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A CULTURA E AS CULTURAS, 
Introdução à Antropologia 
Cultural
WEBMissionary
Antes de ler este material saiba que ele foi digitado em português de Portugal, 
por isso contém algumas palavras e expressões que não existem em português 
do Brasil. Tente ler este material aproveitando o seu conteúdo, que é de 
altíssimo nível para quem estuda missões interculturais. 
1
ÍNDICE
0. 0 MUNDO EM QUE VIVEMOS, 5
0. 1. o mundo natural e o mundo artificial, 6
0.2. As idéias e as Coisas, 8
1. A ANTROPOLOGIA CULTURAL, 11
1.1. A Antropologia Cultural: o seu ponto de vista,
objetivo e especificidade. Relações com outras ciências humanas e 
sociais, 12
1. 1. 1 A ANTROPOLOGIA CULTURAL E A ANTROPOLOGIA SOCIAL.
ETNOLOGIA, ETNOGRAFIA E HISTóRIA. A ANTROPOLOGIA FISICA, 12
1, 1 .2. 0 CAMPO DE AÇÃO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL, 14
O LABORATóRIO DO ANTROPóLOGO, 21
2.1. A cultura e as culturas, 22
2.1.1. CONCEITO DE CULTURA. 0 HOMEM E AS SUAS OBRAS. AS
QUALIDADES DISTINTIVAS DA CULTURA. DO BIOLóGICO AO 
CULTURAL E DO CULTURAL AO BIOLÓGICO, 22
2.1.2. 0 HOMEM, A CULTURA E A SOCIEDADE, 25
2
2.2. Componentes da cultura, 32
2.1.2. 0 HOMEM. AS SUAS ORIGENS, 32
2.2.2. OS DIFERENTES «STOCKS IRRACIAIS» E SUA DISCRIMINAÇÃO
GEOGRÁFICA, 44
2.2.3. NATUREZA E CULTURA. NATUREZA-AMBIENTE E CULTURA.
DESAFIO E RESPOSTA, 57
2.3. A estruturação da cultura. 59
2.3.1. UNIDADES ELEMENTARES DA CULTURA. TRAÇOS E
COMPLEXOS CULTURAIS, 59
3
2.4. Aspectos universais da cultura, 67
2.4. 1. A TECNOLOGIA CULTURAL OU A ETNO-TECNOLOGIA
CULTURAL, 67
2.4.2. A ECONOMIA: SISTEMAS DE AQUISIÇÃO E DE PRODUÇÃO DE
BENS, ORGANIZAÇÃO ECONÓMICA, 69
2.4,3. A ORGANIZAÇÃO E A ESTRUTURA DA SOCIEDADE, 74
2.4.4. 0 CONTROLO SOCIAL, 84
2.4.5. AS REPRESENTAÇÕES COLECTIVAS, 96
2.5. 0 dinamismo cultural, 112
2.5.1. ASPECTOS ESTÁTICOS E DINÂMICOS DA CULTURA, 112
2.5.2. MECANISMOS DE MUDANÇAS CULTURAIS. MECANISMOS
INTERNOS E EXTERNOS, 114
3. A ANTROPOLOGIA CULTURAL PORTUGUESA, 119
3.1. Alguns aspectos históricos, 120
3.2 Nomes da Antropologia Portuguesa, 122
4. TRABALHOS PRíMICOS, 123
4.1. Leitura de textos, 124
4.2. Visitas, 131
4
4.3. Desmontagem e explicações de festas, ritos,
acontecimentos do quotidiano, etc- 136
GLOSSÁRIO, 138 AUTORES CITADOS, 140 BIBLIOGRAFIA, 141
5
O MUNDO EM QUE VIVEMOS
0 mundo humanizado
0.1. 0 mundo natural e o mundo artificial
«0 Real ? É aquilo que resiste, insiste, existe irredutivelmente, e se dá, 
ao mesmo tempo que se furta, como gozo, angústia ou castração.»
Serge Leciaire, Desmascarar o real
0 mundo que nos rodeia é constituído por objetos, imagens, símbolos. 0 
homem define-se como linguagem, inscreve-se na sociedade, é um ser 
social que tende e se realiza na gregaridade; e a sociedade inscreve-se 
nele, marca-lhe o corpo e o espírito nos hábitos, nos gostos, nos gestos. 
Os seus sentidos captam o mundo através de esquemas de 
interpretação, tornando-o mais próximo, enquadrando-o, domesticando-
o.
«Enquanto realidade ainda não reconhecida e classificada pelo homem, a 
natureza revela-se como o puro Inóspito. Que acontece quando não há 
um projecto humano medianeiro entre nós e a natureza? É o reino da 
absoluta incomunicabilidade. Perante os nossos olhos deslizam 
configurações instáveis, que são incompreensíveis e angustiantes.»
Ernesi Grassi, Arte e Mito
É esse o modo de ser e o destino que o homem criou para si ao tornar-se 
um animal simbólico: transformar a natureza, modificá-la, acrescentá-la, 
dominá-la, para exorcizar(*) o medo e a angústia que o incomunicável 
parece provocar-lhe. Por isso o homem humaniza a paisagem que é o 
seu suporte, transformando a matéria bruta em objectos familiares, 
6
sinalizando um mundo hostil com uma rede de comunicação conhecida 
que sobrepõe ao mundo natural. As imagens que temos do mundo, os 
símbolos com que o podemos representar, interpõem-se 
sistematicamente na nossa percepção: o tipo de cultura que 
interiorizamos oferece-nos um mundo ordenado, diferente, surgindo 
como percepção sensível, imediata, um universo de sensações e imagens 
que ratificam constantemente o novo como (re)conhecido.
«Suspirou profundamente e arrojou-se - havia uma paixão nos seus 
movimentos que justifica a palavra - ao chão, aos pés do carvalho.
Sob toda a transitoriedade do Verão, gostava de sentir debaixo do corpo 
o espinhaço da terra - pois assim se lhe afigurava a dura raiz do 
carvalho - ou, por sucessão de imagens, o lombo de um grande cavalo 
que ia cavalgando; ou a coberta de um navio agitado
- qualquer coisa, na verdade, contanto que fosse firme, pois sentia 
necessidade de alguma coisa a que pudesse amarrar o seu incerto 
coração, o coração que lhe dava arrancos no peito.»
Virgínia Woolf, Orlando
Imagens culturais interpõem-se entre o homem e o mundo e este surge-
lhe transformado, feito de percepções e «alucinações»(*) que se 
apresentam como sensações do vivido no momento.
Tecnicamente, o mundo natural é o mundo intocado, sem intervenção 
do homem,- o mundo humanizado, transformado pela sua ação, é o 
mundo artificial.
Mundo natural e mundo artificial
Na realidade, a percepção do mundo natural não é tão natural como 
parece, pois este é filtrado pelos quadros culturais, pelas imagens e 
pelas ideias pré-concebidas que cada cultura fornece ao indivíduo; o 
mundo natural é sempre humanizado, pois aí se inclui sempre uma 
7
representação do homem que o percepciona. Porém, existe a paisagem 
não-humanizada, aquela onde o homem não marcou a sua passagem, 
nada modificou.
0 processo de transformação do mundo natural em mundo artificial nem 
sempre resulta em sobrevalorização do seu rendimento; instituições 
como a agricultura aumentam o rendimento da natureza em relação às 
necessidades do homem; instituições religiosas proibitivas de ingerir 
certos alimentos naturais - como leite e certa carne de animais - podem 
subaproveitar a natureza. É conhecido o papel da poluição industrial 
sobre uma natureza progressivamente degradada.
FORÇA BIOLÓGICA
(HOMEM)
CULTURA
MUNDO NATURAL
MUNDO ARTIFICIAL 0
Esquema do sobreaproveitamento do mundo natural através da cultura 
A energia humana (força biológica) exercendo-se sobre a natureza cria o 
mundo artificial através da cultura (tudo o que o homem acrescenta à 
natureza), aumentando-lhe o rendimento - sobreaproveitando-o.
FORÇA BIOLóGICA
(HOMEM)
CULTURA
MUNDO NATURAL
8
MUNDO ARTIFICIAL
Esquema de sub-aproveitamento do mundo natural através da cultura
A cultura, aqui, diminui o espaço de utilização do mundo natural pelo 
homem; o mundo natural está subaproveitado. Nem sempre a cultura 
surge como progresso económico.
0.2. As idéias e as coisas
0 mundo artificial não é apenas o resultado da produção humana de 
objectos materiais
- produzidos pela mão ou pelo seu complemento, essa segunda mão do 
homem, que é o utensílio -, é também o resultado de objectos sociais e 
de objectos espirituais que determinam o sentido dos projectos de 
transformação da natureza.
MUNDO NATURAL
coisas materiais
Artefatos
MUNDO ARTIFICIAL
coisas espirituais
Sócio-fatos
Mentefatos
0 mundo da mão e o mundo. do cérebro (in Mesquitela Lima, Int, à 
Antropologia Cultural)
9
Os objetos do mundo da mão são os artefatos, objetos produzidos a 
partir da matéria, objetos materiais como, por exemplo, um cesto, um 
barco ou um vaso de cerâmica; os sociofactos são os objectos sociais 
criados para regular a prática social dos membros duma comunidade, 
como um interdito, uma norma de comportamento, um aperto de mão, 
uma cerimónia de casamento. Os sociofatos sã o puros objectos de 
comunicação que só têm funcionalidade quando exclusivamente 
praticados pelos actores sociais. Os mentefatos são objectos espirituais 
produzidos pelo espírito; tal como os sociofatos pertencem ao mundo do 
cérebro, não implicando, necessariamente,’ a comunicação social, a vida 
em grupo, para existirem e serem produzidos - uma canção, um poema, 
uma lei científica são mentefatos.
Objectos, imagens, símbolos, ideias - ideias ecoisas - constituem o 
mundo da cultura produzido pelo homem. As coisas permitem-lhe usar 
o mundo em seu proveito, e as ideias compreendê-lo, aproximar-se dele 
através da sua grelha de leitura sócio-cultural(*). Não é só a paisagem 
natural que fica progressivamente humanizada,- a leitura da visão do 
mundo natural tem variado através dos tempos e continua a variar de 
cultura para cultura, de ideologia para ideologia, conforme os 
paradigmas científicos vigentes, as crenças e as religiões; a paisagem do 
universo percebido pelo liberal do século XIX não é a
mesma que foi percebida pelo homem do mundo clássico; o mundo do 
místico não é o mesmo do cientista. 0 universo social humano determina 
a apreensão da natureza ambiente.
10
É este o mundo que nos rodeia, um mundo de idéias, um mundo de 
coisas. 0 homem produtor de objectos, símbolos e conceitos, rodeia-se 
de uma intrincada rede simbólica de comunicação que reproduz, no 
exterior, a complexidade do seu próprio sistema nervoso; através dos 
outros (receptores de mensagens) situa-se a si mesmo como sujeito 
(emissor de mensagens) e determina, fora de si, o seu lugar no mundo 
social e físico. Representa o seu papel dentro dum mundo artificial que 
não deixa de se tornar mais complexo, acumulando continuamente 
novos elementos de cultura porque as culturas emigram com os homens 
e deixam traços no mundo inteiro. As invenções, as descobertas e as 
práticas mais eficazes são adoptadas pelos povos mais diversos e a 
cultura constitui-se como cumulativa.
«Que esta história cumulativa não seja privilégio de uma civilização ou 
de um período da história, é convincentemente mostrado pelo exemplo 
da América. Este imenso continente vê chegar o homem em pequenos 
grupos de nómadas atravessando o estreito de Behring favorecido pelas 
últimas glaciações, numa data talvez não muito anterior ao 20. ‘ milénio. 
Em vinte ou vinte e cinco mil anos, estes homens conseguiram uma das 
mais admiráveis demonstrações de história cumulativa que existiram no 
mundo: explorando a fundo as fontes do novo meio natural, domesticam 
(ao lado de determinadas espécies animais) as espécies vegetais mais 
variadas para a sua alimentação, os seus remédios e
os seus venenos - facto nunca antes igualado -, promovendo 
substâncias venenosas, como a mandioca, ao papel de alimento base, 
outras ao de estimulante ou de anestésico coleccionando certos venenos 
ou estupefacientes em função das espécies animais sobre as quais 
exerce uma acção electiva: finalmente, levando determinadas indústrias 
como a
tecelagem, a cerâmica e o trabalho de metais preciosos ao mais alto grau 
de perfeição. Para apreciar esta obra imensa, basta medir a contribuição 
da América para as civilizações do Mundo Antigo. Em primeiro lugar, a 
batata, a borracha, o tabaco e a coca (base da anestesia moderna) que, a 
títulos sem dúvida diversos, constituem quatro pilares da cultura 
ocidental,- o milho e o amendoim que deveriam revolucionar a economia 
africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar europeu - 
em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, o pimento, várias 
espécies de feijão, de algodões, de cucurbitáceas. E, finalmente, o zero, 
base da aritmética e, Indirectamente, das matemáticas modernas, era 
conhecido e utilizado pelos Mayas pelo menos meio milénio antes da sua 
descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por 
intermédio dos Árabes. Talvez por esta mesma razão o seu calendário 
fosse mais exacto que o do mundo antigo.
................................................................................... 
................................
Se o critério adotado tivesse sido o grau de aptidão para triunfar nos 
meios geográficos mais hostis, não havia qualquer dúvida de que os 
esquimós por um lado e os beduínos por outro levariam as palmas. A 
Índia soube, melhor do que qualquer outra civilização, elaborar um 
sistema filosófico-religioso, e a China, um gênero de vida, capazes de 
reduzir as consequências psicológicas de um desequilíbrio demográfico. 
Há já treze séculos, o Islão formulou uma teoria da solidariedade de 
todas as formas da vida humana, técnica, económica, social e espiritual, 
que o Ocidente só muito recentemente deveria encontrar, sob certos 
aspectos, com o pensamento marxista e o nascimento da etnologia 
moderna. Sabemos o lugar proeminente que esta visão profética 
permitiu ocupar aos Árabes na vida intelectual da Idade Média.
0 Ocidente, dono das máquinas, testemunha conhecimentos muito 
elementares sobre a utilização e os recursos desta máquina suprema 
que é o corpo humano. Neste domínio, pelo contrário, tal como naquele 
outro que a ele se liga, o das relações entre o físico e o
moral, o Oriente e o Extremo Oriente possuem sobre este um avanço de 
vários milénios, produzindo vastas acumulações teóricas e práticas que 
são o yoga na Índia, as técnicas do sopro chinesas ou a ginástica 
visceral dos antigos Maorís. ( ..)
Em tudo o que diz respeito à organização da família e à harmonização 
das relações entre o grupo familiar e o grupo social, os Australianos, 
atrasados no plano económico, ocupam um lugar tão avançado em 
relação ao resto da humanidade que é necessário, para compreender os 
sistemas de regras por eles elaboradas de maneira consciente e
reflectida, apelar para as formas mais refinadas das matemáticas 
modernas. Na verdade, foram eles que descobriram que o casamento 
forma a talagarça sobre a qual as outras instituições sociais são apenas 
rendilhados ( ... ) os grandes sistemas políticos da África antiga, as 
suas construções jurídicas, as suas doutrinas filosóficas durante muito 
tempo
escondidas do Ocidente, as suas artes plásticas e a música, que 
exploram metodicamente todas as possibilidades oferecidas para cada 
meio de expressão, são outros tantos índices de um passado 
extraordinariamente fértil. Este pode ser directamente testemunhado 
pela perfeição das antigas técnicas do bronze e do cobre, que 
ultrapassam de longe tudo o que o Ocidente praticava nesse domínio, na 
mesma época.»
Claude Lévi-Strauss, Raça e História
Cada cultura é sempre um código cifrado de significantes, de que a 
comunidade partilha, se bem que dum modo diverso, o código de 
decifração. Este código vai sendo sucessivamente alterado com novas 
aquisições e aproximações da realidade. 0 mundo artificial tende hoje a 
um carácter planetário, regendo-se por hábitos e padrões onde a 
diferença se torna mais rara,- ao mesmo tempo há um movimento 
crescente de aproximação patenteada pelas organizações internacionais 
como a 0. N.U. e tantas outras. Como se o homem tivesse cada vez mais 
consciência de que esse mundo artificial poderoso e
perigoso, cobrindo mais do que o seu planeta, seja o patamar da sua 
destruição.
«0 mundo começou sem o homem e acabará sem ele. As instituições, os 
costumes e os hábitos que eu teria passado a vida a inventariar e a 
compreender são uma eflorescência passageira de uma criação em 
relação à qual não possuem qualquer sentido senão, talvez, o de 
permitir à humanidade desempenhar o seu papel. Longe de ser este 
papel a marcar-lhe um lugar independente e de ser o esforço do homem 
- mesmo condenado
- a opor-se em vão a uma degradação universal, ele próprio aparece 
como uma
máquina, talvez mais aperfeiçoada que as outras, trabalhando no 
sentido da desagregação de uma ordem original e precipitando uma 
matéria poderosamente organizada na direcção de uma inércia sempre 
maior e que será um dia definitiva. Desde que ele começou a respirar e a 
alimentar-se até à invenção dos engenhos atómicos e termonucleares, 
passando pela descoberta do fogo - e excepto quando se reproduz - o 
homem não fez mais do que dissociar alegremente biliões de estruturas 
para reduzi-Ias a um estado em que elas já não são susceptíveis de 
integração. Sem dúvida que ele construiu cidades e
cultivou campos,- mas, quando pensamos neles, estes objectos são, eles 
próprios, máquinas destinadas a produzireminércia a um ritmo e numa 
proporção infinitamente mais elevada que a quantidade de organização 
que implicam. Quanto às criações do espírito humano, o seu sentido não 
existe senão em relação a ele, e elas confundir-se-ão com a desordem 
quando ele tiver desaparecido. Se bem que a civilização, encarada no 
seu conjunto, possa ser descrita como um mecanismo prodigiosamente 
complexo em que seríamos tentados a ver a oportunidade que o nosso 
universo teria de sobreviver se a sua função não fosse senão fabricar o 
que os físicos chamam entropia, isto é, inércia. Cada palavra trocada, 
cada linha impressa, estabelecem uma comunicação entre dois 
interlocutores, tomando estacionário um nível que se caracterizava 
anteriormente por um
afastamento de informação, portanto, uma organização maior. Em vez de 
antropologia, seria necessário escrever «entropologia», o nome de uma 
disciplina dedicada ao estudo, nas suas manifestações mais elevadas, 
deste processo de desintegração.
No entanto, existo. » Claude Lévi-Strauss, Tristes 
Trópicos
Marcado no corpo e no espírito pelo seu próprio processo de evolução e 
desenvolvimento, o homem não sabe outra forma de estar no mundo; 
quando recusa e tenta afastar-se deste mundo simbólico que o afastou 
definitivamente do mundo natural - e da realidade - cai no vazio social 
pois a sua recusa em ser o intérprete do mundo natural é visto pela 
sociedade como loucura,- a cultura fez uma tal leitura do nosso mundo 
que o
homem não se reconhece nele; é a incomunicabilidade total e 
consciente.
« Toda a escrita é uma porcaria. As pessoas que saem do indeciso para 
tentar precisar seja o que for do que se passa no seu pensamento, são 
uns porcos.
Toda a gente literária é porca, especialmente a dos tempos de hoje. 
Todos aqueles que têm pontos de repetição no espírito, num certo lado 
da cabeça, em
locais bem localizados do seu cérebro, todos aqueles que são mestres da 
língua, todos aqueles para quem as palavras têm um sentido, todos 
aqueles para quem existem altitudes de alma e correntes no 
pensamento, aqueles que são o espírito da época, e que denominaram 
essas correntes do pensamento, eu penso nas suas precisas 
necessidades, e nesse movimento de autómato que atira a todos os 
ventos o seu espírito - são uns porcos.»
Antonin AQaud, Le Pése-Nerfs
10
o z,
.... ......
(@ A_ ANTROPOLOGIA CULTURAL
0 Museu Antropológico não é, necessariamente, o ponto de chegada da 
Antropologia
1.1. A Antropologia Cultural: o seu ponto de vista, objectivo e 
especificidade. Relações com outras ciências humanas e sociais
1. 1. 1. A ANTROPOLOGIA CULTURAL E A ANTROPOLOGIA SOCIAL. 
ETNOLOGIA, ETNOGRAFIA E HISTóRIA. A ANTROPOLOGIA FíSICA
A Antropologia constitui-se como ciência autónoma em torno de três 
teorias: no século XIX, com o evolucionismo darwiniano(e); na primeira 
metade do século XX, com o funcionalismo(*) e a partir da década de 60, 
com o estruturalismo(*).
Define-se como o estudo da origem e evolução do homem numa 
perspectiva biológica, do âmbito das ciências da natureza. Será este o 
campo de estudo da Antropologia Física, quando outras perspectivas de 
estudo passam a caber no universo da Antropologia. Na realidade, o 
próprio método de estudo da Antropologia Física, recorrendo à 
comparação de testemunhos ósseos, fósseis e instrumentais, e a mesma 
conclusão do homem como produtor de cultura, motor da sua 
progressiva adaptação e transformação, obrigam à ramificação do estudo 
do homem. A Antropologia Física utiliza a metodologia das ciências da 
natureza, o método indutivo no século XIX, e a experimentação rigorosa 
no século XX. 0 estudo, em trabalho de campo, com observação 
participante da parte dos investigadores, fez surgirem duas vias 
diferentes de perspectivarão no estudo das comunidades humanas: uma 
que tem como objecto genérico a cultura, incidindo sobre o estudo de 
objectos materiais, e outra que tem como objecto os fenómenos sociais, 
as instituições. A primeira via pertence à Antropologia Cultural e a 
segunda à Antropologia Social.
A Antropologia Física desenvolve-se dentro do darwinismo que acabará 
por ser o seu grande fundamento teórico; o corpo da Antropologia Física 
enriquece-se com contribui-
12
ções de antropólogos americanos, alemães, franceses e da Península 
Ibérica. Os antropólogos ingleses e americanos desenvolvem o 
funcionalismo, numa perspectiva de estudo das instituições dos povos 
«primitivos actuais»,- a geração de funcionalistas da primeira metade do 
século cria escola e empurra o academismo escolar e a investigação 
inglesa e americana para a Antropologia Social. Em França, os mesmos 
objectivos de estudo de comunidades primitivas eram visados pela 
ciência dos povos e dos seus costumes - a Etnologia - e pela Etnografia, 
levantamento sistemático de hábitos, crenças, folclore, testemunhos 
culturais e sociais.
Existe hoje um certo sentido tradicionalista de academismo, próprio de 
cada país, e o mesmo objecto - o homem como ser cultural - é estudado, 
por vezes recorrendo aos mesmos métodos, por antropólogos culturais, 
sociais e por etnólogos.
Permanecem vagas distinções de objectivos, nas definições dos diversos 
ramos: Antropologia Social, o estudo do homem social e cultural; 
Antropologia Cultural, o estudo do homem como produtor de cultura,- 
Etnologia, o estudo da origem e evolução dos povos primitivos a partir de 
material etnográfico; Etnografia, a descrição de usos e costumes dos 
povos.
Se a Antropologia Física teve dificuldade em separar-se do campo de 
estudo da Paleontologia e da Pré-história, o mesmo acabaria por 
acontecer com a Etnologia e a Antropologia Cultural em relação à 
História. Se bem que a História Nova tenha recebido da Antropologia 
noções importantes como a longa duração e área cultural, a História não 
pode identificar-se com estas duas ciências, já que a característica 
fundamental da História é o tempo, o que não sucede na Antropologia e 
Etnologia que se orientam para o homem integral, fora do tempo.
Estes problemas de identidade que se levantam na construção das 
disciplinas e ciências do homem ultrapassam-se pela especificidade dos 
seus métodos e pelo recurso à interdisciplinaridade. Antropologia Física, 
Social e Cultural podem, em conjunto ou separadamente, estudar o 
homem em geral, intemporal e anónimo.
Sendo o homem um ser simultaneamente individual, cultural e social, é 
necessário o concurso de disciplinas e ciências que consigam explicá-lo 
como ser integral.
HOMEM
SER INDIVIDUAL
SER CULTURAL
SER SOCIAL
Antropologia Física
Antropologia Cultural
Antropologia Social/Sociologia
Antropometria
Craniometria
Genética
Paleontologia Humana
Antropologia Racial
Etno1og@a, Emografia
ra a
Ergologia A@(jijeoIogia
Tecnologia Pré história
Folclore
Emo musicologia
História
Etno-SocioIogi
Política
Estética
Moral
Direito
Economia
4
Religião
Mitologia
Arte
1
1
Demografia
Esquema das ciências humanas e sociais (In M. lima, «Int. à 
Antropologia Cultural»
13
1. 1.2. O CAMPO DE ACÇãO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL
*/*
Herdeira dos conceitos de cultura, civilização e progresso criados pelo 
Iluminismo e, ainda, de todo um enorme material recolhido nos três 
séculos de imperialismo marítimo europeu, a Antropologia Cultural 
centrou-se na constatação da diferença das outras raças e culturas em 
relação às do homem branco colonizador. É, pois, uma Antropologia do 
homem branco que se institui como ciência positiva(*), distinguindo-se 
das outras ciências sociais e humanas pelo seu objecto - o homem como 
produtor cultural - e
pelo seu método - o trabalho de campo (recolha de elementos através da 
inserção do antropólogo na comunidade a estudar).
É neste sentido segregacionista que surgem os primeiros trabalhos 
antropológicos do americano Lewis Henry Morgan e do inglês Eciward B. 
Tylor: a tarefa da Antropologia seria estabelecer «pelo menos uma escala 
grosseira de civilização», ou seja, definir para as civilizações,tal como 
Darwin fizera para as espécies, uma escala evolutiva desde «os 
seivagens» às «nações civilizadas». Os «selvagens» tornam-se, assim, o 
objecto privilegiado da Antropologia, enquanto das nações «civilizadas» 
saem os sujeitos desse estudo e a avaliaçã o das populações. As 
primeiras Sociedades de Antropologia surgem em Paris (1838) e Londres 
(1843) em pleno «take-off» do capitalismo industrial: as colónias 
sobreexploradas em crescentes espaços com as expediçõ es de 
exploração científica e ocupa cão política, fornecem as indispensáveis 
matérias-primas baratas para o surto produtivo. É só’, porém, após o 
Congresso de Berlim e a 1.1 Partilha de África que a Antropologia surge 
aos governos como o instrumento indispensável para a dominação eficaz 
dos países ultramarinos; tal é o objectivo claramente expresso nas 
instruções para os administradores coloniais ingleses.
«0 melhor processo para se atingir a pacificação é empregar uma 
acção combinada de força e política. Convém recordar que nas guerras 
coloniais, que infelizmente nos impõe, regra geral, a insubmissão das 
populações, é indispensável só destruir em último caso, e, mesmo neste, 
destruir para reconstrui .r de novo. (...)
A CÇÃO POLíTICA.- - A acção política é de longe a mais importante,- ela 
retira a sua
força do conhecimento do país e dos seus habitantes; é neste sentido 
que devem orientar-se todos os esforços dos comissários coloniais. É o 
estudo das raças que ocupam uma região, que determina a organização 
política que se lhe vai impor, os mei .os a empregar para a sua 
pacificação. Um oficial que consegue elaborar uma carta etnográfica 
suficientemente exacta do território que ele comanda, está bem próximo 
de obter a completa pacificação, seguida da organização que melhor lhe 
convier.
Todos os aglomerados, indivíduos, raças, povo, tribo ou família 
representam uma
soma de interesses comuns ou opostos. Se há hábitos e costumes a 
respeitar, há também conflitos e ódios que convém aproveitar no nosso 
interesse... Cortar o cabecilha e
sossegar a massa, afastada por conselhos pérfidos e afirmações 
caluniosas.- é o segredo duma pacíficação. » instruções de Galieni para a 
pacificação, enviadas aos administradores civis e militares e chefes das 
colónias
inglesas, 1898
A vocação de segregação e a sua prática ideológica permitem ao inglês 
Bronislaw Malinowski(*), criador do funcionalismo moderno, dizer que: 
«A Antropologia ensina ao administrador colonial como tirar a terra ao 
nativo, segundo os costumes nativos.»
A crítica que se efectua ao Darwinismo Social(@) inclui-se num 
movimento desigual, mas de negação sistemática do optimismo 
positivista e ainda do desenvolvimento da epistemologia(c). 0 
funcionalismo de B. Malinowski incide nas características universais da 
cultura humana e justifica as diferenças culturais pela influência 
histórico-geográfica. Já mesmo antes do final da Segunda Guerra 
Mundial, do processo de descolonização e
da actualização da Antropologia elaborada pelo estruturalismo, novos 
conceitos tinham invadido a Antropologia.- dinâmica cultural, 
etnocentrismo, racismo.
É, porém, com a descolonização e a consequente diminuição da área de 
exploração dos antropólogos, que as escolas de antropologia tradicionais 
se vêem obrigadas a procurar, nos seus próprios países, material de 
estudo. Os Estados Unidos da América que tinham estudado os índios 
Americanos, a América Latina e a Inclonésia viram-se agora para as 
pequenas comunidades rurais americanas, tradicionalistas, com 
marcadas remi-
14
niscências nas suas instituições, da sua origem sueca, holandesa, 
russa, polaca ou irlandesa. A Inglaterra, vendo-se obrigada a deixar as 
colónias e o seu campo de acção privilegiado - as ilhas do Pacífico - 
estuda o seu meio rural e as franjas urbanas, mantendo sob concessão 
temporária trabalhos de investigação esporádicos na América do Sul e 
no Próximo e Médio Oriente.
Algumas áreas permitem ainda o tradicional trabalho de campo do 
antropólogo, como é o caso da Austrália, do Mato Grosso brasileiro, da 
Nova Zelânclia e de algumas ilhas do Pacífico. Mas este campo 
privilegiado da Antropologia Cultural, as sociedades sem escrita 
(ágrafas), pequenas e tecnologicamente simples, começam a entrar no 
universo dos mitos.
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Harrison Ford (que nos filmes de Spielberg é Indiana Jones, o 
antropólogo americano) como John Book em «A Testernunha» insere-se 
numa comunidade Amish-o reduto de investigação da Antropologia são 
hoje as comunidades conservadoras deste tipo.
«Então, quem poderia estudar livremente hoje em dia a vida real do Irão, 
do Camboja e do Alganistão? Não falo dos observadores ocidentais, mas 
dos etnólogos autóctones e nacionais.- que «jovem nação» não veria aí 
uma forma de espionagem ou de subversão?
Assim, pouco a pouco, as terras da antropologia foram retiradas ao 
antropólogo. »
Jean Duvignaud, in Sciences Humaines. La Crise, Mag. Litt. Nov. 83
0 objectivo da Antropologia Cultural não se transformou; mantém-se 
como o estudo do homem nas suas semelhanças e diferenças, 
levantando as variáveis e invariáveis cullurais quer por meio de trabalho 
de campo, quer através de métodos mais próximos da Antropologia 
Social como os inquéritos a populações e as entrevistas e amostragens 
sociais.
Entretanto, o debruçar-se sobre a sua própria cultura levou os 
antropólogos a indiciarem um conjunto de novos problemas que passam 
a fazer parte da sua investigação, como o problema de civilizados e 
primitivos, selvagens, progresso, etc.
«A palavra «primitivo» designa aqui o estado tecnoeconómico dos 
primeiros grupos humanos, isto é, a exploração do meio natural 
selvagem. Cobre por conseguinte todas as sociedades pré-históricas 
anteriores à agricultura e à criação de gado e, por extensão, aquelas 
que, muito numerosas, prolongaram o estado primitivo na História até 
aos nossos dias. Os etnólogos há muito que criticam este termo que é 
constantemente contradito pelos factos sociais, religiosos ou estéticos e 
que, por esta razão, tomaram uma coloração pejorativa; contudo, não o 
abandonaram, à falta'de um termo que designasse de maneira global os 
povos sem escrita, afastados das «grandes civilizações». Aparece, todavia, 
mais frequentemente, enquadrado por aspas. »
A. Leroi-Gourhan, 0 Gesto e a Palavra, 1
15
0 objecto e o método da Antropologia Cultural J
A Antropologia Cultural estuda as culturas, pois o seu objecto específico 
é o homem como produtor de objectos culturais (materiais e simbólicos.) 
Hoje em dia, na perspectiva do funcionalismo e do estruturalismo, este 
objecto identifica-se, em última análise, com a «trama das relações de 
parentesco», origem de todas as outras instituições e produções 
materiais e simbólicas.
0 método teve de se modificar com o desenvolvimento técnico e a 
progressiva burocratização e mecanização dos meios técnicos e 
humanos, na sequência duma nova forma de intervir.
«Só os povos subdesenvolvidos parecem ser capazes de aguentar, com 
paciência e
tolerância, a presença indiscreta, aparentemente ociosa e sempre um 
pouco patemalista, do antropólogo. E significativo que dos estudos 
levados a efeito no Reino Unido alguns dos mais importantes tenham 
tido por objecto comunidades da Irlanda e do País de Gales - a orla celta 
menos favorecida e menos próspera.
A antropologia social de comunidades que, como as mediterrânicas, são 
parte de uma
grande civilização e de tradições naci .onai.s estabelecidas de longa 
data, levanta ao antropólogo problemas inéditos e modifica o âmbito das 
suas actividades. 0 antropólogo social «clássico» era, idealmente, um 
estudioso que depois de umas leituras gerais de teoria sociológica, 
mitologia e folclore, ia viver durante dois ou trê s anos com uma tribo, 
isolada na savana africana ou numa ilha do Pacífico, falando uma língua 
e tendouma religião próprias, conhecida quando muito por um ou dois 
missionários e por um ou dois administradores, com muito poucos 
contactos com o mundo exterior e, porque sem escrita e sem 
monumentos duradouros, considerada sem história.
Era este o material clássico do antropólogo e nele se afinaram os seus 
métodos de trabalho. A pequena comunidade isolada, uma vez 
dominada a língua, revelava-se no seu quotidiano, por observação 
directa, sem uso de questionários formais ou de métodos estatísticos 
elaborados. As características fundamentais da comunidade - a sua 
econo-
mia, a sua cultura material, os seus sistemas de família e parentesco, a 
sua estrutura política, a sua religião e os seus valores morais - @àm 
aparecendo a pouco e pouco na textura das relações sociais, até ser 
possível ao antropólogo construir um modelo coerente que i.ntegrava 
todos estes aspectos.
Os resultados destes trabalhos antropológicos revelaram ao mundo 
estudioso «civilizado» sociedades de características muito diferentes das 
que este conhecia e, mesmo que os métodos de investigação ou a 
sofisticaçã o teórica do antropólogo deixassem por vezes a desejar, a 
novidade dos seus factos chegava para justificar o seu trabalho. 
Historiadores, sociólogos, filósofos, psicanalistas, estetas, poetas até, 
foram buscar a este
manancial de factos material para novas comparações e especulações. E 
o público leitor mais vasto veio-se apercebendo também do relativismo 
dos valores da sua própria cultura - sobretudo em tópicos de 
popularizaçã o fácil, como as relações entre os sexos, a partir, por 
exemplo, dos livros de Margaret Mead. (.. J
A contribuição específica do antropólogo é de dois tipos.- por um lado 
fornece uma análise detalhada do sistema de família e parentesco e do 
sistema de valores morais que lhe está associado, enquadrando-os na 
estrutura social total, com base em observação empírica que nenhum 
outro estudioso está preparado para fazer; por outro lado, ao considerar 
tópicos que são aparentemente do domínio de outros especialistas, fá-lo 
a partir da maneira como esses tópicos se revelam na prática 
quotidiana.- ligados entre si em
incidentes únicos, produto da interacção de normas e circunstâncias, 
constituindo aquilo a que Mauss chamou «factos soci .ai.s totai.s», os 
momentos das relações sociais de que participam aspectos que outros 
especialistas consideram isoladamente - económicos, legais, religiosos, 
morais, etc. - mas de que o antropólogo, ao apreendê-los ao vivo, nas 
suas interrelações, consegue revelar o significado sociológico.
A experiência das sociedades primitivas, obrigando o antropólogo a 
observação constante, detalhada e sem benefício de estudos prévios, 
auxilia-o agora a observar com ri .gor e sem parti-pris as 
cambiantes de emoção e comportamento que lhe permitem compreender 
e relatar a fábrica social das pequenas comunidades «civilizadas» e, 
sobretudo, os sistemas de valores morais por que se regem.
16
No panorama das ciências sociais contemporâneas o antropólogo ocupa 
assim um
lugar peculiar. Por um lado o seu método impõe restrições de dimensão 
ao seu material.só uma pequena comunidade ou um pequeno grupo 
dentro de uma grande comunidade se prestam a ser estudados por este 
método lento, longo, com poucas entrevistas estruturadas e que exige 
um conhecimento profundo das pessoas envolvidas. Por outro, esse 
conhecimento profundo, quando realmente obtido, permite uma 
descrição muito mais verdadeira e detalhada da comunidade que as 
baterias de testes dos sociólogos de questionário - para não falar nos 
exerci@ios dos economistas fazendo sociologia ou nas especulações dos 
legistas.
Para usar uma analogia, como todas as analogias não perfeitamente 
apta, o antropólogo é comparável ao artesão tradicional,- os restantes 
cientistas sociais, aos operários e
técnicos que, numa fábrica, manufacturam, agora, industrialmente, o 
mesmo produto. Como o artesão, o antropólogo tem um prazer criador 
mais completo com o seu trabalho que os outros especialistas e, desde a 
matéria-prima ao produto acabado, conhece melhor a realidade com que 
lida. Os outros especialistas dividem entre si conhecimentos de vária 
ordem que, às vezes, o antropólogo não possui ., mas o antropólogo é 
o ú nico que considera a realidade in totto e está apto a lhe aperceber o 
nexo interior.»
José Culileiro, Prefácio de Honra e Vergonha, J. G. Peristiany, Ed. C. 
Gulbenkian
0 trabalho de campo, actualmente, assenta num modelo de intervenção 
que pode resumir-se nas seguintes fases:
1. - Escolha e definição do lugar de intervenção (no Relatório final, a 
monografia do trabalho, estes elementos darão inicio à situação 
geográfica, morfologia e infraestruturas);
2. - Levantamento dos factores de homogeneidade, geográficos e 
morfológicos---que se polarizam nos centros regionais; ritmos de vida e 
identificação de habitantes (em relação com as designações geográficas 
como alto, baixo, monte, planície, etc.);
3. - Representação da população activa por ramos de actividade para 
saber indícios de mentalidade urbana e rúral, e grau de evolução.
As técnicas utilizadas são habitualmente as técnicas de trabalho de 
grupo, em amostragens significativas, experimentais e activas 
(observação participante), com debates em grupo, criatividade, jogos de 
simulação, etc. Seleccionam-se alguns grupos e um grupo-teste (modelo 
controlado, incluindo jovens da região) com elementos extremos de 
acordo com as actividades, áreas, idades, etc.
Este modelo de intervenção é seguido da análise dos dados recolhidos. A 
análise incide sobre os códigos, do dito e do não-dito, procurando 
identificar, através de expressões comuns a certos grupos, a 
predominância dos valores sociais da comunidade que surgem na 
linguagem dicotomicamente, como virtude/eficácia, ser/ter, 
precaução/previsão, etc. Parte-se, assim, do princípio que nos grupos 
amostragem e no grupo modelo se reflectem as características da 
linguagem geral, quer por apropriação dum grupo social, quer por 
representar realmente a mentalidade cultural geral ‘
Nas sociedades mediterrânicas, a dicotomia utilizada pelos antropólogos 
foi, no caso referido por José Cutileiro(e), honra/vergonha. No resultado 
da análise de dados, a monografia surge acompanhando de perto o 
modelo apresentado, como se pode retirar da leitura do texto que segue.
«0 material sobre o qual se baseia a discussão que se segue foi recolhido 
durante o trabalho de campo, necessário para um estudo mais vasto, em 
1965 e 1967 A coniu111dade alentejana onde este trabalho foi realizado 
chamar-se-á aqui Vila Velha e será muito sumariamente descrita. Trata-
se de um grupo de seis povoações pequenas que, com cerca de nove mil 
hectares de terra que as rodeiam, consti .tuem uma freguesia. Em 
1966 contava cerca de mil e seiscentas almas, mas a população (que 
aumentara entre 1868 e
1940) estava (e está ainda) a diminuir como resultado de emigração para 
centros urbanos portugueses e para países mais industrializados da 
Europa Ocidental. Embora à volta das povoações a propri .edade esteja 
muito fragmentada e cerca de metade das famílias residentes possua 
terra, só cerca de vinte e cinco proprietários locais não necessitam 
trabalhar em terras que não sejam suas ou suplementar, por outros 
meios, os rendimentos
17
destas. E as grandes casas agrícolas da região que absorviam, até há 
pouco tempo, quase toda a mão-de-obra local, pertencem a uma dezena 
de famílias quase todas residentes numa vila próxima. Estas famílias 
possuem entre si 54% da área da freguesia e auferem 55% do 
rendimento colectável da mesma. 42% do rendimento colectável cabe 
aos três principais latifundiários. As principais produções da freguesia 
são o trigo, a azeitona e a lã de alguns rebanhos.
A sociedade está pois muito estratificada e as famílias ligadas à terra 
podem dividir-se em famílias de latifundiários (os grandes lavradores, 
residentes fora, mas quase todos bem presentespor administração 
directa, visitas diárias, relacões de apadrinhamento, intervenção na 
Casa do Povo e na Misericórdia, etc.), de proprietários (os pequenos 
lavradores locais independentes), de seareiros (que cultivam terras de 
parceria, pagando um terço ou um quarto da colheita, geralmente, aos 
proprietários dos direitos de exploraCão da terra) e de trabalhadores 
rurais.
Sobre certos aspectos estamos diante de várias comunidades 
sobrepostas e isso é claro quando se analisa a composição dos 
casamentos - quem casa com quem. 0 mercado matrimonial dos 
trabalhadores rurais restringe-se quase só à sua aldeia e às duas 
aldeias mais próximas,- o dos seareiros cobre a freguesia e inclui parte 
de uma freguesia vizinha, com povoações próxi .mas. Os proprietários 
casam dentro do concelho e em concelhos limitrofes. 0 mercado 
matrimonial dos latifundiários cobre a província inteira e
inclui, por vezes, famílias ricas, de outras províncias. Na medida em que 
a família, parentesco e afinidade têm relações directas com o sistema de 
valores morais em discussão, estes factos são importantes.
Os valores da honra, como diz Campbell no seu ensaio, são egoístas e 
particularistas. A protecção dos interesses do próprio e da sua família é 
fundamental e há poucas normas de comportamento para com os outros 
que sej .am de aplicabilidade geral. Em Vila Velha, honrar pai e 
mãe é um dos poucos mandamentos da Lei de Deus que é também um 
mandamento da comunidade. Sendo a natureza humana decaída e a 
luta pela vida difícil--- velhos e velhas, sobretudo pobres, são por vezes 
descurados pelos filhos - mas tal comportamento é sempre acerbamente 
comentado. À medida, porém, que a posição das pessoas, em relação ao 
núcleo familiar, se afasta, as obrigações de honestidade -
para nem sequer falar de honra - proporcionalmente diminuem. Os 
deveres para com parentes próxi .mos são maiores que os deveres para 
com parentes afastados mas, em ambos os casos, mais escassos e 
menos bem definidos que os deveres para com os membros do grupo 
familiar. Os amigos merecem parte da deferência concedida a familiares 
mas as obrigações da amizade não são sagradas como, idealmente, as 
impostas pela família e prestam-se portanto a manipulações que podem 
pôr a amizade em causa. «Amigos, amigos, negócios à parte» significa 
exactamente que, ao negociar com amigos, um homem vê-se perante o 
conflito entre o seu dever egoista de tirar toda a vantagem possível dos 
outros e as obrigações igualitárias e abnegadas da amizade. Para lá de 
parentes e
amigos estão os estranhos mas, mesmo com estes, se lida de diferente 
maneira, consoante a distância estrutural a que se encontram.
Quando, a seguir à Guerra Civil de 1936-1939, toda Vila Velha 
contrabandeava para Espanha, mandavam-se às vezes sacos cheios, no 
terço supen .or com café e nos dois terços inferiores com terra. A 
mercadoria era paga na entrega, no campo e de noite, e a natureza da 
operação não permitia ao destinatário final lesado queixar-se. Na 
ausência de sanções legais possíveis, só uma obrigação moral impediria 
este tipo de comportamento. Mas os espanhóis são, de todos os seres 
humanos que os habitantes de Vila Velha conhecem, os que mais 
estranhos lhes são e essa obrigação moral não se aplicava a eles.
Estes dois aspectos.- a) importância dos deveres familiares com a 
obrigação ideal de um homem (ou uma mulher) pôr o interesse da sua 
família nuclear acima de quaisquer outros;
b) estratificação social bem marcada, com o poder político e económico 
nas mãos de
uma pequena mi .nori.a e com uma grande maioria competindo na 
procura dos favores, muitas vezes agudamente necessários mas de que 
há sempre uma oferta reduzida, dessa minoria - são as duas 
características da estrutura social que é necessário ter em conta para 
compreender o sistema ideal de valores e as distorções que esse sistema 
sofre nasua aplicação prática.
18
Idealmente, um homem é soberano e independente e detém a 
responsabilidade de uma família. Deve ser corajoso sem ser temerário, 
firme nos seus propósitos sem ser obstinadamente teimoso, e dotado de 
bom senso e sabedoria da vida que lhe permi .tam estabelecer 
compromissos sem, aparentemente, sacrificar a sua independência. 0 
acesso aos direitos e deveres da hombridade (qualidade de ser homem) 
faz-se pelo casamento. Um homem solteiro permanece para sempre um 
«rapaz» e o status moral de um «rapaz» é inferior ao de um homem. 
Quando um grupo de homens vacila perante um empreendimento, 
mostrando tibieza ou falta de sentido das responsabilidades, ouve-se às 
vezes um deles dizer: «Então, somos homens ou somos rapazes?»
A entrada no casamento traz, todavia, consigo um número de riscos dos 
quais o mais importante é o risco de uma diminuição de reputação, 
devido ao comportamento irregular da mulher ou, menos grave, das 
filhas. A atitude em relação aos celibatários, que nunca podem gozar do 
prestígio acessível a um homem casado, tem que ser compreenoida 
nestes termos.- o celibatário não tomou a sua quota-parte das 
responsabilidades e dos riscos de ser homem. Quando o celibatário tem 
acesso a mulheres casadas não aparentadas com ele - como é o caso dos 
padres - a atitude toma-se ainda mais dura. Ilustra-a o dito de um 
pequeno proprietário numa discussão com um padre: «Eu, os filhos que 
faço, têm o meu nome.»(’) 0 prestígio de um homem, a sua reputação, a 
sua honra - embora a palavra seja raramente usada - o que faz dele «um 
homem de vergonha», dependem tanto dele como da sua família e é 
considerando a família e não apenas os seus membros, isoladamente, 
que podemos compreender cabalmente este sistema de valores.
0 status de qualquer familia depende de factores morais e de factores 
materiais. Idealmente, a dicotomia dos sexos é clara neste ponto: cabe 
ao homem assegurar a sobrevivência material e, se possível, a 
prosperidade da família; cabe à mulher garantir que permaneça intacta 
a sua integridade moral. A insolvência do marido e o adultério da 
mulher são as situac(5es~limite que fazem naufragar uma família. E, tal 
como a mulher adúltera deve deixar a sua aldeia ou a sua vila, também 
o proprietário insolvente vai muitas vezes vIver para outro sítio. A 
reprovação da comunidade é forte demais, em ambos os casos, para 
poder ser suportada'face a face. Um homem solvente, cuja mulher é fiel 
e cujas filhas são castas, goza do mínimo de prestígio necessário para 
poder andar de cara levantada e ser aceite, sem troca nem reprovação, 
pelos outros
Cada família real procura aproxi.mar-se deste modelo ideal, mas é 
evidente que a tarefa é mais fácil para as famílias mais prósperas. 
Quanto mais rico um homem é, maior a base material do seu prestígio, 
quanto mais virtuosas as mulheres da sua casa - e a prosperidade ajuda 
a manter os padrões de comportamento identificados, nesta sociedade, 
com virtude - maior a base moral.
Assim, enquanto o sistema de valores ideal parece ser o mesmo para 
todos os grupos da sociedade, as possibilidades de viver de acordo com 
ele variam substancialmente segundo a posição de cada família na 
estratificação social. Há, em todas as sociedades, uma distânci'a que só 
os santos conseguem percorrer, entre valores e normas ideais e a prática 
da vida quotidiana, mas, nesta sociedade, a maior ou menor 
aproximação do ideal não é determinada apenas por características 
pessoais mas também por condicionantes estruturais que a delimitam, 
grosso modo, para grupos inteiros da população. Este ponto é muito 
importante: ricos e pobres vivem diferentemente não por terem códigos 
ideais diferentes mas por ser mais fácil aos ricos aproximarem-se do 
código e ser, às vezes, necessário aos pobres afastarem-se 
diametralmente dele. As implicações deste estado de coisas são 
profundas.
A independência ideal de um homem e a honralvergonha com ela 
associadas são afectadas sempre que ele necessita de se socorrer da 
protecção de outro, colocado mais acima na escala do poder. -0código 
ideal de valores comum a ambos, pressupõe uma igualdade, também 
ideal. Não há ordens ou classes, sancionadas por autoridade Divina ou 
autoridade Real que possuam, ou sejam consideradas pelos seus 
membros e pelo
@1) Alguns padres houve, há duas ou I rês gerações, que deixaram 
descendentes a que deram o nomeou que foram, pelo menos, 
reconhecidos de facto Encontram-se padres na ascendência de 
latifundiários, proprietários e seareiros Estes padres que tinham 
«mulher» e «familia», eram geralmente estimados pois preferia-se a sua 
situação à do padre que, sem «mulher» e sem «fanulia>@, era imed 
atamente suspeito de depredar nas mulheres de outros homens Nunca 
se esperava que um padre fosse casto: quando não dava azo a nenhuma 
suspeita de convivio amoroso com mulheres era suspeitado de 
homossexualidade
19
resto da população como possuindo privilégios que intrinsecamente as 
distingam do resto da população. Filho da filosofia da Revolução 
Francesa, o Alentejo de hoje é «terra livre e alodiab), habitada por 
homens que «nascem livres e iguais em direitos» e que têm consciência 
disso. Há um plano de existência e de consciência em que o trabalhador 
rural se considera igual ao latifundiário. Mas essa igualdade ideal é 
contradita por um sistema económico, social e político que não só 
estabelece grandes disparidades de riqueza como coloca um homem, em 
muitos contextos da vida, na dependência de outros. E essa 
dependência, não obstante os benefícios que possa por vezes acarretar 
ao dependente, diminui a sua estatura moral. Como se diz em Vila 
Velha.- «Isso que eu peço não é favor - minha vergonha me custa. »
A honra e a vergonha da gente de Vila Velha não apresenta assim os 
aspectos dramáticos da honra e da vergonha dos sarakatsani gregos, 
dos cabílios da Argélia, dos bedulnos do Deserto Ocidental do Egipto ou 
dos andaluzes da província de Ronda. Mas os princípios fundamentais 
são os mesmos: primado da família e, para segurança desta, importância 
da prosperidade, aqui geralmente em terras (noutros lugares em terra ou 
em gado) e importância do comportamento sexual das esposas e das 
filhas. Tais pri .ncípi.os que têm sido associados com sociedades 
pequenas de recursos materiais e morais limita- dos, em que a subida 
moral ou material de uns acarreta forçosamente a descida de outros, 
encontram-se, para além de Vila Velha, em toda a sociedade portuguesa, 
não havendo, parece-me,’ a este respeito, grandes diferenças entre a 
população rural e a população urbana, ou recentemente urbanizada, 
das cidades,
A distincão neste contexto entre o citadino e o provinciano, numa 
sociedade em que até há pouco tempo as cidades eram sobretudo 
mercados ou portos de escoamento de produtos agrícolas, em que a 
pouca indústria existente era artesanal ou semi-artesanal e em que 
empresários e operários completavam muitas vezes pela agricultura ou 
pela horticultura os seus rendimentos, não é tão funda que atinja os 
dois aspectos fundamentais tratados nesta discussão.- a estrutura ideal 
da família e o sistema de valores morais com esta associado. »
José Cutileiro, ob. cil,
20
C2,---OlIABORATóRIO DO ANTROPÓLOGO
2. 1. A cultura e as culturas
A cultura e as culturas
«A cultura é a grande engrenagem da satisfação pelo sucedâneo.»
Herbert Marcuse
2. 1. 1. CONCEITO DE CULTURA. 0 HOMEM E AS SUAS OBRAS.
AS QUALIDADES DISTINTIVAS DA CULTURA, DO BIOLóGICO AO 
CULTURAL E DO CULTURAL AO BIOLóGICO
«Apenas vivemos para manter a nossa estrutura biológica; desde o ovo 
fecundado que somos programados para este único fim, e toda a 
estrutura viva não tem outra razão de ser, do que ser. Mas para ser ela 
apenas tem como meio de utilizar o programa genético da sua espécie.
22
Ora este programa genético no Homem tem como conclusão um sistema 
nervoso, instrumento das suas relaçõ es com o meio inanimado e 
animado, instrumento das suas relações sociais, das suas relações com 
os i .ndivíduos da mesma espécie que povoam o nicho onde ele vai 
nascer e desenvolver-se. A partir daíele encontra-se inteiramente 
submetido à organização deste meio. Mas o nicho não penetrará e não 
se fixará no seu sístema nervoso a não ser de acordo com as 
características estruturais deste. 0 sistema nervoso responde 
primeiramente às necessidades urgentes, que permitem a manutenção 
da estrutura do organismo. Depois disto responde ao que chamamos 
‘@ouIsões-, o princípio do prazer, a procura do equilíbrio biológico. (..)
Permite em seguida, devido às suas possibilidades de memorização, 
portanto de aprendizagem, conhecer o que é favorável ou não à 
expressão dessas pulsões, tendo em conta o código imposto pela 
estrutura social que o gratifica, segundo os seus actos, por uma 
promoção hierárquica.
As motivações pulsionais, transformadas pelo controlo social que resulta 
da aprendizagem dos automati .smos socioculturais, controlo social que 
fornece uma nova expressão à gratificação, ao prazer, estarão enfim 
também na origem do jogo do imaginário. ---Imaginário-, função 
especificamente humana que permite ao homem, contrariamente às 
outras espécies animais, de acrescentar, informar, de transformar o 
mundo que o rodeia. ( .. ) Faculdade de criação imaginária que possui a 
espécie humana, a única a permitir-lhe a fuga gratificante a uma 
objectividade dolorosa. Esta possibilidade, ela deve-a à existência de um 
córtex associativo capaz de criar novas estruturas, novas relações 
abstractas, entre os elementos memorizados no sistema nervoso.»
H. Laborit, UHomme Imaginant, 1970
Numa perspectiva biologista, o homem produz cultura porque possui 
um sistema nervoso complexo, desenvolvido em funcão do 
estabelecimento de trocas (materiais e mensagens) com o meio e os 
outros homens - os seres inanimados e animados,- logo, o homem 
possui o sistema nervoso (o dispositivo mediador entre o interior e o 
exterior) dum animal que é social porque é também produtor e transmite 
os conhecimentos atravês da aprendizagem. 0 seu dispositivo de relação 
com o mundo inclui a zona cortical do cérebro onde se aloja o 
imaginário.
Assim, o homem produz cultura como modo de sobrevivência que se 
efectua em grupo. Mas não é apenas produtor, também é portador de 
cultura pois é susceptível de aprendizagem: nasce vazio de cultura, mas 
com um dispositivo biológico que lhe permite adquiri-Ia.
Dizer que o homem é um animal cultural significa que ele é produtor de 
objectos materiais e simbólicos e também herdeiro da memória do 
grupo, pois qualquer sociedade só se realiza e perpetua através da 
cultura - ---a cultura fornece a matéria-prima de que o indivíduo faz a 
sua vida- (Ruth Benedict) (e). Ao nascer, o indivíduo interioriza quer 
espontânea quer violentamente os modelos do grupo e enquadra o seu 
comportamento de base biológica nos comportamentos socioculturais, 
que se tornam automatismos socioculturais.
Nasce num determinado nicho ecológico e numa determinada 
comunidade, ou seja, recebe como herança as técnicas de acomodação e 
transformação da natureza que a sua comunidade foi acumulando como 
resposta ao desafio do meio ambiente e, ainda, as regras socioculturais 
sobre os quais se constitui o funcionamento da comunidade.
Nem toda a herança cultural é necessariamente uma resposta de 
sobrevivência ao meio, porque todas as respostas culturais assentam em 
projectos mentais e estes dependem do imaginário individual ou de 
grupo.
0 mesmo ambiente pode suscitar respostas diversas, e, ambientes 
diversos, respostas semelhantes. Por isto as culturas humanas se 
multiplicam e só se podem reduzir a características universais da 
cultura, modelos que se fundamentam em factores biológicos da espécie.
23
Diferentes respostas culturais ao mesmo obstãculo: a captação de 
peixes
Sem pôr de lado os fundamentos biológicos da capacidade cultural, a 
perspectiva psicanalítica da cultura identifica o objecto cultural (a 
cultura) com a sublimação, ou sei.a, a procura dum objecto perdido (o 
desejo), atravésde substituições sucessivas. 0 longo período da infância 
(juvenilização) do homem irá determinar os quadros de comportamento 
de toda a vida humana: é o medo da perda do objecto (vivido com a 
perda da mãe no acto de nascimento, da perda do seio da mãe, medo da 
perda do sexo, etc.), o medo de ficar só, no escuro, a incapacidade de 
suportar as tensões, que explicam a civilização. Cada objecto que o 
homem cria, cada símbolo, cada narrativa ou obra de arte é um outro 
objecto de substituição, representando um universo de sistemas de fuga 
a uma realidade que se receia, criando assim um outro universo 
imaginário com realidades substitutas mais gratificantes ou que 
permitem imaginar que é senhor da realidade.
Tal como a criança, o homem utiliza o objecto substituto como terapia 
de cura da sua angústia de ausência do objecto real, principalmente se 
encontra através do objecto que cria, o substituto do objecto perdido ou 
seja, alimento e prazer.
«Considerando antes de tudo os aspectos da cultura humana ( ... ) 
verificamos que eles oferecem características comuns. Ligam um 
indivíduo a outro, são a armadilha empregue pelo homem desde criança, 
para nã o ficar só. Devemos então dizer também que ---aquilo que Deus 
criou em primeiro lugar foi o medo?” Certamente - se não esquecermos 
que esta angústia é o produto do passivo amor pelo objecto, da nossa 
infância, do
24
nosso desejo de ser amado. Nascidos prematuramente (longo período da 
infância) penduramo-nos a qualquer elemento do mundo exterior que 
nos traga satisfação.
Talvez ninguém me possa contradizer se eu disser que, em última 
análise, a ---civilizaçao e um sistema de instituições edificadas em 
função da segurança. - Para a criança isso significa segurança 
relativamente ao ---eu- e aos perigos libidinais (0). »
Geza Roheim, Origine et fonction de Ia culture
A cultura surgiria, assim, como uma compensação, uma terapia - toda a 
cultura humana seria uma anormalidade (pois é anormal o caso 
patológico, quando o indivíduo se verifica incapaz de agir de acordo com 
as pulsões e procura sistemas de fuga à realidade). Resultaria de vários 
processos de fuga, através do imaginário, criando objectos substitutos, 
materiais ou simbólicos, obras de arte, mitos e utensílios.
Qualquer que seja a perspectiva de abordagem da origem da cultura, 
esta não surge como sistema fechado de grupos isolados em si próprios; 
a cultura itinera, viaja com os homens, passa de grupo para grupo e as 
invenções mais eficazes vão sendo recolhidas. A cultura é sempre 
cumulativa das ideias e coisas em circulação.
Essa acumulação de capital cultural é sempre social; o indivíduo pode 
transportá-la -
e acrescentá-la - em vida, se se tornar criador. Porém, ao morrer, o seu 
capital cultural desaparece consigo, não o transmite biológica 
/geneticamente,- os seus filhos (re)comecarão a aprendê-lo de novo- só a 
sociedade, os outros, o podem herdar como “informação”.
0 homem nasce apenas com o capital biológico. Mas o homem morre só. 
A cultura é esse universo de objectos materiais e simbólicos, carregados 
de sentido e
informação, herdados pela comunidade e por esta transmitidos aos seus 
membros, que se tomam seus portadores - e eventualmente seus 
produtores - em vida.
2.1.2. 0 HOMEM, A CULTURA E A SOCIEDADE
0 triângulo biocultural
SER BIOLóGICO
A cultura é um sistema de troca, pois exige produtores e consumidores e 
só se explica pela sociedade. É para a organizar e manter a sua coesão 
que a cultura ganha um sentido que também é ---venclido- aos 
elementos do grupo social. É este sentido, esta perspectiva global e 
parcial sobre as coisas que surge como a realidade.
«E entretanto, as coisas continuam a existir. É o homem que as analisa, 
as separa, as enclausura e nunca de forma desinteressada. De início, 
frente ao aparente caos do mundo, ele classificou, construiu as suas 
gavetas, os seus capítulos, as suas estantes. Introduziu a sua ordem na 
natureza para poder agir. E, depois, acreditou que esta ordem era a da 
própria natureza, sem se aperceber que era a sua, que estava 
estabelecida com
os seus próprios critérios, e que esses critérios resultavam da actividade 
funcional do sistema que lhe permitia tomar contacto com o mundo: o 
seu sistema nervoso.»
Laborit, ob. cit.
C. eC.-2 25
A sociedade tem portanto um papel a representar: transmitir com um 
sentido, a informação cultural de que é depositária, porque o homem só 
se define como tal inserido numa sociedade e numa cultura. Robinson 
Crusoé(e) na sua ilha isolada restaurou a sua cultura memorizada para 
uma sociedade imaginária; os meninos-lobos da índia ou o menino-
selvagem, vítima, em França, da tentativa de inserção na sociedade 
humana, são apenas projectos de homem e não reconhecem como sua a 
sociedade humana que rejeitam.
Menino-selvagem (No filme de Truffaut)
Todas as sociedades constituem, historicamente, os mecanismos 
institucionais de inserção da criança na cultura do grupo social a que 
irá pertencer.
Ao processo uni .versal pelo qual uma criança aprende, a partir do 
nascimento, a ajustar o seu comportamento à cultura da sua sociedade, 
chama-se endoculturação ou incultutacão. Paralelamente parece 
funcionar um outro mecanismo de insercao, este de disciplina social, a 
socializaçã o, processo de aquisição de conhecimentos, modelos, valores 
e símbolos (atitudes sociais) adequados ao seu lugar na hierarquia 
social. Na linguagem da Psicologia americana, a criança com a 
socialização, aprende ospapéis sociais dos estatutos que irá assumir.
Endoculturação e socialização são dois processos, separados apenas 
para estudo; na criança realizam-se ao longo do processo de 
aprendizagem que destinam - de forma violenta pois vão contra as 
pulsões da criança - o lugar do seu novo membro na sociedade. De 
acordo com os seus futuros estatutos sociais, a criança receberá a fatia 
cultural que lhe permite preencher o seu lugar. São, portanto, 
mecanismos de reprodução social (e),
0 extracto seguinte de Nuno Bragança apresenta um caso de uma 
criança com evidentes lacunas de endoculturação, pondo em risco a sua 
disciplina social.
« Um dia peguei em uma caneta, em um tinteiro e em uma folha de 
papel, e fui sentar-me a uma pequena mesa em um pequeno gabinete, e 
escrevi no alto da folha e em letras grandes:
U OMÃ1 OE DA VA PUL US Depois chupei o rabo da caneta, que sabia a 
lavado e a polido, e escrevi por baixo e em letras pequenas o seguinte.-
LI omãi qe dava pulus era 1 omãi qe dava pulus grades. El pulô tantu qe 
saiu pêlo tôpu. Isto feito, levei o papel ao meu tio Maurício, que estava 
sempre a ler jornais. 0 tio Maurício olhou para o meu, escrito e foi-se 
embora com ele sem me dar palavra. Dois dias mai.s tarde reuniu-se o 
/// Conselho de Família por causa do Pequeno.»
Nuno Bragança, in A noite e o Riso
26
A criança tem dificuldade em rejeitar os modelos culturais e sociais que 
lhe são impostos, pois que, recusando-os, nega a própria família, o seu 
único lugar de segurança. Estes modelos vêm carregados de violência 
simbólica (revestidos da autoridade que permite canalizar a mensagem, 
legitimando-os). No texto, a autodeterminação da crianca, aprendendo a 
ler sem ajuda, não é mais do que a imitação dum modelo a seguir, o tio 
Maurício.
Como resposta a esta necessidade de inserção dos seus membros, a 
sociedade estabeleceu instituições que, dum modo mais ou menos fixo e 
por etapas, são introduzidas no
percurso do crescimento daqueles, determinando a sua maturação e 
aceitação sociocultural.
Uma vez mais encontramos os três eixos do homem: o biológico, o social 
e o cultural. Desde que nasce, uma estrutura de instituições acompanha 
a maturação biológica do indivíduo, determinando a sua maturação 
psicológica: a família, na 1.’ e 2.’ infância; a escola desde a 1.’ infância 
no jardim-escola e até à idade de adulto, em muitos casos,, o bando 
juvenil da adolescência queganha muita importância para os desvios 
sociais, pois àt se colhem outros modelos e valores. Para dar sentido 
social à maturação biológica, quando adulto, surgem as instituições 
profissionais, o casamento e as instituições de lazer que preenchem as 
necessidades de sublimaçã o e de afirmação do poder que as outras 
instituições não permitam. Com a maturacão biológica e psicológica - ou 
seja, quando está cumprido este percurso bio-social - o indivíduo tem 
formada a sua personalidade.
SER l’ - 2@ INFANCIA ADOLESCÊNCIA MAIORIDADE > 
PROFISSÃO BIOLóGICO CASAMENTO
ESCOLA BANDO - LAZERES MATURACAO 
PSICOLóGICA---”’
PERSONALIDADE
A inserção sociocultural: a acomodação
Cultura e Personalidade
A personalidade surge como um produto da sociedade, da cultura e da 
hereditariedade, fundamentalmente exterior ao indivíduo. A 
personalidade forma-se do confronto entre o indivíduo e os outros.
«A minha verdade, o meu carácter e o meu nome estavam nas mãos dos 
adultos,aprendera a ver-me com os olhos deles; eu era uma criança, 
esse monstro que eles fabri-
cavam com as suas quei .xas. Ausentes, deixavam atrás de si o olhar, 
misturado à luz; eu
corria, eu saltava através desse olhar que me conservara a natureza de 
neto modelo, que continuava a oferecer-me os brinquedos e o universo. 
Na minha bela redoma, na minha alma, os pensamentos giravam-me, 
qualquer pessoa podia seguir-lhe os manejos.nenhum canto de sonho.
No entanto, sem palavras, sem forma nem consistência, diluído nessa 
inocente transparência, uma transparente certeza estragava tudo.- eu 
era um impostor. Como representar a comédia sem sabermos que 
representamos? ( ..)
0 pior é que os adultos me cheiravam a cabotinice. As palavras que me 
dirigiam eram rebuçados; mas entre si falavam em tom completamente 
diferente. Além disso, acontecia-lhes romper contratos sagrados, eu fazia 
o meu beicinho mais adorável, aquele de que estava mais seguro, e 
então diziam-me com voz verdadeira.- « Vai brincar para mais longe, 
garoto, estamos a conversar.»
Jean-Paul Sartre, As palavras
27
A estrutura da personalidade assenta na cultura,- é através dela que o 
indivíduo determina o que é verdadeiro e falso, o normal e anódino, o 
que é obrigação ou interdito, o certo e o errado,- determina a sua 
consciência e a terapia inconsciente que irá utilizar para esconder o 
conflito criado entre as suas pulsões e a realidade social.
«Mas é necessário precisar o que se entende por formação do sistema 
nervoso, isto é, em resumo, por sistema educativo.
Evidentemente que os meios sociais são muito diferentes.- há poucos 
pontos de con-
tacto entre uma criança nascida nos bairros de lata de Nanterre e uma 
outra nascida numa família burguesa do 16 ‘ Bairro (Paris). A influência 
do meio, num e noutro caso, acabará por criar, quase sempre, como 
resultado, automatismos de comportamento, de J.uízos, de pensamento, 
como se diz, que tanto num como noutro caso não serão mais do que 
automatismos. Os que são adquiridos no meio burguês são geralmente 
favoráveis a
uma ascensão hierárquica, passando a maior parte das vezes por uma 
escola. Fornecem àquele onde são inculcados, uma linguagem, uma 
atitude, hábitos, juízos de acordo com
a estrutura hierárquica de dominância, mas não é garantido que 
favoreça a criatividade, a originalidade do pensamento. ( ...)
Com a passagem dos anos ( ... ) fico assustado com os automatismos 
que é possível criar, à vontade, no sistema nervoso duma criança. Ser-
lhe-á necessária, na sua vida adulta, uma sorte excepcional para se 
evadir desta prisão, se é que ela o consegue ( .. ) E se os seusjuízos, 
com o tempo, lhe fizerem rejeitar violentamente estes automatismos, é 
porque um outro discurso lógico responde melhor às suas pulsões e 
fornece um quadro mais favorável à sua gratificação. »
Laborit, ob. cit.
A personalidade engloba, pois, todos os aspectos do indivíduo na sua 
dimensão biológica, social e cultural, o consciente e o inconsciente,- a 
sua estrutura biológica herdada e
a estrutura sociocultural adquirida.
«A personalidade é a soma total dos modos de comportamento actuais 
ou potenciais do organismo determinados pela hereditariedade e o meio. 
Nasce e desenvolve-se através da interacção funcional dos quatro 
principais sectores sobre os quàis os modos de comportamento se organi 
.zam: o sector cognitivo (inteligência), o sector conotativo (carácter), o 
sector afectivo (temperamento), e o sector somático (constituição). »
H.J. Eysenck, The structure of the Human Personality
A personalidade modela-se pelos paradigmas (9) e pelos padrões de 
comportamento que circulam na sociedade e no grupo.
«A sociedade Arapesh pune todo aquele suficientemente insensato para 
se meter numa cena de violência ou implicar-se num assunto 
desonroso, que caia na imprudência de se deixar ferir na caça, ou ao 
qual falte o juízo a ponto de se tomar o centro do insulto público pela 
sua mulher. Esta sociedade que considera que cada um deve ser doce e 
servil e que quer ignorar a violência, não conhece qualquer sanção 
contra aquele que a utiliza. Mas insiste em agir contra aqueles que, por 
ignorância ou estupidez, a provocam.
Quando a ofensa é benigna - como quando um homem se mete numa 
rixa dos vizinhos - apenas o seu tio maternal virá pedir indemnização.
Ao fim e ao cabo esse pobre filho da sua irmã não sofreu já um 
ferimento e perdeu o seu sangue? Mas se, pelo contrário, ele questionou 
duma forma indigna em público com * sua mulher, ou com umjovem 
parente com o qual o ouviram trocarinsultos, então é todo * grupo da 
aldeia ou das aldeias que toma o assunto em mãos, sempre empurrados 
pelos tios maternais, executores oficiais do castigo. @ ...)
Mas, contra o homem verdadeiramente violento, a sociedade não tem 
nenhum recurso. Tal tipo de homem enche os seus semelhantes de uma 
espécie de terror sagrado. Contrariados, eles ameaçam deitar fogo à sua 
própria cabana, partir os potes e
28
recipientes e deixar para sempre a região. Os pais e os vizinhos, 
consternados com a ideia de serem assim abandonados, suplicam ao 
homem para não partir e não os deixar, para não destruir os seus 
próprios bens - e acalmam-no dando-lhe tudo o que ele dese,ia. É 
apenas porque toda a educação dos Arapesh tende a minimizar a 
violência e a
confundir os móbiles com que a sociedade pode subsistir, castigando os 
que provocam a violência e aqueles que a sofrem em vez daqueles que 
na realidade a cometem.»
M. Mead, Moeurs et Sexualité en Océanie
Sartre, em « As Palavras», faz notar a tomada de consciência sobre o 
meio, consciência tardia neste caso, mas que acabará por se impor.
0 homem pode, diz Laborit, ter a sorte de se evadir das malhas 
prisionais dos automatismos em relação ao meio - a aprendizagem da 
cultura e a disciplina social - que progressivamente o manipulam.
0 indivíduo é, acima de tudo, os outros, aquilo que aprende da memória 
colectiva do grupo, como bem demonstra Margaret Mead com o estudo 
da comunidade indonósia dos Arapesh. Verdadeiro computador que 
reage automaticamente em grande parte da sua vida, julgando que 
decide e controla os seus próprios comportamentos em função das suas 
gratificações individuais. Mas pode surpreender em si mesmo esse 
comportamento como interiorizado; uma tomada de consciência da teia 
social pode favorecer a elaboração - novamente inconsciente - de um 
novo sistema de fuga.- sair da procura da gratificação social pela 
gratificação da diferença e da criatividade. De qualquer modo, uma 
paragem do condicionamento marcadamente social arrasta a um outro 
condicionamento de sublimação, ou ao início de uma desmontagem dos 
automatismos que é um
outro processo de terapia. 0 homem reage criando novas linhas de fuga, 
de sublimação em sublimação.
Esta tomada de consciência passa pela verificação de que o nosso 
comportamento, que consideramos normal, não o é necessariamente.Há 
aspectos universais do comportamento humano: aqueles em que o 
fundamento biológico o caracteriza como comportamento da espécie. Os 
gestos de saudação, o sorriso, o coçar a cabeça, certos gestos de 
dependência, são comportamentos universais e, ern muitos casos, 
compartilhados por outros primatas.
Comportamentos universais
Só o interdito do incesto é um fenômeno cultural universal e, com ele, a 
definitiva inslituição do casamento, Porém, a grande maioria dos 
automatismos culturais e sociais são historicamente localizáveis num 
tempo e num lugar. Há uma grande variedade de culturas e, 
necessariamente, de variantes culturais. Essa constatação torna-se 
principalmente relevante com a expansão dos países ibéricos, desde 
Pêro Vaz de Caminha que pode considerar-se o primeiro antropólogo 
(amador) português.
29
«A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons 
rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. 
Nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas; e 
estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto. 
Traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles ossos 
brancos, de compridão duma mão travessa, e de grossura dum fuso de 
algodão, e agudos na ponta como furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e o que lhe fica entre o beiço e 
os dentes é feita como roque de xadrês, e em tal maneira os trazem ali 
encaixados que lhes não dá paixão, nem lhes torva a fala, nem comer 
nem beber.»
Carta de Pêro Vaz de CamInha a D. Manuel /, 1500
Qualquer sociedade aberta à dinamização cultural verifica este 
relativismo de culturas, a diferente utilização do corpo, dos objectos e a 
própria inversão (0) de valores.
Se o homem pode reconhecer os outros como homens - caso de Pêro Vaz 
de Caminha - admitirá essa relatividade cultural e esse será o primeiro 
passo para a desmontagem das suas próprias crenças. Estranhar o 
outro é reconhecer o quanto podemos ser estranhos para os outros.
Cultura e Linguagem
A comunicação é comum à grande maioria dos seres vivos. Mas só o 
homem tem linguagem verbal, oral e escrita construída socialmente a 
partir da experiência colectiva,neste sentido o homem é linguagem.
«A partir de uma fórmula idêntica à dos primatas, o homem fabrica 
utensílios e símbolos, uns e outros representantes do mesmo processo, 
ou, melhor, necessitando no cérebro do mesmo equipamento 
fundamental; tudo isto leva a considerar, não só que a linguagem é tão 
característica do homem como o utensílio, mas ainda que se trata da ex-
pressão da mesma propriedade humana, exactamente como trinta 
diferentes sinais vo-
cais do chimpazé são o exacto correspondente mental das varas 
encaixadas para chegar a uma banana suspensa, isto é, nos 
chimpanzés, a linguagem é tão pouco linguagem quanto as varas 
encaixadas são uma técnica propriamente dita. »
Leroi-Gourhan, 0 Gesto e a Palavra, 1
Há pois uma identidade completa entre a actividade motriz do mundo da 
mão (que não pode existir sem projecto mental) e a actividade verbal - 
são um único facto tipicamente humano, um único tipo de fenômeno 
mental, expresso pelo corpo e pelos sons. 0 raciocínio e a linguagem 
ligam-se às operações técnicas e com elas nasce o mundo social da mão 
(a técnica) que evolui em função do simbolismo sonoro e gráfico que irá 
conduzir à escrita, quando simultaneamente o homem atinge a técnica 
do fogo e a conquista imperialista do espaço.
Utensílios e linguagem estão ligados neurologicamente: ao surgirem 
novas técnicas -
novas séries operatórias de gestos e conceitos, muitas das quais se 
tornam automáticas e se materializam em cadeias de produção -, 
igualmente surgem novas séries de organização sintáctica, fornecidas 
pela memória. De novo se levanta a relação estabelecida entre o cérebro 
e o meio, representado pela complexidade crescente do sistema nervoso 
na evolução do homem.
As primeiras linguagens estavam fundamentalmente ligadas à expressão 
do concreto, garantindo a comunicação das séries operatórias 
simbólicas de acção narrativa; assim surgem os mitos e a arte pictórica.
Posteriormente, a linguagem atinge a função de expressar sentimentos 
fundamentalmente ligados ao sentido religioso, complementando-se a 
linguagem simbólica verbal com a linguagem figurativa. Ao fixar-se na 
escrita, a linguagem terá de empobrecer os
30
meios de expressão irracionais, mas ganhará em lógica e coerência 
interna do discurso, desligando-se cada vez mais do mundo material que 
tenta representar. Com a difusão da escrita, as variantes individuais 
decrescem progressivamente, o organismo bolectivo ultrapassa o 
individual - e aparece materializado na cidade, no país.
Entre os diferentes elementos de comportamento social, a linguagem 
oferece um lugar privilegiado e está em relação com a sobrevivência da 
espécie. Porém, na vida moderna estão-se a perder a maioria dos 
símbolos sociais (não há adornos e vestuário característicos da classe 
social, da profissão, do sexo, das etnias; a participação real nas 
cerimônias colectivas como paradas, procissões, diminui ou 
desaparece,- as noções de tempo e
espaço uniformizam-se), e do mesmo modo há uma uniformização social 
da linguagem de relação, quer gestual quer verbal. Tudo tende a uma 
mega-etnia universal - j .a se verifica isto na divisão mundo 
ocidental, russo e chinês - - a humanidade, o colectivo, tende a construir 
uma sociedade onde são isolados alguns produtores de técnicas e 
símbolos para organizarem o programa das massas. 0 mínimo de 
liberdade individual, de manutenção duma linguagem de relação que 
ainda anima tanto o biológico como o social, está cada vez mais 
restringido, para o homem comum, aos anos que rodeiam a
maturação sexual. Do mesmo modo, nas super-organizadas sociedades 
colectivas dos insectos é esse o único período em que, para uma 
limitada minoria representativa, se
verifica uma certa independência de comportamento.
A: Códigos culturais universois B: Códigos culturais de comportamento 
divulgado C: Códigos culturais de comportamento massificado
31
«É difícil ajuizar acerca do estádio em que se encontra a humanidade 
actual, em que apenas uma geração separa mui .tos dos seus 
representantes do tempo dos artesãos, dos lavradores, das bodas de 
aldeia, dos teatros ambulantes, enfim, de todo um aparelho social cujos 
vestígios influenciam ainda uma parte importante do globo. E contudo,’ 
de ano para ano, a exteriorização acentua-se, existindo já milhões de 
homens que representam qualquer coisa de novo para o etnólogo. Estes 
homens dispõem de um número mínimo de práticas sociais 
indispensáveis para garantir o seu movimento quotidiano, de uma 
infraestrutura de evasão pessoal pré-condicionada pelas férias pagas, 
pelas estradas, pelos hotéis ou pelos parques de campismo, por umas 
quantas semanas anuais em
que se encontram num estado de «liberdade canalizada»; uma 
superstrutura superficial permite-lhes ultrapassar os ritos de passagem, 
como nascer, casar-se ou morrer com o
mínimo indispensável de emoção ou de encenação. A sua parte de 
criação pessoal torna-se inferior à de uma lavadeira do século XIX, 
enquanto a sua função produtiva se resume à de uma engrenagem 
exacta, com o despertar, as deslocações e o trabalho perfeitamente 
cronometrados. (... ) Com efeito, estes homens possuem uma 
participação social idêntica à dos seus antepassados ( ... ) pela janela da 
televisão e pelos lábios dos transistores (... ) Mas a con-
trapartida é o risco social de uma hierarquização sociaIprovavelmente 
mais acentuada do que em épocas anteriores; uma estratificação por 
«selecção racionah) virá a separar da massa os elementos raros a fim de 
os i .nvesti.r na posição de fabricantes de evasão teleguiada. Uma 
minoria cada vez mais restrita virá a elaborar, não só os programas 
vitais, políticos, administrativos ou técnicos, mas também as rações 
emocionais, as evasões épicas, a imagem de uma vida que se tomou 
totalmente figurativa,

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