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Sumário especial Queer entrevista Marie-Hélène/Sam Bourcier ensaio Diversidade ou diferença? entrevista Judith Butler resenhas Judith Butler, condições de vida e o horizonte do representável Da família ao parentesco dossiê A cultura como trauma Apresentação A “desautorização” em Ferenczi: do trauma sexual ao trauma social A era do trauma Rastros, restos e ruínas do trauma coluna Marcia Tiburi estante Matar ou morrer? colaboraram nesta edição especial Queer No mês em que realiza o I Seminário Queer do país, a CULT apresenta o especial a seguir, cujos textos convidam à reflexão a respeito da importância da subversão das identidades sexuais e de gênero entrevista Marie-Hélène/Sam Bourcier PAULO GOMES PEREIRA Formada/o em Filosofia na École Normale Supérieure, Marie - Hélène/Sam Bourcier concluiu doutorado em Sociologia na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e integra o corpo docente da Université Lille 3, na França. Organizou os Seminários do Zoo, grupo de estudos queer, entre 1996 e 2001; traduziu obras da teórica feminista italiana Teresa De Lauretis; e escreveu uma trilogia (Queer zones 1, politiques des identités et des savoirs; Queer zones 2, sex politiques; e Queer zones 3, identités, cultures, politiques) que contribuiu significativamente para a introdução da teoria queer na França. Você poderia contar um pouco de sua trajetória intelectual? Sou cria do pós-estruturalismo francês, alimentado daquilo que os Estados Unidos chamam de French Theory (Deleuze, Lacan, Foucault, Derrida), em uma escola elitista: L’École Normale Supérieure. A teoria queer da primeira onda, com Butler e De Lauretis, queerizou esses autores, neles injetando uma boa dose de feminismo (que não era seu forte) e desviando alguns de seus conceitos para pensar os gêneros – a performatividade de Derrida na obra de Butler, a tecnologia para Foucault na obra de De Lauretis – a partir de um ponto de vista minoritário e político. Os gêneros foram desvencilhados do sexo dito biológico; sua proliferação se tornou visível e gozante; a drag queen foi elevada ao topo para que se fizesse compreender que a feminilidade é uma performance, uma imitação sem original. Em linhas gerais, entre uma mulher e uma drag queen, a diferença é o comprimento do salto. As sexualidades desmoronaram graças à insistência de Gayle Rubin e de Kosofsky Sedgwick. Mas nada teria acontecido na teoria sem as subculturas queer nas quais já eram vividas e reivindicadas as identidades de gênero e as sexualidades diferentes, desviantes, onde o gender fucking era usual. O que se tentou fazer na França, especialmente com os Seminários do Zoo, foi traduzir essa teoria queer da primeira onda, mas no contrapé dos EUA, ou seja, sem manter a crítica contra as políticas de identidade, pois isso nos parecia contraproducente em um contexto francês, bastante universalista e republicano, que, assim sendo, esmaga as políticas minoritárias, sejam elas sexuais, de gênero ou raciais. A França é um país assombrosamente monocultural. Há em suas atividades uma busca por performances e intervenções artísticas. Você poderia falar sobre esse aspecto? A importância da performance no meu trabalho se origina, sem dúvida, do sucesso na teorização de Butler na esteira de Esther Newton, nos anos 1990, e dos performance studies. Mas se deve também ao papel por ela desempenhado desde o início no feminismo dos anos 1970, como técnica de desobediência civil, de ocupação do espaço público, que toma o corpo como suporte. Era também esse o caso de Act Up e dos primeiros grupos queer. E, então, compreender que a realidade é não somente construída, mas que passa pela performance e pela performatividade com o corpo e também com a linguagem é um modo bastante ativo e acessível de desnaturalizar as coisas e de fazer política; de poder responder: “queer” é uma ofensa que foi englobada por quem a recebia em um momento em que puderam se empoderar. Finalmente, a performance é um instrumento pedagógico formidável. Eu a utilizo sistematicamente em minhas aulas sobre a performance de gênero, pedindo às/aos alunas/os que filmem uma performance de gênero ou de raça ou de etnicidade no espaço público; em minhas aulas sobre o feminismo, nas quais devem “berrar” um manifesto feminista na sala. Você poderia falar sobre as oficinas drag king? As oficinas drag king são o complemento indispensável da drag queen de Butler… É um exercício excelente de desnaturalização da masculinidade para todos, tanto héteros quanto homos e queers. Deveríamos fazer oficinas drag king já na escola primária. Quando você sai de uma oficina drag king, você não provou de sua dita bissexualidade psíquica, mas você desmistificou radicalmente a masculinidade: ela não pertence aos homens e ela é circular. A mesma lição é tirada com o dildo. De modo geral, a forma da oficina é importante porque se trata de um vetor essencial das subculturas queer e post-porn, em continuidade com a cultura feminista da auto-exploração, do raising consciousness: o político pessoal em ação, de certo modo. E isso compensa o lado dessocializante ou despolitizante da teoria queer. Com as oficinas, não vale mais a pena se preocupar com a ambivalência subversiva do drag: funciona, e ponto. A teoria queer do drag oculta também a temporalidade, a historicidade da performance da feminilidade e da masculinidade. Eu fiquei chocado ao ver como as pessoas escolhiam com frequência figuras masculinas muito marcadas política e historicamente nas oficinas que fizemos no Brasil, como o Che Guevara, por exemplo. E então não se deve esquecer a tensão sexual que criam os experimentos entre kings, o que também é bom. Em todo caso, funciona comigo. Em seus livros, você busca compreender zonas de pensamento, voltando o olhar para formas de expressão como o cinema pornográfico, o sadomasoquismo (SM), a construção das figuras do travesti, do transgênero e do transexual. As zonas queer constituiriam espaços privilegiados de intervenção? Por que e de que maneira? Há zonas e há fios. Em cada uma das obras que compõem a trilogia de Queer zones, encontram-se, em dez anos, os mesmos fios vermelhos: o cinema, incluindo o pornô, o SM, os gêneros, as subculturas, as políticas queer e uma reflexão sobre a produção de saberes queer, “epistemológico”. Preferi falar em “zonas” queer de maneira a nada petrificar: de fato, há movimento aí. E nessas zonas, a sexualidade, o gender fucking e também as políticas de representação praticadas pelas minorias sexuais e de gênero têm papel principal. Fui marcado tanto pela teoria queer quanto pelos festivais de filmes gays e lésbicos nos quais a agitação, a proliferação identitária avançam muito rapidamente. E foi o que vivi sendo designado como homossexual e depois me autodesignando como lésbica, SM, butch e, hoje, trans. Você poderia comentar um pouco sobre essas formas de expressão, como a pós-pornografia ou as práticas SM? Acredito ser preciso vê-las como políticas. Quando lancei a pós- pornografia na França, em 2000, eu nem podia imaginar a forma que seu desenvolvimento tomaria, quinze anos depois. É uma das maiores e mais originais contribuições do queer europeu. A outra, ter finalmente abandonado a psicanálise como modo de subjetivação e de compreensão abusivo e elitista. No começo, tratava-se de desconstruir o regime pornô moderno no país de Sade... Nós pensávamos que um outro pornô era possível, sobretudo quanto aos filmes. Isso, aliás, deu origem a festivais de filmes pornô alternativos na Alemanha, Espanha, Itália e em Grécia. E agora, em muitos países da América Latina, no Brasil, com a Muestra Marrana levada de volta ao México, e graças a Diana Pornoterrorista e Lucy Sombra. Mas eu estava longe de imaginar que o post-porn se tornaria um instrumento de desobediência sexual tão político, uma forma de “pornoativismo”, para retomar o termo de Rachele Borghi; que a performance e o SM cumpririam um papel tão central para contestar a gentrificação e o neoliberalismo. Penso sobretudo nas performances dogrupo de Barcelona, Post-op. Quanto ao SM estadunidense, formalizado por grupos como Samois, de São Francisco, ou Lesbian Sex Mafia, de Nova Iorque, ele foi muito importante para as lésbicas butch da minha geração, para ressexualizar a vida das lésbicas, abordar frontalmente a questão das relações de poder e de sua erotização, em vez de dizer que era coisa de homem. Sem falar dos acessórios que supõem as práticas SM, e que mudaram nossa sexualidade, ligadas ao gender fucking: o dildo, o couro, a encenação etc. É a scientia sexualis, o SM e o pornô straight “queerizados”, se você preferir. Como sua abordagem poderia ajudar a pensar a violência contra a mulher, a violência de gênero? Em primeiro lugar, de quais mulheres estamos falando? Estão inclusas as travestis? Segundo pesquisas de um colega da Universidade do Estado da Bahia, as travestis são caçadas como coelhos no Brasil. É preciso também prestar atenção nos gender mainstreaming, nas políticas institucionais e supranacionais que combatem a violência contra as mulheres. Elas focam na violência sexual e apenas raramente abordam as necessidades econômicas. Elas obrigam as mulheres a se identificar como vítimas, a valer-se do direito, negligenciando a colaboração que pode ser encontrada na afirmação cultural e política na luta contra a violência, sobretudo nas políticas comunitárias. Sua visita ao Brasil a levou a pensar na intersecção entre raça e sexualidade nas queer zones? Bourcier Meu objetivo, indo ao Brasil, era de me descentrar do eixo queer euro-americano, de melhor considerar minha posição de branco e de poder assistir e, quem sabe, participar da tradução política de uma política queer e criar alianças com outras subculturas queer brasileiras, mas poderia ser um outro termo além de queer, algo menos imperialista. E espero que isso aconteça. É claro, espero muito em termos políticos interseccionais, da articulação entre raça, gênero, sexualidades e religião. Estou bastante consciente de que pude evoluir, por ora, em meios que permanecem privilegiados e brancos – as universidades. Mas devo dizer que fiquei surpreso pelo plano de desenvolvimento das universidades realizado por Lula, e pelo fato de que as universidades brasileiras permanecem (cruzemos os dedos) públicas. Você sabe, as universidades europeias estão em plena privatização e ninguém faz nada a respeito. Eu tinha chegado ao ponto de não acreditar mais no serviço público, e me deparei, na Unilab, em São Francisco do Conde/BA, ou ainda no Ceará, com faculdades que brotavam em lugares ultra pobres, onde tive trocas com professores que se preocupavam todas as noites para inventar suas faculdades. Isso me fez lembrar profundamente e me fez compreender até que ponto a universidade pertence aos “comuns” e que é correto promover ações afirmativas, como as cotas. Interessei- me pelo nome social do qual podem se valer facilmente as pessoas trans em certas faculdades e por ver professoras travestis tornando- se reitoras, como Luma Andrade, no Ceará. Algo inimaginável na França. Qual a relação de seu estilo irônico, com franca vocação para a polêmica, com os temas que você aborda? Bourcier Tenho um estilo trash, cru, vulgar para alguns, que utiliza gírias e é intencionalmente polêmico. Deve ser meu lado francês que me faz polêmica. Quanto à mistura de diversos níveis de estilo, burilado, grosseiro, intelectual e sexual, é uma estratégia à la Genet, algo camp e fora do gênero também. Meu lado Genet está na cena do tubo de vaselina no Le journal du voleur [O diário de um ladrão], cuspes que se transformam em uma chuva de rosas no Miracle de la rose [O milagre da rosa]. Xs queers praticam uma forma burlesca que consiste em elevar ao cume o que é rebaixado, em virar do avesso, em inverter. Em se voltar contra aquelxs que xs assujeitam com elegância ou kitsch. Há algo disso também em uma denominação como “teoria queer” quando pensamos: é a teoria dos viados, a teoria do cu. Há também uma vontade de falar do sexo sem nunca retomar o vocabulário médico ou psicanalítico. De chamar uma boceta de boceta, um pau de pau. Do mesmo modo que o falo de Lacan – desculpe-me mas é um pau, a bem da verdade. Há também uma vontade de não deixar dizer que essa linguagem é um privilégio masculino. Enfim, tentei me livrar da valorização da “alta” cultura contra a “baixa” cultura, algo muito forte na França. Daí vem meu interesse pela cultura popular e pelas subculturas, e não pela Cultura com um grande C, em uma palavra, kantiana, e que finge o esteticismo, a Escrita com um grande E contra o político. Tentei elaborar uma escrita queer que seja engraçada. É o meu lado Charles Chaplin. Há também meu lado buldogue. Adoro o conflito no debate de ideias porque gera um brainstorming, que faz avançar. Nunca são ataques ad hominem ou ad feminem, mas eu constato que é muito difícil ter esse tipo de diálogo com representantes da teoria queer dos EUA. É uma pena já que é urgente despersonalizar a teoria queer, se queremos fazer políticas queer que funcionem. Como pensar a teoria queer para além dos países do Norte global? E como vincular as zonas queer e as experiências/corpos queer aos contextos locais? Como, enfim, traduzir o queer? No meu ponto de vista, será necessário encontrar um outro termo. Na Espanha, por exemplo, o transfeminismo é claramente uma tradução política anti-imperialista do queer estadunidense, dos “queericanos”. Em seguida, é preciso se desvencilhar da teoria branca queer da primeira onda, e há fontes importantes na crítica das QOC (Queers of Colour), inclusive nos EUA. Foi o que [Gloria] Anzaldúa começou. Em seguida, a teoria queer não pode ser separada das subculturas e das políticas queer, enquanto o oposto é possível. Você falou em “corpos” e é exatamente disso que se trata: o corpo é o vetor maior das micropolíticas queer, sobretudo em sua contestação dos regimes disciplinares, mas também contra as tecnologias de segurança, a sociedade e a cultura de segurança que injeta o neoliberalismo em tudo. Os corpos queer/transfeministas devem se encontrar em todo lugar em que se produzam zonas queer: o post-porn é uma dessas zonas que pode nos reunir sem o Norte global, que está pouco se lixando, aliás, para o post-porn. Traduzir é também aumentar e partilhar nossos universos referenciais. Mas é preciso que isso funcione em todos os sentidos, que se traduza do português, e que sejamos capazes de descolonizar o queer (para nós franceses, europeus, isso vai mais longe do que Walter Mignolo chama de “delinking”), e de aprender lições com o “racismo espistêmico” europeu, que nos formou, mas que ainda fascina demasiadamente a América Latina. Em quais projetos você está trabalhando atualmente? Estou escrevendo um livro que se chama Homo INC (de Incorporated). É uma crítica sobre para onde a agenda miúda da política igualitária nos levou com seu modo de engajar a luta contra as discriminações, com essas histórias de casamento gay e lésbico, mas não trans. O casamento não é um direito. É um privilégio e uma idiotice. É essa a política daqueles que chamo de “bons-homos” e os same sex, tendo em vista que essa fração rica e branca das lésbicas e gays (LG) não se define mais por expressões de gênero diferentes, mas pelo fato de ser homem ou mulher: essa bússola do sexo seria a orientação sexual. Acredito que essas políticas são cúmplices do neoliberalismo, que promovem o homoprodutivo e o homonacionalista, para não dizer racista. Eu estava no Brasil durante a Copa do Mundo, e foi perto de Salvador, eu acho, que ocorreram manifestações históricas de gays contra uma partida com o Irã. Uma importação direta da islamofobia sobre a qual se construiu a internacional gay. Eu tento ver o que seria uma agenda queer/transfeminista, tento falar de coletivos que propõem uma verdadeira agenda de transformação e de justiça social. Ou seja, trata-se de ir contra esse novo lugar de produção da subjetividade homo que se tornou o mercado sob o ângulo do trabalho e da economização dos comportamentos homossexuais. Era Foucaultque dizia que, com a sexualidade moderna ocidental, à questão “quem é você?” era preciso responder “um homossexual”, tornar-se um tipo sexual e não mais uma pessoa que praticava a sodomia no século 17. “Quanto você custa?”, “Quando você nos custa?”, “Quanto você produz?” são as novas questões que faz agora um regime de produção da verdade do sexo indexado sexual e racialmente, ligado aos mercados nacionais e internacionais nessa era neoliberal. Para mim, é impossível fazer política queer sem combater o neoliberalismo, e é também por isso que há uma clara oposição entre as políticas LG e as políticas queer e transfeministas. Tradução Mario Sagayama Nota da redação: em suas respostas, além de gírias e estrangeirismos, Marie-Hélène/Sam Bourcier usa alternadamente as marcas dos gêneros masculino, feminino e neutro, este marcado pela letra “x”. ensaio Diversidade ou diferença? RICHARD MISKOLCI Foi na virada entre as décadas de 1980 e 1990, quando alguns conflitos envolvendo diferenças culturais ganharam visibilidade midiática, que emergiu a discussão teórica e política sobre a diversidade e a diferença. Os conflitos raciais renovados nos Estados Unidos, a ameaça separatista do Quebéc no Canadá devido a sua diferença linguística e cultural em relação ao resto do país, além de outras formas de conflito na Europa, tudo fazia refletir sobre a fragilidade dos princípios universalistas do direito e da cidadania no chamado Primeiro Mundo. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema: The politics of recognition, do filósofo canadense Charles Taylor. Sua reflexão serviu de base para muito do que foi escrito desde então sobre diversidade, tanto em termos acadêmicos como em políticas sociais. A noção de diversidade busca – dentro de um enquadramento universalista – abarcar as demandas por respeito e acesso a direitos por parte de grupos historicamente subalternizados como negros, povos indígenas, homossexuais, mulheres. Em sociedades democráticas fundadas no universalismo, como a francesa, é notória a dificuldade em reconhecer demandas de grupos chamados de “minoritários”. Em uma ordem republicana universal não há espaço para a diferença, daí medidas como a proibição de imagens religiosas em repartições públicas e a recusa do uso do véu por estudantes muçulmanas nas escolas. A rationale universalista exige que o Estado laico seja preservado à custa do ocultamento das diferentes formas de confissão que nele convivem. Em países como os Estados Unidos e o Canadá, a concepção política de nação é mais permeável a demandas diferenciais, por isso o Estado adota medidas de reconhecimento e/ou políticas como as ações afirmativas que visam, por exemplo, ampliar o acesso de negros e mulheres às universidades e mesmo aos postos de trabalho. Nesses países, a noção de diversidade engendrou a de multiculturalismo, uma forma de compreender as diferenças internas à nação como uma riqueza cultural. Ao mesmo tempo, diversidade e multiculturalismo se construíram como um adendo ou reforma das instituições sem problematizá-las mais profundamente, apenas disseminando o valor da tolerância à diferença. Vale sublinhar que tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher, deixar-se influenciar e se transformar por ela. No início da década de 1990, começaram a surgir as críticas, dentre as quais destaco a forma como a diversidade se baseia em uma concepção de cultura frágil e estática assim como compreende horizontalmente as relações de poder dentro de uma nação. Culturas não são estáticas tampouco o poder existe sem hierarquias e conflitos, portanto a diversidade e o multiculturalismo se revelam incapazes de superar a problemática para a qual foram criados. Eles buscavam materializar o que alguns chamaram – ironicamente – de “política do arco-íris”: a utopia de uma sociedade que poderia manter suas diferenças lado a lado, sem conflitos, negociações e mudanças na cultura como um todo. Intelectuais comprometidos com grupos historicamente subalternizados criticaram a perspectiva da diversidade e do multiculturalismo enfatizando que as diferenças demandam reconhecimento que levará – necessariamente – à transformação da ordem institucional. Não é possível colocar diferenças lado a lado sem intercâmbios e transformações da cultura como um todo, tampouco ignorar que essas se deem, muitas vezes, de forma conflituosa. Assim como afirmaram clássicos da teoria social como Marx e Weber, os teóricos das diferenças reconhecem que o conflito é parte da vida social. A perspectiva da diversidade não é pacífica, apenas busca contornar o conflito com uma concepção de sociedade multicultural baseada na expectativa de que o reconhecimento de grupos subalternizados não modificará as relações de poder e a própria concepção vigente de justiça e direitos. De forma direta – e um tanto impressionista – é possível dizer que constitui uma vertente política construída sob a perspectiva daqueles que detêm o poder, já têm acesso a direitos e propõem estendê-los a outros sem modificar a estrutura institucional em que se baseiam. Não é mero acaso que boa parte das políticas envolvendo diversidade e multiculturalismo se apresentam como adendos, programas complementares para “colorir” o já existente com uma suposta aura “democrática”. A perspectiva das diferenças reconhece que os dilemas das nações contemporâneas são resultado de conflitos entre as instituições estabelecidas e a emergência de demandas dos já citados grupos sociais, portanto ela aponta para a necessária renegociação política e cultural que pode criar sociedades mais justas. Ao reconhecer conflitos históricos, os pensadores dessa linha também consideram salutar a transformação institucional para negociá-los. Sobretudo, questionam a possibilidade de apenas estender direitos sem problematizar a própria concepção vigente de cidadania, a qual contribuiu para disseminar desigualdades. DO UNIVERSALISMO ÀS DIFERENÇAS O universalismo pautou a construção de democracias em termos políticos em que a cidadania foi pensada como única porque projetada em uma sociedade imaginada como homogênea. A grande encarnação dessa comunidade imaginada foi a nação, um construto histórico, político e cultural que – segundo historiadores – ganhou protagonismo a partir de fins do século 18. Não por acaso, no mesmo período em que se inicia a era contemporânea e sua promessa de superação das hierarquias do Velho Regime. Algumas das primeiras feministas, como Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft, apontaram já naquela época que o liberalismo político se associou ao econômico na afirmação de valores universais, como o de que todos são iguais perante a lei, já definindo o cidadão como homem. Assim, a universalidade e sua promessa de igualdade começou criando modalidades de cidadania ao relegar as mulheres a uma posição inferior, pois não tinham acesso à educação, direito ao voto, ao patrimônio ou qualquer forma de autonomia individual, mesmo porque eram tuteladas do nascimento até a morte. Os países em que a democracia universalista começava a ser construída também tinham outras contradições para lidar, como o colonialismo e a escravidão em suas colônias. Na primeira república moderna, os Estados Unidos da América, em 1848, um grupo de feministas e abolicionistas criou um manifesto conjunto intitulado “Declaração de Sentimentos”. Suas demandas de direitos iguais sublinhavam o caráter servil que a nova ordem política reservava às mulheres e aos negros evidenciando que a democracia na América ainda tinha um longo caminho a construir. Mundo afora, movimentos anticolonialistas, feministas e abolicionistas problematizaram os ideais universalistas assentados no imperialismo, na dominação das mulheres e na escravidão. Infelizmente, tal história não entrou para os livros, tampouco teve a atenção devida antes da década de 1960, quando tais movimentos se reconfiguraram e ganharam adesão massiva. Foi nessa época que emergiu o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a chamada “segunda onda” do feminismoe o movimento homossexual. Tais movimentos tinham em comum a demanda de reconhecimento social e legal de suas diferenças, uma nova forma de clamar por igualdade. O movimento feminista, por exemplo, em sua primeira onda era predominantemente igualitarista. Do século 19 à primeira metade do século 20, seus principais slogans eram o direito à educação e ao voto, os mesmos que já eram garantidos aos homens. Alcançadas essas demandas na maior parte do mundo, a partir da década de 1960, a agenda feminista é renovada e volta-se para direitos que exigem reconhecer diferenças. Um deles é o da autonomia corporal, o direito de escolha sobre a contracepção. Em outras palavras, o movimento – desde então – tornou-se um feminismo da diferença. A luta pelo direito ao aborto assim como a do movimento homossexual pela despatologização e descriminalização do desejo por pessoas do mesmo sexo contribuíram para fissurar o mito da nação como uma comunidade reprodutiva. A sociedade que, desde a invenção da pílula, começara a separar o sexo da reprodução e cujas demandas políticas de negros envolviam o direito ao casamento inter-racial, se deparava com um cenário novo na esfera das relações de gênero, sexualidade e, inclusive, étnico-raciais. Desde então, o mito da homogeneidade cultural e política não cessou de ser cada vez mais problematizado, e não apenas nos países centrais. AS DIFERENÇAS NO BRASIL Na época em que emergem as discussões teóricas, conceituais e legais recentes para lidar com os limites do universalismo, o Brasil vivenciava a ruptura com seu passado autoritário e a expectativa de construir uma democracia baseada na Constituição de 1988. Não tardou para que a liberdade permitisse que vozes abafadas durante o Regime Militar (1964-1985) começassem a se articular em torno de demandas de reconhecimento. Refiro-me aqui à reorganização de movimentos sociais, em especial o feminista, o negro e o que viria a se denominar de LGBT, os quais criaram novas pautas e formas de atuação. Foram esses movimentos que pouco a pouco fissuraram mitos sobre a nação brasileira que escondiam ou minoravam as divergências sobre a representação historicamente construída de que ela seria conciliatória, pacífica e, sobretudo, justa. Há décadas era fato mundialmente conhecido de que temos uma das piores distribuições de renda do mundo, mas até recentemente permaneciam insuficientemente problematizadas outras formas de desigualdade. Na academia, até a mais evidente, a desigualdade étnico-racial, tendeu a ser abordada como questão econômica ou de “integração” por muitas décadas. E, mesmo no presente, gera divergências acaloradas entre intelectuais que insistem em salvar o mito da democracia racial e aqueles que propõem pensar em outros termos a forma como a sociedade brasileira efetiva e cotidianamente lida com diferenças étnico-raciais. As divergências têm pendido para seu reconhecimento em políticas como as ações afirmativas no ensino superior e em concursos públicos. A pauta de direitos das mulheres também tem sido bem sucedida. A luta feminista alcançou vitórias admiráveis, as quais modificaram a ordem institucional, política, mas também cultural. Há evidências empíricas de melhoras de indicadores de igualdade entre mulheres e homens, como a aprovação da Lei Maria da Penha que pune a violência contra mulheres, mas não foi aprovada a descriminalização do aborto. A despeito dos sucessos, a agenda feminista precisa se manter e incrementar políticas públicas para alcançar seus objetivos, o que – no ritmo atual – ainda pode levar algumas décadas. A problemática das diferenças que ainda gera mais resistência é a da sexualidade e do gênero. As pautas LGBT geram formas flagrantes de desqualificação de setores conservadores tornando evidente algo que a sociedade brasileira nunca reconheceu: seu moralismo. O mito da liberalidade sexual esconde não apenas o preconceito contra expressões do desejo por pessoas do mesmo sexo, mas também de dissidências de gênero ou de demandas de autonomia contraceptiva. O discurso conservador de suposta defesa da família mal encobre o desejo de manter os privilégios dos homens assim como a ordem que os privilegia. As conquistas e resistências brevemente descritas acima demonstram que, a partir da década de 1990, nosso país entrou em sintonia com as discussões internacionais. A maioria dos programas estatais adotaram o termo diversidade e o uso de referências ao multiculturalismo para descrever iniciativas para lidar com as recentes demandas por reconhecimento e direitos. Infelizmente, tal adoção vocabular tendeu a ser feita de forma acrítica e se disseminou, sem o devido debate, até mesmo nos movimentos sociais. Lutas políticas exigem reconhecer e problematizar o vocabulário em que se dão. No caso, contrapondo à retórica da diversidade e do multiculturalismo a perspectiva das diferenças, do reconhecimento da existência de conflitos e desigualdades que exigem a transformação social e política de nossa sociedade. A perspectiva das diferenças, afinada com as demandas históricas dos movimentos sociais, propõe repensar a nação brasileira como ainda a compreendemos e, neste exercício cultural e político, refletir sobre como reformar a cidadania, de maneira que ela não seja apenas disponível a alguns, antes suficientemente democrática para abarcar a todos e todas. entrevista Judith Butler A performatividade de gênero e do político CARLA RODRIGUES Autora de uma obra marcada pela retomada da filosofia política numa situação em que o pensamento parecia esvaziado para enfrentar as acusações de impotência diante dos grandes desafios do complexo cenário da vida contemporânea, relativismo e niilismo moral, Butler chega ao Brasil acompanhada do lançamento de dois livros que comprovam o fôlego de seu pensamento para muito além das questões de gênero, pelas quais se notabilizou por aqui desde a tradução, em 2003, de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, pela Civilização Brasileira, e Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, pela Autêntica Editora, chegam para se somar a O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte, editado em 2014 pela Editora UFSC (ver resenhas nesta edição), e começam a delinear melhor o perfil dessa pensadora cuja marca de gênero é ao mesmo tempo fundamental e necessariamente insuficiente. Desde Nietzsche, mesmo considerando os desdobramentos na obra de Michel Foucault (de quem Butler é tida como continuadora) e seu conceito de biopolítica –, principalmente entre seus leitores franceses –, a materialidade dos corpos não havia ocupado tamanha centralidade no pensamento filosófico. Nesse sentido, Bodies that matter: on the discursive limits of sex, escrito em grande medida para responder a diferentes críticas à proposição de compreender tanto sexo quanto gênero como um sistema discursivo que se inscreve sobre os corpos tidos apenas como biológicos, pode ser considerado um ponto a partir do qual Butler também se inscreve na história da filosofia como a pensadora contemporânea de um “verdadeiro momento filosófico”, expressão do francês Patrice Maniglier para se referir não apenas a uma época, mas a um pensamento que demanda incessantemente ser relido e retomado. Entender sexo/gênero/desejo como um sistema discursivo que opera a diferença sexual levou o pensamento de Butler ao estatuto de paradigma da crítica à heteronormatividade. Tem sido assim desde a publicação de Problemas de gênero, livro que fez de Butler uma das expoentes da teoria queer, tão bem definida por Vladimir Safatle no posfácio a Relatar a si mesmo como um pensamento que “toma como identificação de si o que parece expulso da reprodução normal da vida”. Se corpos performatizam gêneros a partir de uma estrutura de repetição que contém nela mesma a possibilidade de transgressão, corpos também indicam a condição precária da vida, tema de Quadros de guerra (mas também de Precarious life: the power of mourning and violence, título queo antecede). Escrito no contexto do debate norte-americano sobre a guerra contra o Iraque e as práticas de tortura nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, Quadros de guerra também diz respeito ao público brasileiro ainda estarrecido com o episódio recente de um trem que destruiu o corpo de um ambulante morto nos trilhos ferroviários do Rio de Janeiro. Para pensar o luto como condição de reconhecimento do valor de uma vida, como faz Antígona na reivindicação do direito de enterrar seu irmão, Butler recorre à teoria do enquadramento do sociólogo Erving Goffman a fim de indicar como a fragilidade dos corpos diante dos aparatos estatais de poder e das imposições de normas de gênero – a rigor, indissociáveis – são resultado da construção do nosso olhar sobre violência física a partir de marcas biológicas restritas por categorias identitárias e heteronormativas. A filósofa cuja tese de doutorado é sobre a recepção francesa do pensamento de Hegel no século 20 faz parte também de uma retomada da filosofia política a partir daquilo que poderia apontar para o seu fim: a derrocada da centralidade do conceito de luta de classes a partir do triunfalismo dos discursos de fim da história e a emergência das políticas da diferença. O esgotamento das políticas da diferença – para usar uma expressão cara a Vladimir Safatle, principal expoente do debate com a filósofa no Brasil – faz Butler retomar o conceito hegeliano de reconhecimento, central na discussão sobre direitos. Da violência normativa de gênero se chega ao tema da violência ética discutida em Relatar a si mesmo, mais um dos lançamentos editoriais que, além de suprirem o longo espaço de mais de uma década desde a primeira tradução de Butler em português, se valem da sua primeira vinda ao Brasil para renovar o interesse por sua obra. O livro parte de um diagnóstico de que as mudanças nas normas sociais nos fizeram chegar a um ambiente de niilismo moral a partir do qual só se pode recuar. Num clima de histeria não muito diferente do que se pode assistir no Congresso Nacional dominado por forças religiosas, prevaleceria a ideia de que a garantia dos direitos homossexuais é a abertura de uma porta para o inferno da ausência de norma, cujo pecado maior estaria em não poder ser universalizável. A disjuntiva entre universal e particular é o eixo da discussão ética de Butler, que retoma a crítica de Nietzsche e Foucault a Kant, para quem o fundamento da moralidade é a autonomia da vontade do sujeito moral. Ora, argumentariam os críticos, se com Hegel e a partir dele, o sujeito perde a possibilidade de se afirmar enquanto tal, uma “falha ética” advinda desse sujeito partido por uma diferença intrínseca contaminaria todo o fundamento da moralidade. Já para Butler, o que é considerado falha pode “muito bem ter uma importância e um valor ético que ainda não foram corretamente determinados por aqueles que equiparam, de maneira muito apressada, o pós-estruturalismo com o niilismo moral”. Em outras palavras, o questionamento da norma não é sua destruição, mas a busca por normas que melhor nos sirvam. Com essa formulação, trabalha-se pela ampliação da universalidade até um ponto impossível, como Butler diz nessa entrevista à CULT, concedida como parte da recepção da filósofa no Brasil, onde faz conferências na UFBA, na UFSCar, e no I Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades: “Sinto que ainda não alcançamos um conceito do universal que realmente inclua todas as populações que, por direito, desejam ser representadas dentro de seus termos. A conquista talvez seja impossível, mas é um ideal em direção ao qual lutamos. E essa luta é histórica”. Existe uma gama ampla de pesquisas relacionadas ao seu trabalho tanto no Brasil como na America Latina. Há mais de dez anos que os estudos sobre sexualidade e gênero em áreas como antropologia, sociologia e filosofia têm investigado assuntos como performance, interatividade e paródia. Você tem consciência da repercussão das suas ideias no Brasil? Eu tenho alguma noção acerca da repercussão do meu trabalho no Brasil, porque as pessoas me mandam notícias, livros, vídeos de performances. Eu vejo que mesmo agora, hoje, existem maneiras em que a performance é central para as demonstrações públicas, o exercício da liberdade de gênero e também para a liberdade de reunir-se em assembleia. Eu tenho acompanhado a tradução de alguns dos meus livros para o português, e tem sido muito animador ouvir tanto de estudiosos quanto de ativistas que derivam algo desse trabalho. Durante os últimos dez anos, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade era o seu único livro publicado no Brasil – o que limitou a pesquisa sobre seu trabalho a um foco muito específico do debate sobre gênero. Assuntos da sua filosofia política, como as políticas de identidade, precariedade de vida e reconhecimento poderiam dar aos pesquisadores uma compreensão mais ampla de suas ideias. Você pretende falar sobre esses temas durante as suas conferências no Brasil? Eu pretendo, sim, falar sobre política corporal, sobre a importância de corpos reunidos, o porquê de podermos pensar a performatividade não só como algo que uma pessoa faz, mas também como algo encenado no coletivo. Eu pretendo demonstrar que meu trabalho sobre performatividade de gênero está ligado à política de precariedade sobre a qual tenho pensado nos últimos anos. Afinal, ainda que tenhamos que lutar por liberdades individuais, temos que pensar o lugar de corpos atuantes e de corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia. A meu ver, não existe democracia sem assembleia, e nenhuma assembleia sem uma forma plural e consubstancial de performatividade. Atualmente tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende restringir o conceito de família aos casais heterossexuais e seus filhos. Na sua opinião, seu livro O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte pode nos ajudar a encarar essa posição conservadora? Meu livro é apenas uma contribuição a um amplo debate sobre parentesco que está acontecendo pelo mundo todo. No Brasil, certamente, mas também na Polônia, na França. Eu acredito que esses esforços para “definir” a família em sua forma restrita, heterossexual e matrimonial, para fazer com que crianças sejam derivadas biológica ou legalmente do casal heterossexual é uma tentativa de frear movimentos sociais e novas formas de parentesco que estão lentamente se tornando a norma. Tais definições estabelecem obstáculos para que todo tipo de pessoa, casada ou solteira, hétero, gay, lésbica, bissexual ou trans consiga estabelecer laços íntimos dentro dos termos da lei. Neste sentido, eles não estão definindo nada, apenas usando o poder da definição legal enquanto obstrução. Meu livro é uma pequena e acadêmica contribuição para um debate muito mais amplo e urgente. Em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, você politiza a importância do luto público por vidas perdidas. De 2005 a 2014, 5132 pessoas foram mortas por policiais na cidade do Rio de Janeiro, a maioria jovens, negros e moradores de favelas. Como suas ideias sobre guerra podem ser estendidas a outras situações de violência? Acho que também devemos atentar ao modo com que vulnerabilidade e precariedade estão diferencialmente distribuídas, estabelecendo populações inteiras como “não lamentáveis”. O movimento Black Lives Matter, nos EUA, torna clara a maneira com que as vidas negras são facilmente “dispensadas”, seja por falta de amparo social ou pela violência policial irrestrita. Eu entendo que haja gravíssimas e consequentes hierarquias raciais no Brasil que nos mostram que uma das formas letais que o racismo assume é o poder de estabelecer critérios que determinam quais vidas são merecedoras de amparo, e quais são dispensáveis, “não lamentáveis”. Faz sentido para mim que haja raiva, politicamente justificada, diante dessa forma de poder. Em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, você defende uma mudança na concepção de que estamos vivendo num niilismo moral. Fale umpouco sobre isso. Bem, não tenho certeza do que os conservadores estão colocando, mas aqui estão alguns pontos. Algumas pessoas acreditam que uma mudança nas normas sociais irá produzir uma forma de niilismo moral. Se existe o casamento gay, ou se é assegurado às pessoas trans o direito de mover-se e viver como queiram, isso levará ao “niilismo moral”. A Igreja Católica em algum momento colocou que, se a homossexualidade for “aprovada”, o que nos deixaria de “aprovar” o sexo com animais, árvores etc.? São todos argumentos histéricos que se recusam a aceitar as mudanças profundas que ocorrem nas normas que ditam sexualidade e gênero. Existem outros, na região da filosofia, que dizem que devemos agir como se as nossas ações fossem universalizáveis. Esses são os kantianos. Ainda assim, minha tréplica é que agimos dentro de nossa situação histórica. Até nossa capacidade de agir está historicamente condicionada e estruturada (não determinada!). Sinto que ainda não alcançamos um conceito do universal que realmente inclua todas as populações que, com direito, desejam ser representadas dentro de seus termos. A conquista talvez seja impossível, mas é um ideal em direção ao qual lutamos. E essa luta é histórica. Muitos filósofos, especialmente Hegel, mas também Foucault e Derrida, têm influenciado seu trabalho. Você pode fazer uma pequena seleção de mulheres pensadoras que a influenciaram? Simone de Beauvoir foi muito importante para mim. Foi ela quem me deu, quem deu pra tantos de nós, a formulação “Não se nasce mulher, torna-se uma”. E Monique Wittig, que deu a Beauvoir uma leitura original, perguntou se, de fato, qualquer um de nós precisa se tornar mulher, e quais os riscos de habitar essa categoria. Eu também fui profundamente influenciada pela historiadora Joan Scott, a filósofa política Chantal Mouffe, as escritoras Susan Sontag e Anne Carson, e mais recentemente pelos trabalhos de Simone Weil e Hannah Arendt. Arendt me deu uma maneira de revisar minha antiga teoria de gênero performativo (mesmo que ela provavelmente detestasse a noção de gênero). Ela oferece um caminho para pensar a política como necessitando de ações plurais e consubstanciais, e isso me parece um jeito importante de pensar a performatividade de gênero com a performatividade do político. Enquanto feminista, já li muitas grandes autoras que me influenciaram, incluindo Gayle Rubin, Angela Davis e Bernice Johnson Reagon, para mencionar só algumas. Talvez sejam meus alunos que me afetem mais, desafiando as minhas ideias, provocando-me a conhecer o presente. Tradução Pedro Köberle resenhas Judith Butler, condições de vida e o horizonte do representável PEDRO PAULO GOMES PEREIRA Judith Butler é uma das mais instigantes intelectuais da atualidade e vem trilhando uma trajetória ímpar, com contribuições incontornáveis em diversas áreas do conhecimento. Constante em sua obra é sua capacidade de ser afetada pelos encontros, engajamentos e debates, produzindo reflexões em torno das indagações que surgem dos acontecimentos. No Brasil, poderemos acompanhar mais de perto esse percurso com o lançamento de dois de seus livros: Relatar a si mesmo: crítica da violência ética (Autêntica Editora) e Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto (Civilização Brasileira). RELATAR A SI MESMO Desde Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Butler enfrentou uma crítica sobre certa pressuposição da presença, em seus trabalhos, de um sujeito autônomo e soberano de seus atos e desejos. Em direção contrária a essa crítica, diversos e reiterados textos de Butler revelam como o sujeito está comprometido com o poder e que sua ação é, simultaneamente, interna e externa ao poder. Sendo assim, a capacidade de ação não pode ser imaginada a partir da perspectiva de um sujeito voluntarista, livre para escolher irrestritamente. Butler volta a esse tema em Relatar a si mesmo – livro composto por textos que surgiram em 2002, nas Conferências Spinoza realizadas na Universidade de Amsterdã. O tema central é a ideia de que, para sermos inteligíveis, devemos estar fora de nós mesmos, pois somos constituídos pelos outros – cercados por convenções e regras que nos afetam, dependemos dos outros para viver. Por todo o livro, a autora vai desenhando uma inter- relacionalidade radical na qual vamos nos constituindo. Ela tece, dessa maneira, uma crítica ao sujeito liberal supostamente cônscio de si e das fronteiras de sua subjetividade. As convenções e regras atuam de tal forma que, quando somos interpelados a dar conta de nossos “eus”, as condições sociais tornam impossível e extenuante essa tarefa. O corpo singular a que se refere um relato não pode ser apreendido por uma narração total porque o modo pelo qual as relações primárias nos constituem produz uma obscuridade na autocompreensão. Dar conta de si mesmo é sempre algo que ocorre em relação ao outro, uma vez que esse outro estabelece a cena de interpelação que possibilita o relatar a si. Não são nossas invenções os quadros que usamos para estarmos inteligíveis para nós e para os outros. As condições sociais e as normas estabelecem um campo de falta de liberdade e de possibilidade no qual nossas histórias são narradas. A persistente tendência à naturalização de um sujeito autônomo não se sustenta diante do caráter relacional da vida: a vida não pode relatar a si mesma nem discorrer sobre sua manifestação no mundo sem considerar as normas sociais existentes. A relação com o outro interpela e indaga sobre quem sou eu. É isso o que define e conforma o sujeito, que se constitui nesse contexto de interpelação e de indagação das possibilidades de uma relação moral. O que une uma política crítica a uma ética e a uma moral que, por momentos, exige relatar a si em primeira pessoa? Butler responde a essa indagação afirmando que a moral não é apenas um sintoma nem transcende os quadros sociais. As questões morais surgem quando normas de comportamento deixam de ser evidentes e há divergências entre o universal e o particular. Nesse caso, o universal não inclui (nem está de acordo com) o indivíduo – a própria reivindicação de universalidade nega direitos. Isso não significa que o universalismo seja violento por definição, adverte Butler, mas só que existem condições para se exercer a violência. Por conseguinte, a reflexão moral não pode ser isolada do contexto sociopolítico no qual foi formulada. A questão da ética surge nos limites de nossos esquemas de inteligibilidade, exatamente no lugar onde questionamos o significado de continuar um diálogo sem campo compartilhado. Seja lá como for, há a necessidade de reciprocar reconhecimento a outrem, cuja interpelação é incontornável. É por essa dimensão do outro e da interpelação que Butler vai considerar que a pergunta básica do processo de conhecimento não seria “em que posso converter-me?”, mas “quem és tu?” O “tu” seria a origem de todo perguntar. Esse movimento busca retirar o sujeito narcisista do centro da ética, pois se admite o outro como constitutivo de cada origem. Qualquer tentativa de relatar a si mesmo terá que assumir que há uma opacidade intransponível no processo e terá que aceitar a própria ficção desse relatar. Entretanto, o reconhecimento da própria opacidade e da limitação essencial dos sujeitos não deve ser percebido como fracasso da ética, mas como ponto de partida de uma ética que se afaste da violência, que se aparte do juízo ético condenatório de um sujeito seguro de si que acusa o outro. Butler argumenta a favor de uma ética de responsabilidade ancorada nessa opacidade, nesse fracasso, aportada em nossa cegueira sobre nós e sobre os outros. De tal forma que se possa suspender a pretensão de sujeitos completamente coerentes. Como adiantei, na formulação de Butler, o sujeito que não é autofundante, nem autotransparente, nem autônomo, nem inteiramente consciente de si. E essa concepção de sujeito possibilita sustentar condutas eticamente responsáveis, porque reconhece os limites do sujeito ao mesmo tempo em que constrói disposiçãopara humildade e para generosidade. Deixar aberta a pergunta pelo outro é estar mais perto da vida, já que a vida é aquilo que excede a explicação. Ao reconhecer os limites intrínsecos do (re)conhecimento, a postura ética seria a de perguntar “quem és tu?”, sem esperar algo acabado coerente. O desejo de reconhecer torna-se próximo do desejo de viver, e deixar viver, a base de toda teoria do reconhecimento. Se assim for, haveria um afastamento da violência fundamentada na segurança de um sujeito que acredita poder relatar a si mesmo, dar conta completamente de si e que circunscreve o outro a essa existência. Seguindo esse raciocínio, se a violência é o ato no qual um sujeito procura reinstaurar seu domínio e sua unidade, a não violência pode ser decorrência da constante indagação sobre a anterioridade e proeminência de minha subjetividade. A questão é sempre deixar aberto o encontro com o outro e colocar em risco o “eu”, compreendendo a precariedade como condição compartilhada. QUADROS DE GUERRA Butler já havia refletido sobre as maneiras pelas quais certas representações do humano originam seres não considerados humanos, em Vidas precárias. Ao percorrer esse processo de demarcação das vidas vivíveis e das descartáveis, analisando inclusive o papel da mídia nas representações restritivas do outro, ela indagou sobre o que nos vincula ao outro, mostrando que esse vínculo surge quando reconhecemos a precariedade como condição compartida. Com uma introdução e cinco artigos, publicados entre 2004 e 2008, Quadros de guerra reafirma e amplia esses argumentos. Os textos abordam a guerra dos EUA contra o Iraque, a tortura dos prisioneiros em Guantánamo, refletindo sobre quais vidas são reconhecidas e passíveis de luto e quais as vidas descartáveis, e como o aparato bélico norte-americano atua impondo uma distinção entre as vidas que merecem pranto e aquelas que não podem ser lamentadas. Há uma impossibilidade de se fazer o luto público das vidas não reconhecidas – como nos casos da mencionada guerra contra o Iraque, a ocupação israelense dos territórios palestinos ou da aids. A guerra controla e potencializa os efeitos da distribuição desigual e politicamente induzido da precariedade, que compromete o status ontológico de populações, mantendo-as como descartáveis e não merecedoras de luto. Ao discutir a tortura como política de Estado, a condição de reconhecimento dos corpos dissidentes, a biopolítica como uma forma de controle de corpos, Butler se interroga sobre a violência e a possibilidade de uma ética política que seja capaz de balizar uma crítica à violência de Estado e às novas formas de poder. Por todo o livro, sustenta que a política necessita compreender a precariedade como condição vital generalizada. A vida entendida como vida precária implica dependência de redes e de condições sociais. Nossas obrigações surgem da ideia segundo a qual não pode haver uma vida vivível (e, portanto, suscetível de pranto) sem amparo, que é uma responsabilidade política e ética. Como Butler havia sublinhado em Relatar a si mesmo, estamos todos em relações intensas e mútuas. Não há nenhum vínculo entre o eu e o outro anterior a essas relações – aliás, o único vínculo anterior seria o que se instaura quando surge a questão ética do reconhecimento de sua humanidade. A guerra (e a tortura) mostra que somos vulneráveis à destruição pelos demais e, por conseguinte, estamos necessitados de amparo, de proteção mediante acordos baseados no reconhecimento da precariedade compartida. Butler questiona incisivamente o papel dos meios de comunicação dominantes na regulação dos afetos. A mídia converte-se em parte da guerra e do aparato que leva à destruição populações que não se encaixam nem são adequados ao que se imagina como humano no Ocidente. As práticas de representação e as imagens revolveriam entre as possibilidades de humanizar e de desumanizar. A guerra se sustenta e funciona por meio da modelação, pelas diferentes formas de expressões midiáticas, dos sentidos e dos afetos, já que a mídia controla o que se pode mostrar e o que se deve ocultar. As mortes anônimas são construídas antecipada e continuamente, perfazendo um processo imagético de edificar o inumano: afinal, onde não houvera vida não haverá morte. Na constituição do campo público do visual, a nossa capacidade de fazer transitar uma resposta moral dependerá das condições de receptividade que incluem, além de meus recursos privados, os distintos quadros e enquadramentos que constroem repetitivamente a realidade e circunscrevem os horizontes de sentido. A empreitada incide, assim, em constituir maneiras públicas de olhar e escutar que reavivem e estimulem os sentidos da precariedade do outro, proporcionando meios interpretativos para compreensão da guerra que interroguem as interpretações dominantes e se contraponham a elas. O quadro (ou o enquadramento) que pretende determinar como e o que se vê tem que circular a fim de estabelecer sua hegemonia. Como nas performances de gênero, essa circulação apresenta o caráter historicamente contingente do quadro (com suas exposições e ocultamentos), revelando-o como enganoso, abrindo possibilidades insurgentes. Isso pode ser observado quando prisioneiros de Guantánamo escreveram poemas: nesses poemas há traços de uma cultura poética que perfaz movimento contra o poder estatal. A divulgação da poesia de Guantánamo, a circulação de fotos da guerra e a imagem digital fora dos muros de Abu Ghraib sinalizam que a circulação do texto e da imagem por fora de seu confinamento oferece condições para outro tipo de resposta moral. A câmera instiga, demarca, orquestra o ato de tortura e, concomitantemente, capta sua consumação. Mas a circulação de imagens permite romper com esse quadro, com essas formas de enquadramento. Nossa capacidade de resposta afetiva pode se compor dentro de uma matriz de poder, mas isso não significa que necessitemos reproduzir essa matriz. A circulação e sua reprodutibilidade fazem-no falível, vulnerável à inversão e à subversão. De maneira que as imagens e os textos podem construir diversos afetos, como a indiferença, mas também como a solidariedade. EM TORNO DA VIDA Estes comentários nem de longe fazem justiça à riqueza da argumentação, aos diálogos com a teoria social e ao estilo de Butler, que apresenta, indaga e provoca. Espero, contudo, que sejam suficientes para mostrar a constante interrogação crítica sobre os contextos que fazem as vidas inteligíveis e passíveis de pensamento e afetos. E suficientes também para delinear algo do movimento de Butler em torno das condições de vida e do horizonte do representável. Tanto Relatar a si mesmo como Quadros de guerra buscam encontrar maneiras para examinar o que significa a vida em nosso tempo, e refletir sobre nossa responsabilidade. Esses livros destacam também a capacidade de Butler em trabalhar com diversas teorias (que surgem como partes de um diálogo e de um processo argumentativo) sem subserviência, produzindo algo a mais e diferente. O lançamento desses livros, os relançamentos já programados, e a visita de Butler ao Brasil para participar de eventos dos mais importantes, podem nos levar a questionar: se optarmos por seguir o próprio movimento de Butler, como ler no Brasil, sem subserviência, a autora de Problemas de gênero? E se um de seus ensinamentos é o de, no diálogo, produzir algo que vá além, como desviar de simplesmente aplicar uma teoria que fora formulada, evitando apenas a repetição? E também: se esses livros nos mostram afetos e afecções produzidos e acentuados nos eventos e nos diálogos, nas interpelações dos encontros, o que podemos esperar com a passagem de Butler no Brasil? Como ela será afetada por mais esse encontro? Como se abrirá aos Outros aqui nos trópicos? Enfim, perguntas, livros, eventos, diálogos que compõem momento ímpar para reflexão. Da família ao parentesco CARLA RODRIGUES Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei – PL 6583/13 – que trata do Estatuto da Família, instrumento conservadorcujo objetivo é definir que tipo de agrupamento de pessoas pode ser denominado como família. Na contramão da vida real – em que famílias se organizam para além dos laços sanguíneos, se vinculam em redes extensas, se reconfiguram a partir de novas uniões –, o projeto pretende limitar a família ao modelo heterossexual e proibir a adoção de crianças por casas homoafetivos. É contra esse tipo de discurso conservador que O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte (Editora UFSC, 2014), da filósofa Judith Butler, se insurge. A partir de uma interpretação original da peça de Sófocles, Butler revisita as leituras de Hegel e Lacan para localizar na personagem trágica de Antígona a possibilidade de dissociar família e parentesco. O argumento para essa separação vem da percepção de que a narrativa da luta de Antígona para enterrar Polinices foi inúmeras vezes lida sem que se tenha observado o amor dela por seu irmão. A Butler vai interessar o que ela chama de “caráter contingente do parentesco”, insistindo que todas as interpretações da peça contornam o fato de que Antígona é filha de uma relação incestuosa: Édipo é, ao mesmo tempo, pai e irmão de Antígona, e ambos são filhos de Jocasta. Só isso, argumenta Butler, já a impediria de ocupar o lugar de representante de leis de parentesco ordenadas pelo tabu do incesto. No entanto, na leitura de Hegel, Antígona encarna a passagem da lei singular e familiar para a lei universal e pública, e em Lacan, Antígona encarna a lei do desejo, sem chegar a perturbar os arranjos familiares que representa. Nesse ponto, Butler recorre à antropóloga feminista Gayle Rubin para repensar o tabu do incesto como centro fundador das estruturas elementares do parentesco pensadas por Lévi-Strauss. Na antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, a proibição do incesto funciona como centro das estruturas elementares de parentesco. Rubin percebe aí um aspecto que será fundamental para o argumento de Butler: na estrutura de parentesco pensada por Lévi- Strauss, o gênero se estabelece para a orientação do desejo sexual, sempre dirigido ao outro sexo. Mulheres submetidas ao sistema de trocas e homossexuais são oprimidos em prol da ordem que deriva do mesmo sistema. Butler faz ecoar uma pergunta de George Steiner – autor de Antígonas, amplo estudo sobre as inúmeras interpretações da peça de Sófocles na história do pensamento – e questiona o que teria acontecido se o mito fundador da psicanálise freudiana fosse Antígona, e não Édipo. As hipóteses de resposta apontam para a possibilidade, segundo Butler, de desconstruir a normatividade da família heterossexual e pensar que a função do tabu do incesto é instituir um padrão fora da norma do qual a norma depende para se estabelecer. Nesse sentido, não reconhecer como relações familiares determinadas relações de parentesco funciona como a estratégia necessária para afirmar uma normatividade a partir daquilo que não se enquadra no padrão normativo. É na rejeição – ou no não reconhecimento do diferente – que a norma se impõe sobre os sujeitos. Em outras palavras, para que haja uma lei universal, é preciso que seja criada também o fora-da-lei, só a partir do qual a lei será assegurada. É nesse movimento que se pode identificar o PL 6583/13, cuja definição do que seja família depende de tornar abjeto todas as outras formas de parentesco, já que seu único propósito passa a ser afirmar o que não cabe no conceito de família. Publicado nos EUA em 2000, O clamor de Antígona contém os traços de algumas obras posteriores de Butler, como Precarious life ou Quadros de guerra, este em lançamento pela Civilização Brasileira. No debate que a autora estabelece sobre quais são as vidas passíveis de luto, Antígona simboliza a luta de uma mulher por um enterro digno ao seu irmão, ou seja, a afirmação de que a condição para que uma vida tenha valor inclui a possibilidade de que esta vida seja enlutada. Dois temas que mostram a atualidade da filosofia de Butler e sua pertinência no contexto brasileiro de violência, seja institucional, como na proposta parlamentar, seja na experiência cotidiana a cada dia mais marcada pelo desprezo à vida do outro. dossiê A cultura como trauma Apresentação MÁRCIO SELIGMANN-SILVA Este dossiê trata do conceito de trauma, tema que, embora tenha estado em evidência nas últimas duas décadas, ainda não teve a sua teorização devidamente expandida para além das fronteiras da teoria psicanalítica. Apesar dos esforços de autores como Jacques Derrida, Paul Ricœur, Shoshana Felman, Cathy Caruth, Geoffrey Hartman, Ruth Leys, Ann Kaplan, Aleida Assmann, Dominick LaCapra, Hal Foster e Rosalind Krauss, para citar alguns nomes de referência dentro dos atuais estudos sobre o trauma, a área ainda não se impôs nas ciências humanas como deveria. Afinal, acredito ser fácil perceber a onipresença de um conceito fluido de trauma, que marca toda a nossa cultura, mesmo que não tenhamos ainda consciência clara do fato. Precisamos enfrentá-lo. Nada como recorrer a psicanalistas antenados com o que se passa para além de sua área, na tentativa de levar adiante essa fundamentação sobre nosso tema. Pensando nisso, enviei aos colegas que aceitaram participar deste dossiê uma proposta, que transcrevo aqui, para apresentar o esqueleto do projeto: A proposta deste dossiê é pensar a importância do conceito psicanalítico de “trauma” para a cultura desde o início do século 20 (que coincide com a fundação da psicanálise por Freud em 1900) até os nossos dias. O conceito encontra-se no cerne do pensamento psicanalítico e acabou como que “contaminando” e tingindo boa parte da cultura. Aprendemos a ver a nossa subjetividade como algo plástico, esburacado e constituído por falhas, mais do que por continuidades. Também, a paulatina virada mnemônica de nossa visão da história, um efeito de “traumas históricos” do século 20 e construída a partir do universo de pensadores como Bergson, Benjamin, Halbwachs, Warburg, além do próprio Freud, deve muito a essa incorporação do trauma como pedra de toque de nossa concepção da temporalidade. Da noção central de “choque” em Baudelaire, para caracterizar a modernidade, passando pela visão benjaminiana da história como catástrofe, até a concepção do “real” em Lacan, vemos se desdobrar uma ideia de violência como determinante de nossa era e de nossa autocompreensão. Tanto a violência do passado (trauma) como a do presente (choque) e a do futuro (apocalipse) nos rondam como um fantasma tricéfalo da catástrofe. Benjamin elaborou uma “definição do presente como catástrofe” porque, para ele, “o ideal da vivência do choque é a catástrofe”. As guerras e, hoje, os atentados são a prova contundente dessa leitura. Na literatura, no cinema, nas artes e na produção cultural de um modo geral, vemos inúmeras versões dessa visão da realidade como trauma. A arte se faz valer novamente como um “escudo de Perseu”, para refletir o terror que porta a morte, e possibilitar uma elaboração ou uma “preparação angustiosa” para esses choques traumáticos. Por outro lado, toda a política está permeada por uma cultura do trauma: etnias, nações e religiões disputam hoje seu lugar ao sol portando como insígnia os seus próprios traumas. O caso recente do ataque ao semanário Charlie Hebdo, ocorrido em Paris no dia 7 de janeiro deste ano, permite vislumbrar o efeito traumático da própria arte, uma vez que ela pode também se tornar uma catalisadora de mais violências e de mais traumas, alimentando nossa “cultura do trauma”. Aqui confrontam- se literalização (da Lei), resistência ao Witz [chiste] (outro tema central da psicanálise freudiana), iconoclastia e iconolatria. Para Freud, os traumas são transfigurados ao longo da história sob a forma de mitos e de outras narrativas. Vale lembrar também que assim como ele denominara os sintomas das histéricas de “monumentos”, Maria Torok faz o mesmo paralelo entre a memória encriptada/incorporada (os desejos enterrados) e os monumentos. No dossiê vamos frequentar a história da construção dessa visão doreal traumático com ênfase em autores advindos da senda aberta por Freud, como Ferenczi e Lacan. É evidente que nossos convidados responderam a essa proposta- provocação a partir de suas próprias visões do problema central apresentado, ou seja, como a nossa cultura se define do ponto de vista do trauma. A questão “o que é trauma” não foi o nosso ponto de partida. No entanto, para orientar os leitores, cito aqui uma das possíveis definições do termo, que retiro do ensaio de Cathy Caruth “Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória)”, (publicado no volume Catástrofe e representação, editado por mim e por Arthur Nestrovski): “Em sua definição genérica, o trauma é descrito como a resposta a um evento, ou eventos, violentos, inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando eles acontecem, mas retornam mais tarde repetidamente em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos da repetição. A experiência traumática sugere um determinado paradoxo: o de que o ver mais direto de um evento violento pode ocorrer como uma inabilidade absoluta de conhecê-lo; aquela imediaticidade pode, paradoxalmente, tomar a forma de um atraso. A repetição de um evento traumático − que permanece não disponível para a consciência, mas intromete-se sempre na visão − sugere, portanto, uma relação maior com o evento, que se estende para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligado ao atraso e à incompreensão que permanece no centro deste ver repetitivo”. Walter Benjamin, em seu impactante ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, foi um dos primeiros a fazer uma teoria da produção literária moderna a partir do conceito freudiano de trauma. Assim, ele ajudou a lançar as bases para um conceito mais robusto. Partindo do ensaio de Freud “Além do princípio do prazer”, ele determinou em que medida a poesia de Baudelaire pode ser caracterizada como a arte de incorporar os choques/traumas em sua própria lírica. Ali ele escreveu, entre outras passagens dignas de nota: “A psiquiatria registra tipos traumatófilos. Baudelaire abraçou como sua causa aparar os choques, de onde quer que proviessem, com seu ser espiritual e físico”. Também seu ensaio sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica trata da situação nova do indivíduo moderno que vive alienado de sua tradição. Nesse texto, ele escreveu: “Formulado de modo geral, a técnica reprodutiva desliga o reproduzido do campo da tradição. Ao multiplicar a reprodução, ela substitui sua existência única por uma existência massiva. E, na medida em que ela permite à reprodução ir ao encontro do espectador em sua situação particular, atualiza o reproduzido. Ambos os processos levam a um abalo violento do que é transmitido – um abalo da tradição, que é o outro lado da crise e da renovação atuais da humanidade”. Esse abalo violento, que nos retira da história e nos joga no campo de forças do choque, é apresentado por Benjamin também como tendo o próprio cinema como o seu agente. Ele estabelece uma teoria do cinema como técnica que corresponde a uma incorporação do choque no campo estético. Ele chega inclusive a falar do “choque traumatizante” provocado pelo cinema e conclui: “O filme é a forma de arte correspondente ao perigo de vida acentuado do homem contemporâneo. Ele corresponde a modificações profundas do aparato perceptivo – modificações como aquelas vividas, no âmbito da existência privada, por todo pedestre no trânsito das grandes cidades, e as que, no âmbito histórico, são vivenciadas por todos aqueles que combatem a ordem social de seu tempo”. Inspirado em passagens como esta, o teórico das artes Hal Foster vai falar nos anos 1990 de um realismo traumático para caracterizar as obras de Andy Warhol, marcadas pela repetição de imagens violentas. Se a imprensa tende a repetir de modo traumático e traumatizante essas imagens, na arte elas são deslocadas e permitem uma perfuração da capa encobridora do real que é a mídia. Daí Foster identificar também, o que caracterizou em um neologismo, de um ponto “troumático” (um buraco do trauma) nessas obras que apontam para o “real” (lacaniano, pensado como impossível de ser inscrito). O dossiê, apesar de se estender por amplas questões e abordar de diferentes modos o tema proposto não pôde, é claro, exaurir o assunto. Mas ele dá as bases para expandir essa leitura da cultura como trauma. Por exemplo, com esse instrumental podemos agora nos voltar à indústria cultural com seus heróis traumatizados. Isso é perceptível dos personagens de filmes de Fritz Lang (com seu assassino de crianças Hans Beckert, de M., o vampiro de Düsseldorf, de 1931) e de Alfred Hitchcock (lembremos de Norman Bates, de Psicose, 1960) aos super-heróis (órfãos), como Super- Homem, mas sobretudo Homem-Aranha e Batman – um traumatizado vingador mascarado. E também lembremos os inimigos desses super-heróis e de toda uma infindável galeria de traumatizados que o cinema nos apresenta, como se o trauma fosse a única característica que sobreviveu à falência do indivíduo... Mas esse já é um tema para outros dossiês. A “desautorização” em Ferenczi: do trauma sexual ao trauma social DANIEL KUPERMANN As contribuições da psicanálise para os estudos dos traumas sociais encontram um marco inaugural decisivo: o resgate empreendido pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, no final dos anos 1920, da importância do traumatismo para a produção de sofrimento psíquico. De fato, a dedicação de Ferenczi ao fenômeno do trauma – que se acentuou a partir da sua experiência como médico do exército húngaro no front da Primeira Grande Guerra, e depois com pacientes comprometidos em sua constituição narcísica e em seus processos identificatórios – promoveu uma torção decisiva no entendimento psicanalítico acerca da importância da alteridade na produção de experiências disruptivas traumáticas. Se o interesse originário de Freud pelo sexual como fonte de traumatismos – primeiro o abuso da criança pelo adulto (teoria da sedução), depois as fantasias sexuais inconscientes edipianas e, finalmente, a presença silenciosa, porém efetiva, de uma pulsão de morte no aparelho psíquico – já indicava que, na construção da cena traumática, o outro está no lugar de agente provocador (seja em ato, seja em fantasia), é por meio das contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica é convidada a realçar a função da alteridade no contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de violência promovidas no campo social. Ferenczi propõe uma releitura relacional do conceito de Verleugnung – a recusa perversa da castração em Freud –, indicando que o não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma “desautorização” da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta “desautorização”, ela mesma, primordial na constituição do trauma. Nesse sentido, enquanto o trauma sexual freudiano implicava, em última instância, uma operação intrapsíquica própria ao sujeito – ainda que originada por uma intrusão externa –, o trauma social, formulado por Ferenczi, explicitaria uma fratura na operação de reconhecimento no campo das relações sociais e políticas. Dessa maneira, a partir da inspiração promovida pela traumatogênese ferencziana, encontramos algumas ferramentas úteis para a reflexão acerca da dimensão clínica do testemunho e do seu acolhimento pelo outro, seja na vida cultural, seja no próprio curso de um tratamento analítico. SABER DÓI: O TRAUMA EM FREUD Encontram-se, na obra de Freud, duas teorias sobre o traumatismo. A primeira, originada ainda no século 19, concebe o trauma como um excesso inassimilável pelo aparelho psíquico produzido em função de um agente externo provocador – o exemplo paradigmático é a sedução (assédio) de uma criança por um adulto –, e ficou conhecida como “teoria da sedução”. A fundamentação epistemológica para essa concepção de trauma residia sobre a perspectiva de uma criança assexuada, impedida de darsentido a um evento erótico que, a posteriori, já na puberdade, cobrava seu ônus com juros e correção na forma da neurose. Nesse contexto, a problemática do trauma implicava, efetivamente, uma relação do sujeito com o saber: para o adolescente/adulto que sofrera assédio sexual na infância, saber dói. Esse seria o motivo para o recalcamento das representações vinculadas à sexualidade e ao desejo, e para a concepção da direção do tratamento como um empreendimento de aquisição de saber por meio das interpretações do psicanalista. Desde então, tornou-se praticamente unânime a ideia de que a evocação das experiências traumáticas seria necessariamente positiva, sem que se questionasse o estatuto iatrogênico do testemunho; em outros termos, sem que se indagasse em que condições testemunhar uma injúria sofrida poderia contribuir para a expansão psíquica do sujeito, e em que condições adoeceria ainda mais. Posteriormente, a partir da evidência de que a criança é sexuada e cria fantasias inconscientes de caráter edipiano – nas quais o assédio sofrido é um conteúdo típico –, Freud abandonou o que nomeara de “sua neurótica” (teoria da sedução traumática), acreditando que os relatos de suas pacientes histéricas não passavam de ficções infantis. Porém, foi sobretudo com as formulações do célebre ensaio “Além do princípio de prazer”, publicado em 1920, que o traumatismo seria relacionado ao excesso de excitação promovido no psiquismo pelas exigências da pulsão de morte. O trauma seria, assim, inerente à própria constituição do aparelho mental, e provocado pela dimensão pulsional não inscrita psiquicamente pelos processos de simbolização. Tudo indica que Freud, longe do front, temendo a morte dos filhos que lutavam nas trincheiras e vivendo uma situação desfavorável nas condições de trabalho e bastante ameaçadora em relação às perspectivas de futuro, dedicara-se, durante e imediatamente após a Primeira Guerra, à especulação acerca das tendências destrutivas inerentes à condição humana. Porém, se a guerra é, efetivamente, uma vicissitude possível – talvez até provável – da civilização, a hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui especialmente para a compreensão do contexto histórico-cultural da sua produção. Desse modo, a psicanálise dos anos 1920 apostava suas fichas na concepção de trauma intrapsíquico, afastando-se cada vez mais das concepções relacionais de traumatismo, para as quais, dentre as condições consideradas necessárias para a simbolização dos excessos e para elaboração psíquica das feridas sofridas, está a presença sensível do semelhante. O TRAUMA COMO CONFUSÃO DE LÍNGUAS Alguns autores indicam que a situação linguística vivida por Ferenczi na Budapeste do Império Austro-Húngaro foi, talvez, a grande inspiradora da sua teorização do traumatismo como decorrente de uma “confusão de línguas” entre os adultos e a criança. Na Hungria do seu tempo, a língua oficial utilizada nas instituições que regulavam a vida civil era o alemão, enquanto a língua utilizada no seio da família e nas relações íntimas era o magiar. Ou seja, havia uma língua referida ao grande mundo da política, da justiça, da ciência; e uma língua “menor” empregada nas trocas afetivas – amizades, relações de parentesco, namoro etc. Ferenczi põe o dedo justamente na ferida provocada quando se é obrigado a nomear o afeto em uma língua que se mostra inadequada para esse fim. Em sua formulação derradeira sobre o traumatismo, Ferenczi postula que a criança se encontra sob o regime da “linguagem da ternura”, uma linguagem lúdica, experimental, expansiva, dirigida ao outro, por meio da qual as experiências produzem sentido para o sujeito. Já o adulto, submetido ao recalque e à culpa, encontrar-se-ia sob o primado da “linguagem da paixão”, veiculadora das palavras de ordem e dos imperativos sociais aprisionadores. O trauma propriamente dito ocorreria em dois tempos, entrelaçados porém distintos: o tempo da violação da criança pelo adulto cego à dissimetria existente entre suas posições, ou seja, passional na sua relação com a diferença do outro; e o tempo da “desautorização” do seu testemunho, decerto o mais decisivo e o mais funesto para a constituição da cena traumática. Convém citarmos uma passagem já célebre na qual Ferenczi, em “Análises de crianças com adultos”, descreve o que se nomeou de segundo tempo do trauma: “O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” (grifo nosso). No original, escrito em alemão, onde lemos “negação” encontra- se Verleugnung. Alguns comentadores preferem traduzir Verleugnung por “desmentido”, outros por “descrédito”. Prefiro, inspirado nas indicações de Luis Cláudio Figueiredo, “desautorização”, no sentido de enfatizar a dimensão de desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático. Auto, do grego, indica aquilo que é próprio, “de si mesmo”. Os efeitos mais nefastos do traumatismo são, justamente, o comprometimento da convicção das próprias percepções, e a anestesia da afetividade, que tornam a subjetividade refém da unidimensionalidade dos imperativos veiculados culturalmente, automatizada e incapaz de qualquer pensamento crítico. Na teoria psicanalítica da constituição subjetiva, haveria na criança um movimento primário em direção ao adulto – o Nebenmensch freudiano, aquele que está ao lado – capaz de ajudá-la a dar sentido às experiências que ainda não encontram lugar em sua cadeia representacional. Concebe-se, portanto, que o chamado primeiro tempo do trauma não seja em si mesmo necessariamente desestruturante, uma vez que o encontro com o outro pode proporcionar o suporte suficiente para que o sujeito elabore a violação sofrida. A desagregação psíquica adviria quando, justamente, aquele que testemunha encontra o abandono, na forma da desautorização da sua tentativa de produzir uma versão própria para aquilo que foi vivido como injúria. Nesse sentido, o fato de reconhecer que a criança também está submetida a um regime “sexual”, como o fez Freud na aurora do século 20, não significa, de modo algum, que o encontro da ternura da criança com a paixão do adulto (duas “línguas” distintas que regem a nossa sexualidade) seja incapaz de promover consequências traumáticas. A DESAUTORIZAÇÃO TRAUMATIZANTE O desafio da clínica com vítimas de traumas e catástrofes é, assim, o de constituir uma língua própria e apropriada para enunciar aquilo que é da ordem do irrepresentável, mas também do inaudível, como depreendemos da leitura de Agamben em O que resta de Auschwitz. De fato, se a vivência sofrida não encontra modos de enunciação na linguagem cotidiana, ou seja, nos modos de representação disponíveis aos sujeitos em determinados contextos históricos, seria preciso, para transmitir algo do terror experimentado, gritar, também para poder dizer aquilo que soa insuportável aos ouvidos dos semelhantes. A concepção de trauma social nos permite cotejar, assim, o problema dos limites do representável com o problema dos limites do testemunho. A realidade do relato de sofrimento traumático soa monstruosa e passível de provocar horror nas suas testemunhas, no sentido de convocá-las para uma dimensão da experiência humana muito além do tolerável pelos ideais compartilhados socialmente, que compõem sua visão de mundo necessariamente ordenada e estável. Uma cena do filme A vida é bela, dirigido no final dos anos 1990 por Roberto Benigni, me permite ilustrar, pelo avesso, do que se trata a confusão de línguas traumática. O cenário é o interior de um pavilhão-dormitório de um campo de concentração. Nele estão os recém-chegados, perplexos com a sua nova e inusitada realidade. Um oficial nazista entra e começa a bradar as “regras” que regerão o cotidiano dos prisioneiros; entre eles há uma criança italiana, um menino pequeno,
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