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MOREIRA, RUY. A formação espacial brasileira: uma contribuição crítica à Geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Consequências, 2012. Introdução “Entendo que a geografia é o estudo de como o arranjo organiza as relações de troca metabólica que o homem e a natureza estabelecem entre si no curso da história. Na essência dessa relação de troca está o processo do trabalho – o trabalho ontológico e o trabalho histórico-concreto -, mediante o qual o homem salta na história da condição de ser natural em ser social [...]. Um produto da história natural para ser um produto da história social. E assim um homem que hominiza-se a si mesmo, histocizando a natureza ao tempo que naturaliza a sociedade pelo processo do trabalho. Tendo o espaço como mediação, numa forma de constituição que já de um tempo designa-se uma economia política do espaço” (p. 7, grifo meu). "É a forma histórica dessa troca metabólica que distingue as sociedades comunitárias das sociedades privatistas passadas e presentes. Mas é o modo de arranjo da organização de espaço dessas sociedades que lhes define o seu modo concreto de ser e estar. Assim se compondo uma relação triádica homem-espaço-natureza – a relação de troca metabólica do homem e da natureza definida e efetivada em sua forma concreta de realidade histórica pela mediação do modo de arranjo do espaço -, que mais que um eixo geográfico é o modo concreto, porque espacial, de existência das coisas. A sua geograficidade” (p. 7). No trabalho empreendido pelo autor, é possível perceber] “uma vinculação da linha analítica da sociedade brasileira a um elenco igualmente constante de autores. Trata-se de estudiosos e intérpretes do Brasil de outras áreas que nos servem de referência de diálogo. Dois em particular: Celso Furtado e Francisco de Oliveira. De Furtado extraio sobretudo o conceito de binômio latifúndio-minifúndio como base de sustentação de nossa leitura histórico-estrutural de uma sociedade que muda sempre, para em essência nunca mudar. De Oliveira, a forma como concebe o papel das relações de trabalho dessa estrutura binomial de Furtado no todo do movimento acumulativo, o modo como a indústria surge no Brasil no interior de uma estrutura de um todo ainda dominantemente plantacionista, e a década de 1950 como o momento de virada das grandes formas de organização de espaço de nosso processo evolutivo” (p. 8, grifo meu). As fases e vetores da formação espacial brasileira: hegemonias e conflitos “Cinco são as fases da formação espacial brasileira, balizando as formas de relação sociedade-espaço no Brasil no tempo: dos vetores fundacionais; dos ciclos de assentamento; da manutenção do arranjo capitalista; da redesconcentração e privatização da gestão do espaço; e da articulação das sociabilidades e as tendências de uma formação espacial complexa. São fases marcadas por um contraponto entre o modelo comunitário, engendrado espontaneamente, e o modelo de sociedade dominante, engendrado pela Coroa portuguesa, numa sequência histórica de conflitos que tencionam a formação espacial brasileira por dentro, em caráter reiterado e permanente” (p. 9). “A formação espacial inicial do Brasil tem origens na ação de dois vetores territoriais: o bandeirantismo e a expansão do gado” (p. 9). “O bandeirantismo tem foco de irradiação em São Vicente e avança rumo a quatro direções: o litoral sul, seguindo pelo costeamento; o sudoeste, rumo ao território das missões jesuíticas; o oeste e noroeste, rumo aos territórios das comunidades indígenas do planalto central e da Amazônia; e o nordeste, rumo aos territórios indígenas do sertão e quilombolas da zona da mata, ambos rebelados” (p. 10, grifo meu). Nas primeiras décadas do século XX pode identificar “a permanência da diferenciação de áreas, seja por sua arrumação em faixas geobotânicas distintas do litoral para o interior e seja por sua arrumação em arranjos espaciais distintamente criados pelos ciclos no longo do tempo, ciclo a ciclo. Cujo começo de reestruturação numa formatação regional sistemática terá fundamental importância para o desenvolvimento da indústria, dado o caráter de uma divisão territorial de trabalho que está já implícita nessa divisão regional, que o Estado vai intensamente utilizar com o fim de daí extrair as divisas de exportação necessárias ao desenvolvimento industrial” (p. 15). “Após os anos 1950, a indústria encontra-se já desenvolvida e centrando a formação espacial brasileira, no âmbito de uma organização espacial por ela inteiramente produzida e transformada, e obediente à sua lógica intrínseca de mercado” (p. 16). “A lei do desenvolvimento desigual e combinado passa então a reger a nova formação, progressivamente desigualando e invertendo a forma das relações espaciais até então existentes. O centro do comando assim se desloca do campo para a cidade, das diferentes regiões para o Sudeste e das indústrias regionais para as indústrias nacionais concentradas em São Paulo, assim se reorientando a regulação e o ordenamento espacial no interior da formação [...]. O que no fundo significa uma passagem de duas distintas formas de divisão territorial do trabalho industrial: aquela da conversão pura e simples do espaço pouco organizado dos ciclos no espaço da divisão inter-regional do trabalho em que os ciclos se transformam e aquela da conversão desta na redivisão que irá caracterizar a organização espacial concentrada na hegemonia industrial e sudestina” (p. 16, grifo meu). “Ali por onde passa o eixo modernizante da urbano-industrialização, os velhos núcleos de assentamento são encarados como de efeito inercial, não raro a industrialização dissolvendo-os, desalojando seus habitantes ou mesmo extinguindo seus arranjos de espaço. Daí advindo conflitos de reordenamento urbano que se acrescentam aos de origem fundiária rural” (p. 17). “Conflitos rurais, urbanos e regionais assim se entrecruzam e se multiplicam reciprocamente no espaço nacional unificado. Nos conflitos rurais opõem-se grandes proprietários e camponeses ao redor da questão da reforma agrária. A forte concentração da propriedade rural herdada do período colonial e que atravessa sem mudança as transformações fundamentais do século XIX – a independência, a abolição da escravatura e a república – agora é questionada por uma campesinato que começa a ser expulso do campo por conta das mudanças na agropecuária em sua resposta de mercado capitalista às demandas urbanas e da industrialização [...]. Já nos conflitos urbanos opõem-se o capital e o trabalho, a população trabalhadora urbana e a especulação imobiliária e a nova e a velha direção dos fluxos da circulação. São duas ordens territoriais de conflito, a rural e a urbana, que aqui e ali se aproximam” (p. 17). A redesconcentração e privatização da gestão do espaço seria uma “Estratégia de ação que usa da rearrumação do espaço no lugar da transformação estrutural da sociedade demandada pela sociedade para neutralizar os movimentos pró-reformas de base do período da industrialização” (p. 18). “Três eixos seguem esta reestruturação: a modernização da agricultura, a redistribuição territorial e a despatrimonialização-desestatização que privatiza a gestão do espaço” (p. 18). “Na prática, todo esse conjunto de reordenação traduz-se numa combinação público- privada de gestão do território em que o Estado entra com o recurso e a segurança pública e a empresa privada com a rentabilidade, a reestruturação refundada numa amplificação para o plano da administração do espaço a prática de socialização das despesas e privatização dos lucros – o socialismo dos tolos, há tempo observado por Oliveira – que constitui o modo histórico de relação sociedade-Estado da evolução nacional brasileira. E cujo exemplo é a instituição das agências de regulação” (p. 21-22). “Expressão do novo rumo da organização da formação espacial brasileira pelo ladodas classes hegemônicas, o complexo agroindustrial é uma economia indicativa da organização da sociedade e do espaço segundo padrões de regulação marcados pela ausência da divisão territorial do trabalho, de um lado, e novo modo de entrada do Estado, de outro lado, ilustrando o desaparecimento justamente das estruturas reguladoras das ações e dos ordenamentos do recente passado” (p. 23). “ao dissolver a fronteira das relações cidade e campo, região-região e cidade-região, superando a divisão territorial do trabalho criada pela indústria nos anos 1950-1960 para ser o padrão de organização espacial da formação capitalista, naquilo que a nova base material do capitalismo lhe traz de apoio, a regulação privada do espaço abre para vir à tona novas e antigas formas de sujeitos. E um modo novo de contraponto que embaralha as regras da formação espacial brasileira” (p. 24). Setor agrícola e acumulação urbano-industrial no Brasil “a teoria clássica [de inspiração ricardiana, incluindo-se também Marx] vê na ausência de vínculos do setor agrícola com a economia de mercado capitalista nascente freios ao desenvolvimento que podem retardá-lo ou torná-lo penoso. Tendo por premissa que a produção de excedentes é uma pré-condição ao desenvolvimento do capitalismo, coloca neste fato um papel de suma importância. Isto porque o surgimento de uma produção de excedentes permite ao setor agrícola liberar mão de obra, que flui para os centros urbanos onde formará abundante oferta de força de trabalho às indústrias, bem como renda, com a qual o campo se converterá em consumidor dos bens e serviços industriais” (p. 30). “Duas correntes vão ter lugar na América Latina em torno a esta questão, aninhando-se em cada qual teses conflitantes, embora não linearmente: uma, derivada da teoria clássica, vê o setor agrícola como fator impeditivo do desenvolvimento, sem desempenho de sua funcionalidade em razão da permanência de uma estrutura pré-capitalista; a outra, conflitando com os princípios da teoria clássica, vê no setor agrícola desempenho do seu papel a contento precisamente devido ao seu caráter pré-capitalista. Na ausência de terminologia adequada e com o intuito de facilitar a exposição, chamaremos à primeira de corrente dualista e à segunda de corrente funcionalista. A corrente dualista encontra suas bases teóricas em Lambert e em trabalhos iniciais da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). Já a corrente funcionalista pode ser vista em Ruy Miller Paiva, André Gunder Frank, Francisco de Oliveira” (p. 31). “Diferentemente da evolução europeia, em cujo processo histórico temos ido buscar até agora os modelos de interpretação de nossa realidade, na evolução brasileira encontramos um sistema agrícola montado pelo e em função do modo de produção, o colonial agro- exportador, constituído basicamente de dois subsetores articulados: a grande empresa agromercantil e a pequena lavoura de subsistência” (p. 32). “A mão de obra escrava ocupa uma posição-chave na estruturação do sistema polarizado na grande empresa agroexportadora. Sendo a terra um fator de produção abundante e a mão de obra um fator escasso, reside no controle deste último a base do prestígio e do poder da grande empresa [...]. Surgida para compensar com alta rentabilidade o empreendimento colonial, a instituição da escravatura permite, por meio do uso do poder que confere ao escravocrata, o controle da terra. Assim, observa Furtado, o domínio do fator escasso abre o caminho para o domínio do fator abundante, estabelecendo-se o monopólio com o intuito de barrar o acesso à terra para a população não escrava restante. Como observa ainda, graças à escravidão a grande empresa agromercantil pôde dominar tão completamente a vida rural brasileira, ao ponto de chegar a imprimir-lhe seu persistente perfil de autoritarismo” (p. 33). “Assim, com apoio no tripé escravatura-latifúndio-monocultura edifica-se o sistema agrícola colonial brasileiro. Seus subprodutos são, de um lado, a subutilização e dilapidação do patrimônio ecológico, e, de outro, uma formação social caracterizada pela concentração da riqueza e autoritarismo num polo e por forte pauperismo noutro pelo social. Temos, então, um modo de produção que garante altas taxas de acumulação, viabilizando o empreendimento colonial e tornando-o altamente compensador. Por isto, construído sobre o estatuto da escravidão, abolido este nem por isso o sistema desmorona. O monopólio da terra conseguido via domínio do trabalho escravo garantirá a sobrevivência da grande empresa agromercantil” (p. 34). “Dificilmente, e eis aqui um ponto de alta controvérsia na literatura sociológica latino- americana e brasileira, pode-se falar então de feudalismo, dado o claro propósito de engendrar-se formas de acumulação compatíveis com os objetivos mercantis do empreendimento econômico agroexportador, desenvolvido em formações sociais periféricas” (p. 35). “se por um lado somente através da utilização de categorias científicas, como a teoria da acumulação, pode-se chegar a um conhecimento mais concreto da realidade brasileira, nisso residindo uma das falhas do enfoque dualista, cabe por outro reconhecer-se a pertinência das estruturas sociais relativamente às exigências da sociedade, particularmente da grande massa, levantada pela corrente funcionalista” (p. 41). Espaço agrário e classes sociais rurais na sociedade brasileira “São as relações de classes de dada fração de território que orientam a dialética do espaço do lugar. É este, exatamente, o nexo que funde espaço e sociedade, tornando-os uma mesma totalidade social” (p. 43, grifo meu). “Espaço de existência dos homens, o espaço geográfico traz estampado em sua morfologia e organização o seu caráter de classe. Cada classe social define seu espaço próprio de existência. De modo que as relações intra e entre áreas não são mais do que relações entre classes sociais (as relações entre cidade e campo, por exemplo, em verdade são relações entre as classes sociais da cidade e as do campo). E, assim, relações de dominância, contradições, lutas de classes” (p. 43, grifo meu). “Se são relações antagônicas de classes que orientam a dialética do espaço do lugar, não são elas todavia que a originam. As classes sociais não existem no abstrato, mas emergem da natureza das relações de produção do lugar. Determinante em última instância da sociedade e do espaço, a estrutura das relações de produção do lugar engendra a estrutura global da totalidade social do lugar (da formação econômico-social), aqui incluindo-se a estrutura de classes com seus antagonismos. Sob a determinação das relações de produção em última instância, o espaço geográfico é a própria formação econômico- social, é uma formação socioespacial. Sintetizamos assim a articulação fundamental à compreensão dessa dialética: aquela que existe ligando estrutura e conjuntura. A estrutura da formação econômico-social determina a estrutura do espaço, mas é a conjuntura política de cada momento constituída pela correlação de força entre as classes sociais do lugar, que comanda seus movimentos, processos e formas” (p. 43, grifo meu). “Veremos que, porque realizada ainda em quadros pré-capitalistas, a mudança da estrutura de classes decorrente da derrocada do escravismo (de escravistas mercantis para mercantis simples) pouca alteração promove na estrutura do espaço agrário. Só um o estabelecimento das relações capitalistas vem a mudança radical na organização espacial. Desaparece, então, a organização espacial estruturada em duas frações de espaço coexistentes: uma destinada à realização do sobretrabalho e outra destinada à realização do trabalho necessário. Ou seja, desaparecem as formas sociais de espaço pré-capitalistas, mediadoras da reprodução do capital (monocultura de exportação) e da reprodução da força de trabalho (pequena lavoura de subsistência)”(p. 44). “Em todos os momentos do processo evolutivo de nossa história as formas de organização do espaço e da sociedade encontram sua lógica na forma, volume e ritmo da acumulação do capital” (p. 44). “As três formas básicas de relações de produção (escravista, de transição e capitalista) que balizam o processo evolutivo brasileiro permitem-nos nele divisar três formações econômico-sociais distintas: a formação econômico-social escravista mercantil, a formação econômico-social de transição (do modo de produção de mercadorias) e a formação econômico-social capitalista. Permitindo nos referirmos, assim, a três correspondentes formações socioespaciais” (p. 46- 47). “O espaço agrário de cada uma tem como denominador comum o monopólio da terra. Resulta desse monopólio fundiário uma estrutura de classes em que conflitam, de um lado, classe dos poderosos proprietários monopolistas, e, de outro, toda a imensa massa de minifundiários e camponeses sem-terra. De modo que a luta pela terra marca toda essa evolução histórica. Numa modalidade epocal em que cada formação socioespacial expressa, nas formas e processos de seu espaço agrário, as marchas e contramarchas desse antagonismo secular” (p. 47). “Polo organizador da formação espacial colonial, a agroindústria canavieira estrutura-se, assim, a partir das três classes fundamentais: os senhores de escravos proprietários de engenho, os senhores de escravos não proprietários de engenho e os escravos. Os primeiros exercem a hegemonia sobre o conjunto, uma vez que o engenho-indústria é o centro do sistema produtor da colônia” (p. 48). “Destas relações de classes deriva um espaço fragmentado-integrado. Primeiramente, há sua divisão em espaço de monocultura da cana e espaço de policultura de subsistência. Em segundo lugar, há a divisão em grandes propriedades de lavradores de partido e dos senhores de engenho-indústria. Da unidade desses fragmentos é que vem o tom sistêmico do todo colonial” (p. 48). “Dado o caráter massivamente exportador do modo de produção colonial, o espaço melhor em localização e fertilidade, como vimos, é privilégio da monocultura da cana, que ocupa essas terras melhores, deixando as demais ou as esgotadas para a agricultura de subsistência” (p. 48-49). “questão geral: a da capacidade e modo de a análise geográfica, uma análise social, tratar de tais temas, que são as questões postas hoje pelas lutas sociais no Brasil. Em outros termos, a questão do método capaz de permitir-lhe desvendar as determinações sociais da sociedade e do espaço brasileiros” (p. 59). “Um passo fundamental é a análise das formas dominante e secundárias de capital, e de suas articulações. Segue-se-lhe a análise das formas dominante e secundárias de sobretrabalho, bem como os mecanismos e caminhos de sua captura até à forma dominante de capital. Trata-se, pois, de analisar a forma e natureza das relações de produção que compõem a base da estrutura e movimentos da formação econômico-social brasileira. O eixo é o conhecimento de como se realizam hoje a reprodução da força de trabalho e do capital, isto é, a acumulação capitalista, e as contradições que envolve e engendra” (p. 59, grifo meu). “No interior dessa análise, é fundamental proceder-lhe à localização da estrutura de classes e à análise de suas relações antagônicas, com fins de conhecimento da correlação entre elas em cada conjuntura” (p. 59). “Com isto, analisam-se os modos de produção dominante e dominados à medida mesmo que se investiga estrutura e movimentos do espaço. Uma vez que investigando a organização do espaço em verdade está-se investigando a forma como se inter- relacionam as relações de classes no seu todo. E sua compreensão significa a compreensão da própria dialética da sociedade, uma vez que as lutas de classes são a essência do seu movimento, o motor que está por trás de seus processos e formas. Localizado este motor, isto é, conhecidas a natureza das lutas de classes e suas formas, está aberto o passo para a condução consciente e objetiva da história. Da construção de um espaço novo, numa sociedade nova” (p. 59, grifo meu). “Uma vez que a lógica desta Geografia deriva do seu caráter de classe. À Geografia do dominante e da dominação, propomos a Geografia da emancipação dos dominados” (p. 60, grifo meu).
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