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Cult #205 Judith Butler

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Sumário
especial Queer
entrevista
Marie-Hélène/Sam Bourcier
ensaio
Diversidade ou diferença?
entrevista Judith Butler
resenhas
Judith Butler, condições de vida e o horizonte do representável
Da família ao parentesco
dossiê A cultura como trauma
Apresentação
A “desautorização” em Ferenczi: do trauma sexual ao trauma social
A era do trauma
Rastros, restos e ruínas do trauma
coluna
Marcia Tiburi
estante
Matar ou morrer?
colaboraram nesta edição
especial Queer
No mês em que realiza o I Seminário Queer do país, a CULT
apresenta o especial a seguir, cujos textos convidam à reflexão a
respeito da importância da subversão das identidades sexuais e
de gênero
entrevista
Marie-Hélène/Sam Bourcier
PAULO GOMES PEREIRA
Formada/o em Filosofia na École Normale Supérieure, Marie -
Hélène/Sam Bourcier concluiu doutorado em Sociologia na École
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, e integra o corpo
docente da Université Lille 3, na França.
Organizou os Seminários do Zoo, grupo de estudos queer, entre
1996 e 2001; traduziu obras da teórica feminista italiana Teresa De
Lauretis; e escreveu uma trilogia (Queer zones 1, politiques des
identités et des savoirs; Queer zones 2, sex politiques; e Queer
zones 3, identités, cultures, politiques) que contribuiu
significativamente para a introdução da teoria queer na França.
Você poderia contar um pouco de sua trajetória intelectual?
Sou cria do pós-estruturalismo francês, alimentado daquilo que os
Estados Unidos chamam de French Theory (Deleuze, Lacan,
Foucault, Derrida), em uma escola elitista: L’École Normale
Supérieure. A teoria queer da primeira onda, com Butler e De
Lauretis, queerizou esses autores, neles injetando uma boa dose de
feminismo (que não era seu forte) e desviando alguns de seus
conceitos para pensar os gêneros – a performatividade de Derrida na
obra de Butler, a tecnologia para Foucault na obra de De Lauretis –
a partir de um ponto de vista minoritário e político. Os gêneros
foram desvencilhados do sexo dito biológico; sua proliferação se
tornou visível e gozante; a drag queen foi elevada ao topo para que
se fizesse compreender que a feminilidade é uma performance, uma
imitação sem original. Em linhas gerais, entre uma mulher e uma
drag queen, a diferença é o comprimento do salto. As sexualidades
desmoronaram graças à insistência de Gayle Rubin e de Kosofsky
Sedgwick. Mas nada teria acontecido na teoria sem as subculturas
queer nas quais já eram vividas e reivindicadas as identidades de
gênero e as sexualidades diferentes, desviantes, onde o gender
fucking era usual. O que se tentou fazer na França, especialmente
com os Seminários do Zoo, foi traduzir essa teoria queer da primeira
onda, mas no contrapé dos EUA, ou seja, sem manter a crítica
contra as políticas de identidade, pois isso nos parecia
contraproducente em um contexto francês, bastante universalista e
republicano, que, assim sendo, esmaga as políticas minoritárias,
sejam elas sexuais, de gênero ou raciais. A França é um país
assombrosamente monocultural.
Há em suas atividades uma busca por performances e
intervenções artísticas. Você poderia falar sobre esse aspecto?
A importância da performance no meu trabalho se origina, sem
dúvida, do sucesso na teorização de Butler na esteira de Esther
Newton, nos anos 1990, e dos performance studies. Mas se deve
também ao papel por ela desempenhado desde o início no
feminismo dos anos 1970, como técnica de desobediência civil, de
ocupação do espaço público, que toma o corpo como suporte. Era
também esse o caso de Act Up e dos primeiros grupos queer. E,
então, compreender que a realidade é não somente construída, mas
que passa pela performance e pela performatividade com o corpo e
também com a linguagem é um modo bastante ativo e acessível de
desnaturalizar as coisas e de fazer política; de poder responder:
“queer” é uma ofensa que foi englobada por quem a recebia em um
momento em que puderam se empoderar. Finalmente, a
performance é um instrumento pedagógico formidável. Eu a utilizo
sistematicamente em minhas aulas sobre a performance de gênero,
pedindo às/aos alunas/os que filmem uma performance de gênero ou
de raça ou de etnicidade no espaço público; em minhas aulas sobre
o feminismo, nas quais devem “berrar” um manifesto feminista na
sala.
Você poderia falar sobre as oficinas drag king?
As oficinas drag king são o complemento indispensável da drag
queen de Butler… É um exercício excelente de desnaturalização da
masculinidade para todos, tanto héteros quanto homos e queers.
Deveríamos fazer oficinas drag king já na escola primária. Quando
você sai de uma oficina drag king, você não provou de sua dita
bissexualidade psíquica, mas você desmistificou radicalmente a
masculinidade: ela não pertence aos homens e ela é circular. A
mesma lição é tirada com o dildo. De modo geral, a forma da
oficina é importante porque se trata de um vetor essencial das
subculturas queer e post-porn, em continuidade com a cultura
feminista da auto-exploração, do raising consciousness: o político
pessoal em ação, de certo modo. E isso compensa o lado
dessocializante ou despolitizante da teoria queer. Com as oficinas,
não vale mais a pena se preocupar com a ambivalência subversiva
do drag: funciona, e ponto. A teoria queer do drag oculta também a
temporalidade, a historicidade da performance da feminilidade e da
masculinidade. Eu fiquei chocado ao ver como as pessoas escolhiam
com frequência figuras masculinas muito marcadas política e
historicamente nas oficinas que fizemos no Brasil, como o Che
Guevara, por exemplo. E então não se deve esquecer a tensão sexual
que criam os experimentos entre kings, o que também é bom. Em
todo caso, funciona comigo.
Em seus livros, você busca compreender zonas de pensamento,
voltando o olhar para formas de expressão como o cinema
pornográfico, o sadomasoquismo (SM), a construção das figuras
do travesti, do transgênero e do transexual. As zonas
queer constituiriam espaços privilegiados de intervenção? Por
que e de que maneira?
Há zonas e há fios. Em cada uma das obras que compõem a trilogia
de Queer zones, encontram-se, em dez anos, os mesmos fios
vermelhos: o cinema, incluindo o pornô, o SM, os gêneros, as
subculturas, as políticas queer e uma reflexão sobre a produção de
saberes queer, “epistemológico”. Preferi falar em “zonas” queer de
maneira a nada petrificar: de fato, há movimento aí. E nessas zonas,
a sexualidade, o gender fucking e também as políticas de
representação praticadas pelas minorias sexuais e de gênero têm
papel principal. Fui marcado tanto pela teoria queer quanto pelos
festivais de filmes gays e lésbicos nos quais a agitação, a
proliferação identitária avançam muito rapidamente. E foi o que vivi
sendo designado como homossexual e depois me autodesignando
como lésbica, SM, butch e, hoje, trans.
Você poderia comentar um pouco sobre essas formas de
expressão, como a pós-pornografia ou as práticas SM?
Acredito ser preciso vê-las como políticas. Quando lancei a pós-
pornografia na França, em 2000, eu nem podia imaginar a forma
que seu desenvolvimento tomaria, quinze anos depois. É uma das
maiores e mais originais contribuições do queer europeu. A outra,
ter finalmente abandonado a psicanálise como modo de subjetivação
e de compreensão abusivo e elitista. No começo, tratava-se de
desconstruir o regime pornô moderno no país de Sade... Nós
pensávamos que um outro pornô era possível, sobretudo quanto aos
filmes. Isso, aliás, deu origem a festivais de filmes pornô
alternativos na Alemanha, Espanha, Itália e em Grécia. E agora, em
muitos países da América Latina, no Brasil, com a Muestra
Marrana levada de volta ao México, e graças a Diana
Pornoterrorista e Lucy Sombra. Mas eu estava longe de imaginar
que o post-porn se tornaria um instrumento de desobediência sexual
tão político, uma forma de “pornoativismo”, para retomar o termo
de Rachele Borghi; que a performance e o SM cumpririam um papel
tão central para contestar a gentrificação e o neoliberalismo. Penso
sobretudo nas performances dogrupo de Barcelona, Post-op.
Quanto ao SM estadunidense, formalizado por grupos como
Samois, de São Francisco, ou Lesbian Sex Mafia, de Nova Iorque,
ele foi muito importante para as lésbicas butch da minha geração,
para ressexualizar a vida das lésbicas, abordar frontalmente a
questão das relações de poder e de sua erotização, em vez de dizer
que era coisa de homem. Sem falar dos acessórios que supõem as
práticas SM, e que mudaram nossa sexualidade, ligadas ao gender
fucking: o dildo, o couro, a encenação etc. É a scientia sexualis, o
SM e o pornô straight “queerizados”, se você preferir.
Como sua abordagem poderia ajudar a pensar a violência
contra a mulher, a violência de gênero?
Em primeiro lugar, de quais mulheres estamos falando? Estão
inclusas as travestis? Segundo pesquisas de um colega da
Universidade do Estado da Bahia, as travestis são caçadas como
coelhos no Brasil. É preciso também prestar atenção nos gender
mainstreaming, nas políticas institucionais e supranacionais que
combatem a violência contra as mulheres. Elas focam na violência
sexual e apenas raramente abordam as necessidades econômicas.
Elas obrigam as mulheres a se identificar como vítimas, a valer-se
do direito, negligenciando a colaboração que pode ser encontrada na
afirmação cultural e política na luta contra a violência, sobretudo
nas políticas comunitárias.
Sua visita ao Brasil a levou a pensar na intersecção entre raça e
sexualidade nas queer zones?
Bourcier Meu objetivo, indo ao Brasil, era de me descentrar do eixo
queer euro-americano, de melhor considerar minha posição de
branco e de poder assistir e, quem sabe, participar da tradução
política de uma política queer e criar alianças com outras
subculturas queer brasileiras, mas poderia ser um outro termo além
de queer, algo menos imperialista. E espero que isso aconteça. É
claro, espero muito em termos políticos interseccionais, da
articulação entre raça, gênero, sexualidades e religião. Estou
bastante consciente de que pude evoluir, por ora, em meios que
permanecem privilegiados e brancos – as universidades. Mas devo
dizer que fiquei surpreso pelo plano de desenvolvimento das
universidades realizado por Lula, e pelo fato de que as
universidades brasileiras permanecem (cruzemos os dedos)
públicas. Você sabe, as universidades europeias estão em plena
privatização e ninguém faz nada a respeito. Eu tinha chegado ao
ponto de não acreditar mais no serviço público, e me deparei, na
Unilab, em São Francisco do Conde/BA, ou ainda no Ceará, com
faculdades que brotavam em lugares ultra pobres, onde tive trocas
com professores que se preocupavam todas as noites para inventar
suas faculdades. Isso me fez lembrar profundamente e me fez
compreender até que ponto a universidade pertence aos “comuns” e
que é correto promover ações afirmativas, como as cotas. Interessei-
me pelo nome social do qual podem se valer facilmente as pessoas
trans em certas faculdades e por ver professoras travestis tornando-
se reitoras, como Luma Andrade, no Ceará. Algo inimaginável na
França.
Qual a relação de seu estilo irônico, com franca vocação para a
polêmica, com os temas que você aborda?
Bourcier Tenho um estilo trash, cru, vulgar para alguns, que utiliza
gírias e é intencionalmente polêmico. Deve ser meu lado francês
que me faz polêmica. Quanto à mistura de diversos níveis de estilo,
burilado, grosseiro, intelectual e sexual, é uma estratégia à la Genet,
algo camp e fora do gênero também. Meu lado Genet está na cena
do tubo de vaselina no Le journal du voleur [O diário de um
ladrão], cuspes que se transformam em uma chuva de rosas no
Miracle de la rose [O milagre da rosa]. Xs queers praticam uma
forma burlesca que consiste em elevar ao cume o que é rebaixado,
em virar do avesso, em inverter. Em se voltar contra aquelxs que xs
assujeitam com elegância ou kitsch. Há algo disso também em uma
denominação como “teoria queer” quando pensamos: é a teoria dos
viados, a teoria do cu. Há também uma vontade de falar do sexo
sem nunca retomar o vocabulário médico ou psicanalítico. De
chamar uma boceta de boceta, um pau de pau. Do mesmo modo que
o falo de Lacan – desculpe-me mas é um pau, a bem da verdade. Há
também uma vontade de não deixar dizer que essa linguagem é um
privilégio masculino. Enfim, tentei me livrar da valorização da
“alta” cultura contra a “baixa” cultura, algo muito forte na França.
Daí vem meu interesse pela cultura popular e pelas subculturas, e
não pela Cultura com um grande C, em uma palavra, kantiana, e que
finge o esteticismo, a Escrita com um grande E contra o político.
Tentei elaborar uma escrita queer que seja engraçada. É o meu lado
Charles Chaplin. Há também meu lado buldogue. Adoro o conflito
no debate de ideias porque gera um brainstorming, que faz avançar.
Nunca são ataques ad hominem ou ad feminem, mas eu constato que
é muito difícil ter esse tipo de diálogo com representantes da teoria
queer dos EUA. É uma pena já que é urgente despersonalizar a
teoria queer, se queremos fazer políticas queer que funcionem.
Como pensar a teoria queer para além dos países do Norte
global? E como vincular as zonas queer e as experiências/corpos
queer aos contextos locais? Como, enfim, traduzir o queer?
No meu ponto de vista, será necessário encontrar um outro termo.
Na Espanha, por exemplo, o transfeminismo é claramente uma
tradução política anti-imperialista do queer estadunidense, dos
“queericanos”. Em seguida, é preciso se desvencilhar da teoria
branca queer da primeira onda, e há fontes importantes na crítica
das QOC (Queers of Colour), inclusive nos EUA. Foi o que [Gloria]
Anzaldúa começou. Em seguida, a teoria queer não pode ser
separada das subculturas e das políticas queer, enquanto o oposto é
possível. Você falou em “corpos” e é exatamente disso que se trata:
o corpo é o vetor maior das micropolíticas queer, sobretudo em sua
contestação dos regimes disciplinares, mas também contra as
tecnologias de segurança, a sociedade e a cultura de segurança que
injeta o neoliberalismo em tudo. Os corpos queer/transfeministas
devem se encontrar em todo lugar em que se produzam zonas queer:
o post-porn é uma dessas zonas que pode nos reunir sem o Norte
global, que está pouco se lixando, aliás, para o post-porn. Traduzir é
também aumentar e partilhar nossos universos referenciais. Mas é
preciso que isso funcione em todos os sentidos, que se traduza do
português, e que sejamos capazes de descolonizar o queer (para nós
franceses, europeus, isso vai mais longe do que Walter Mignolo
chama de “delinking”), e de aprender lições com o “racismo
espistêmico” europeu, que nos formou, mas que ainda fascina
demasiadamente a América Latina.
Em quais projetos você está trabalhando atualmente?
Estou escrevendo um livro que se chama Homo INC (de
Incorporated). É uma crítica sobre para onde a agenda miúda da
política igualitária nos levou com seu modo de engajar a luta contra
as discriminações, com essas histórias de casamento gay e lésbico,
mas não trans. O casamento não é um direito. É um privilégio e uma
idiotice. É essa a política daqueles que chamo de “bons-homos” e os
same sex, tendo em vista que essa fração rica e branca das lésbicas e
gays (LG) não se define mais por expressões de gênero diferentes,
mas pelo fato de ser homem ou mulher: essa bússola do sexo seria a
orientação sexual. Acredito que essas políticas são cúmplices do
neoliberalismo, que promovem o homoprodutivo e o
homonacionalista, para não dizer racista. Eu estava no Brasil
durante a Copa do Mundo, e foi perto de Salvador, eu acho, que
ocorreram manifestações históricas de gays contra uma partida com
o Irã. Uma importação direta da islamofobia sobre a qual se
construiu a internacional gay. Eu tento ver o que seria uma agenda
queer/transfeminista, tento falar de coletivos que propõem uma
verdadeira agenda de transformação e de justiça social. Ou seja,
trata-se de ir contra esse novo lugar de produção da subjetividade
homo que se tornou o mercado sob o ângulo do trabalho e da
economização dos comportamentos homossexuais. Era Foucaultque
dizia que, com a sexualidade moderna ocidental, à questão “quem é
você?” era preciso responder “um homossexual”, tornar-se um tipo
sexual e não mais uma pessoa que praticava a sodomia no século 17.
“Quanto você custa?”, “Quando você nos custa?”, “Quanto você
produz?” são as novas questões que faz agora um regime de
produção da verdade do sexo indexado sexual e racialmente, ligado
aos mercados nacionais e internacionais nessa era neoliberal. Para
mim, é impossível fazer política queer sem combater o
neoliberalismo, e é também por isso que há uma clara oposição
entre as políticas LG e as políticas queer e transfeministas. 
Tradução Mario Sagayama
Nota da redação: em suas respostas, além de gírias e
estrangeirismos, Marie-Hélène/Sam Bourcier usa
alternadamente as marcas dos gêneros masculino, feminino e
neutro, este marcado pela letra “x”.
ensaio
Diversidade ou diferença?
RICHARD MISKOLCI
Foi na virada entre as décadas de 1980 e 1990, quando alguns
conflitos envolvendo diferenças culturais ganharam visibilidade
midiática, que emergiu a discussão teórica e política sobre a
diversidade e a diferença. Os conflitos raciais renovados nos
Estados Unidos, a ameaça separatista do Quebéc no Canadá devido
a sua diferença linguística e cultural em relação ao resto do país,
além de outras formas de conflito na Europa, tudo fazia refletir
sobre a fragilidade dos princípios universalistas do direito e da
cidadania no chamado Primeiro Mundo.
Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema: The
politics of recognition, do filósofo canadense Charles Taylor. Sua
reflexão serviu de base para muito do que foi escrito desde então
sobre diversidade, tanto em termos acadêmicos como em políticas
sociais. A noção de diversidade busca – dentro de um
enquadramento universalista – abarcar as demandas por respeito e
acesso a direitos por parte de grupos historicamente subalternizados
como negros, povos indígenas, homossexuais, mulheres.
Em sociedades democráticas fundadas no universalismo, como a
francesa, é notória a dificuldade em reconhecer demandas de grupos
chamados de “minoritários”. Em uma ordem republicana universal
não há espaço para a diferença, daí medidas como a proibição de
imagens religiosas em repartições públicas e a recusa do uso do véu
por estudantes muçulmanas nas escolas. A rationale universalista
exige que o Estado laico seja preservado à custa do ocultamento das
diferentes formas de confissão que nele convivem.
Em países como os Estados Unidos e o Canadá, a concepção
política de nação é mais permeável a demandas diferenciais, por
isso o Estado adota medidas de reconhecimento e/ou políticas como
as ações afirmativas que visam, por exemplo, ampliar o acesso de
negros e mulheres às universidades e mesmo aos postos de trabalho.
Nesses países, a noção de diversidade engendrou a de
multiculturalismo, uma forma de compreender as diferenças
internas à nação como uma riqueza cultural. Ao mesmo tempo,
diversidade e multiculturalismo se construíram como um adendo ou
reforma das instituições sem problematizá-las mais profundamente,
apenas disseminando o valor da tolerância à diferença. Vale
sublinhar que tolerar a diversidade é muito diferente de a acolher,
deixar-se influenciar e se transformar por ela.
No início da década de 1990, começaram a surgir as críticas,
dentre as quais destaco a forma como a diversidade se baseia em
uma concepção de cultura frágil e estática assim como compreende
horizontalmente as relações de poder dentro de uma nação. Culturas
não são estáticas tampouco o poder existe sem hierarquias e
conflitos, portanto a diversidade e o multiculturalismo se revelam
incapazes de superar a problemática para a qual foram criados. Eles
buscavam materializar o que alguns chamaram – ironicamente – de
“política do arco-íris”: a utopia de uma sociedade que poderia
manter suas diferenças lado a lado, sem conflitos, negociações e
mudanças na cultura como um todo.
Intelectuais comprometidos com grupos historicamente
subalternizados criticaram a perspectiva da diversidade e do
multiculturalismo enfatizando que as diferenças demandam
reconhecimento que levará – necessariamente – à transformação da
ordem institucional. Não é possível colocar diferenças lado a lado
sem intercâmbios e transformações da cultura como um todo,
tampouco ignorar que essas se deem, muitas vezes, de forma
conflituosa. Assim como afirmaram clássicos da teoria social como
Marx e Weber, os teóricos das diferenças reconhecem que o conflito
é parte da vida social.
A perspectiva da diversidade não é pacífica, apenas busca
contornar o conflito com uma concepção de sociedade multicultural
baseada na expectativa de que o reconhecimento de grupos
subalternizados não modificará as relações de poder e a própria
concepção vigente de justiça e direitos. De forma direta – e um tanto
impressionista – é possível dizer que constitui uma vertente política
construída sob a perspectiva daqueles que detêm o poder, já têm
acesso a direitos e propõem estendê-los a outros sem modificar a
estrutura institucional em que se baseiam. Não é mero acaso que
boa parte das políticas envolvendo diversidade e multiculturalismo
se apresentam como adendos, programas complementares para
“colorir” o já existente com uma suposta aura “democrática”.
A perspectiva das diferenças reconhece que os dilemas das nações
contemporâneas são resultado de conflitos entre as instituições
estabelecidas e a emergência de demandas dos já citados grupos
sociais, portanto ela aponta para a necessária renegociação política e
cultural que pode criar sociedades mais justas. Ao reconhecer
conflitos históricos, os pensadores dessa linha também consideram
salutar a transformação institucional para negociá-los. Sobretudo,
questionam a possibilidade de apenas estender direitos sem
problematizar a própria concepção vigente de cidadania, a qual
contribuiu para disseminar desigualdades.
DO UNIVERSALISMO ÀS DIFERENÇAS
O universalismo pautou a construção de democracias em termos
políticos em que a cidadania foi pensada como única porque
projetada em uma sociedade imaginada como homogênea. A grande
encarnação dessa comunidade imaginada foi a nação, um construto
histórico, político e cultural que – segundo historiadores – ganhou
protagonismo a partir de fins do século 18. Não por acaso, no
mesmo período em que se inicia a era contemporânea e sua
promessa de superação das hierarquias do Velho Regime.
Algumas das primeiras feministas, como Olympe de Gouges e
Mary Wollstonecraft, apontaram já naquela época que o liberalismo
político se associou ao econômico na afirmação de valores
universais, como o de que todos são iguais perante a lei, já
definindo o cidadão como homem. Assim, a universalidade e sua
promessa de igualdade começou criando modalidades de cidadania
ao relegar as mulheres a uma posição inferior, pois não tinham
acesso à educação, direito ao voto, ao patrimônio ou qualquer forma
de autonomia individual, mesmo porque eram tuteladas do
nascimento até a morte.
Os países em que a democracia universalista começava a ser
construída também tinham outras contradições para lidar, como o
colonialismo e a escravidão em suas colônias. Na primeira república
moderna, os Estados Unidos da América, em 1848, um grupo de
feministas e abolicionistas criou um manifesto conjunto intitulado
“Declaração de Sentimentos”. Suas demandas de direitos iguais
sublinhavam o caráter servil que a nova ordem política reservava às
mulheres e aos negros evidenciando que a democracia na América
ainda tinha um longo caminho a construir.
Mundo afora, movimentos anticolonialistas, feministas e
abolicionistas problematizaram os ideais universalistas assentados
no imperialismo, na dominação das mulheres e na escravidão.
Infelizmente, tal história não entrou para os livros, tampouco teve a
atenção devida antes da década de 1960, quando tais movimentos se
reconfiguraram e ganharam adesão massiva. Foi nessa época que
emergiu o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, a
chamada “segunda onda” do feminismoe o movimento
homossexual. Tais movimentos tinham em comum a demanda de
reconhecimento social e legal de suas diferenças, uma nova forma
de clamar por igualdade.
O movimento feminista, por exemplo, em sua primeira onda era
predominantemente igualitarista. Do século 19 à primeira metade do
século 20, seus principais slogans eram o direito à educação e ao
voto, os mesmos que já eram garantidos aos homens. Alcançadas
essas demandas na maior parte do mundo, a partir da década de
1960, a agenda feminista é renovada e volta-se para direitos que
exigem reconhecer diferenças. Um deles é o da autonomia corporal,
o direito de escolha sobre a contracepção. Em outras palavras, o
movimento – desde então – tornou-se um feminismo da diferença.
A luta pelo direito ao aborto assim como a do movimento
homossexual pela despatologização e descriminalização do desejo
por pessoas do mesmo sexo contribuíram para fissurar o mito da
nação como uma comunidade reprodutiva. A sociedade que, desde a
invenção da pílula, começara a separar o sexo da reprodução e cujas
demandas políticas de negros envolviam o direito ao casamento
inter-racial, se deparava com um cenário novo na esfera das relações
de gênero, sexualidade e, inclusive, étnico-raciais. Desde então, o
mito da homogeneidade cultural e política não cessou de ser cada
vez mais problematizado, e não apenas nos países centrais.
AS DIFERENÇAS NO BRASIL
Na época em que emergem as discussões teóricas, conceituais e
legais recentes para lidar com os limites do universalismo, o Brasil
vivenciava a ruptura com seu passado autoritário e a expectativa de
construir uma democracia baseada na Constituição de 1988. Não
tardou para que a liberdade permitisse que vozes abafadas durante o
Regime Militar (1964-1985) começassem a se articular em torno de
demandas de reconhecimento. Refiro-me aqui à reorganização de
movimentos sociais, em especial o feminista, o negro e o que viria a
se denominar de LGBT, os quais criaram novas pautas e formas de
atuação. Foram esses movimentos que pouco a pouco fissuraram
mitos sobre a nação brasileira que escondiam ou minoravam as
divergências sobre a representação historicamente construída de que
ela seria conciliatória, pacífica e, sobretudo, justa.
Há décadas era fato mundialmente conhecido de que temos uma
das piores distribuições de renda do mundo, mas até recentemente
permaneciam insuficientemente problematizadas outras formas de
desigualdade. Na academia, até a mais evidente, a desigualdade
étnico-racial, tendeu a ser abordada como questão econômica ou de
“integração” por muitas décadas. E, mesmo no presente, gera
divergências acaloradas entre intelectuais que insistem em salvar o
mito da democracia racial e aqueles que propõem pensar em outros
termos a forma como a sociedade brasileira efetiva e cotidianamente
lida com diferenças étnico-raciais. As divergências têm pendido
para seu reconhecimento em políticas como as ações afirmativas no
ensino superior e em concursos públicos.
A pauta de direitos das mulheres também tem sido bem sucedida.
A luta feminista alcançou vitórias admiráveis, as quais modificaram
a ordem institucional, política, mas também cultural. Há evidências
empíricas de melhoras de indicadores de igualdade entre mulheres e
homens, como a aprovação da Lei Maria da Penha que pune a
violência contra mulheres, mas não foi aprovada a
descriminalização do aborto. A despeito dos sucessos, a agenda
feminista precisa se manter e incrementar políticas públicas para
alcançar seus objetivos, o que – no ritmo atual – ainda pode levar
algumas décadas.
A problemática das diferenças que ainda gera mais resistência é a
da sexualidade e do gênero. As pautas LGBT geram formas
flagrantes de desqualificação de setores conservadores tornando
evidente algo que a sociedade brasileira nunca reconheceu: seu
moralismo. O mito da liberalidade sexual esconde não apenas o
preconceito contra expressões do desejo por pessoas do mesmo
sexo, mas também de dissidências de gênero ou de demandas de
autonomia contraceptiva. O discurso conservador de suposta defesa
da família mal encobre o desejo de manter os privilégios dos
homens assim como a ordem que os privilegia.
As conquistas e resistências brevemente descritas acima
demonstram que, a partir da década de 1990, nosso país entrou em
sintonia com as discussões internacionais. A maioria dos programas
estatais adotaram o termo diversidade e o uso de referências ao
multiculturalismo para descrever iniciativas para lidar com as
recentes demandas por reconhecimento e direitos. Infelizmente, tal
adoção vocabular tendeu a ser feita de forma acrítica e se
disseminou, sem o devido debate, até mesmo nos movimentos
sociais.
Lutas políticas exigem reconhecer e problematizar o vocabulário
em que se dão. No caso, contrapondo à retórica da diversidade e do
multiculturalismo a perspectiva das diferenças, do reconhecimento
da existência de conflitos e desigualdades que exigem a
transformação social e política de nossa sociedade. A perspectiva
das diferenças, afinada com as demandas históricas dos movimentos
sociais, propõe repensar a nação brasileira como ainda a
compreendemos e, neste exercício cultural e político, refletir sobre
como reformar a cidadania, de maneira que ela não seja apenas
disponível a alguns, antes suficientemente democrática para abarcar
a todos e todas. 
entrevista Judith Butler
A performatividade de gênero e do político
CARLA RODRIGUES
Autora de uma obra marcada pela retomada da filosofia política
numa situação em que o pensamento parecia esvaziado para
enfrentar as acusações de impotência diante dos grandes desafios do
complexo cenário da vida contemporânea, relativismo e niilismo
moral, Butler chega ao Brasil acompanhada do lançamento de dois
livros que comprovam o fôlego de seu pensamento para muito além
das questões de gênero, pelas quais se notabilizou por aqui desde a
tradução, em 2003, de Problemas de gênero: feminismo e subversão
da identidade.
Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, pela
Civilização Brasileira, e Relatar a si mesmo: crítica da violência
ética, pela Autêntica Editora, chegam para se somar a O clamor de
Antígona: parentesco entre a vida e a morte, editado em 2014 pela
Editora UFSC (ver resenhas nesta edição), e começam a delinear
melhor o perfil dessa pensadora cuja marca de gênero é ao mesmo
tempo fundamental e necessariamente insuficiente. Desde
Nietzsche, mesmo considerando os desdobramentos na obra de
Michel Foucault (de quem Butler é tida como continuadora) e seu
conceito de biopolítica –, principalmente entre seus leitores
franceses –, a materialidade dos corpos não havia ocupado tamanha
centralidade no pensamento filosófico.
Nesse sentido, Bodies that matter: on the discursive limits of sex,
escrito em grande medida para responder a diferentes críticas à
proposição de compreender tanto sexo quanto gênero como um
sistema discursivo que se inscreve sobre os corpos tidos apenas
como biológicos, pode ser considerado um ponto a partir do qual
Butler também se inscreve na história da filosofia como a pensadora
contemporânea de um “verdadeiro momento filosófico”, expressão
do francês Patrice Maniglier para se referir não apenas a uma época,
mas a um pensamento que demanda incessantemente ser relido e
retomado. Entender sexo/gênero/desejo como um sistema discursivo
que opera a diferença sexual levou o pensamento de Butler ao
estatuto de paradigma da crítica à heteronormatividade.
Tem sido assim desde a publicação de Problemas de gênero, livro
que fez de Butler uma das expoentes da teoria queer, tão bem
definida por Vladimir Safatle no posfácio a Relatar a si mesmo
como um pensamento que “toma como identificação de si o que
parece expulso da reprodução normal da vida”. Se corpos
performatizam gêneros a partir de uma estrutura de repetição que
contém nela mesma a possibilidade de transgressão, corpos também
indicam a condição precária da vida, tema de Quadros de guerra
(mas também de Precarious life: the power of mourning and
violence, título queo antecede). Escrito no contexto do debate
norte-americano sobre a guerra contra o Iraque e as práticas de
tortura nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, Quadros de
guerra também diz respeito ao público brasileiro ainda estarrecido
com o episódio recente de um trem que destruiu o corpo de um
ambulante morto nos trilhos ferroviários do Rio de Janeiro.
Para pensar o luto como condição de reconhecimento do valor de
uma vida, como faz Antígona na reivindicação do direito de enterrar
seu irmão, Butler recorre à teoria do enquadramento do sociólogo
Erving Goffman a fim de indicar como a fragilidade dos corpos
diante dos aparatos estatais de poder e das imposições de normas de
gênero – a rigor, indissociáveis – são resultado da construção do
nosso olhar sobre violência física a partir de marcas biológicas
restritas por categorias identitárias e heteronormativas.
A filósofa cuja tese de doutorado é sobre a recepção francesa do
pensamento de Hegel no século 20 faz parte também de uma
retomada da filosofia política a partir daquilo que poderia apontar
para o seu fim: a derrocada da centralidade do conceito de luta de
classes a partir do triunfalismo dos discursos de fim da história e a
emergência das políticas da diferença. O esgotamento das políticas
da diferença – para usar uma expressão cara a Vladimir Safatle,
principal expoente do debate com a filósofa no Brasil – faz Butler
retomar o conceito hegeliano de reconhecimento, central na
discussão sobre direitos.
Da violência normativa de gênero se chega ao tema da violência
ética discutida em Relatar a si mesmo, mais um dos lançamentos
editoriais que, além de suprirem o longo espaço de mais de uma
década desde a primeira tradução de Butler em português, se valem
da sua primeira vinda ao Brasil para renovar o interesse por sua
obra. O livro parte de um diagnóstico de que as mudanças nas
normas sociais nos fizeram chegar a um ambiente de niilismo moral
a partir do qual só se pode recuar. Num clima de histeria não muito
diferente do que se pode assistir no Congresso Nacional dominado
por forças religiosas, prevaleceria a ideia de que a garantia dos
direitos homossexuais é a abertura de uma porta para o inferno da
ausência de norma, cujo pecado maior estaria em não poder ser
universalizável.
A disjuntiva entre universal e particular é o eixo da discussão
ética de Butler, que retoma a crítica de Nietzsche e Foucault a Kant,
para quem o fundamento da moralidade é a autonomia da vontade
do sujeito moral. Ora, argumentariam os críticos, se com Hegel e a
partir dele, o sujeito perde a possibilidade de se afirmar enquanto
tal, uma “falha ética” advinda desse sujeito partido por uma
diferença intrínseca contaminaria todo o fundamento da moralidade.
Já para Butler, o que é considerado falha pode “muito bem ter uma
importância e um valor ético que ainda não foram corretamente
determinados por aqueles que equiparam, de maneira muito
apressada, o pós-estruturalismo com o niilismo moral”. Em outras
palavras, o questionamento da norma não é sua destruição, mas a
busca por normas que melhor nos sirvam.
Com essa formulação, trabalha-se pela ampliação da
universalidade até um ponto impossível, como Butler diz nessa
entrevista à CULT, concedida como parte da recepção da filósofa no
Brasil, onde faz conferências na UFBA, na UFSCar, e no I
Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades: “Sinto
que ainda não alcançamos um conceito do universal que realmente
inclua todas as populações que, por direito, desejam ser
representadas dentro de seus termos. A conquista talvez seja
impossível, mas é um ideal em direção ao qual lutamos. E essa luta
é histórica”.
Existe uma gama ampla de pesquisas relacionadas ao seu
trabalho tanto no Brasil como na America Latina. Há mais de
dez anos que os estudos sobre sexualidade e gênero em áreas
como antropologia, sociologia e filosofia têm investigado
assuntos como performance, interatividade e paródia. Você tem
consciência da repercussão das suas ideias no Brasil?
Eu tenho alguma noção acerca da repercussão do meu trabalho no
Brasil, porque as pessoas me mandam notícias, livros, vídeos de
performances. Eu vejo que mesmo agora, hoje, existem maneiras
em que a performance é central para as demonstrações públicas, o
exercício da liberdade de gênero e também para a liberdade de
reunir-se em assembleia. Eu tenho acompanhado a tradução de
alguns dos meus livros para o português, e tem sido muito animador
ouvir tanto de estudiosos quanto de ativistas que derivam algo desse
trabalho.
Durante os últimos dez anos, Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade era o seu único livro publicado no Brasil
– o que limitou a pesquisa sobre seu trabalho a um foco muito
específico do debate sobre gênero. Assuntos da sua filosofia
política, como as políticas de identidade, precariedade de vida e
reconhecimento poderiam dar aos pesquisadores uma
compreensão mais ampla de suas ideias. Você pretende falar
sobre esses temas durante as suas conferências no Brasil?
Eu pretendo, sim, falar sobre política corporal, sobre a importância
de corpos reunidos, o porquê de podermos pensar a
performatividade não só como algo que uma pessoa faz, mas
também como algo encenado no coletivo. Eu pretendo demonstrar
que meu trabalho sobre performatividade de gênero está ligado à
política de precariedade sobre a qual tenho pensado nos últimos
anos. Afinal, ainda que tenhamos que lutar por liberdades
individuais, temos que pensar o lugar de corpos atuantes e de corpos
movendo-se livremente dentro de uma democracia. A meu ver, não
existe democracia sem assembleia, e nenhuma assembleia sem uma
forma plural e consubstancial de performatividade.
Atualmente tramita no Congresso Nacional um projeto de lei
que pretende restringir o conceito de família aos casais
heterossexuais e seus filhos. Na sua opinião, seu livro O clamor
de Antígona: parentesco entre a vida e a morte pode nos ajudar a
encarar essa posição conservadora?
Meu livro é apenas uma contribuição a um amplo debate sobre
parentesco que está acontecendo pelo mundo todo. No Brasil,
certamente, mas também na Polônia, na França. Eu acredito que
esses esforços para “definir” a família em sua forma restrita,
heterossexual e matrimonial, para fazer com que crianças sejam
derivadas biológica ou legalmente do casal heterossexual é uma
tentativa de frear movimentos sociais e novas formas de parentesco
que estão lentamente se tornando a norma. Tais definições
estabelecem obstáculos para que todo tipo de pessoa, casada ou
solteira, hétero, gay, lésbica, bissexual ou trans consiga estabelecer
laços íntimos dentro dos termos da lei. Neste sentido, eles não estão
definindo nada, apenas usando o poder da definição legal enquanto
obstrução. Meu livro é uma pequena e acadêmica contribuição para
um debate muito mais amplo e urgente.
Em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, você
politiza a importância do luto público por vidas perdidas. De
2005 a 2014, 5132 pessoas foram mortas por policiais na cidade
do Rio de Janeiro, a maioria jovens, negros e moradores de
favelas. Como suas ideias sobre guerra podem ser estendidas a
outras situações de violência?
Acho que também devemos atentar ao modo com que
vulnerabilidade e precariedade estão diferencialmente distribuídas,
estabelecendo populações inteiras como “não lamentáveis”. O
movimento Black Lives Matter, nos EUA, torna clara a maneira
com que as vidas negras são facilmente “dispensadas”, seja por falta
de amparo social ou pela violência policial irrestrita. Eu entendo que
haja gravíssimas e consequentes hierarquias raciais no Brasil que
nos mostram que uma das formas letais que o racismo assume é o
poder de estabelecer critérios que determinam quais vidas são
merecedoras de amparo, e quais são dispensáveis, “não
lamentáveis”. Faz sentido para mim que haja raiva, politicamente
justificada, diante dessa forma de poder.
Em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, você defende
uma mudança na concepção de que estamos vivendo num
niilismo moral. Fale umpouco sobre isso.
Bem, não tenho certeza do que os conservadores estão colocando,
mas aqui estão alguns pontos. Algumas pessoas acreditam que uma
mudança nas normas sociais irá produzir uma forma de niilismo
moral. Se existe o casamento gay, ou se é assegurado às pessoas
trans o direito de mover-se e viver como queiram, isso levará ao
“niilismo moral”. A Igreja Católica em algum momento colocou
que, se a homossexualidade for “aprovada”, o que nos deixaria de
“aprovar” o sexo com animais, árvores etc.? São todos argumentos
histéricos que se recusam a aceitar as mudanças profundas que
ocorrem nas normas que ditam sexualidade e gênero. Existem
outros, na região da filosofia, que dizem que devemos agir como se
as nossas ações fossem universalizáveis. Esses são os kantianos.
Ainda assim, minha tréplica é que agimos dentro de nossa situação
histórica. Até nossa capacidade de agir está historicamente
condicionada e estruturada (não determinada!). Sinto que ainda não
alcançamos um conceito do universal que realmente inclua todas as
populações que, com direito, desejam ser representadas dentro de
seus termos. A conquista talvez seja impossível, mas é um ideal em
direção ao qual lutamos. E essa luta é histórica.
Muitos filósofos, especialmente Hegel, mas também Foucault e
Derrida, têm influenciado seu trabalho. Você pode fazer uma
pequena seleção de mulheres pensadoras que a influenciaram?
Simone de Beauvoir foi muito importante para mim. Foi ela quem
me deu, quem deu pra tantos de nós, a formulação “Não se nasce
mulher, torna-se uma”. E Monique Wittig, que deu a Beauvoir uma
leitura original, perguntou se, de fato, qualquer um de nós precisa se
tornar mulher, e quais os riscos de habitar essa categoria. Eu
também fui profundamente influenciada pela historiadora Joan
Scott, a filósofa política Chantal Mouffe, as escritoras Susan Sontag
e Anne Carson, e mais recentemente pelos trabalhos de Simone
Weil e Hannah Arendt. Arendt me deu uma maneira de revisar
minha antiga teoria de gênero performativo (mesmo que ela
provavelmente detestasse a noção de gênero). Ela oferece um
caminho para pensar a política como necessitando de ações plurais e
consubstanciais, e isso me parece um jeito importante de pensar a
performatividade de gênero com a performatividade do político.
Enquanto feminista, já li muitas grandes autoras que me
influenciaram, incluindo Gayle Rubin, Angela Davis e Bernice
Johnson Reagon, para mencionar só algumas. Talvez sejam meus
alunos que me afetem mais, desafiando as minhas ideias,
provocando-me a conhecer o presente. 
Tradução Pedro Köberle
resenhas
Judith Butler, condições de vida e o horizonte
do representável
PEDRO PAULO GOMES PEREIRA
Judith Butler é uma das mais instigantes intelectuais da atualidade e
vem trilhando uma trajetória ímpar, com contribuições
incontornáveis em diversas áreas do conhecimento. Constante em
sua obra é sua capacidade de ser afetada pelos encontros,
engajamentos e debates, produzindo reflexões em torno das
indagações que surgem dos acontecimentos. No Brasil, poderemos
acompanhar mais de perto esse percurso com o lançamento de dois
de seus livros: Relatar a si mesmo: crítica da violência ética
(Autêntica Editora) e Quadros de guerra: quando a vida é passível
de luto (Civilização Brasileira).
RELATAR A SI MESMO
Desde Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade,
Butler enfrentou uma crítica sobre certa pressuposição da presença,
em seus trabalhos, de um sujeito autônomo e soberano de seus atos
e desejos. Em direção contrária a essa crítica, diversos e reiterados
textos de Butler revelam como o sujeito está comprometido com o
poder e que sua ação é, simultaneamente, interna e externa ao poder.
Sendo assim, a capacidade de ação não pode ser imaginada a partir
da perspectiva de um sujeito voluntarista, livre para escolher
irrestritamente. Butler volta a esse tema em Relatar a si mesmo –
livro composto por textos que surgiram em 2002, nas Conferências
Spinoza realizadas na Universidade de Amsterdã. O tema central é a
ideia de que, para sermos inteligíveis, devemos estar fora de nós
mesmos, pois somos constituídos pelos outros – cercados por
convenções e regras que nos afetam, dependemos dos outros para
viver. Por todo o livro, a autora vai desenhando uma inter-
relacionalidade radical na qual vamos nos constituindo. Ela tece,
dessa maneira, uma crítica ao sujeito liberal supostamente cônscio
de si e das fronteiras de sua subjetividade.
As convenções e regras atuam de tal forma que, quando somos
interpelados a dar conta de nossos “eus”, as condições sociais
tornam impossível e extenuante essa tarefa. O corpo singular a que
se refere um relato não pode ser apreendido por uma narração total
porque o modo pelo qual as relações primárias nos constituem
produz uma obscuridade na autocompreensão. Dar conta de si
mesmo é sempre algo que ocorre em relação ao outro, uma vez que
esse outro estabelece a cena de interpelação que possibilita o relatar
a si. Não são nossas invenções os quadros que usamos para
estarmos inteligíveis para nós e para os outros. As condições sociais
e as normas estabelecem um campo de falta de liberdade e de
possibilidade no qual nossas histórias são narradas.
A persistente tendência à naturalização de um sujeito autônomo
não se sustenta diante do caráter relacional da vida: a vida não pode
relatar a si mesma nem discorrer sobre sua manifestação no mundo
sem considerar as normas sociais existentes. A relação com o outro
interpela e indaga sobre quem sou eu. É isso o que define e
conforma o sujeito, que se constitui nesse contexto de interpelação e
de indagação das possibilidades de uma relação moral.
O que une uma política crítica a uma ética e a uma moral que, por
momentos, exige relatar a si em primeira pessoa? Butler responde a
essa indagação afirmando que a moral não é apenas um sintoma
nem transcende os quadros sociais. As questões morais surgem
quando normas de comportamento deixam de ser evidentes e há
divergências entre o universal e o particular. Nesse caso, o universal
não inclui (nem está de acordo com) o indivíduo – a própria
reivindicação de universalidade nega direitos. Isso não significa que
o universalismo seja violento por definição, adverte Butler, mas só
que existem condições para se exercer a violência. Por conseguinte,
a reflexão moral não pode ser isolada do contexto sociopolítico no
qual foi formulada. A questão da ética surge nos limites de nossos
esquemas de inteligibilidade, exatamente no lugar onde
questionamos o significado de continuar um diálogo sem campo
compartilhado. Seja lá como for, há a necessidade de reciprocar
reconhecimento a outrem, cuja interpelação é incontornável.
É por essa dimensão do outro e da interpelação que Butler vai
considerar que a pergunta básica do processo de conhecimento não
seria “em que posso converter-me?”, mas “quem és tu?” O “tu”
seria a origem de todo perguntar. Esse movimento busca retirar o
sujeito narcisista do centro da ética, pois se admite o outro como
constitutivo de cada origem. Qualquer tentativa de relatar a si
mesmo terá que assumir que há uma opacidade intransponível no
processo e terá que aceitar a própria ficção desse relatar. Entretanto,
o reconhecimento da própria opacidade e da limitação essencial dos
sujeitos não deve ser percebido como fracasso da ética, mas como
ponto de partida de uma ética que se afaste da violência, que se
aparte do juízo ético condenatório de um sujeito seguro de si que
acusa o outro.
Butler argumenta a favor de uma ética de responsabilidade
ancorada nessa opacidade, nesse fracasso, aportada em nossa
cegueira sobre nós e sobre os outros. De tal forma que se possa
suspender a pretensão de sujeitos completamente coerentes. Como
adiantei, na formulação de Butler, o sujeito que não é autofundante,
nem autotransparente, nem autônomo, nem inteiramente consciente
de si. E essa concepção de sujeito possibilita sustentar condutas
eticamente responsáveis, porque reconhece os limites do sujeito ao
mesmo tempo em que constrói disposiçãopara humildade e para
generosidade. Deixar aberta a pergunta pelo outro é estar mais perto
da vida, já que a vida é aquilo que excede a explicação. Ao
reconhecer os limites intrínsecos do (re)conhecimento, a postura
ética seria a de perguntar “quem és tu?”, sem esperar algo acabado
coerente. O desejo de reconhecer torna-se próximo do desejo de
viver, e deixar viver, a base de toda teoria do reconhecimento.
Se assim for, haveria um afastamento da violência fundamentada
na segurança de um sujeito que acredita poder relatar a si mesmo,
dar conta completamente de si e que circunscreve o outro a essa
existência. Seguindo esse raciocínio, se a violência é o ato no qual
um sujeito procura reinstaurar seu domínio e sua unidade, a não
violência pode ser decorrência da constante indagação sobre a
anterioridade e proeminência de minha subjetividade. A questão é
sempre deixar aberto o encontro com o outro e colocar em risco o
“eu”, compreendendo a precariedade como condição compartilhada.
QUADROS DE GUERRA
Butler já havia refletido sobre as maneiras pelas quais certas
representações do humano originam seres não considerados
humanos, em Vidas precárias. Ao percorrer esse processo de
demarcação das vidas vivíveis e das descartáveis, analisando
inclusive o papel da mídia nas representações restritivas do outro,
ela indagou sobre o que nos vincula ao outro, mostrando que esse
vínculo surge quando reconhecemos a precariedade como condição
compartida.
Com uma introdução e cinco artigos, publicados entre 2004 e
2008, Quadros de guerra reafirma e amplia esses argumentos. Os
textos abordam a guerra dos EUA contra o Iraque, a tortura dos
prisioneiros em Guantánamo, refletindo sobre quais vidas são
reconhecidas e passíveis de luto e quais as vidas descartáveis, e
como o aparato bélico norte-americano atua impondo uma distinção
entre as vidas que merecem pranto e aquelas que não podem ser
lamentadas.
Há uma impossibilidade de se fazer o luto público das vidas não
reconhecidas – como nos casos da mencionada guerra contra o
Iraque, a ocupação israelense dos territórios palestinos ou da aids. A
guerra controla e potencializa os efeitos da distribuição desigual e
politicamente induzido da precariedade, que compromete o status
ontológico de populações, mantendo-as como descartáveis e não
merecedoras de luto.
Ao discutir a tortura como política de Estado, a condição de
reconhecimento dos corpos dissidentes, a biopolítica como uma
forma de controle de corpos, Butler se interroga sobre a violência e
a possibilidade de uma ética política que seja capaz de balizar uma
crítica à violência de Estado e às novas formas de poder. Por todo o
livro, sustenta que a política necessita compreender a precariedade
como condição vital generalizada. A vida entendida como vida
precária implica dependência de redes e de condições sociais.
Nossas obrigações surgem da ideia segundo a qual não pode haver
uma vida vivível (e, portanto, suscetível de pranto) sem amparo, que
é uma responsabilidade política e ética. Como Butler havia
sublinhado em Relatar a si mesmo, estamos todos em relações
intensas e mútuas. Não há nenhum vínculo entre o eu e o outro
anterior a essas relações – aliás, o único vínculo anterior seria o que
se instaura quando surge a questão ética do reconhecimento de sua
humanidade. A guerra (e a tortura) mostra que somos vulneráveis à
destruição pelos demais e, por conseguinte, estamos necessitados de
amparo, de proteção mediante acordos baseados no reconhecimento
da precariedade compartida.
Butler questiona incisivamente o papel dos meios de comunicação
dominantes na regulação dos afetos. A mídia converte-se em parte
da guerra e do aparato que leva à destruição populações que não se
encaixam nem são adequados ao que se imagina como humano no
Ocidente. As práticas de representação e as imagens revolveriam
entre as possibilidades de humanizar e de desumanizar. A guerra se
sustenta e funciona por meio da modelação, pelas diferentes formas
de expressões midiáticas, dos sentidos e dos afetos, já que a mídia
controla o que se pode mostrar e o que se deve ocultar. As mortes
anônimas são construídas antecipada e continuamente, perfazendo
um processo imagético de edificar o inumano: afinal, onde não
houvera vida não haverá morte.
Na constituição do campo público do visual, a nossa capacidade
de fazer transitar uma resposta moral dependerá das condições de
receptividade que incluem, além de meus recursos privados, os
distintos quadros e enquadramentos que constroem repetitivamente
a realidade e circunscrevem os horizontes de sentido. A empreitada
incide, assim, em constituir maneiras públicas de olhar e escutar que
reavivem e estimulem os sentidos da precariedade do outro,
proporcionando meios interpretativos para compreensão da guerra
que interroguem as interpretações dominantes e se contraponham a
elas.
O quadro (ou o enquadramento) que pretende determinar como e
o que se vê tem que circular a fim de estabelecer sua hegemonia.
Como nas performances de gênero, essa circulação apresenta o
caráter historicamente contingente do quadro (com suas exposições
e ocultamentos), revelando-o como enganoso, abrindo
possibilidades insurgentes. Isso pode ser observado quando
prisioneiros de Guantánamo escreveram poemas: nesses poemas há
traços de uma cultura poética que perfaz movimento contra o poder
estatal. A divulgação da poesia de Guantánamo, a circulação de
fotos da guerra e a imagem digital fora dos muros de Abu Ghraib
sinalizam que a circulação do texto e da imagem por fora de seu
confinamento oferece condições para outro tipo de resposta moral.
A câmera instiga, demarca, orquestra o ato de tortura e,
concomitantemente, capta sua consumação. Mas a circulação de
imagens permite romper com esse quadro, com essas formas de
enquadramento. Nossa capacidade de resposta afetiva pode se
compor dentro de uma matriz de poder, mas isso não significa que
necessitemos reproduzir essa matriz. A circulação e sua
reprodutibilidade fazem-no falível, vulnerável à inversão e à
subversão. De maneira que as imagens e os textos podem construir
diversos afetos, como a indiferença, mas também como a
solidariedade.
EM TORNO DA VIDA
Estes comentários nem de longe fazem justiça à riqueza da
argumentação, aos diálogos com a teoria social e ao estilo de Butler,
que apresenta, indaga e provoca. Espero, contudo, que sejam
suficientes para mostrar a constante interrogação crítica sobre os
contextos que fazem as vidas inteligíveis e passíveis de pensamento
e afetos. E suficientes também para delinear algo do movimento de
Butler em torno das condições de vida e do horizonte do
representável. Tanto Relatar a si mesmo como Quadros de guerra
buscam encontrar maneiras para examinar o que significa a vida em
nosso tempo, e refletir sobre nossa responsabilidade.
Esses livros destacam também a capacidade de Butler em
trabalhar com diversas teorias (que surgem como partes de um
diálogo e de um processo argumentativo) sem subserviência,
produzindo algo a mais e diferente. O lançamento desses livros, os
relançamentos já programados, e a visita de Butler ao Brasil para
participar de eventos dos mais importantes, podem nos levar a
questionar: se optarmos por seguir o próprio movimento de Butler,
como ler no Brasil, sem subserviência, a autora de Problemas de
gênero? E se um de seus ensinamentos é o de, no diálogo, produzir
algo que vá além, como desviar de simplesmente aplicar uma teoria
que fora formulada, evitando apenas a repetição? E também: se
esses livros nos mostram afetos e afecções produzidos e acentuados
nos eventos e nos diálogos, nas interpelações dos encontros, o que
podemos esperar com a passagem de Butler no Brasil? Como ela
será afetada por mais esse encontro? Como se abrirá aos Outros aqui
nos trópicos? Enfim, perguntas, livros, eventos, diálogos que
compõem momento ímpar para reflexão. 
Da família ao parentesco
CARLA RODRIGUES
Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei – PL 6583/13 –
que trata do Estatuto da Família, instrumento conservadorcujo
objetivo é definir que tipo de agrupamento de pessoas pode ser
denominado como família. Na contramão da vida real – em que
famílias se organizam para além dos laços sanguíneos, se vinculam
em redes extensas, se reconfiguram a partir de novas uniões –, o
projeto pretende limitar a família ao modelo heterossexual e proibir
a adoção de crianças por casas homoafetivos.
É contra esse tipo de discurso conservador que O clamor de
Antígona: parentesco entre a vida e a morte (Editora UFSC, 2014),
da filósofa Judith Butler, se insurge. A partir de uma interpretação
original da peça de Sófocles, Butler revisita as leituras de Hegel e
Lacan para localizar na personagem trágica de Antígona a
possibilidade de dissociar família e parentesco. O argumento para
essa separação vem da percepção de que a narrativa da luta de
Antígona para enterrar Polinices foi inúmeras vezes lida sem que se
tenha observado o amor dela por seu irmão.
A Butler vai interessar o que ela chama de “caráter contingente do
parentesco”, insistindo que todas as interpretações da peça
contornam o fato de que Antígona é filha de uma relação incestuosa:
Édipo é, ao mesmo tempo, pai e irmão de Antígona, e ambos são
filhos de Jocasta. Só isso, argumenta Butler, já a impediria de
ocupar o lugar de representante de leis de parentesco ordenadas pelo
tabu do incesto. No entanto, na leitura de Hegel, Antígona encarna a
passagem da lei singular e familiar para a lei universal e pública, e
em Lacan, Antígona encarna a lei do desejo, sem chegar a perturbar
os arranjos familiares que representa.
Nesse ponto, Butler recorre à antropóloga feminista Gayle Rubin
para repensar o tabu do incesto como centro fundador das estruturas
elementares do parentesco pensadas por Lévi-Strauss. Na
antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, a proibição do incesto
funciona como centro das estruturas elementares de parentesco.
Rubin percebe aí um aspecto que será fundamental para o
argumento de Butler: na estrutura de parentesco pensada por Lévi-
Strauss, o gênero se estabelece para a orientação do desejo sexual,
sempre dirigido ao outro sexo. Mulheres submetidas ao sistema de
trocas e homossexuais são oprimidos em prol da ordem que deriva
do mesmo sistema.
Butler faz ecoar uma pergunta de George Steiner – autor de
Antígonas, amplo estudo sobre as inúmeras interpretações da peça
de Sófocles na história do pensamento – e questiona o que teria
acontecido se o mito fundador da psicanálise freudiana fosse
Antígona, e não Édipo. As hipóteses de resposta apontam para a
possibilidade, segundo Butler, de desconstruir a normatividade da
família heterossexual e pensar que a função do tabu do incesto é
instituir um padrão fora da norma do qual a norma depende para se
estabelecer.
Nesse sentido, não reconhecer como relações familiares
determinadas relações de parentesco funciona como a estratégia
necessária para afirmar uma normatividade a partir daquilo que não
se enquadra no padrão normativo. É na rejeição – ou no não
reconhecimento do diferente – que a norma se impõe sobre os
sujeitos. Em outras palavras, para que haja uma lei universal, é
preciso que seja criada também o fora-da-lei, só a partir do qual a lei
será assegurada. É nesse movimento que se pode identificar o PL
6583/13, cuja definição do que seja família depende de tornar abjeto
todas as outras formas de parentesco, já que seu único propósito
passa a ser afirmar o que não cabe no conceito de família.
Publicado nos EUA em 2000, O clamor de Antígona contém os
traços de algumas obras posteriores de Butler, como Precarious life
ou Quadros de guerra, este em lançamento pela Civilização
Brasileira. No debate que a autora estabelece sobre quais são as
vidas passíveis de luto, Antígona simboliza a luta de uma mulher
por um enterro digno ao seu irmão, ou seja, a afirmação de que a
condição para que uma vida tenha valor inclui a possibilidade de
que esta vida seja enlutada. Dois temas que mostram a atualidade da
filosofia de Butler e sua pertinência no contexto brasileiro de
violência, seja institucional, como na proposta parlamentar, seja na
experiência cotidiana a cada dia mais marcada pelo desprezo à vida
do outro. 
dossiê A cultura como trauma
Apresentação
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
Este dossiê trata do conceito de trauma, tema que, embora tenha
estado em evidência nas últimas duas décadas, ainda não teve a sua
teorização devidamente expandida para além das fronteiras da teoria
psicanalítica. Apesar dos esforços de autores como Jacques Derrida,
Paul Ricœur, Shoshana Felman, Cathy Caruth, Geoffrey Hartman,
Ruth Leys, Ann Kaplan, Aleida Assmann, Dominick LaCapra, Hal
Foster e Rosalind Krauss, para citar alguns nomes de referência
dentro dos atuais estudos sobre o trauma, a área ainda não se impôs
nas ciências humanas como deveria. Afinal, acredito ser fácil
perceber a onipresença de um conceito fluido de trauma, que marca
toda a nossa cultura, mesmo que não tenhamos ainda consciência
clara do fato. Precisamos enfrentá-lo. Nada como recorrer a
psicanalistas antenados com o que se passa para além de sua área,
na tentativa de levar adiante essa fundamentação sobre nosso tema.
Pensando nisso, enviei aos colegas que aceitaram participar deste
dossiê uma proposta, que transcrevo aqui, para apresentar o
esqueleto do projeto:
A proposta deste dossiê é pensar a importância do conceito
psicanalítico de “trauma” para a cultura desde o início do século 20
(que coincide com a fundação da psicanálise por Freud em 1900) até
os nossos dias. O conceito encontra-se no cerne do pensamento
psicanalítico e acabou como que “contaminando” e tingindo boa
parte da cultura. Aprendemos a ver a nossa subjetividade como algo
plástico, esburacado e constituído por falhas, mais do que por
continuidades. Também, a paulatina virada mnemônica de nossa
visão da história, um efeito de “traumas históricos” do século 20 e
construída a partir do universo de pensadores como Bergson,
Benjamin, Halbwachs, Warburg, além do próprio Freud, deve muito
a essa incorporação do trauma como pedra de toque de nossa
concepção da temporalidade. Da noção central de “choque” em
Baudelaire, para caracterizar a modernidade, passando pela visão
benjaminiana da história como catástrofe, até a concepção do “real”
em Lacan, vemos se desdobrar uma ideia de violência como
determinante de nossa era e de nossa autocompreensão. Tanto a
violência do passado (trauma) como a do presente (choque) e a do
futuro (apocalipse) nos rondam como um fantasma tricéfalo da
catástrofe. Benjamin elaborou uma “definição do presente como
catástrofe” porque, para ele, “o ideal da vivência do choque é a
catástrofe”. As guerras e, hoje, os atentados são a prova contundente
dessa leitura. Na literatura, no cinema, nas artes e na produção
cultural de um modo geral, vemos inúmeras versões dessa visão da
realidade como trauma. A arte se faz valer novamente como um
“escudo de Perseu”, para refletir o terror que porta a morte, e
possibilitar uma elaboração ou uma “preparação angustiosa” para
esses choques traumáticos. Por outro lado, toda a política está
permeada por uma cultura do trauma: etnias, nações e religiões
disputam hoje seu lugar ao sol portando como insígnia os seus
próprios traumas. O caso recente do ataque ao semanário Charlie
Hebdo, ocorrido em Paris no dia 7 de janeiro deste ano, permite
vislumbrar o efeito traumático da própria arte, uma vez que ela pode
também se tornar uma catalisadora de mais violências e de mais
traumas, alimentando nossa “cultura do trauma”. Aqui confrontam-
se literalização (da Lei), resistência ao Witz [chiste] (outro tema
central da psicanálise freudiana), iconoclastia e iconolatria. Para
Freud, os traumas são transfigurados ao longo da história sob a
forma de mitos e de outras narrativas. Vale lembrar também que
assim como ele denominara os sintomas das histéricas de
“monumentos”, Maria Torok faz o mesmo paralelo entre a memória
encriptada/incorporada (os desejos enterrados) e os monumentos.
No dossiê vamos frequentar a história da construção dessa visão doreal traumático com ênfase em autores advindos da senda aberta por
Freud, como Ferenczi e Lacan.
É evidente que nossos convidados responderam a essa proposta-
provocação a partir de suas próprias visões do problema central
apresentado, ou seja, como a nossa cultura se define do ponto de
vista do trauma. A questão “o que é trauma” não foi o nosso ponto
de partida. No entanto, para orientar os leitores, cito aqui uma das
possíveis definições do termo, que retiro do ensaio de Cathy Caruth
“Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da
memória)”, (publicado no volume Catástrofe e representação,
editado por mim e por Arthur Nestrovski): “Em sua definição
genérica, o trauma é descrito como a resposta a um evento, ou
eventos, violentos, inesperados ou arrebatadores, que não são
inteiramente compreendidos quando eles acontecem, mas retornam
mais tarde repetidamente em flashbacks, pesadelos e outros
fenômenos da repetição. A experiência traumática sugere um
determinado paradoxo: o de que o ver mais direto de um evento
violento pode ocorrer como uma inabilidade absoluta de conhecê-lo;
aquela imediaticidade pode, paradoxalmente, tomar a forma de um
atraso. A repetição de um evento traumático − que permanece não
disponível para a consciência, mas intromete-se sempre na visão −
sugere, portanto, uma relação maior com o evento, que se estende
para além do que pode ser visto ou conhecido e que está
intrinsecamente ligado ao atraso e à incompreensão que permanece
no centro deste ver repetitivo”.
Walter Benjamin, em seu impactante ensaio “Sobre alguns temas
em Baudelaire”, foi um dos primeiros a fazer uma teoria da
produção literária moderna a partir do conceito freudiano de trauma.
Assim, ele ajudou a lançar as bases para um conceito mais robusto.
Partindo do ensaio de Freud “Além do princípio do prazer”, ele
determinou em que medida a poesia de Baudelaire pode ser
caracterizada como a arte de incorporar os choques/traumas em sua
própria lírica. Ali ele escreveu, entre outras passagens dignas de
nota: “A psiquiatria registra tipos traumatófilos. Baudelaire abraçou
como sua causa aparar os choques, de onde quer que proviessem,
com seu ser espiritual e físico”.
Também seu ensaio sobre A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica trata da situação nova do indivíduo
moderno que vive alienado de sua tradição. Nesse texto, ele
escreveu: “Formulado de modo geral, a técnica reprodutiva desliga
o reproduzido do campo da tradição. Ao multiplicar a reprodução,
ela substitui sua existência única por uma existência massiva. E, na
medida em que ela permite à reprodução ir ao encontro do
espectador em sua situação particular, atualiza o reproduzido.
Ambos os processos levam a um abalo violento do que é transmitido
– um abalo da tradição, que é o outro lado da crise e da renovação
atuais da humanidade”. Esse abalo violento, que nos retira da
história e nos joga no campo de forças do choque, é apresentado por
Benjamin também como tendo o próprio cinema como o seu agente.
Ele estabelece uma teoria do cinema como técnica que corresponde
a uma incorporação do choque no campo estético. Ele chega
inclusive a falar do “choque traumatizante” provocado pelo cinema
e conclui: “O filme é a forma de arte correspondente ao perigo de
vida acentuado do homem contemporâneo. Ele corresponde a
modificações profundas do aparato perceptivo – modificações como
aquelas vividas, no âmbito da existência privada, por todo pedestre
no trânsito das grandes cidades, e as que, no âmbito histórico, são
vivenciadas por todos aqueles que combatem a ordem social de seu
tempo”.
Inspirado em passagens como esta, o teórico das artes Hal Foster
vai falar nos anos 1990 de um realismo traumático para caracterizar
as obras de Andy Warhol, marcadas pela repetição de imagens
violentas. Se a imprensa tende a repetir de modo traumático e
traumatizante essas imagens, na arte elas são deslocadas e permitem
uma perfuração da capa encobridora do real que é a mídia. Daí
Foster identificar também, o que caracterizou em um neologismo,
de um ponto “troumático” (um buraco do trauma) nessas obras que
apontam para o “real” (lacaniano, pensado como impossível de ser
inscrito).
O dossiê, apesar de se estender por amplas questões e abordar de
diferentes modos o tema proposto não pôde, é claro, exaurir o
assunto. Mas ele dá as bases para expandir essa leitura da cultura
como trauma. Por exemplo, com esse instrumental podemos agora
nos voltar à indústria cultural com seus heróis traumatizados. Isso é
perceptível dos personagens de filmes de Fritz Lang (com seu
assassino de crianças Hans Beckert, de M., o vampiro de
Düsseldorf, de 1931) e de Alfred Hitchcock (lembremos de Norman
Bates, de Psicose, 1960) aos super-heróis (órfãos), como Super-
Homem, mas sobretudo Homem-Aranha e Batman – um
traumatizado vingador mascarado. E também lembremos os
inimigos desses super-heróis e de toda uma infindável galeria de
traumatizados que o cinema nos apresenta, como se o trauma fosse a
única característica que sobreviveu à falência do indivíduo... Mas
esse já é um tema para outros dossiês. 
A “desautorização” em Ferenczi: do trauma
sexual ao trauma social
DANIEL KUPERMANN
As contribuições da psicanálise para os estudos dos traumas sociais
encontram um marco inaugural decisivo: o resgate empreendido
pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, no final dos anos 1920,
da importância do traumatismo para a produção de sofrimento
psíquico. De fato, a dedicação de Ferenczi ao fenômeno do trauma –
que se acentuou a partir da sua experiência como médico do
exército húngaro no front da Primeira Grande Guerra, e depois com
pacientes comprometidos em sua constituição narcísica e em seus
processos identificatórios – promoveu uma torção decisiva no
entendimento psicanalítico acerca da importância da alteridade na
produção de experiências disruptivas traumáticas.
Se o interesse originário de Freud pelo sexual como fonte de
traumatismos – primeiro o abuso da criança pelo adulto (teoria da
sedução), depois as fantasias sexuais inconscientes edipianas e,
finalmente, a presença silenciosa, porém efetiva, de uma pulsão de
morte no aparelho psíquico – já indicava que, na construção da cena
traumática, o outro está no lugar de agente provocador (seja em ato,
seja em fantasia), é por meio das contribuições ferenczianas que a
comunidade psicanalítica é convidada a realçar a função da
alteridade no contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de
violência promovidas no campo social. Ferenczi propõe uma
releitura relacional do conceito de Verleugnung – a recusa perversa
da castração em Freud –, indicando que o não reconhecimento por
parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição
de vulnerabilidade implica uma “desautorização” da sua experiência
(e do seu testemunho) no campo social, sendo esta
“desautorização”, ela mesma, primordial na constituição do trauma.
Nesse sentido, enquanto o trauma sexual freudiano implicava, em
última instância, uma operação intrapsíquica própria ao sujeito –
ainda que originada por uma intrusão externa –, o trauma social,
formulado por Ferenczi, explicitaria uma fratura na operação de
reconhecimento no campo das relações sociais e políticas. Dessa
maneira, a partir da inspiração promovida pela traumatogênese
ferencziana, encontramos algumas ferramentas úteis para a reflexão
acerca da dimensão clínica do testemunho e do seu acolhimento
pelo outro, seja na vida cultural, seja no próprio curso de um
tratamento analítico.
SABER DÓI: O TRAUMA EM FREUD
Encontram-se, na obra de Freud, duas teorias sobre o traumatismo.
A primeira, originada ainda no século 19, concebe o trauma como
um excesso inassimilável pelo aparelho psíquico produzido em
função de um agente externo provocador – o exemplo
paradigmático é a sedução (assédio) de uma criança por um adulto
–, e ficou conhecida como “teoria da sedução”. A fundamentação
epistemológica para essa concepção de trauma residia sobre a
perspectiva de uma criança assexuada, impedida de darsentido a um
evento erótico que, a posteriori, já na puberdade, cobrava seu ônus
com juros e correção na forma da neurose. Nesse contexto, a
problemática do trauma implicava, efetivamente, uma relação do
sujeito com o saber: para o adolescente/adulto que sofrera assédio
sexual na infância, saber dói. Esse seria o motivo para o
recalcamento das representações vinculadas à sexualidade e ao
desejo, e para a concepção da direção do tratamento como um
empreendimento de aquisição de saber por meio das interpretações
do psicanalista.
Desde então, tornou-se praticamente unânime a ideia de que a
evocação das experiências traumáticas seria necessariamente
positiva, sem que se questionasse o estatuto iatrogênico do
testemunho; em outros termos, sem que se indagasse em que
condições testemunhar uma injúria sofrida poderia contribuir para a
expansão psíquica do sujeito, e em que condições adoeceria ainda
mais.
Posteriormente, a partir da evidência de que a criança é sexuada e
cria fantasias inconscientes de caráter edipiano – nas quais o assédio
sofrido é um conteúdo típico –, Freud abandonou o que nomeara de
“sua neurótica” (teoria da sedução traumática), acreditando que os
relatos de suas pacientes histéricas não passavam de ficções infantis.
Porém, foi sobretudo com as formulações do célebre ensaio “Além
do princípio de prazer”, publicado em 1920, que o traumatismo
seria relacionado ao excesso de excitação promovido no psiquismo
pelas exigências da pulsão de morte. O trauma seria, assim, inerente
à própria constituição do aparelho mental, e provocado pela
dimensão pulsional não inscrita psiquicamente pelos processos de
simbolização.
Tudo indica que Freud, longe do front, temendo a morte dos filhos
que lutavam nas trincheiras e vivendo uma situação desfavorável
nas condições de trabalho e bastante ameaçadora em relação às
perspectivas de futuro, dedicara-se, durante e imediatamente após a
Primeira Guerra, à especulação acerca das tendências destrutivas
inerentes à condição humana. Porém, se a guerra é, efetivamente,
uma vicissitude possível – talvez até provável – da civilização, a
hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui
especialmente para a compreensão do contexto histórico-cultural da
sua produção.
Desse modo, a psicanálise dos anos 1920 apostava suas fichas na
concepção de trauma intrapsíquico, afastando-se cada vez mais das
concepções relacionais de traumatismo, para as quais, dentre as
condições consideradas necessárias para a simbolização dos
excessos e para elaboração psíquica das feridas sofridas, está a
presença sensível do semelhante.
O TRAUMA COMO CONFUSÃO DE LÍNGUAS
Alguns autores indicam que a situação linguística vivida por
Ferenczi na Budapeste do Império Austro-Húngaro foi, talvez, a
grande inspiradora da sua teorização do traumatismo como
decorrente de uma “confusão de línguas” entre os adultos e a
criança. Na Hungria do seu tempo, a língua oficial utilizada nas
instituições que regulavam a vida civil era o alemão, enquanto a
língua utilizada no seio da família e nas relações íntimas era o
magiar. Ou seja, havia uma língua referida ao grande mundo da
política, da justiça, da ciência; e uma língua “menor” empregada nas
trocas afetivas – amizades, relações de parentesco, namoro etc.
Ferenczi põe o dedo justamente na ferida provocada quando se é
obrigado a nomear o afeto em uma língua que se mostra inadequada
para esse fim.
Em sua formulação derradeira sobre o traumatismo, Ferenczi
postula que a criança se encontra sob o regime da “linguagem da
ternura”, uma linguagem lúdica, experimental, expansiva, dirigida
ao outro, por meio da qual as experiências produzem sentido para o
sujeito. Já o adulto, submetido ao recalque e à culpa, encontrar-se-ia
sob o primado da “linguagem da paixão”, veiculadora das palavras
de ordem e dos imperativos sociais aprisionadores.
O trauma propriamente dito ocorreria em dois tempos,
entrelaçados porém distintos: o tempo da violação da criança pelo
adulto cego à dissimetria existente entre suas posições, ou seja,
passional na sua relação com a diferença do outro; e o tempo da
“desautorização” do seu testemunho, decerto o mais decisivo e o
mais funesto para a constituição da cena traumática.
Convém citarmos uma passagem já célebre na qual Ferenczi, em
“Análises de crianças com adultos”, descreve o que se nomeou de
segundo tempo do trauma: “O pior é realmente a negação, a
afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento
ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a
paralisia traumática dos pensamentos ou dos movimentos; é isso,
sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” (grifo nosso).
No original, escrito em alemão, onde lemos “negação” encontra-
se Verleugnung. Alguns comentadores preferem traduzir
Verleugnung por “desmentido”, outros por “descrédito”. Prefiro,
inspirado nas indicações de Luis Cláudio Figueiredo,
“desautorização”, no sentido de enfatizar a dimensão de
desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de
vulnerabilidade pelo encontro traumático. Auto, do grego, indica
aquilo que é próprio, “de si mesmo”. Os efeitos mais nefastos do
traumatismo são, justamente, o comprometimento da convicção das
próprias percepções, e a anestesia da afetividade, que tornam a
subjetividade refém da unidimensionalidade dos imperativos
veiculados culturalmente, automatizada e incapaz de qualquer
pensamento crítico.
Na teoria psicanalítica da constituição subjetiva, haveria na
criança um movimento primário em direção ao adulto – o
Nebenmensch freudiano, aquele que está ao lado – capaz de ajudá-la
a dar sentido às experiências que ainda não encontram lugar em sua
cadeia representacional. Concebe-se, portanto, que o chamado
primeiro tempo do trauma não seja em si mesmo necessariamente
desestruturante, uma vez que o encontro com o outro pode
proporcionar o suporte suficiente para que o sujeito elabore a
violação sofrida. A desagregação psíquica adviria quando,
justamente, aquele que testemunha encontra o abandono, na forma
da desautorização da sua tentativa de produzir uma versão própria
para aquilo que foi vivido como injúria.
Nesse sentido, o fato de reconhecer que a criança também está
submetida a um regime “sexual”, como o fez Freud na aurora do
século 20, não significa, de modo algum, que o encontro da ternura
da criança com a paixão do adulto (duas “línguas” distintas que
regem a nossa sexualidade) seja incapaz de promover consequências
traumáticas.
A DESAUTORIZAÇÃO TRAUMATIZANTE
O desafio da clínica com vítimas de traumas e catástrofes é, assim, o
de constituir uma língua própria e apropriada para enunciar aquilo
que é da ordem do irrepresentável, mas também do inaudível, como
depreendemos da leitura de Agamben em O que resta de Auschwitz.
De fato, se a vivência sofrida não encontra modos de enunciação na
linguagem cotidiana, ou seja, nos modos de representação
disponíveis aos sujeitos em determinados contextos históricos, seria
preciso, para transmitir algo do terror experimentado, gritar, também
para poder dizer aquilo que soa insuportável aos ouvidos dos
semelhantes.
A concepção de trauma social nos permite cotejar, assim, o
problema dos limites do representável com o problema dos limites
do testemunho. A realidade do relato de sofrimento traumático soa
monstruosa e passível de provocar horror nas suas testemunhas, no
sentido de convocá-las para uma dimensão da experiência humana
muito além do tolerável pelos ideais compartilhados socialmente,
que compõem sua visão de mundo necessariamente ordenada e
estável.
Uma cena do filme A vida é bela, dirigido no final dos anos 1990
por Roberto Benigni, me permite ilustrar, pelo avesso, do que se
trata a confusão de línguas traumática. O cenário é o interior de um
pavilhão-dormitório de um campo de concentração. Nele estão os
recém-chegados, perplexos com a sua nova e inusitada realidade.
Um oficial nazista entra e começa a bradar as “regras” que regerão o
cotidiano dos prisioneiros; entre eles há uma criança italiana, um
menino pequeno,

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