudos Cebrap , n. 61 , 200 1. 
CAPÍTULO 9, de ''A falecida e o realismo, a contra pelo, de Leon Hirszman". 
Novos Estudos Cebrap, n. 50, mar. 1998. 
CAPÍTULO rn, de "Pais humilhados, filhos perversos: Jabor filma Nelson 
Rodrigues". Novos Estudos Cebrap , n. 37, 1993. 
CAPÍTULO u, de "Vícios privados, catástrofes públicas: a psicologia so-
cial de Arnaldo Jabor". Novos Estudos Cebrap, n. 39, 1994. 
Parte r 
A REPRESENTAÇÃO CLÁSSICA, DO 
MELODRAMA À IRONIA DE HITCHCOCK 
inerna: revelação e engano 
A TE STEMUNHA DE MCCARTHY 
1 Tá quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma ver-
dade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelatório 
como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de aci-
dente mas de estratégia. É preciso discutir essa questão ao especificar 
determinadas condições de leitura de imagens; para tanto, faço uma reca-
i itulação histórica, pois o binômio revelação-engano projeta-se no tem-
i , referido a dois momentos da reflexão sobre cinema: o da promessa 
maior, na aurora do século xx, e o do desencanto, nos anos 70-80. 
Comento, de início, uma situação extraída do documentário Point of 
rder [ 1963], de Emilio de Antonio, filme que focaliza os processos e as 
seções de tribunal no período do macarthismo nos Estados Unidos. Trata-
se de uma remontagem da documentação colhida ao vivo nos interrogató-
rios. Em determinado momento, uma testemunha de acusação é inquirida 
1 elo advogado de defesa de um militar acusado de atividades antiameri-
canas. Esse advogado mostra uma foto à testemunha. Nessa foto se vê, 
numa tomada relativamente próxima, duas figuras: o réu e, ao seu lado, 
alguém já comprometido, já indexado na caça às bruxas. A imagem, ao 
mostrar os dois conversando em tom de certa intimidade, é assumida pela 
1 romotoria como peça importante da acusação. O advogado pergunta à 
testemunha se considera a foto verdadeira. A resposta é "sim" . O advoga-
do, então, mostra uma foto maior em que aparece, numa reunião ampla, 
um grupo de pessoas - dentre elas, algumas insuspeitas - e que traz num 
d s cantos a dupla anteriormente vista na foto menor. Entendemos sem 
lemora que a primeira imagem é um recorte da segunda, ou seja, é parte 
31 
de um contexto maior, com muita gente envolvida, uma situação pública 
que não denota nenhuma cumplicidade entre o réu e seu interlocutor. 
O curioso no fato é que, ao ser reiterada a pergunta - "você continua 
achando esta foto [menor] verdadeira?" - , a resposta é de novo "sim". 
Chegamos aqui ao dado significativo. A resposta surpreende-nos mas 
ilustra muito bem uma certa noção de verdade, noção muito mais presen-
te no senso comum de uma sociedade como a nossa do que talvez gostaría-
mos. A testemunha trazia a convicção de que a verdade estava em cada 
pedacinho da foto, como também da realidade. Aquele canto da imagem, 
aquele fragmento extraído da situação maior, foi obtido sem que se adul-
terasse cada ponto da foto, sem maquiagem, sem alteração das relações 
que lhe são internas. Logo, "contém" a verdade. É uma imagem "captada" : 
as duas figuras estiveram efetivamente juntas diante da câmera (não 
importa aí o contexto). O recorte, definidor da moldura, não incomodou 
a testemunha, para quem a verdade é soma, está em cada parte. 
Em nossa cultura, o processo fotográfico tem grande poder sobre as 
convicções desse tipo de observador, assim embalado pela evidência 
empírica trazida pela imagem. Mais até do que a acuidade da reprodução 
(eixo da semelhança) , a imagem fotográfica (e cinematográfica) ganha 
autenticidade porque corresponde a um registro automático: ela se impri-
me na emulsão sensível por um processo objetivo sustentado na causali-
dade fotoquímica. Como resultado do encontro entre o olhar do sistema 
de lentes (a objetiva da câmera) e o "acontecimento", fica depositada uma 
imagem desse que funciona como um documento. Quando se esquece a 
função do recorte, prevalecendo a fé na evidência da imagem isolada, 
temos um sujeito totalmente cativo do processo ele simulação por mais 
simples que ele pareça. Caso típico é o dessa testemunha de McCarthy, a 
consagrar o engodo de uma promotoria.Diante de tal fé na imagem, nossa primeira operação é reverter o 
processo e chamar a atenção para a moldura, para a relação entre a foto e 
seu entorno, para o fato de que o sentido se tece a partir das relações entre 
o visível e o invisível de cada situação. Vou aqui um pouco adiante, para 
ressaltar o quanto, além da foto e de seu contexto, há que se inserir no jogo 
32 
também o universo do observador e o tipo de pergunta que ele endereça à 
imagem. Ou seja, dentro de que situação se dá a leitura e ao longo de que 
eixo opõem-se verdade e mentira, revelação e engano. Voltando à foto 
menor apresentada pelo advogado, constatamos, num nível mais elemen-
tar de interrogação, que ela produz um resíduo de documento na imagem 
dos interlocutores (sua postura e suas roupas indicam certo estilo etc.). No 
entanto, a ilegitimidade da foto é flagrante quando fabrico o fato "conver-
sa isolada" e o faço evidência da culpabilidade, interessado na dimensão 
política da imagem. Quando pergun'to pela autenticidade de uma imagem, 
não estou, portanto, discutindo sua verdade em sentido absoluto, incondi-
cionado. Não discuto a existência das figuras dadas ao olhar. Pergunto 
pela significação do que é dado a ver, numa interrogação cuja resposta 
mobiliza dois referenciais: o da foto (enquadre e moldura), que define um 
campo visível e seus limites, e o do observador, que define um campo de 
questões e seu estatuto, seu lugar na experiência individual e coletiva. 
No cinema, as relações entre visível e invisível, a interação entre o 
dado imediato e sua significação, tornam-se mais intrincadas. A sucessão 
de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e 
somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes 
na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações engendram-
se menos por força de isolamentos ( como na foto comentada) e mais por 
força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade in-
vejável. É sabido que a combinação de imagens cria significados não pre-
sentes em cada uma isoladamente. É célebre o experimento do cineasta 
russo Kulechov, primeiro grande teórico da montagem. Selecionando uma 
única tomada do rosto de um ator e inserindo-a em contextos diferentes, 
chegou a conclusões radicais: a cada combinação o rosto parecia expressar 
algo bem diferente, num espectro que incluía ternura, fome, alegria. 
A elasticidade admitida por Kulechov num primeiro momento (anos 
2.0) foi depois atenuada por ele próprio e seria hoje ingênuo supor um 
poder absoluto da montagem nesses casos. Dentro de determinados limi-
1 ·, já no período do cinema mudo era comum a utilização da diferença en-
1 r as circunstâncias da filmagem e as da imagem na tela para sugerir um 
33 
acontecimento ou dar significado particular a um rosto em close-up. 
Pudovkin, ao realizar A mãe [ 1926], queria uma expressão particular de 
alegria no rosto do herói numa cena em que, na prisão, ele recebe uma 
mensagem de sua mãe trazendo esperanças de liberdade. O jovem ator 
não conseguiu a expressão pedida; o cineasta buscou outra solução. Sur-
preendeu o ator num momento desavisado, numa circunstância de riso, e 
filmou seu rosto que, então, reagia a um estímulo completamente estra-
nho à cena do herói. Combinou depois a imagem registrada com as cenas 
vizinhas no filme e julgou satisfatório o efeito obtido. Se cada imagem do 
ator é um material no qual a montagem pode inocular um sentido, esse foi 
e ainda hoje é um dado de desconforto para muita gente. Os atores têm 
razão em desconfiar dessa distância entre seu trabalho e a percepção de 
sua imagem na tela. Operações como essa de Pudovkin desde cedo entra-
ram na rotina do trabalho. Muitos teóricos têm se interessado pela discus-
·ão de diferentes aspectos dessa manipulação que ilustra com bastante 
vidência a relatividade das "expressões" e das performances no cinema. 
Comparando a questão dos atores a serviço da ficção com a da foto 
oi ervada no tribunal, ganha toda ênfase a importância da pergunta que 
o observador dirige à imagem em função de sua própria circunstância e 
int resse. Afinal, na condição de espectador de um filme de ficção, estou 
no papel de quem aceita o jogo do faz-de-conta, de quem sabe estar dian-
1 , lc representações e, portanto, não vê cabimento em discutir questões 
d , legitimidade ou autenticidade no nível da testemunha de tribunal. 
/\ cito e até acho bem-vindo o artifício do diretor que muda o significa-
i de um gesto - o essencial é a imagem ser convincente dentro dos pro-
pó itos do filme que procura instaurar um mundo imaginário. 
A partir de imagens de esquinas, fachadas e avenidas, o cinema cria 
uma nova geografia; com fragmentos de diferentes corpos, um novo cor-
l o; com segmentos de ações e reações, um fato que só existe na tela. Não 
qu e. tiono a cidade imaginária - o que vejo na tela não corresponde, por 
xemplo, ao Rio ou à São Paulo que conheço. Não cabe perguntar de quem 
corpo imaginário ou qual a estrutura real de um espaço visto na tela em 
[ra ·mentos. Se assim o fizer, o espectador rompe o pacto que assina ao 
·ntrar na ala escura para assistir a um filme que tem título, diretor, ato-
l" l'S. 1 iante da imagem apresentada como prova em tribunal, a circuns-
tfi ncia e compromisso são outros, o eixo da verdade e da mentira requer 
·rit ' ri os próprios. Para iludir, convencer, é necessário competência, e faz 
part e dessa saber antecipar com precisão a moldura do observador, as cir-
·1111stâncias da recepção da imagem, os códigos em jogo. Embora pareça, 
a I itura da imagem não é imediata. Ela resulta de um processo em que 
i n t rvêm não só as mediações que estão na esfera do olhar que produz a 
i mag m, mas também aquelas presentes na esfera do olhar que as recebe. 
l•:s tc não é inerte, pois, armado, participa do jogo. 
lJ OL HAR DO CINEMA COMO MED IAÇÃO 
11 á entre o aparato cinematográfico e o olho natural uma série de elemen-
to e operações comuns que favorecem uma identificação do meu olhar 
·om o da câmera, resultando daí um forte sentimento da presença do 
mundo emoldurado na tela, simultâneo ao meu saber de sua ausência 
(trata-se de imagens, e não das próprias coisas). Discutir essa identificação 
· ssa presença do mundo em minha consciência é, em primeiro lugar, 
:1 entuar as ações do aparato que constrói o olhar do cinema. A imagem 
que recebo compõe um mundo filtrado por um olhar exterior a mim, que 
me organiza uma aparência das coisas, estabelecendo uma ponte mas tam-
bém se interpondo entre mim e o mundo. Trata-se de um olhar anterior ao 
111 u, cuja circunstância não se confunde com a minha na sala de projeção. 
O encontro câmera/objeto (a produção do acontecimento que me é dado 
v r) e o encontro espectador /aparato de projeção constituem dois mo-
mentos distintos, separados por todo um processo. Na filmagem estão 
implicados uma co-presença, um compromisso, um risco, um prazer e um 
poder de quem tem a possibilidade e escolhe filmar. Como espectador, 
t cnho acesso à aparência registrada pela câmera sem o mesmo risco ou 
poder, ou seja, sem a circunstância. Contemplo uma imagem sem ter par-
i icipado de sua produção, sem escolher ângulo, distância, sem definir uma 
p rspectiva própria para a observação. Ao contrário das situações de vida 
35 
\ 
em que estou presente ao acontecimento, na sala de espetáculos, já senta-
do, não tenho o trabalho de buscar diferentes posições 'Para observar o 
mundo, pois tudo se faz em meu nome, antes de meu olhar intervir, num 
processo que franqueia o que talvez de outro modo seria, para mim, de 
impossível acesso. Espectador de cinema, tenho meus privilégios. Mas 
simultaneamente algo me é roubado: o privilégio da escolha. 
Nesse compromisso de ganhos e perdas, aceito e valorizo o olhar 
mediador do cinema porque as imagens que ele me oferece têm algo de 
prodigioso - hoje talvez banalizado - advindode sua liberdade ao inva-
dir a intimidade (uma liberdade da qual usufruo sem riscos), de sua pre-
cisão e destreza nos maiores desafios. No cinema, posso ver tudo de 
perto, e bem visto, ampliado na tela, de modo a surpreender detalhes no 
fluxo dos acontecimentos e dos gestos. A imagem na tela tem sua dura-
ção; ela persiste, pulsa, reserva surpresas. Se é contínua, posso acompa-
nhar um movimento enquanto esse se faz diante da câmera; se a monta-
gem intervém, vejo uma sucessão de imagens tomadas de diferentes 
ângulos, acompanho a evolução de um acontecimento a partir de uma 
coleção de pontos de vista, via de regra privilegiados, especialmente cui- · 
dados para que o espetáculo do mundo se faça para mim com clareza, 
dramaticidade, beleza. As possibilidades abertas pela temporalidade pró-
pria da imagem são infinitas: há o movimento ,do mundo observado e o 
movimento do olhar do aparato que observa. Quando a imagem é de ros-
tos, tenho a interação dos olhares que se confrontam, verdadeira orques-
tração: o olho que vê e o que é visto têm ambos sua dinâmica própria e 
cada um de nós já teve ocasiões de avaliar, com maior ou menor consciên-
cia, a intensidade dos efeitos extraídos dessa orquestração. 
O usufruto desse olhar privilegiado, não a sua análise, é algo que o 
cinema tem nos garantido, propiciando essa condição prazerosa de ver 
o mundo e estar a salvo, ocupar o centro sem assumir encargos. Estou pre-
sente, sem participar do mundo observado .. Puro olhar, insinuo-me invi-
sível nos espaços a interceptar os olhares de dois interlocutores, escruti-
nar reações e gestos, explorar ambientes, de longe, de perto. Salto com 
velocidade infinita de um ponto a outro, de um tempo a outro. Ocupo 
1 o~ içõc do olhar sem comprometer o corpo, sem os limites do meu cor-
1 o. Na ficção cinematográfica, junto com a câmera, estou em toda parte e 
' 111 nenhum lugar; em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem 
pr encher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do 
·inema é um olhar sem corpo. Por isso mesmo ubíquo, onividente. Lden-
1 i ficado com esse olhar, eu espectador tenho o prazer do olhar que não 
'stá situado, não está ancorado - vejo muito mais e melhor. 
Observando a experiência por esse ângulo, como então não exaltar 
o cinema? Como não pensar sua técnica de base em termos de conquista, 
le progresso? Retomemos um clima típico do início do século. 
PRIMEIRO ELOGIO ÀS POTÊNCIAS DO OLHAR CINEMATOGRÁFICO 
O MOMENTO DA PROMESSA 
/\ 1 ·uns cineastas e estetas dos anos ro-20 deixaram registradas as duas rea-
c,:ões a esse lado prodigioso da imagem oferecida pela então nova técnica de 
reprodução. Pensaram o cinema quando sua mediação era um dado inau-
µ; u ral que gerava certas descobertas, uma constelação de sentimentos e per-
·cpções novos, ainda não bem equacionados, que exigiam novo:;9nceitos, 
11111 trabalho com a linguagem escrita para expressar o lado mais peculiar da 
nova experiência. Hoje, é praticamente impossível recuperar vivamente 
:1quele momento, nós que crescemos saturados de imagens e nos movemos 
num mundo em que o que era antes promessa de revolução se faz agora 
dado banal do cotidiano, experiência reiterada. De uma pluralidade de rea-
~·ões, elogios, desconfianças, destaco dois tipos de recepção ao advento do 
·inema. Na primeira, ele é observado como coroamento de um projeto já 
d fin ido na esfera da representação; na segunda, vislumbra-se o cinema 
l' nquanto inauguração de um universo de expressão sem precedente, desti-
ri ado a provocar uma ruptura na esfera da representação. 
Aqueles que o vêem, com simpatia, como um coroamento, inserem 
o ·inema na tradição do espetáculo dramático mais popular, de grande 
vi1aliclade no século XIX. Avaliam que, cumprindo os mesmos objetivos, 
< 1 ·inema vai mais longe, pois multiplica os recursos ela representação, faz o 
37 
espectador mergulhar no drama com mais intensidade. O "olho sem cor-
po" cerca a encenação, torna tudo mais claro, enfático, expressivo: ao nar-
rar uma história, o cinema faz fluir as ações, no espaço e no tempo, e o 
mundo torna-se palpável aos olhos da platéia com uma força impensável 
em outras formas de representação. Ou seja, em seu "tornar visível", a me-
diação do olhar cinematográfico otimiza o efeito da ficção, cumprindo com 
muita competência uma tarefa que, na esfera da cultura, considera-se como 
própria da arte e, em especial, dos espetáculos. Ao exaltar esse salto na efi-
ciência dentro da continuidade de princípios e funções, os críticos, cineas-
tas e produtores afinados às regras do mercado cultural da época celebram 
o êxito, na produção industrial do século xx, de um projeto que vem do 
século XVIII e que se definiu, na origem, para a representação teatral. 
É comum sermos lembrados do quanto a câmera fotográfica consti-
tui uma objetivação tecnológica recente de princípios da representação já 
conhecidos, cuja sistematização vem do Renascimento italiano ( câmara 
escura, o método da perspectiva, os efeitos de profundidade na superfície 
da tela). Com a imagem em movimento, o representar a ação dos homens 
se dá com a franca hegemonia do ilusionismo - a encenação tal e qual o 
real - , plantado no cinema industrial desde os tempos de D. W. Griffith. 
Fato que cristaliza uma herança menos tematizada pela crítica: a do olhar 
tal como constituído no drama burguês. Aqui, a referência teórica essen-
cial é Diderot. No momento em que escreve suas peças e formula a teoria 
renovadora do teatro, definindo o drama sério burguês do século XVIII, 
um elemento central no seu ideário é a crítica ao teatro vinculado aos 
gêneros clássicos - principalmente ao tipo de encenação que se dava às 
. tragédias clássicas francesas do século XVII. Esse teatro, por demais anco-
rado na palavra, depende da exclusiva força poética do texto, desdenhan-
do o aspecto visual da experiência do palco. Ou seja, é incapaz de elabo-
rar a cena propriamente dita, tal como o filósofo a entende, explorando a 
expressividade do gesto e a composição visual da cena ( os tableaux cons-
truídos pela posição recíproca dos atores e da cenografia). 
Diderot queria um teatro dirigido à sensibilidade por meio da re-
produção integral das aparências do mundo, queria um método de "dar 
a ver" as situações, os gestos, as emoções. O ilusionismo, fonte do en-
volvimento da platéia, é então assumido como a ponte privilegiada no 
caminho da compreensão da experiência humana, da assimilação de 
valores, da explicitação de movimentos do coração. Tal demanda, própria 
do universo da Ilustração do século XVIII, tem seus desdobramentos e, 
depois da Revolução Francesa, em outra atmosfera social e política, 
explode no teatro popular de r8oo. Aí se consolida o gênero dramático 
de massas por excelência: o melodrama. Esse tem sido, por meio do tea-
tro (século xrx), do cinema (século xx) e da TV (desde 1950), a manifes-
tação mais contundente de uma busca de expressividade (psicológica, 
moral) em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo, na 
ênfase do gesto, no trejeito do rosto, na eloqüência da voz. Apanágio do 
exagero e do excesso, o melodrama é o gênero afim às grandes revela-
ções, às encenações do acesso a uma verdade que se desvenda após um 
sem-número de mistérios, equívocos, pistas falsas, vilanias. Intenso nas 
ações e sentimentos, carrega nas reviravoltas, ansioso pelo efeito e a 
comunicação, envolvendo toda uma pedagogia em que nosso olhar é 
convidado a apreender formas mais imediatas de reconhecimento da 
virtude ou do pecado. 
Na virada do século xrx para o xx, não surpreende que a técnica do 
cinema, então emergente, tenha assumido essa pedagogia e tenha substi-
tuído o melodrama teatral na satisfação de uma demanda de ficção na so-
ciedade. Quando falo em ilusionismo, reprodução das aparências, na ver-
dade que advém do conflito de forças que se expressam e se revelam pelo 
olhar,estou afirmando princípios da representação aos quais o cinema vem 
·e ajustar como uma luva. Como braço da indústria cultural, ele participa 
do movimento de objetivação institucional da Ilustração. Sua otimização 
do "olhar melodramático" é o ponto-limite de um projeto de expressão 
total da natureza na representação. Reflete um ideal de domínio e contro-
le da aparência como sinal de "conhecimento da natureza", um ideal que 
inscreve a arte como espelho pedagógico que requer a competência tecno-
1 ógica de "criar ilusão" e, por essa via, atingir a sensibilidade: a passagem 
das trevas à luz se faz de efeitos sobre o olhar. 
39 
Dentro do projeto de revelação do mundo para o olhar, os efeitos do 
close-up logo adquirem a condição de emblema das virtudes da nova arte. 
Mais do que a montagem - sua condição prévia-, o close-up, na França e 
nos Estados Unidos, atrai o elogio dos cinéfilos como ponto de conden-
sação de um drama que se faz pelo movimento dos olhos - o que vê e o 
que é visto - e pela trama formada pela sucessão de detalhes enganadores 
e reveladores. Como movimento em direção à intimidade, é visto como 
potência maior do cinema que, muito cedo, impressionou a todos pela sua 
capacidade de devastação das intenções ocultas, do pequeno gesto fora do 
alcance dos interlocutores, do movimento facial que trai um sentimento. 
Não foi preciso a manifestação da crítica: cineastas e produtores conduzi-
ram as experiências reveladoras da força dramática do rosto isolado na 
tela, e Griffith, usando a tradicional metáfora, muito antes de 1920 já ins-
truía seus atores para a importância dos olhos - "janela da alma"-, trazi-
dos para perto no close-up, disponíveis para o exame. 
Foco das atenções e dos elogios, o close-up estará, em 1920, também 
no centro das reflexões de quem, afastado dos valores promovidos pela 
indústria do cinema, observa seus prodígios com outra moldura ·de inte-
resses e julga os filmes do mercado por demais "domesticados" pela 
demanda de ficção que induz o novo meio a seguir os passos do teatro e 
da literatura popular. Encontramos aqui quem vê o cinema como ruptu-
ra, espectadores avessos aos códigos do filme de ação corrente, cinéfilos 
não interessados na fluência dos acontecimentos, no pulsar da narrativa, 
nas tensões dramáticas usuais. Por intermédio deles, o cinema ganha uma 
recepção mais empenhada em surpreender aspectos da plástica da ima-
gem, do trabalho da câmera e da presença peculiar do mundo na tela que 
permanecem recalcados na visão dominante. Para esse olhar diferencia-
do, por meio do cinema toda uma esfera nova de percepções abre-se à 
nossa experiência desde que sejamos capazes de entender a expressivida-
de da nova imagem em outros termos, elogiando sim o close-up, mas den-
tro de uma outra ótica: a de quem entende o cinema não como coroamen-
to do ilusionismo teatral, mas como ruptura, inauguração de um novo 
diálogo com a natureza e os homens. 
São os intelectuais e artistas ligados à arte moderna que lideram essa 
nova leitura do cinema de uma perspectiva que, na França, traduziu-se no 
cinéma d'avant-garde, nas experiências dos surrealistas e nas polêmicas 
que tiveram como pauta a superação da moldura melodramática, a liber-
tação do olhar sem corpo das amarras da continuidade narrativa, a ade-
quação da nova arte à sua técnica moderna. A convicção que reúne os di-
ferentes grupos, postos de lado os conflitos que os dividem, é a de que o 
cinema destina-se a cumprir uma tarefa de redenção. A tradição cultural 
do Ocidente europeu estaria falida, o poder criador preso a convenções 
obsoletas, saturado de referências que o desvigoram. Enredado em formas 
de pensar e sentir desgastadas, ,o homem culto se vê separado da nature-
za, reprimido, cercado de mentiras, de clichês da linguagem, de máscaras. 
O cinema é radicalmente novo, inocente, e traz a precisão da tecnologia. 
Ele pode e deve romper essa grade, devolvendo aos homens o acesso a 
uma natureza alienada pelos artifícios de uma cultura hipócrita. 
A vanguarda se estabelece como cultura de oposição, separando o 
espaço utópico da verdade ( cinema, vida futura) e o espaço da mentira, da 
/ convenção (tradição literária, teatro, cotidiano burguês). Sua fé no cinema 
ancora-se numa idéia de "expressão" que também se apóia na acuidade de 
reprodução da aparência própria da nova técnica, mas com um traço pecu-
1 iar que afasta a vanguarda do pensamento gerado na esfera da indústria. 
· ermaine Dulac e Jean Epstein, principais porta-vozes da avant-garde, 
· ncebem o cinema como "expressividade do mundo" num sentido radi-
·al. 1 Combatem a noção vaga que nos leva a dizer, sob qualquer pretexto, 
" isto expressa aquilo", de um modo que equívale a "isto significa aquilo", 
1 ntro dos variados caminhos pelos quais vamos de um pólo a outro, do 
:-: ignificante ao significado. Reservam "expressão" para designar um pro-
. ·sso determinado, impelido por forças naturais, no qual a composição de 
fc1rç-1 interior a um organismo deixa marcas na superfície do mesmo -
"' 1 ressão" é o movimento pelo qual o que está no interior vem forçosa-
m ·11 1 ' à tona, aflora, moldando a superfície, engendrando a forma (mutá-
, . Cf'. Xav i r, Séúma arte: um culto moderno (São Paulo: Perspectiva, 1978). 
41 
vel) que cinema vem "captar" com exclusividade, pois fixa os movimen-
tos na película sem as atrapalhações do olho natural. O cinema tem seu 
vigor, próprio de um olhar mais automático, regular, implacável, objetivo, 
não maculado pelos preconceitos culturais, pelas vicissitudes da subjetivi-
dade. É irônico que, justamente porque não tem "interioridade", o olhar 
ela máquina possa atingir o princípio interior dos movimentos, revelar a 
verdade que, organicamente; expressa-se em sentido pleno, imprime-se 
numa textura do mundo que só a câmera é capaz de registrar. O próprio 
instantâneo fotográfico, em sua estrutura mais simples, já nos mostra o 
quanto a imagem revelada faz emergir dados ocultos que não estavam na 
mira do fotógrafo. No cinema, o movimento potencializa tal desoculta-
mento, o qual pode tornar-se mais efetivo quando os cineastas forem cúm-
plices da nova técnica, em vez de tentar adaptá-la à tradição, como no 
melodrama. Neste, a expressividade do close-up fica atrelada a toda uma 
cadeia de imagens cuja lógica é tomada de empréstimo à tradição do natu-
ralismo, em que o tornar visível resulta do cálculo, de uma retórica que 
simula o espontâneo. Para Epstein, o que era adequado ao teatro - como 
ilusionismo do século xrx - não o é para o cinema do século xx, pois a 
imitação dos gestos, antes oferecida a olhos desarmados, não resiste à aná-
lise da nova sensibilidade. Com o cinema, a percepção humana ganhou 
um acesso especial à intimidade dos processos - nele, a aparência é já uma 
análise. O close-up não é o lugar do fingimento, é uma presença que reve-
la o que se é, não o que se pretende ser (inúteis as caretas dos atores). 
A aposta da vanguarda está no poder analítico do registro cinemato-
gráfico, no que ressalta não apenas o close-up (ampliação da imagem no 
espaço), mas também as alterações de velocidade da câmera, principal-
mente a câmera lenta ( ampliação da imagem no eixo do tempo), que reve-
la o mundo em outra escala e descobre-nos a vida secreta que se tece a 
nossa volta e em nós, ganhando expressão nas formas instáveis, fora da 
nossa consciência, que agora temos fixadas pela técnica. 2 Epstein, nos seus 
2. Essa aposta no poder analítico do cinema tem uma versão radical naquele mo-
mento na União Soviética, encarnada no projeto do Cine-Olho, de Dziga Vertov, > 
42 
filmes, experimenta o poder expressivo das diferentes velocidades; Dulac 
analisa as imagens do movimento animal e dos fenômenos naturais, Fer-
nand Léger explora as relações e a forma dos objetos fora de sua inserção 
utilitária no cotidiano. Embora não totalmente afinado ao cinéma d'avant-
garde,

Outros materiais