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A CULTURA E AS CULTURAS, Introdução à Antropologia Cultural WEBMissionary Antes de ler este material saiba que ele foi digitado em português de Portugal, por isso contém algumas palavras e expressões que não existem em português do Brasil. Tente ler este material aproveitando o seu conteúdo, que é de altíssimo nível para quem estuda missões interculturais. 1 ÍNDICE 0. 0 MUNDO EM QUE VIVEMOS, 5 0. 1. o mundo natural e o mundo artificial, 6 0.2. As idéias e as Coisas, 8 1. A ANTROPOLOGIA CULTURAL, 11 1.1. A Antropologia Cultural: o seu ponto de vista, objetivo e especificidade. Relações com outras ciências humanas e sociais, 12 1. 1. 1 A ANTROPOLOGIA CULTURAL E A ANTROPOLOGIA SOCIAL. ETNOLOGIA, ETNOGRAFIA E HISTóRIA. A ANTROPOLOGIA FISICA, 12 1, 1 .2. 0 CAMPO DE AÇÃO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL, 14 O LABORATóRIO DO ANTROPóLOGO, 21 2.1. A cultura e as culturas, 22 2.1.1. CONCEITO DE CULTURA. 0 HOMEM E AS SUAS OBRAS. AS QUALIDADES DISTINTIVAS DA CULTURA. DO BIOLóGICO AO CULTURAL E DO CULTURAL AO BIOLÓGICO, 22 2.1.2. 0 HOMEM, A CULTURA E A SOCIEDADE, 25 2 2.2. Componentes da cultura, 32 2.1.2. 0 HOMEM. AS SUAS ORIGENS, 32 2.2.2. OS DIFERENTES «STOCKS IRRACIAIS» E SUA DISCRIMINAÇÃO GEOGRÁFICA, 44 2.2.3. NATUREZA E CULTURA. NATUREZA-AMBIENTE E CULTURA. DESAFIO E RESPOSTA, 57 2.3. A estruturação da cultura. 59 2.3.1. UNIDADES ELEMENTARES DA CULTURA. TRAÇOS E COMPLEXOS CULTURAIS, 59 3 2.4. Aspectos universais da cultura, 67 2.4. 1. A TECNOLOGIA CULTURAL OU A ETNO-TECNOLOGIA CULTURAL, 67 2.4.2. A ECONOMIA: SISTEMAS DE AQUISIÇÃO E DE PRODUÇÃO DE BENS, ORGANIZAÇÃO ECONÓMICA, 69 2.4,3. A ORGANIZAÇÃO E A ESTRUTURA DA SOCIEDADE, 74 2.4.4. 0 CONTROLO SOCIAL, 84 2.4.5. AS REPRESENTAÇÕES COLECTIVAS, 96 2.5. 0 dinamismo cultural, 112 2.5.1. ASPECTOS ESTÁTICOS E DINÂMICOS DA CULTURA, 112 2.5.2. MECANISMOS DE MUDANÇAS CULTURAIS. MECANISMOS INTERNOS E EXTERNOS, 114 3. A ANTROPOLOGIA CULTURAL PORTUGUESA, 119 3.1. Alguns aspectos históricos, 120 3.2 Nomes da Antropologia Portuguesa, 122 4. TRABALHOS PRíMICOS, 123 4.1. Leitura de textos, 124 4.2. Visitas, 131 4 4.3. Desmontagem e explicações de festas, ritos, acontecimentos do quotidiano, etc- 136 GLOSSÁRIO, 138 AUTORES CITADOS, 140 BIBLIOGRAFIA, 141 5 O MUNDO EM QUE VIVEMOS 0 mundo humanizado 0.1. 0 mundo natural e o mundo artificial «0 Real ? É aquilo que resiste, insiste, existe irredutivelmente, e se dá, ao mesmo tempo que se furta, como gozo, angústia ou castração.» Serge Leciaire, Desmascarar o real 0 mundo que nos rodeia é constituído por objetos, imagens, símbolos. 0 homem define-se como linguagem, inscreve-se na sociedade, é um ser social que tende e se realiza na gregaridade; e a sociedade inscreve-se nele, marca-lhe o corpo e o espírito nos hábitos, nos gostos, nos gestos. Os seus sentidos captam o mundo através de esquemas de interpretação, tornando-o mais próximo, enquadrando-o, domesticando- o. «Enquanto realidade ainda não reconhecida e classificada pelo homem, a natureza revela-se como o puro Inóspito. Que acontece quando não há um projecto humano medianeiro entre nós e a natureza? É o reino da absoluta incomunicabilidade. Perante os nossos olhos deslizam configurações instáveis, que são incompreensíveis e angustiantes.» Ernesi Grassi, Arte e Mito É esse o modo de ser e o destino que o homem criou para si ao tornar-se um animal simbólico: transformar a natureza, modificá-la, acrescentá-la, dominá-la, para exorcizar(*) o medo e a angústia que o incomunicável parece provocar-lhe. Por isso o homem humaniza a paisagem que é o seu suporte, transformando a matéria bruta em objectos familiares, 6 sinalizando um mundo hostil com uma rede de comunicação conhecida que sobrepõe ao mundo natural. As imagens que temos do mundo, os símbolos com que o podemos representar, interpõem-se sistematicamente na nossa percepção: o tipo de cultura que interiorizamos oferece-nos um mundo ordenado, diferente, surgindo como percepção sensível, imediata, um universo de sensações e imagens que ratificam constantemente o novo como (re)conhecido. «Suspirou profundamente e arrojou-se - havia uma paixão nos seus movimentos que justifica a palavra - ao chão, aos pés do carvalho. Sob toda a transitoriedade do Verão, gostava de sentir debaixo do corpo o espinhaço da terra - pois assim se lhe afigurava a dura raiz do carvalho - ou, por sucessão de imagens, o lombo de um grande cavalo que ia cavalgando; ou a coberta de um navio agitado - qualquer coisa, na verdade, contanto que fosse firme, pois sentia necessidade de alguma coisa a que pudesse amarrar o seu incerto coração, o coração que lhe dava arrancos no peito.» Virgínia Woolf, Orlando Imagens culturais interpõem-se entre o homem e o mundo e este surge- lhe transformado, feito de percepções e «alucinações»(*) que se apresentam como sensações do vivido no momento. Tecnicamente, o mundo natural é o mundo intocado, sem intervenção do homem,- o mundo humanizado, transformado pela sua ação, é o mundo artificial. Mundo natural e mundo artificial Na realidade, a percepção do mundo natural não é tão natural como parece, pois este é filtrado pelos quadros culturais, pelas imagens e pelas ideias pré-concebidas que cada cultura fornece ao indivíduo; o mundo natural é sempre humanizado, pois aí se inclui sempre uma 7 representação do homem que o percepciona. Porém, existe a paisagem não-humanizada, aquela onde o homem não marcou a sua passagem, nada modificou. 0 processo de transformação do mundo natural em mundo artificial nem sempre resulta em sobrevalorização do seu rendimento; instituições como a agricultura aumentam o rendimento da natureza em relação às necessidades do homem; instituições religiosas proibitivas de ingerir certos alimentos naturais - como leite e certa carne de animais - podem subaproveitar a natureza. É conhecido o papel da poluição industrial sobre uma natureza progressivamente degradada. FORÇA BIOLÓGICA (HOMEM) CULTURA MUNDO NATURAL MUNDO ARTIFICIAL 0 Esquema do sobreaproveitamento do mundo natural através da cultura A energia humana (força biológica) exercendo-se sobre a natureza cria o mundo artificial através da cultura (tudo o que o homem acrescenta à natureza), aumentando-lhe o rendimento - sobreaproveitando-o. FORÇA BIOLóGICA (HOMEM) CULTURA MUNDO NATURAL 8 MUNDO ARTIFICIAL Esquema de sub-aproveitamento do mundo natural através da cultura A cultura, aqui, diminui o espaço de utilização do mundo natural pelo homem; o mundo natural está subaproveitado. Nem sempre a cultura surge como progresso económico. 0.2. As idéias e as coisas 0 mundo artificial não é apenas o resultado da produção humana de objectos materiais - produzidos pela mão ou pelo seu complemento, essa segunda mão do homem, que é o utensílio -, é também o resultado de objectos sociais e de objectos espirituais que determinam o sentido dos projectos de transformação da natureza. MUNDO NATURAL coisas materiais Artefatos MUNDO ARTIFICIAL coisas espirituais Sócio-fatos Mentefatos 0 mundo da mão e o mundo. do cérebro (in Mesquitela Lima, Int, à Antropologia Cultural) 9 Os objetos do mundo da mão são os artefatos, objetos produzidos a partir da matéria, objetos materiais como, por exemplo, um cesto, um barco ou um vaso de cerâmica; os sociofactos são os objectos sociais criados para regular a prática social dos membros duma comunidade, como um interdito, uma norma de comportamento, um aperto de mão, uma cerimónia de casamento. Os sociofatos sã o puros objectos de comunicação que só têm funcionalidade quando exclusivamente praticados pelos actores sociais. Os mentefatos são objectos espirituais produzidos pelo espírito; tal como os sociofatos pertencem ao mundo do cérebro, não implicando, necessariamente,’ a comunicação social, a vida em grupo, para existirem e serem produzidos - uma canção, um poema, uma lei científica são mentefatos. Objectos, imagens, símbolos, ideias - ideias ecoisas - constituem o mundo da cultura produzido pelo homem. As coisas permitem-lhe usar o mundo em seu proveito, e as ideias compreendê-lo, aproximar-se dele através da sua grelha de leitura sócio-cultural(*). Não é só a paisagem natural que fica progressivamente humanizada,- a leitura da visão do mundo natural tem variado através dos tempos e continua a variar de cultura para cultura, de ideologia para ideologia, conforme os paradigmas científicos vigentes, as crenças e as religiões; a paisagem do universo percebido pelo liberal do século XIX não é a mesma que foi percebida pelo homem do mundo clássico; o mundo do místico não é o mesmo do cientista. 0 universo social humano determina a apreensão da natureza ambiente. 10 É este o mundo que nos rodeia, um mundo de idéias, um mundo de coisas. 0 homem produtor de objectos, símbolos e conceitos, rodeia-se de uma intrincada rede simbólica de comunicação que reproduz, no exterior, a complexidade do seu próprio sistema nervoso; através dos outros (receptores de mensagens) situa-se a si mesmo como sujeito (emissor de mensagens) e determina, fora de si, o seu lugar no mundo social e físico. Representa o seu papel dentro dum mundo artificial que não deixa de se tornar mais complexo, acumulando continuamente novos elementos de cultura porque as culturas emigram com os homens e deixam traços no mundo inteiro. As invenções, as descobertas e as práticas mais eficazes são adoptadas pelos povos mais diversos e a cultura constitui-se como cumulativa. «Que esta história cumulativa não seja privilégio de uma civilização ou de um período da história, é convincentemente mostrado pelo exemplo da América. Este imenso continente vê chegar o homem em pequenos grupos de nómadas atravessando o estreito de Behring favorecido pelas últimas glaciações, numa data talvez não muito anterior ao 20. ‘ milénio. Em vinte ou vinte e cinco mil anos, estes homens conseguiram uma das mais admiráveis demonstrações de história cumulativa que existiram no mundo: explorando a fundo as fontes do novo meio natural, domesticam (ao lado de determinadas espécies animais) as espécies vegetais mais variadas para a sua alimentação, os seus remédios e os seus venenos - facto nunca antes igualado -, promovendo substâncias venenosas, como a mandioca, ao papel de alimento base, outras ao de estimulante ou de anestésico coleccionando certos venenos ou estupefacientes em função das espécies animais sobre as quais exerce uma acção electiva: finalmente, levando determinadas indústrias como a tecelagem, a cerâmica e o trabalho de metais preciosos ao mais alto grau de perfeição. Para apreciar esta obra imensa, basta medir a contribuição da América para as civilizações do Mundo Antigo. Em primeiro lugar, a batata, a borracha, o tabaco e a coca (base da anestesia moderna) que, a títulos sem dúvida diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental,- o milho e o amendoim que deveriam revolucionar a economia africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar europeu - em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, o pimento, várias espécies de feijão, de algodões, de cucurbitáceas. E, finalmente, o zero, base da aritmética e, Indirectamente, das matemáticas modernas, era conhecido e utilizado pelos Mayas pelo menos meio milénio antes da sua descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos Árabes. Talvez por esta mesma razão o seu calendário fosse mais exacto que o do mundo antigo. ................................................................................... ................................ Se o critério adotado tivesse sido o grau de aptidão para triunfar nos meios geográficos mais hostis, não havia qualquer dúvida de que os esquimós por um lado e os beduínos por outro levariam as palmas. A Índia soube, melhor do que qualquer outra civilização, elaborar um sistema filosófico-religioso, e a China, um gênero de vida, capazes de reduzir as consequências psicológicas de um desequilíbrio demográfico. Há já treze séculos, o Islão formulou uma teoria da solidariedade de todas as formas da vida humana, técnica, económica, social e espiritual, que o Ocidente só muito recentemente deveria encontrar, sob certos aspectos, com o pensamento marxista e o nascimento da etnologia moderna. Sabemos o lugar proeminente que esta visão profética permitiu ocupar aos Árabes na vida intelectual da Idade Média. 0 Ocidente, dono das máquinas, testemunha conhecimentos muito elementares sobre a utilização e os recursos desta máquina suprema que é o corpo humano. Neste domínio, pelo contrário, tal como naquele outro que a ele se liga, o das relações entre o físico e o moral, o Oriente e o Extremo Oriente possuem sobre este um avanço de vários milénios, produzindo vastas acumulações teóricas e práticas que são o yoga na Índia, as técnicas do sopro chinesas ou a ginástica visceral dos antigos Maorís. ( ..) Em tudo o que diz respeito à organização da família e à harmonização das relações entre o grupo familiar e o grupo social, os Australianos, atrasados no plano económico, ocupam um lugar tão avançado em relação ao resto da humanidade que é necessário, para compreender os sistemas de regras por eles elaboradas de maneira consciente e reflectida, apelar para as formas mais refinadas das matemáticas modernas. Na verdade, foram eles que descobriram que o casamento forma a talagarça sobre a qual as outras instituições sociais são apenas rendilhados ( ... ) os grandes sistemas políticos da África antiga, as suas construções jurídicas, as suas doutrinas filosóficas durante muito tempo escondidas do Ocidente, as suas artes plásticas e a música, que exploram metodicamente todas as possibilidades oferecidas para cada meio de expressão, são outros tantos índices de um passado extraordinariamente fértil. Este pode ser directamente testemunhado pela perfeição das antigas técnicas do bronze e do cobre, que ultrapassam de longe tudo o que o Ocidente praticava nesse domínio, na mesma época.» Claude Lévi-Strauss, Raça e História Cada cultura é sempre um código cifrado de significantes, de que a comunidade partilha, se bem que dum modo diverso, o código de decifração. Este código vai sendo sucessivamente alterado com novas aquisições e aproximações da realidade. 0 mundo artificial tende hoje a um carácter planetário, regendo-se por hábitos e padrões onde a diferença se torna mais rara,- ao mesmo tempo há um movimento crescente de aproximação patenteada pelas organizações internacionais como a 0. N.U. e tantas outras. Como se o homem tivesse cada vez mais consciência de que esse mundo artificial poderoso e perigoso, cobrindo mais do que o seu planeta, seja o patamar da sua destruição. «0 mundo começou sem o homem e acabará sem ele. As instituições, os costumes e os hábitos que eu teria passado a vida a inventariar e a compreender são uma eflorescência passageira de uma criação em relação à qual não possuem qualquer sentido senão, talvez, o de permitir à humanidade desempenhar o seu papel. Longe de ser este papel a marcar-lhe um lugar independente e de ser o esforço do homem - mesmo condenado - a opor-se em vão a uma degradação universal, ele próprio aparece como uma máquina, talvez mais aperfeiçoada que as outras, trabalhando no sentido da desagregação de uma ordem original e precipitando uma matéria poderosamente organizada na direcção de uma inércia sempre maior e que será um dia definitiva. Desde que ele começou a respirar e a alimentar-se até à invenção dos engenhos atómicos e termonucleares, passando pela descoberta do fogo - e excepto quando se reproduz - o homem não fez mais do que dissociar alegremente biliões de estruturas para reduzi-Ias a um estado em que elas já não são susceptíveis de integração. Sem dúvida que ele construiu cidades e cultivou campos,- mas, quando pensamos neles, estes objectos são, eles próprios, máquinas destinadas a produzireminércia a um ritmo e numa proporção infinitamente mais elevada que a quantidade de organização que implicam. Quanto às criações do espírito humano, o seu sentido não existe senão em relação a ele, e elas confundir-se-ão com a desordem quando ele tiver desaparecido. Se bem que a civilização, encarada no seu conjunto, possa ser descrita como um mecanismo prodigiosamente complexo em que seríamos tentados a ver a oportunidade que o nosso universo teria de sobreviver se a sua função não fosse senão fabricar o que os físicos chamam entropia, isto é, inércia. Cada palavra trocada, cada linha impressa, estabelecem uma comunicação entre dois interlocutores, tomando estacionário um nível que se caracterizava anteriormente por um afastamento de informação, portanto, uma organização maior. Em vez de antropologia, seria necessário escrever «entropologia», o nome de uma disciplina dedicada ao estudo, nas suas manifestações mais elevadas, deste processo de desintegração. No entanto, existo. » Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos Marcado no corpo e no espírito pelo seu próprio processo de evolução e desenvolvimento, o homem não sabe outra forma de estar no mundo; quando recusa e tenta afastar-se deste mundo simbólico que o afastou definitivamente do mundo natural - e da realidade - cai no vazio social pois a sua recusa em ser o intérprete do mundo natural é visto pela sociedade como loucura,- a cultura fez uma tal leitura do nosso mundo que o homem não se reconhece nele; é a incomunicabilidade total e consciente. « Toda a escrita é uma porcaria. As pessoas que saem do indeciso para tentar precisar seja o que for do que se passa no seu pensamento, são uns porcos. Toda a gente literária é porca, especialmente a dos tempos de hoje. Todos aqueles que têm pontos de repetição no espírito, num certo lado da cabeça, em locais bem localizados do seu cérebro, todos aqueles que são mestres da língua, todos aqueles para quem as palavras têm um sentido, todos aqueles para quem existem altitudes de alma e correntes no pensamento, aqueles que são o espírito da época, e que denominaram essas correntes do pensamento, eu penso nas suas precisas necessidades, e nesse movimento de autómato que atira a todos os ventos o seu espírito - são uns porcos.» Antonin AQaud, Le Pése-Nerfs 10 o z, .... ...... (@ A_ ANTROPOLOGIA CULTURAL 0 Museu Antropológico não é, necessariamente, o ponto de chegada da Antropologia 1.1. A Antropologia Cultural: o seu ponto de vista, objectivo e especificidade. Relações com outras ciências humanas e sociais 1. 1. 1. A ANTROPOLOGIA CULTURAL E A ANTROPOLOGIA SOCIAL. ETNOLOGIA, ETNOGRAFIA E HISTóRIA. A ANTROPOLOGIA FíSICA A Antropologia constitui-se como ciência autónoma em torno de três teorias: no século XIX, com o evolucionismo darwiniano(e); na primeira metade do século XX, com o funcionalismo(*) e a partir da década de 60, com o estruturalismo(*). Define-se como o estudo da origem e evolução do homem numa perspectiva biológica, do âmbito das ciências da natureza. Será este o campo de estudo da Antropologia Física, quando outras perspectivas de estudo passam a caber no universo da Antropologia. Na realidade, o próprio método de estudo da Antropologia Física, recorrendo à comparação de testemunhos ósseos, fósseis e instrumentais, e a mesma conclusão do homem como produtor de cultura, motor da sua progressiva adaptação e transformação, obrigam à ramificação do estudo do homem. A Antropologia Física utiliza a metodologia das ciências da natureza, o método indutivo no século XIX, e a experimentação rigorosa no século XX. 0 estudo, em trabalho de campo, com observação participante da parte dos investigadores, fez surgirem duas vias diferentes de perspectivarão no estudo das comunidades humanas: uma que tem como objecto genérico a cultura, incidindo sobre o estudo de objectos materiais, e outra que tem como objecto os fenómenos sociais, as instituições. A primeira via pertence à Antropologia Cultural e a segunda à Antropologia Social. A Antropologia Física desenvolve-se dentro do darwinismo que acabará por ser o seu grande fundamento teórico; o corpo da Antropologia Física enriquece-se com contribui- 12 ções de antropólogos americanos, alemães, franceses e da Península Ibérica. Os antropólogos ingleses e americanos desenvolvem o funcionalismo, numa perspectiva de estudo das instituições dos povos «primitivos actuais»,- a geração de funcionalistas da primeira metade do século cria escola e empurra o academismo escolar e a investigação inglesa e americana para a Antropologia Social. Em França, os mesmos objectivos de estudo de comunidades primitivas eram visados pela ciência dos povos e dos seus costumes - a Etnologia - e pela Etnografia, levantamento sistemático de hábitos, crenças, folclore, testemunhos culturais e sociais. Existe hoje um certo sentido tradicionalista de academismo, próprio de cada país, e o mesmo objecto - o homem como ser cultural - é estudado, por vezes recorrendo aos mesmos métodos, por antropólogos culturais, sociais e por etnólogos. Permanecem vagas distinções de objectivos, nas definições dos diversos ramos: Antropologia Social, o estudo do homem social e cultural; Antropologia Cultural, o estudo do homem como produtor de cultura,- Etnologia, o estudo da origem e evolução dos povos primitivos a partir de material etnográfico; Etnografia, a descrição de usos e costumes dos povos. Se a Antropologia Física teve dificuldade em separar-se do campo de estudo da Paleontologia e da Pré-história, o mesmo acabaria por acontecer com a Etnologia e a Antropologia Cultural em relação à História. Se bem que a História Nova tenha recebido da Antropologia noções importantes como a longa duração e área cultural, a História não pode identificar-se com estas duas ciências, já que a característica fundamental da História é o tempo, o que não sucede na Antropologia e Etnologia que se orientam para o homem integral, fora do tempo. Estes problemas de identidade que se levantam na construção das disciplinas e ciências do homem ultrapassam-se pela especificidade dos seus métodos e pelo recurso à interdisciplinaridade. Antropologia Física, Social e Cultural podem, em conjunto ou separadamente, estudar o homem em geral, intemporal e anónimo. Sendo o homem um ser simultaneamente individual, cultural e social, é necessário o concurso de disciplinas e ciências que consigam explicá-lo como ser integral. HOMEM SER INDIVIDUAL SER CULTURAL SER SOCIAL Antropologia Física Antropologia Cultural Antropologia Social/Sociologia Antropometria Craniometria Genética Paleontologia Humana Antropologia Racial Etno1og@a, Emografia ra a Ergologia A@(jijeoIogia Tecnologia Pré história Folclore Emo musicologia História Etno-SocioIogi Política Estética Moral Direito Economia 4 Religião Mitologia Arte 1 1 Demografia Esquema das ciências humanas e sociais (In M. lima, «Int. à Antropologia Cultural» 13 1. 1.2. O CAMPO DE ACÇãO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL */* Herdeira dos conceitos de cultura, civilização e progresso criados pelo Iluminismo e, ainda, de todo um enorme material recolhido nos três séculos de imperialismo marítimo europeu, a Antropologia Cultural centrou-se na constatação da diferença das outras raças e culturas em relação às do homem branco colonizador. É, pois, uma Antropologia do homem branco que se institui como ciência positiva(*), distinguindo-se das outras ciências sociais e humanas pelo seu objecto - o homem como produtor cultural - e pelo seu método - o trabalho de campo (recolha de elementos através da inserção do antropólogo na comunidade a estudar). É neste sentido segregacionista que surgem os primeiros trabalhos antropológicos do americano Lewis Henry Morgan e do inglês Eciward B. Tylor: a tarefa da Antropologia seria estabelecer «pelo menos uma escala grosseira de civilização», ou seja, definir para as civilizações,tal como Darwin fizera para as espécies, uma escala evolutiva desde «os seivagens» às «nações civilizadas». Os «selvagens» tornam-se, assim, o objecto privilegiado da Antropologia, enquanto das nações «civilizadas» saem os sujeitos desse estudo e a avaliaçã o das populações. As primeiras Sociedades de Antropologia surgem em Paris (1838) e Londres (1843) em pleno «take-off» do capitalismo industrial: as colónias sobreexploradas em crescentes espaços com as expediçõ es de exploração científica e ocupa cão política, fornecem as indispensáveis matérias-primas baratas para o surto produtivo. É só’, porém, após o Congresso de Berlim e a 1.1 Partilha de África que a Antropologia surge aos governos como o instrumento indispensável para a dominação eficaz dos países ultramarinos; tal é o objectivo claramente expresso nas instruções para os administradores coloniais ingleses. «0 melhor processo para se atingir a pacificação é empregar uma acção combinada de força e política. Convém recordar que nas guerras coloniais, que infelizmente nos impõe, regra geral, a insubmissão das populações, é indispensável só destruir em último caso, e, mesmo neste, destruir para reconstrui .r de novo. (...) A CÇÃO POLíTICA.- - A acção política é de longe a mais importante,- ela retira a sua força do conhecimento do país e dos seus habitantes; é neste sentido que devem orientar-se todos os esforços dos comissários coloniais. É o estudo das raças que ocupam uma região, que determina a organização política que se lhe vai impor, os mei .os a empregar para a sua pacificação. Um oficial que consegue elaborar uma carta etnográfica suficientemente exacta do território que ele comanda, está bem próximo de obter a completa pacificação, seguida da organização que melhor lhe convier. Todos os aglomerados, indivíduos, raças, povo, tribo ou família representam uma soma de interesses comuns ou opostos. Se há hábitos e costumes a respeitar, há também conflitos e ódios que convém aproveitar no nosso interesse... Cortar o cabecilha e sossegar a massa, afastada por conselhos pérfidos e afirmações caluniosas.- é o segredo duma pacíficação. » instruções de Galieni para a pacificação, enviadas aos administradores civis e militares e chefes das colónias inglesas, 1898 A vocação de segregação e a sua prática ideológica permitem ao inglês Bronislaw Malinowski(*), criador do funcionalismo moderno, dizer que: «A Antropologia ensina ao administrador colonial como tirar a terra ao nativo, segundo os costumes nativos.» A crítica que se efectua ao Darwinismo Social(@) inclui-se num movimento desigual, mas de negação sistemática do optimismo positivista e ainda do desenvolvimento da epistemologia(c). 0 funcionalismo de B. Malinowski incide nas características universais da cultura humana e justifica as diferenças culturais pela influência histórico-geográfica. Já mesmo antes do final da Segunda Guerra Mundial, do processo de descolonização e da actualização da Antropologia elaborada pelo estruturalismo, novos conceitos tinham invadido a Antropologia.- dinâmica cultural, etnocentrismo, racismo. É, porém, com a descolonização e a consequente diminuição da área de exploração dos antropólogos, que as escolas de antropologia tradicionais se vêem obrigadas a procurar, nos seus próprios países, material de estudo. Os Estados Unidos da América que tinham estudado os índios Americanos, a América Latina e a Inclonésia viram-se agora para as pequenas comunidades rurais americanas, tradicionalistas, com marcadas remi- 14 niscências nas suas instituições, da sua origem sueca, holandesa, russa, polaca ou irlandesa. A Inglaterra, vendo-se obrigada a deixar as colónias e o seu campo de acção privilegiado - as ilhas do Pacífico - estuda o seu meio rural e as franjas urbanas, mantendo sob concessão temporária trabalhos de investigação esporádicos na América do Sul e no Próximo e Médio Oriente. Algumas áreas permitem ainda o tradicional trabalho de campo do antropólogo, como é o caso da Austrália, do Mato Grosso brasileiro, da Nova Zelânclia e de algumas ilhas do Pacífico. Mas este campo privilegiado da Antropologia Cultural, as sociedades sem escrita (ágrafas), pequenas e tecnologicamente simples, começam a entrar no universo dos mitos. k lu IGRUfim &Tis--TIM: PARAMOUNT PICTURES APR@SENTA UMA PRODUCÀO EQVVAAD@ K~N WITNEST -H RRISONFORDCOPAODUIWDAVIOBOMBY@,AfiGUMENTODÉ PAM’ Harrison Ford (que nos filmes de Spielberg é Indiana Jones, o antropólogo americano) como John Book em «A Testernunha» insere-se numa comunidade Amish-o reduto de investigação da Antropologia são hoje as comunidades conservadoras deste tipo. «Então, quem poderia estudar livremente hoje em dia a vida real do Irão, do Camboja e do Alganistão? Não falo dos observadores ocidentais, mas dos etnólogos autóctones e nacionais.- que «jovem nação» não veria aí uma forma de espionagem ou de subversão? Assim, pouco a pouco, as terras da antropologia foram retiradas ao antropólogo. » Jean Duvignaud, in Sciences Humaines. La Crise, Mag. Litt. Nov. 83 0 objectivo da Antropologia Cultural não se transformou; mantém-se como o estudo do homem nas suas semelhanças e diferenças, levantando as variáveis e invariáveis cullurais quer por meio de trabalho de campo, quer através de métodos mais próximos da Antropologia Social como os inquéritos a populações e as entrevistas e amostragens sociais. Entretanto, o debruçar-se sobre a sua própria cultura levou os antropólogos a indiciarem um conjunto de novos problemas que passam a fazer parte da sua investigação, como o problema de civilizados e primitivos, selvagens, progresso, etc. «A palavra «primitivo» designa aqui o estado tecnoeconómico dos primeiros grupos humanos, isto é, a exploração do meio natural selvagem. Cobre por conseguinte todas as sociedades pré-históricas anteriores à agricultura e à criação de gado e, por extensão, aquelas que, muito numerosas, prolongaram o estado primitivo na História até aos nossos dias. Os etnólogos há muito que criticam este termo que é constantemente contradito pelos factos sociais, religiosos ou estéticos e que, por esta razão, tomaram uma coloração pejorativa; contudo, não o abandonaram, à falta'de um termo que designasse de maneira global os povos sem escrita, afastados das «grandes civilizações». Aparece, todavia, mais frequentemente, enquadrado por aspas. » A. Leroi-Gourhan, 0 Gesto e a Palavra, 1 15 0 objecto e o método da Antropologia Cultural J A Antropologia Cultural estuda as culturas, pois o seu objecto específico é o homem como produtor de objectos culturais (materiais e simbólicos.) Hoje em dia, na perspectiva do funcionalismo e do estruturalismo, este objecto identifica-se, em última análise, com a «trama das relações de parentesco», origem de todas as outras instituições e produções materiais e simbólicas. 0 método teve de se modificar com o desenvolvimento técnico e a progressiva burocratização e mecanização dos meios técnicos e humanos, na sequência duma nova forma de intervir. «Só os povos subdesenvolvidos parecem ser capazes de aguentar, com paciência e tolerância, a presença indiscreta, aparentemente ociosa e sempre um pouco patemalista, do antropólogo. E significativo que dos estudos levados a efeito no Reino Unido alguns dos mais importantes tenham tido por objecto comunidades da Irlanda e do País de Gales - a orla celta menos favorecida e menos próspera. A antropologia social de comunidades que, como as mediterrânicas, são parte de uma grande civilização e de tradições naci .onai.s estabelecidas de longa data, levanta ao antropólogo problemas inéditos e modifica o âmbito das suas actividades. 0 antropólogo social «clássico» era, idealmente, um estudioso que depois de umas leituras gerais de teoria sociológica, mitologia e folclore, ia viver durante dois ou trê s anos com uma tribo, isolada na savana africana ou numa ilha do Pacífico, falando uma língua e tendouma religião próprias, conhecida quando muito por um ou dois missionários e por um ou dois administradores, com muito poucos contactos com o mundo exterior e, porque sem escrita e sem monumentos duradouros, considerada sem história. Era este o material clássico do antropólogo e nele se afinaram os seus métodos de trabalho. A pequena comunidade isolada, uma vez dominada a língua, revelava-se no seu quotidiano, por observação directa, sem uso de questionários formais ou de métodos estatísticos elaborados. As características fundamentais da comunidade - a sua econo- mia, a sua cultura material, os seus sistemas de família e parentesco, a sua estrutura política, a sua religião e os seus valores morais - @àm aparecendo a pouco e pouco na textura das relações sociais, até ser possível ao antropólogo construir um modelo coerente que i.ntegrava todos estes aspectos. Os resultados destes trabalhos antropológicos revelaram ao mundo estudioso «civilizado» sociedades de características muito diferentes das que este conhecia e, mesmo que os métodos de investigação ou a sofisticaçã o teórica do antropólogo deixassem por vezes a desejar, a novidade dos seus factos chegava para justificar o seu trabalho. Historiadores, sociólogos, filósofos, psicanalistas, estetas, poetas até, foram buscar a este manancial de factos material para novas comparações e especulações. E o público leitor mais vasto veio-se apercebendo também do relativismo dos valores da sua própria cultura - sobretudo em tópicos de popularizaçã o fácil, como as relações entre os sexos, a partir, por exemplo, dos livros de Margaret Mead. (.. J A contribuição específica do antropólogo é de dois tipos.- por um lado fornece uma análise detalhada do sistema de família e parentesco e do sistema de valores morais que lhe está associado, enquadrando-os na estrutura social total, com base em observação empírica que nenhum outro estudioso está preparado para fazer; por outro lado, ao considerar tópicos que são aparentemente do domínio de outros especialistas, fá-lo a partir da maneira como esses tópicos se revelam na prática quotidiana.- ligados entre si em incidentes únicos, produto da interacção de normas e circunstâncias, constituindo aquilo a que Mauss chamou «factos soci .ai.s totai.s», os momentos das relações sociais de que participam aspectos que outros especialistas consideram isoladamente - económicos, legais, religiosos, morais, etc. - mas de que o antropólogo, ao apreendê-los ao vivo, nas suas interrelações, consegue revelar o significado sociológico. A experiência das sociedades primitivas, obrigando o antropólogo a observação constante, detalhada e sem benefício de estudos prévios, auxilia-o agora a observar com ri .gor e sem parti-pris as cambiantes de emoção e comportamento que lhe permitem compreender e relatar a fábrica social das pequenas comunidades «civilizadas» e, sobretudo, os sistemas de valores morais por que se regem. 16 No panorama das ciências sociais contemporâneas o antropólogo ocupa assim um lugar peculiar. Por um lado o seu método impõe restrições de dimensão ao seu material.só uma pequena comunidade ou um pequeno grupo dentro de uma grande comunidade se prestam a ser estudados por este método lento, longo, com poucas entrevistas estruturadas e que exige um conhecimento profundo das pessoas envolvidas. Por outro, esse conhecimento profundo, quando realmente obtido, permite uma descrição muito mais verdadeira e detalhada da comunidade que as baterias de testes dos sociólogos de questionário - para não falar nos exerci@ios dos economistas fazendo sociologia ou nas especulações dos legistas. Para usar uma analogia, como todas as analogias não perfeitamente apta, o antropólogo é comparável ao artesão tradicional,- os restantes cientistas sociais, aos operários e técnicos que, numa fábrica, manufacturam, agora, industrialmente, o mesmo produto. Como o artesão, o antropólogo tem um prazer criador mais completo com o seu trabalho que os outros especialistas e, desde a matéria-prima ao produto acabado, conhece melhor a realidade com que lida. Os outros especialistas dividem entre si conhecimentos de vária ordem que, às vezes, o antropólogo não possui ., mas o antropólogo é o ú nico que considera a realidade in totto e está apto a lhe aperceber o nexo interior.» José Culileiro, Prefácio de Honra e Vergonha, J. G. Peristiany, Ed. C. Gulbenkian 0 trabalho de campo, actualmente, assenta num modelo de intervenção que pode resumir-se nas seguintes fases: 1. - Escolha e definição do lugar de intervenção (no Relatório final, a monografia do trabalho, estes elementos darão inicio à situação geográfica, morfologia e infraestruturas); 2. - Levantamento dos factores de homogeneidade, geográficos e morfológicos---que se polarizam nos centros regionais; ritmos de vida e identificação de habitantes (em relação com as designações geográficas como alto, baixo, monte, planície, etc.); 3. - Representação da população activa por ramos de actividade para saber indícios de mentalidade urbana e rúral, e grau de evolução. As técnicas utilizadas são habitualmente as técnicas de trabalho de grupo, em amostragens significativas, experimentais e activas (observação participante), com debates em grupo, criatividade, jogos de simulação, etc. Seleccionam-se alguns grupos e um grupo-teste (modelo controlado, incluindo jovens da região) com elementos extremos de acordo com as actividades, áreas, idades, etc. Este modelo de intervenção é seguido da análise dos dados recolhidos. A análise incide sobre os códigos, do dito e do não-dito, procurando identificar, através de expressões comuns a certos grupos, a predominância dos valores sociais da comunidade que surgem na linguagem dicotomicamente, como virtude/eficácia, ser/ter, precaução/previsão, etc. Parte-se, assim, do princípio que nos grupos amostragem e no grupo modelo se reflectem as características da linguagem geral, quer por apropriação dum grupo social, quer por representar realmente a mentalidade cultural geral ‘ Nas sociedades mediterrânicas, a dicotomia utilizada pelos antropólogos foi, no caso referido por José Cutileiro(e), honra/vergonha. No resultado da análise de dados, a monografia surge acompanhando de perto o modelo apresentado, como se pode retirar da leitura do texto que segue. «0 material sobre o qual se baseia a discussão que se segue foi recolhido durante o trabalho de campo, necessário para um estudo mais vasto, em 1965 e 1967 A coniu111dade alentejana onde este trabalho foi realizado chamar-se-á aqui Vila Velha e será muito sumariamente descrita. Trata- se de um grupo de seis povoações pequenas que, com cerca de nove mil hectares de terra que as rodeiam, consti .tuem uma freguesia. Em 1966 contava cerca de mil e seiscentas almas, mas a população (que aumentara entre 1868 e 1940) estava (e está ainda) a diminuir como resultado de emigração para centros urbanos portugueses e para países mais industrializados da Europa Ocidental. Embora à volta das povoações a propri .edade esteja muito fragmentada e cerca de metade das famílias residentes possua terra, só cerca de vinte e cinco proprietários locais não necessitam trabalhar em terras que não sejam suas ou suplementar, por outros meios, os rendimentos 17 destas. E as grandes casas agrícolas da região que absorviam, até há pouco tempo, quase toda a mão-de-obra local, pertencem a uma dezena de famílias quase todas residentes numa vila próxima. Estas famílias possuem entre si 54% da área da freguesia e auferem 55% do rendimento colectável da mesma. 42% do rendimento colectável cabe aos três principais latifundiários. As principais produções da freguesia são o trigo, a azeitona e a lã de alguns rebanhos. A sociedade está pois muito estratificada e as famílias ligadas à terra podem dividir-se em famílias de latifundiários (os grandes lavradores, residentes fora, mas quase todos bem presentespor administração directa, visitas diárias, relacões de apadrinhamento, intervenção na Casa do Povo e na Misericórdia, etc.), de proprietários (os pequenos lavradores locais independentes), de seareiros (que cultivam terras de parceria, pagando um terço ou um quarto da colheita, geralmente, aos proprietários dos direitos de exploraCão da terra) e de trabalhadores rurais. Sobre certos aspectos estamos diante de várias comunidades sobrepostas e isso é claro quando se analisa a composição dos casamentos - quem casa com quem. 0 mercado matrimonial dos trabalhadores rurais restringe-se quase só à sua aldeia e às duas aldeias mais próximas,- o dos seareiros cobre a freguesia e inclui parte de uma freguesia vizinha, com povoações próxi .mas. Os proprietários casam dentro do concelho e em concelhos limitrofes. 0 mercado matrimonial dos latifundiários cobre a província inteira e inclui, por vezes, famílias ricas, de outras províncias. Na medida em que a família, parentesco e afinidade têm relações directas com o sistema de valores morais em discussão, estes factos são importantes. Os valores da honra, como diz Campbell no seu ensaio, são egoístas e particularistas. A protecção dos interesses do próprio e da sua família é fundamental e há poucas normas de comportamento para com os outros que sej .am de aplicabilidade geral. Em Vila Velha, honrar pai e mãe é um dos poucos mandamentos da Lei de Deus que é também um mandamento da comunidade. Sendo a natureza humana decaída e a luta pela vida difícil--- velhos e velhas, sobretudo pobres, são por vezes descurados pelos filhos - mas tal comportamento é sempre acerbamente comentado. À medida, porém, que a posição das pessoas, em relação ao núcleo familiar, se afasta, as obrigações de honestidade - para nem sequer falar de honra - proporcionalmente diminuem. Os deveres para com parentes próxi .mos são maiores que os deveres para com parentes afastados mas, em ambos os casos, mais escassos e menos bem definidos que os deveres para com os membros do grupo familiar. Os amigos merecem parte da deferência concedida a familiares mas as obrigações da amizade não são sagradas como, idealmente, as impostas pela família e prestam-se portanto a manipulações que podem pôr a amizade em causa. «Amigos, amigos, negócios à parte» significa exactamente que, ao negociar com amigos, um homem vê-se perante o conflito entre o seu dever egoista de tirar toda a vantagem possível dos outros e as obrigações igualitárias e abnegadas da amizade. Para lá de parentes e amigos estão os estranhos mas, mesmo com estes, se lida de diferente maneira, consoante a distância estrutural a que se encontram. Quando, a seguir à Guerra Civil de 1936-1939, toda Vila Velha contrabandeava para Espanha, mandavam-se às vezes sacos cheios, no terço supen .or com café e nos dois terços inferiores com terra. A mercadoria era paga na entrega, no campo e de noite, e a natureza da operação não permitia ao destinatário final lesado queixar-se. Na ausência de sanções legais possíveis, só uma obrigação moral impediria este tipo de comportamento. Mas os espanhóis são, de todos os seres humanos que os habitantes de Vila Velha conhecem, os que mais estranhos lhes são e essa obrigação moral não se aplicava a eles. Estes dois aspectos.- a) importância dos deveres familiares com a obrigação ideal de um homem (ou uma mulher) pôr o interesse da sua família nuclear acima de quaisquer outros; b) estratificação social bem marcada, com o poder político e económico nas mãos de uma pequena mi .nori.a e com uma grande maioria competindo na procura dos favores, muitas vezes agudamente necessários mas de que há sempre uma oferta reduzida, dessa minoria - são as duas características da estrutura social que é necessário ter em conta para compreender o sistema ideal de valores e as distorções que esse sistema sofre nasua aplicação prática. 18 Idealmente, um homem é soberano e independente e detém a responsabilidade de uma família. Deve ser corajoso sem ser temerário, firme nos seus propósitos sem ser obstinadamente teimoso, e dotado de bom senso e sabedoria da vida que lhe permi .tam estabelecer compromissos sem, aparentemente, sacrificar a sua independência. 0 acesso aos direitos e deveres da hombridade (qualidade de ser homem) faz-se pelo casamento. Um homem solteiro permanece para sempre um «rapaz» e o status moral de um «rapaz» é inferior ao de um homem. Quando um grupo de homens vacila perante um empreendimento, mostrando tibieza ou falta de sentido das responsabilidades, ouve-se às vezes um deles dizer: «Então, somos homens ou somos rapazes?» A entrada no casamento traz, todavia, consigo um número de riscos dos quais o mais importante é o risco de uma diminuição de reputação, devido ao comportamento irregular da mulher ou, menos grave, das filhas. A atitude em relação aos celibatários, que nunca podem gozar do prestígio acessível a um homem casado, tem que ser compreenoida nestes termos.- o celibatário não tomou a sua quota-parte das responsabilidades e dos riscos de ser homem. Quando o celibatário tem acesso a mulheres casadas não aparentadas com ele - como é o caso dos padres - a atitude toma-se ainda mais dura. Ilustra-a o dito de um pequeno proprietário numa discussão com um padre: «Eu, os filhos que faço, têm o meu nome.»(’) 0 prestígio de um homem, a sua reputação, a sua honra - embora a palavra seja raramente usada - o que faz dele «um homem de vergonha», dependem tanto dele como da sua família e é considerando a família e não apenas os seus membros, isoladamente, que podemos compreender cabalmente este sistema de valores. 0 status de qualquer familia depende de factores morais e de factores materiais. Idealmente, a dicotomia dos sexos é clara neste ponto: cabe ao homem assegurar a sobrevivência material e, se possível, a prosperidade da família; cabe à mulher garantir que permaneça intacta a sua integridade moral. A insolvência do marido e o adultério da mulher são as situac(5es~limite que fazem naufragar uma família. E, tal como a mulher adúltera deve deixar a sua aldeia ou a sua vila, também o proprietário insolvente vai muitas vezes vIver para outro sítio. A reprovação da comunidade é forte demais, em ambos os casos, para poder ser suportada'face a face. Um homem solvente, cuja mulher é fiel e cujas filhas são castas, goza do mínimo de prestígio necessário para poder andar de cara levantada e ser aceite, sem troca nem reprovação, pelos outros Cada família real procura aproxi.mar-se deste modelo ideal, mas é evidente que a tarefa é mais fácil para as famílias mais prósperas. Quanto mais rico um homem é, maior a base material do seu prestígio, quanto mais virtuosas as mulheres da sua casa - e a prosperidade ajuda a manter os padrões de comportamento identificados, nesta sociedade, com virtude - maior a base moral. Assim, enquanto o sistema de valores ideal parece ser o mesmo para todos os grupos da sociedade, as possibilidades de viver de acordo com ele variam substancialmente segundo a posição de cada família na estratificação social. Há, em todas as sociedades, uma distânci'a que só os santos conseguem percorrer, entre valores e normas ideais e a prática da vida quotidiana, mas, nesta sociedade, a maior ou menor aproximação do ideal não é determinada apenas por características pessoais mas também por condicionantes estruturais que a delimitam, grosso modo, para grupos inteiros da população. Este ponto é muito importante: ricos e pobres vivem diferentemente não por terem códigos ideais diferentes mas por ser mais fácil aos ricos aproximarem-se do código e ser, às vezes, necessário aos pobres afastarem-se diametralmente dele. As implicações deste estado de coisas são profundas. A independência ideal de um homem e a honralvergonha com ela associadas são afectadas sempre que ele necessita de se socorrer da protecção de outro, colocado mais acima na escala do poder. -0código ideal de valores comum a ambos, pressupõe uma igualdade, também ideal. Não há ordens ou classes, sancionadas por autoridade Divina ou autoridade Real que possuam, ou sejam consideradas pelos seus membros e pelo @1) Alguns padres houve, há duas ou I rês gerações, que deixaram descendentes a que deram o nomeou que foram, pelo menos, reconhecidos de facto Encontram-se padres na ascendência de latifundiários, proprietários e seareiros Estes padres que tinham «mulher» e «familia», eram geralmente estimados pois preferia-se a sua situação à do padre que, sem «mulher» e sem «fanulia>@, era imed atamente suspeito de depredar nas mulheres de outros homens Nunca se esperava que um padre fosse casto: quando não dava azo a nenhuma suspeita de convivio amoroso com mulheres era suspeitado de homossexualidade 19 resto da população como possuindo privilégios que intrinsecamente as distingam do resto da população. Filho da filosofia da Revolução Francesa, o Alentejo de hoje é «terra livre e alodiab), habitada por homens que «nascem livres e iguais em direitos» e que têm consciência disso. Há um plano de existência e de consciência em que o trabalhador rural se considera igual ao latifundiário. Mas essa igualdade ideal é contradita por um sistema económico, social e político que não só estabelece grandes disparidades de riqueza como coloca um homem, em muitos contextos da vida, na dependência de outros. E essa dependência, não obstante os benefícios que possa por vezes acarretar ao dependente, diminui a sua estatura moral. Como se diz em Vila Velha.- «Isso que eu peço não é favor - minha vergonha me custa. » A honra e a vergonha da gente de Vila Velha não apresenta assim os aspectos dramáticos da honra e da vergonha dos sarakatsani gregos, dos cabílios da Argélia, dos bedulnos do Deserto Ocidental do Egipto ou dos andaluzes da província de Ronda. Mas os princípios fundamentais são os mesmos: primado da família e, para segurança desta, importância da prosperidade, aqui geralmente em terras (noutros lugares em terra ou em gado) e importância do comportamento sexual das esposas e das filhas. Tais pri .ncípi.os que têm sido associados com sociedades pequenas de recursos materiais e morais limita- dos, em que a subida moral ou material de uns acarreta forçosamente a descida de outros, encontram-se, para além de Vila Velha, em toda a sociedade portuguesa, não havendo, parece-me,’ a este respeito, grandes diferenças entre a população rural e a população urbana, ou recentemente urbanizada, das cidades, A distincão neste contexto entre o citadino e o provinciano, numa sociedade em que até há pouco tempo as cidades eram sobretudo mercados ou portos de escoamento de produtos agrícolas, em que a pouca indústria existente era artesanal ou semi-artesanal e em que empresários e operários completavam muitas vezes pela agricultura ou pela horticultura os seus rendimentos, não é tão funda que atinja os dois aspectos fundamentais tratados nesta discussão.- a estrutura ideal da família e o sistema de valores morais com esta associado. » José Cutileiro, ob. cil, 20 C2,---OlIABORATóRIO DO ANTROPÓLOGO 2. 1. A cultura e as culturas A cultura e as culturas «A cultura é a grande engrenagem da satisfação pelo sucedâneo.» Herbert Marcuse 2. 1. 1. CONCEITO DE CULTURA. 0 HOMEM E AS SUAS OBRAS. AS QUALIDADES DISTINTIVAS DA CULTURA, DO BIOLóGICO AO CULTURAL E DO CULTURAL AO BIOLóGICO «Apenas vivemos para manter a nossa estrutura biológica; desde o ovo fecundado que somos programados para este único fim, e toda a estrutura viva não tem outra razão de ser, do que ser. Mas para ser ela apenas tem como meio de utilizar o programa genético da sua espécie. 22 Ora este programa genético no Homem tem como conclusão um sistema nervoso, instrumento das suas relaçõ es com o meio inanimado e animado, instrumento das suas relações sociais, das suas relações com os i .ndivíduos da mesma espécie que povoam o nicho onde ele vai nascer e desenvolver-se. A partir daíele encontra-se inteiramente submetido à organização deste meio. Mas o nicho não penetrará e não se fixará no seu sístema nervoso a não ser de acordo com as características estruturais deste. 0 sistema nervoso responde primeiramente às necessidades urgentes, que permitem a manutenção da estrutura do organismo. Depois disto responde ao que chamamos ‘@ouIsões-, o princípio do prazer, a procura do equilíbrio biológico. (..) Permite em seguida, devido às suas possibilidades de memorização, portanto de aprendizagem, conhecer o que é favorável ou não à expressão dessas pulsões, tendo em conta o código imposto pela estrutura social que o gratifica, segundo os seus actos, por uma promoção hierárquica. As motivações pulsionais, transformadas pelo controlo social que resulta da aprendizagem dos automati .smos socioculturais, controlo social que fornece uma nova expressão à gratificação, ao prazer, estarão enfim também na origem do jogo do imaginário. ---Imaginário-, função especificamente humana que permite ao homem, contrariamente às outras espécies animais, de acrescentar, informar, de transformar o mundo que o rodeia. ( .. ) Faculdade de criação imaginária que possui a espécie humana, a única a permitir-lhe a fuga gratificante a uma objectividade dolorosa. Esta possibilidade, ela deve-a à existência de um córtex associativo capaz de criar novas estruturas, novas relações abstractas, entre os elementos memorizados no sistema nervoso.» H. Laborit, UHomme Imaginant, 1970 Numa perspectiva biologista, o homem produz cultura porque possui um sistema nervoso complexo, desenvolvido em funcão do estabelecimento de trocas (materiais e mensagens) com o meio e os outros homens - os seres inanimados e animados,- logo, o homem possui o sistema nervoso (o dispositivo mediador entre o interior e o exterior) dum animal que é social porque é também produtor e transmite os conhecimentos atravês da aprendizagem. 0 seu dispositivo de relação com o mundo inclui a zona cortical do cérebro onde se aloja o imaginário. Assim, o homem produz cultura como modo de sobrevivência que se efectua em grupo. Mas não é apenas produtor, também é portador de cultura pois é susceptível de aprendizagem: nasce vazio de cultura, mas com um dispositivo biológico que lhe permite adquiri-Ia. Dizer que o homem é um animal cultural significa que ele é produtor de objectos materiais e simbólicos e também herdeiro da memória do grupo, pois qualquer sociedade só se realiza e perpetua através da cultura - ---a cultura fornece a matéria-prima de que o indivíduo faz a sua vida- (Ruth Benedict) (e). Ao nascer, o indivíduo interioriza quer espontânea quer violentamente os modelos do grupo e enquadra o seu comportamento de base biológica nos comportamentos socioculturais, que se tornam automatismos socioculturais. Nasce num determinado nicho ecológico e numa determinada comunidade, ou seja, recebe como herança as técnicas de acomodação e transformação da natureza que a sua comunidade foi acumulando como resposta ao desafio do meio ambiente e, ainda, as regras socioculturais sobre os quais se constitui o funcionamento da comunidade. Nem toda a herança cultural é necessariamente uma resposta de sobrevivência ao meio, porque todas as respostas culturais assentam em projectos mentais e estes dependem do imaginário individual ou de grupo. 0 mesmo ambiente pode suscitar respostas diversas, e, ambientes diversos, respostas semelhantes. Por isto as culturas humanas se multiplicam e só se podem reduzir a características universais da cultura, modelos que se fundamentam em factores biológicos da espécie. 23 Diferentes respostas culturais ao mesmo obstãculo: a captação de peixes Sem pôr de lado os fundamentos biológicos da capacidade cultural, a perspectiva psicanalítica da cultura identifica o objecto cultural (a cultura) com a sublimação, ou sei.a, a procura dum objecto perdido (o desejo), atravésde substituições sucessivas. 0 longo período da infância (juvenilização) do homem irá determinar os quadros de comportamento de toda a vida humana: é o medo da perda do objecto (vivido com a perda da mãe no acto de nascimento, da perda do seio da mãe, medo da perda do sexo, etc.), o medo de ficar só, no escuro, a incapacidade de suportar as tensões, que explicam a civilização. Cada objecto que o homem cria, cada símbolo, cada narrativa ou obra de arte é um outro objecto de substituição, representando um universo de sistemas de fuga a uma realidade que se receia, criando assim um outro universo imaginário com realidades substitutas mais gratificantes ou que permitem imaginar que é senhor da realidade. Tal como a criança, o homem utiliza o objecto substituto como terapia de cura da sua angústia de ausência do objecto real, principalmente se encontra através do objecto que cria, o substituto do objecto perdido ou seja, alimento e prazer. «Considerando antes de tudo os aspectos da cultura humana ( ... ) verificamos que eles oferecem características comuns. Ligam um indivíduo a outro, são a armadilha empregue pelo homem desde criança, para nã o ficar só. Devemos então dizer também que ---aquilo que Deus criou em primeiro lugar foi o medo?” Certamente - se não esquecermos que esta angústia é o produto do passivo amor pelo objecto, da nossa infância, do 24 nosso desejo de ser amado. Nascidos prematuramente (longo período da infância) penduramo-nos a qualquer elemento do mundo exterior que nos traga satisfação. Talvez ninguém me possa contradizer se eu disser que, em última análise, a ---civilizaçao e um sistema de instituições edificadas em função da segurança. - Para a criança isso significa segurança relativamente ao ---eu- e aos perigos libidinais (0). » Geza Roheim, Origine et fonction de Ia culture A cultura surgiria, assim, como uma compensação, uma terapia - toda a cultura humana seria uma anormalidade (pois é anormal o caso patológico, quando o indivíduo se verifica incapaz de agir de acordo com as pulsões e procura sistemas de fuga à realidade). Resultaria de vários processos de fuga, através do imaginário, criando objectos substitutos, materiais ou simbólicos, obras de arte, mitos e utensílios. Qualquer que seja a perspectiva de abordagem da origem da cultura, esta não surge como sistema fechado de grupos isolados em si próprios; a cultura itinera, viaja com os homens, passa de grupo para grupo e as invenções mais eficazes vão sendo recolhidas. A cultura é sempre cumulativa das ideias e coisas em circulação. Essa acumulação de capital cultural é sempre social; o indivíduo pode transportá-la - e acrescentá-la - em vida, se se tornar criador. Porém, ao morrer, o seu capital cultural desaparece consigo, não o transmite biológica /geneticamente,- os seus filhos (re)comecarão a aprendê-lo de novo- só a sociedade, os outros, o podem herdar como “informação”. 0 homem nasce apenas com o capital biológico. Mas o homem morre só. A cultura é esse universo de objectos materiais e simbólicos, carregados de sentido e informação, herdados pela comunidade e por esta transmitidos aos seus membros, que se tomam seus portadores - e eventualmente seus produtores - em vida. 2.1.2. 0 HOMEM, A CULTURA E A SOCIEDADE 0 triângulo biocultural SER BIOLóGICO A cultura é um sistema de troca, pois exige produtores e consumidores e só se explica pela sociedade. É para a organizar e manter a sua coesão que a cultura ganha um sentido que também é ---venclido- aos elementos do grupo social. É este sentido, esta perspectiva global e parcial sobre as coisas que surge como a realidade. «E entretanto, as coisas continuam a existir. É o homem que as analisa, as separa, as enclausura e nunca de forma desinteressada. De início, frente ao aparente caos do mundo, ele classificou, construiu as suas gavetas, os seus capítulos, as suas estantes. Introduziu a sua ordem na natureza para poder agir. E, depois, acreditou que esta ordem era a da própria natureza, sem se aperceber que era a sua, que estava estabelecida com os seus próprios critérios, e que esses critérios resultavam da actividade funcional do sistema que lhe permitia tomar contacto com o mundo: o seu sistema nervoso.» Laborit, ob. cit. C. eC.-2 25 A sociedade tem portanto um papel a representar: transmitir com um sentido, a informação cultural de que é depositária, porque o homem só se define como tal inserido numa sociedade e numa cultura. Robinson Crusoé(e) na sua ilha isolada restaurou a sua cultura memorizada para uma sociedade imaginária; os meninos-lobos da índia ou o menino- selvagem, vítima, em França, da tentativa de inserção na sociedade humana, são apenas projectos de homem e não reconhecem como sua a sociedade humana que rejeitam. Menino-selvagem (No filme de Truffaut) Todas as sociedades constituem, historicamente, os mecanismos institucionais de inserção da criança na cultura do grupo social a que irá pertencer. Ao processo uni .versal pelo qual uma criança aprende, a partir do nascimento, a ajustar o seu comportamento à cultura da sua sociedade, chama-se endoculturação ou incultutacão. Paralelamente parece funcionar um outro mecanismo de insercao, este de disciplina social, a socializaçã o, processo de aquisição de conhecimentos, modelos, valores e símbolos (atitudes sociais) adequados ao seu lugar na hierarquia social. Na linguagem da Psicologia americana, a criança com a socialização, aprende ospapéis sociais dos estatutos que irá assumir. Endoculturação e socialização são dois processos, separados apenas para estudo; na criança realizam-se ao longo do processo de aprendizagem que destinam - de forma violenta pois vão contra as pulsões da criança - o lugar do seu novo membro na sociedade. De acordo com os seus futuros estatutos sociais, a criança receberá a fatia cultural que lhe permite preencher o seu lugar. São, portanto, mecanismos de reprodução social (e), 0 extracto seguinte de Nuno Bragança apresenta um caso de uma criança com evidentes lacunas de endoculturação, pondo em risco a sua disciplina social. « Um dia peguei em uma caneta, em um tinteiro e em uma folha de papel, e fui sentar-me a uma pequena mesa em um pequeno gabinete, e escrevi no alto da folha e em letras grandes: U OMÃ1 OE DA VA PUL US Depois chupei o rabo da caneta, que sabia a lavado e a polido, e escrevi por baixo e em letras pequenas o seguinte.- LI omãi qe dava pulus era 1 omãi qe dava pulus grades. El pulô tantu qe saiu pêlo tôpu. Isto feito, levei o papel ao meu tio Maurício, que estava sempre a ler jornais. 0 tio Maurício olhou para o meu, escrito e foi-se embora com ele sem me dar palavra. Dois dias mai.s tarde reuniu-se o /// Conselho de Família por causa do Pequeno.» Nuno Bragança, in A noite e o Riso 26 A criança tem dificuldade em rejeitar os modelos culturais e sociais que lhe são impostos, pois que, recusando-os, nega a própria família, o seu único lugar de segurança. Estes modelos vêm carregados de violência simbólica (revestidos da autoridade que permite canalizar a mensagem, legitimando-os). No texto, a autodeterminação da crianca, aprendendo a ler sem ajuda, não é mais do que a imitação dum modelo a seguir, o tio Maurício. Como resposta a esta necessidade de inserção dos seus membros, a sociedade estabeleceu instituições que, dum modo mais ou menos fixo e por etapas, são introduzidas no percurso do crescimento daqueles, determinando a sua maturação e aceitação sociocultural. Uma vez mais encontramos os três eixos do homem: o biológico, o social e o cultural. Desde que nasce, uma estrutura de instituições acompanha a maturação biológica do indivíduo, determinando a sua maturação psicológica: a família, na 1.’ e 2.’ infância; a escola desde a 1.’ infância no jardim-escola e até à idade de adulto, em muitos casos,, o bando juvenil da adolescência queganha muita importância para os desvios sociais, pois àt se colhem outros modelos e valores. Para dar sentido social à maturação biológica, quando adulto, surgem as instituições profissionais, o casamento e as instituições de lazer que preenchem as necessidades de sublimaçã o e de afirmação do poder que as outras instituições não permitam. Com a maturacão biológica e psicológica - ou seja, quando está cumprido este percurso bio-social - o indivíduo tem formada a sua personalidade. SER l’ - 2@ INFANCIA ADOLESCÊNCIA MAIORIDADE > PROFISSÃO BIOLóGICO CASAMENTO ESCOLA BANDO - LAZERES MATURACAO PSICOLóGICA---”’ PERSONALIDADE A inserção sociocultural: a acomodação Cultura e Personalidade A personalidade surge como um produto da sociedade, da cultura e da hereditariedade, fundamentalmente exterior ao indivíduo. A personalidade forma-se do confronto entre o indivíduo e os outros. «A minha verdade, o meu carácter e o meu nome estavam nas mãos dos adultos,aprendera a ver-me com os olhos deles; eu era uma criança, esse monstro que eles fabri- cavam com as suas quei .xas. Ausentes, deixavam atrás de si o olhar, misturado à luz; eu corria, eu saltava através desse olhar que me conservara a natureza de neto modelo, que continuava a oferecer-me os brinquedos e o universo. Na minha bela redoma, na minha alma, os pensamentos giravam-me, qualquer pessoa podia seguir-lhe os manejos.nenhum canto de sonho. No entanto, sem palavras, sem forma nem consistência, diluído nessa inocente transparência, uma transparente certeza estragava tudo.- eu era um impostor. Como representar a comédia sem sabermos que representamos? ( ..) 0 pior é que os adultos me cheiravam a cabotinice. As palavras que me dirigiam eram rebuçados; mas entre si falavam em tom completamente diferente. Além disso, acontecia-lhes romper contratos sagrados, eu fazia o meu beicinho mais adorável, aquele de que estava mais seguro, e então diziam-me com voz verdadeira.- « Vai brincar para mais longe, garoto, estamos a conversar.» Jean-Paul Sartre, As palavras 27 A estrutura da personalidade assenta na cultura,- é através dela que o indivíduo determina o que é verdadeiro e falso, o normal e anódino, o que é obrigação ou interdito, o certo e o errado,- determina a sua consciência e a terapia inconsciente que irá utilizar para esconder o conflito criado entre as suas pulsões e a realidade social. «Mas é necessário precisar o que se entende por formação do sistema nervoso, isto é, em resumo, por sistema educativo. Evidentemente que os meios sociais são muito diferentes.- há poucos pontos de con- tacto entre uma criança nascida nos bairros de lata de Nanterre e uma outra nascida numa família burguesa do 16 ‘ Bairro (Paris). A influência do meio, num e noutro caso, acabará por criar, quase sempre, como resultado, automatismos de comportamento, de J.uízos, de pensamento, como se diz, que tanto num como noutro caso não serão mais do que automatismos. Os que são adquiridos no meio burguês são geralmente favoráveis a uma ascensão hierárquica, passando a maior parte das vezes por uma escola. Fornecem àquele onde são inculcados, uma linguagem, uma atitude, hábitos, juízos de acordo com a estrutura hierárquica de dominância, mas não é garantido que favoreça a criatividade, a originalidade do pensamento. ( ...) Com a passagem dos anos ( ... ) fico assustado com os automatismos que é possível criar, à vontade, no sistema nervoso duma criança. Ser- lhe-á necessária, na sua vida adulta, uma sorte excepcional para se evadir desta prisão, se é que ela o consegue ( .. ) E se os seusjuízos, com o tempo, lhe fizerem rejeitar violentamente estes automatismos, é porque um outro discurso lógico responde melhor às suas pulsões e fornece um quadro mais favorável à sua gratificação. » Laborit, ob. cit. A personalidade engloba, pois, todos os aspectos do indivíduo na sua dimensão biológica, social e cultural, o consciente e o inconsciente,- a sua estrutura biológica herdada e a estrutura sociocultural adquirida. «A personalidade é a soma total dos modos de comportamento actuais ou potenciais do organismo determinados pela hereditariedade e o meio. Nasce e desenvolve-se através da interacção funcional dos quatro principais sectores sobre os quàis os modos de comportamento se organi .zam: o sector cognitivo (inteligência), o sector conotativo (carácter), o sector afectivo (temperamento), e o sector somático (constituição). » H.J. Eysenck, The structure of the Human Personality A personalidade modela-se pelos paradigmas (9) e pelos padrões de comportamento que circulam na sociedade e no grupo. «A sociedade Arapesh pune todo aquele suficientemente insensato para se meter numa cena de violência ou implicar-se num assunto desonroso, que caia na imprudência de se deixar ferir na caça, ou ao qual falte o juízo a ponto de se tomar o centro do insulto público pela sua mulher. Esta sociedade que considera que cada um deve ser doce e servil e que quer ignorar a violência, não conhece qualquer sanção contra aquele que a utiliza. Mas insiste em agir contra aqueles que, por ignorância ou estupidez, a provocam. Quando a ofensa é benigna - como quando um homem se mete numa rixa dos vizinhos - apenas o seu tio maternal virá pedir indemnização. Ao fim e ao cabo esse pobre filho da sua irmã não sofreu já um ferimento e perdeu o seu sangue? Mas se, pelo contrário, ele questionou duma forma indigna em público com * sua mulher, ou com umjovem parente com o qual o ouviram trocarinsultos, então é todo * grupo da aldeia ou das aldeias que toma o assunto em mãos, sempre empurrados pelos tios maternais, executores oficiais do castigo. @ ...) Mas, contra o homem verdadeiramente violento, a sociedade não tem nenhum recurso. Tal tipo de homem enche os seus semelhantes de uma espécie de terror sagrado. Contrariados, eles ameaçam deitar fogo à sua própria cabana, partir os potes e 28 recipientes e deixar para sempre a região. Os pais e os vizinhos, consternados com a ideia de serem assim abandonados, suplicam ao homem para não partir e não os deixar, para não destruir os seus próprios bens - e acalmam-no dando-lhe tudo o que ele dese,ia. É apenas porque toda a educação dos Arapesh tende a minimizar a violência e a confundir os móbiles com que a sociedade pode subsistir, castigando os que provocam a violência e aqueles que a sofrem em vez daqueles que na realidade a cometem.» M. Mead, Moeurs et Sexualité en Océanie Sartre, em « As Palavras», faz notar a tomada de consciência sobre o meio, consciência tardia neste caso, mas que acabará por se impor. 0 homem pode, diz Laborit, ter a sorte de se evadir das malhas prisionais dos automatismos em relação ao meio - a aprendizagem da cultura e a disciplina social - que progressivamente o manipulam. 0 indivíduo é, acima de tudo, os outros, aquilo que aprende da memória colectiva do grupo, como bem demonstra Margaret Mead com o estudo da comunidade indonósia dos Arapesh. Verdadeiro computador que reage automaticamente em grande parte da sua vida, julgando que decide e controla os seus próprios comportamentos em função das suas gratificações individuais. Mas pode surpreender em si mesmo esse comportamento como interiorizado; uma tomada de consciência da teia social pode favorecer a elaboração - novamente inconsciente - de um novo sistema de fuga.- sair da procura da gratificação social pela gratificação da diferença e da criatividade. De qualquer modo, uma paragem do condicionamento marcadamente social arrasta a um outro condicionamento de sublimação, ou ao início de uma desmontagem dos automatismos que é um outro processo de terapia. 0 homem reage criando novas linhas de fuga, de sublimação em sublimação. Esta tomada de consciência passa pela verificação de que o nosso comportamento, que consideramos normal, não o é necessariamente.Há aspectos universais do comportamento humano: aqueles em que o fundamento biológico o caracteriza como comportamento da espécie. Os gestos de saudação, o sorriso, o coçar a cabeça, certos gestos de dependência, são comportamentos universais e, ern muitos casos, compartilhados por outros primatas. Comportamentos universais Só o interdito do incesto é um fenômeno cultural universal e, com ele, a definitiva inslituição do casamento, Porém, a grande maioria dos automatismos culturais e sociais são historicamente localizáveis num tempo e num lugar. Há uma grande variedade de culturas e, necessariamente, de variantes culturais. Essa constatação torna-se principalmente relevante com a expansão dos países ibéricos, desde Pêro Vaz de Caminha que pode considerar-se o primeiro antropólogo (amador) português. 29 «A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas; e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. Traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles ossos brancos, de compridão duma mão travessa, e de grossura dum fuso de algodão, e agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e o que lhe fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrês, e em tal maneira os trazem ali encaixados que lhes não dá paixão, nem lhes torva a fala, nem comer nem beber.» Carta de Pêro Vaz de CamInha a D. Manuel /, 1500 Qualquer sociedade aberta à dinamização cultural verifica este relativismo de culturas, a diferente utilização do corpo, dos objectos e a própria inversão (0) de valores. Se o homem pode reconhecer os outros como homens - caso de Pêro Vaz de Caminha - admitirá essa relatividade cultural e esse será o primeiro passo para a desmontagem das suas próprias crenças. Estranhar o outro é reconhecer o quanto podemos ser estranhos para os outros. Cultura e Linguagem A comunicação é comum à grande maioria dos seres vivos. Mas só o homem tem linguagem verbal, oral e escrita construída socialmente a partir da experiência colectiva,neste sentido o homem é linguagem. «A partir de uma fórmula idêntica à dos primatas, o homem fabrica utensílios e símbolos, uns e outros representantes do mesmo processo, ou, melhor, necessitando no cérebro do mesmo equipamento fundamental; tudo isto leva a considerar, não só que a linguagem é tão característica do homem como o utensílio, mas ainda que se trata da ex- pressão da mesma propriedade humana, exactamente como trinta diferentes sinais vo- cais do chimpazé são o exacto correspondente mental das varas encaixadas para chegar a uma banana suspensa, isto é, nos chimpanzés, a linguagem é tão pouco linguagem quanto as varas encaixadas são uma técnica propriamente dita. » Leroi-Gourhan, 0 Gesto e a Palavra, 1 Há pois uma identidade completa entre a actividade motriz do mundo da mão (que não pode existir sem projecto mental) e a actividade verbal - são um único facto tipicamente humano, um único tipo de fenômeno mental, expresso pelo corpo e pelos sons. 0 raciocínio e a linguagem ligam-se às operações técnicas e com elas nasce o mundo social da mão (a técnica) que evolui em função do simbolismo sonoro e gráfico que irá conduzir à escrita, quando simultaneamente o homem atinge a técnica do fogo e a conquista imperialista do espaço. Utensílios e linguagem estão ligados neurologicamente: ao surgirem novas técnicas - novas séries operatórias de gestos e conceitos, muitas das quais se tornam automáticas e se materializam em cadeias de produção -, igualmente surgem novas séries de organização sintáctica, fornecidas pela memória. De novo se levanta a relação estabelecida entre o cérebro e o meio, representado pela complexidade crescente do sistema nervoso na evolução do homem. As primeiras linguagens estavam fundamentalmente ligadas à expressão do concreto, garantindo a comunicação das séries operatórias simbólicas de acção narrativa; assim surgem os mitos e a arte pictórica. Posteriormente, a linguagem atinge a função de expressar sentimentos fundamentalmente ligados ao sentido religioso, complementando-se a linguagem simbólica verbal com a linguagem figurativa. Ao fixar-se na escrita, a linguagem terá de empobrecer os 30 meios de expressão irracionais, mas ganhará em lógica e coerência interna do discurso, desligando-se cada vez mais do mundo material que tenta representar. Com a difusão da escrita, as variantes individuais decrescem progressivamente, o organismo bolectivo ultrapassa o individual - e aparece materializado na cidade, no país. Entre os diferentes elementos de comportamento social, a linguagem oferece um lugar privilegiado e está em relação com a sobrevivência da espécie. Porém, na vida moderna estão-se a perder a maioria dos símbolos sociais (não há adornos e vestuário característicos da classe social, da profissão, do sexo, das etnias; a participação real nas cerimônias colectivas como paradas, procissões, diminui ou desaparece,- as noções de tempo e espaço uniformizam-se), e do mesmo modo há uma uniformização social da linguagem de relação, quer gestual quer verbal. Tudo tende a uma mega-etnia universal - j .a se verifica isto na divisão mundo ocidental, russo e chinês - - a humanidade, o colectivo, tende a construir uma sociedade onde são isolados alguns produtores de técnicas e símbolos para organizarem o programa das massas. 0 mínimo de liberdade individual, de manutenção duma linguagem de relação que ainda anima tanto o biológico como o social, está cada vez mais restringido, para o homem comum, aos anos que rodeiam a maturação sexual. Do mesmo modo, nas super-organizadas sociedades colectivas dos insectos é esse o único período em que, para uma limitada minoria representativa, se verifica uma certa independência de comportamento. A: Códigos culturais universois B: Códigos culturais de comportamento divulgado C: Códigos culturais de comportamento massificado 31 «É difícil ajuizar acerca do estádio em que se encontra a humanidade actual, em que apenas uma geração separa mui .tos dos seus representantes do tempo dos artesãos, dos lavradores, das bodas de aldeia, dos teatros ambulantes, enfim, de todo um aparelho social cujos vestígios influenciam ainda uma parte importante do globo. E contudo,’ de ano para ano, a exteriorização acentua-se, existindo já milhões de homens que representam qualquer coisa de novo para o etnólogo. Estes homens dispõem de um número mínimo de práticas sociais indispensáveis para garantir o seu movimento quotidiano, de uma infraestrutura de evasão pessoal pré-condicionada pelas férias pagas, pelas estradas, pelos hotéis ou pelos parques de campismo, por umas quantas semanas anuais em que se encontram num estado de «liberdade canalizada»; uma superstrutura superficial permite-lhes ultrapassar os ritos de passagem, como nascer, casar-se ou morrer com o mínimo indispensável de emoção ou de encenação. A sua parte de criação pessoal torna-se inferior à de uma lavadeira do século XIX, enquanto a sua função produtiva se resume à de uma engrenagem exacta, com o despertar, as deslocações e o trabalho perfeitamente cronometrados. (... ) Com efeito, estes homens possuem uma participação social idêntica à dos seus antepassados ( ... ) pela janela da televisão e pelos lábios dos transistores (... ) Mas a con- trapartida é o risco social de uma hierarquização sociaIprovavelmente mais acentuada do que em épocas anteriores; uma estratificação por «selecção racionah) virá a separar da massa os elementos raros a fim de os i .nvesti.r na posição de fabricantes de evasão teleguiada. Uma minoria cada vez mais restrita virá a elaborar, não só os programas vitais, políticos, administrativos ou técnicos, mas também as rações emocionais, as evasões épicas, a imagem de uma vida que se tomou totalmente figurativa,
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