Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Esboço de uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares com base na filosofia de Merleau-Ponty1 Lucas Bloc Virginia Moreira Resumo Este artigo tem como objetivo propor um esboço de uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares inspirada na fenomenologia filosófica de Merleau-Ponty. Inicialmente, descrevemos a fenomenologia do corpo, mostrando como as discussões sobre hábito e sobre aambiguidade entre ser e ter um corpo podem contribuir para elucidar os transtornos alimentares. Em seguida, discutimos a noção de esquema corporal como reveladora da arquitetônica da corporeidade e como via de organização do modo particular de ser corpo nos transtornos alimentares. Por último, exploramos a noção de carne como via de aprofundamento da corporeidade nos transtornos alimentares. O esboço de uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares coloca em cena o modo de ser corpo em seu enraizamento no mundo. Ao focar a experiência, ressaltamos a alteração do modo de se experienciar o corpo nos transtornos alimentares que se instaura a partir da dinâmica intersubjetiva. Trata-se de uma experiência corporal que se compõe a partir dos hábitos, que revela uma objetificação do corpo que conduz a um desequilíbrio entre o corpo sujeito e o corpo objeto, que se (des)organiza intercorporalmente através do esquema corporal e que se constitui em sua carnalidade marcada pela (in)visibilidade, pelo espelho e pelo circuito interminável de incorporações. Palavras-chave: fenomenologia clínica, transtornos alimentares, Merleau-Ponty. Introdução O interesse pela fenomenologia filosófica teve inicio quando psiquiatras identificaram que, através da fenomenologia filosófica, seria possível ter uma nova atitude clínica. Assim, a partir da década de 1920, o campo clínico começou a ser explorado e expandido, inicialmente inspirado nas contribuições de Husserl e Heidegger. Psiquiatras como Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Eugene Minkowski, Medard Boss, Erwin Strauss, Viktor von Gebsattel, Hubertus Tellenbach, Arthur Tatossian, entre outros, entenderam e se utilizaram da fenomenologia para uma melhor compreensão dos transtornos mentais. Assim, a 1 Este capítulo é a tradução do seguinte artigo : Bloc, L. & Moreira, V. (2018). Outline of clinical phenomenology for eating disorders inspired by Merleau-Ponty philosophy. Thaumàzein, 6, 116-137. 2 fenomenologia clínica rapidamente se desenvolveu a partir do desejo de um "diálogo" aberto entre fenomenologia e psiquiatria (Dastur, 2014). A opção de utilizar aqui o termo fenomenologia clínica advém de uma tomada de posição, tanto teórica quanto prática, combinando duas dimensões que não estão ligadas de forma clara. Por um lado, a fenomenologia se apresenta no campo filosófico com sua especificidade e se mostra capaz de atingir vários domínios de acordo com sua amplitude, seu potencial no nível metodológico e sua diversidade. Por outro lado, a clínica corresponde, em particular, ao domínio psi (psiquiatria, psicopatologia, psicologia e psicoterapia) e ao contato com os sujeitos que sofrem com seus modos de existir e de adoecer. A fenomenologia filosófica é utilizada como uma inspiração, fornecendo possíveis ferramentas clínicas para uma melhor compreensão das diferentes experiências patológicas e de intervenções clinicas que venham a contribuir para a melhora de quem sofre com estas experiências. Ela nos fornece direções e fontes para desvelar e compreender os fenômenos, bem como para estar presente no encontro clínico. A maior parte dos trabalhos em psicopatologia fenomenológica são voltados para as psicoses, em especial para a esquizofrenia. No entanto, consideramos que a fenomenologia filosófica pode servir de inspiração para uma abordagem original e crítica capaz de compor uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares. Acreditamos que a filosofia de Merleau-Ponty, referencial utilizado neste artigo, traz contribuições significativas que ultrapassam o campo filosófico e podem atingir o campo clínico de forma fecunda em suas diversas possibilidades. Assim como Husserl e Heidegger, que tradicionalmente forneceram as bases de inspiração para a fenomenologia clínica, consideramos que a fenomenologia de Merleau-Ponty pode se apresentar efetivamente como interlocução e fonte de inspiração para se compreender os transtornos alimentares. Consideramos que a fenomenologia de Merleau-Ponty tem este lugar como fonte de inspiração para a clínica dos transtornos alimentares devido, principalmente, à importância, de suas contribuições acerca da noção de corpo, permitindo uma reflexão e uma "ampliação" desse conceito. A articulação, mas também a ruptura, que Merleau-Ponty estabelece entre a noção de corpo e outras noções, como as de esquema corporal e de carne, nos convida a uma exploração mais ampla e, na medida do possível, mais capaz de alcançar a unidade de seu pensamento. Nossa hipótese aqui é que o trabalho de Merleau-Ponty pode se apresentar como uma ferramenta de trabalho essencial para a compreensão dos transtornos alimentares, uma vez que nos permite abordar, ao mesmo tempo, a experiência sensível do sujeito e a constituição mundana de sua experiência. Sua abordagem pode contribuir na medida em que 3 se constitui como uma ferramenta primordial para a compreensão da experiência de corpo no tecido carnal de nossa existência. Este artigo tem como objetivo propor um esboço de uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares inspirada na fenomenologia filosófica de Merleau-Ponty. Inicialmente descrevemos a fenomenologia do corpo, mostrando como as discussões sobre hábito e sobre a ambiguidade entre ser e ter um corpo podem contribuir para elucidar os transtornos alimentares. Em seguida, discutimos a noção de esquema corporal como reveladora da arquitetônica da corporeidade e como via de organização do modo particular de ser corpo nos transtornos alimentares. Finalmente, exploramos a noção de carne como via de aprofundamento da corporeidade nos transtornos alimentares através de três elementos fundamentais: (in)visibilidade e invasão, espelho e incorporação. A fenomenologia do corpo em Merleau-Ponty A palavra "corpo" tem muitos significados que dependem das bases que tomamos como referência e seu uso muda de acordo com elementos culturais e históricos associados. A abordagem do corpo mobiliza várias ciências que usam diversas técnicas e modos de expressão próprios, incluindo métodos, epistemologias e várias formas de estudar as sensações (Corbin, Courtine & Vigarello, 2010). Merleau-Ponty ocupa um lugar importante na discussão fenomenológica sobre o corpo e integra em sua obra várias noções, como corpo próprio, corpo vivido ou mesmo corporeidade, enfatizando a experiência do corpo, em seu caráter perceptivo, mas também sensível. Em relação ao esquema corporal e à imagem do corpo - noções amplamente utilizadas em psiquiatria e neurologia - Merleau-Ponty lhes confere um status específico ao reconhecer seu papel de organização da experiência (inter)corporal. Parece, portanto, que a intenção filosófica de Merleau-Ponty é relevante e fértil porque dá ao corpo um papel que lhe permite superar as tentativas de objetivação, envolvendo-o amplamente na experiência. É um "processo de subjetivação do ser humano que faz parte da estrutura do corpo" (Sichère, p. 1982, p. 202). O corpo como hábito primordial Nas obras de Merleau-Ponty, o hábito está presente de maneira recorrente. No Fenomenologia da percepção, aparece uma espécie de definição do hábito como o «poder que temos para dilatar nosso ser-no-mundo, ou para mudar a existência, anexando novos 4 instrumentos” (Merleau-Ponty, 1945/2010, p. 827). Não é nem um conhecimento nem um automatismo – «Trata-se de um conhecimento que está nas mãos, que sóé dado ao esforço corporal e não pode ser traduzido em uma designação objetiva" (p. 827). Merleau-Ponty cita vários exemplos, como o hábito de dirigir ou digitar. Tudo isso inclui um "conhecimento de familiaridade" e "nos convida a reformular nossa noção de ‘compreensão’ e nossa noção de corpo" (p. 828). Carregamos um hábito que torna a familiaridade possível e atravessa todo o nosso olhar e posição em relação a nós mesmos e ao mundo. O hábito expressa, assim, o modo de ser corpo no encontro de nosso ser com o mundo em uma dimensão comum. Merleau-Ponty admite a existência de uma generalidade de nossos hábitos e de nossas funções corporais. O hábito pode ser entendido como nossa capacidade de nos expandir diante do que é novo, mas também como o resultado de uma experiência cotidiana que permite ou não anexar uma maneira própria, habitual. Podemos dizer que há uma positividade com a expansão, com a abertura de possibilidades, mas também uma negatividade quando estamos presos em um hábito e quando ele se torna a única possibilidade que permanece para nós. As funções corporais são o caminho para nos relacionarmos com os objetos, expressando um movimento da existência (Merleau-Ponty, 1945/2010). O ato de comer comporta uma generalidade adquirida muito cedo e que pode mudar durante a vida; é, ao mesmo tempo, um hábito e uma função corporal. No entanto, essas duas dimensões também podem se alterar. O não reconhecimento de uma função do corpo, por exemplo, não permite a criação de um hábito porque não há movimento, como podemos observar, por exemplo, em pacientes com anorexia que destituem de importância o ato de comer e as suas funções como elemento vital, passando a focar de forma acentuada no corpo como objeto. Perde-se a cotidianidade do comer que tende a dificultar o caráter habitual, e necessário, do ato de comer. Já no caso da hiperfagia a centralidade do ato de comer, evidenciada pela função que exerce na vida destas pessoas, (re)cria os hábitos, altera o modo de funcionar de um sujeito que não consegue não comer. Existe um movimento dialético entre habito e função corporal que, no caso dos transtornos alimentares, é freqüentemente alterado ou desequilibrado. Trata-se de um distanciamento entre o modo se relacionar com o corpo, com o ato de comer como movimento próprio da existência e a constituição de um estilo através de hábitos que vão sendo criados ao longo da vida. Comer vai além de uma função nutricional e, ao longo da vida, os hábitos vão sendo criados e recriados. As funções corporais desempenham um papel na significação intencional para o mundo e, neste caso, para a alimentação, tornando possível a constituição de um hábito. O hábito permite o fluxo dessas funções corporais e torna efetivo 5 um modo de ser, um estilo existencial. Se o hábito é a comunhão de um ato e de um saber que nos mostra um estilo pessoal (Saint Aubert, 2013), também construído no mundo, o ato de comer vai além de um simples comportamento na medida em que carrega também um estilo pessoal construído por um “conhecimento” imposto e exposto pelo sujeito e pelo mundo. Na medida em que somos nosso corpo, (re)vivemos diariamente nossos hábitos cheios de sentido e de (im)possibilidades, sempre entre mudança e permanência. Os atos alimentares evocam, em sua cotidianidade indispensável, o movimento da própria existência. Ser e ter um corpo : a ambiguidade e o equilíbrio necessários Quase dez anos antes da defesa de sua tese em 1945 e marcado pela influência de Gabriel Marcel (Saint Aubert, 2005), Merleau-Ponty escreve sobre um corpo que não pode ser tido nem como objeto nem como um conjunto de qualidades e características. Ao considerar que «eu sou o meu corpo», Merleau-Ponty acentua um corpo em que fazemos causa comum, indo além de algo que apenas se tem. Trata-se de uma perspectiva situada entre o que eu tenho e o que sou, pois «se meu corpo é mais do que um objeto que eu possuiria, não se pode mais dizer que ele seja eu-mesmo: ele está na fronteira do que eu sou e do que eu tenho » (Merleau-Ponty, 1936/1997, p. 39), no limite do ser e do ter. Merleau-Ponty vê aí um movimento entre o «ser» e o «ter» que define a condição humana. Enquanto que ele é meu corpo, ele não é como o dos outros. Ele é um ser ambíguo, uma coisa que, ao mesmo tempo, é nossa e que também nós somos (Barbaras, 2005). O corpo próprio tem seu «modo de existir particular» (Barbaras, 2008, p. 69) para além de uma objetificação. O corpo próprio é o nosso corpo e o é no sentido da intimidade com o corpo que vivemos, sentimos e experienciamos como nosso. Merleau-Ponty propõe uma fenomenologia do próprio corpo que enfatiza a realidade ambígua do corpo que é, ao mesmo tempo, sentiente e sentinte, objeto e sujeito, tocante e tocado. Até mesmo o termo corpo é ambíguo, pois é, ao mesmo tempo, um corpo como os outros (Körper), mas também um corpo vivido (Leib) que se distingue dos outros pelo fato de destacar a experiência vivida em sua habitação sempre corporal. Essa orientação está presente de maneira significativa em diversos trabalhos posteriores de Merleau-Ponty e nos conduz à distinção entre o corpo objeto e o corpo sujeito. Vivido em primeira pessoa, o corpo sujeito conduz à experiência mesma do corpo, ao vivido na sua dimensão sensível, particular e espaço-temporal encarnada no mundo, sempre movido pela intencionalidade e pela subjetividade. Já o corpo objeto remete ao «modo de ser 6 de uma coisa» (Dupond, 2007, p. 38), podendo ser decomposto, estudado pelas ciências e observado pelos outros e por nós mesmos. Dizer que temos um corpo não significa ignorar a condição de sujeito. O corpo próprio é, necessariamente, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Entretanto, Merleau-Ponty considera que «a distinção do sujeito e do objeto é embaralhada no meu corpo» (Merleau-Ponty, 1960, p. 166). Há uma inversão e uma mistura constante dos papéis de sujeito e de objeto no corpo (Barbaras, 2005, p. 207). A ambiguidade encarnada no vivido corporal pode parecer natural, especialmente se considerarmos o equilíbrio entre o que temos e o que somos. No entanto, um desequilíbrio pode existir e abrir um espaço para experiências psicopatológicas. A relação entre o corpo e a alimentação é complexa, pois, para o homem, esse ato tem um significado que vai além do próprio alimento e que está ancorado no próprio corpo. Há sempre uma posição "pessoal" em relação ao comer, o que significa dizer que cada um de nós tem um estilo particular resultante da relação com o mundo, com os outros e com a própria comida. Compreendendo o transtorno alimentar como uma "forma de existência" (Merleau- Ponty, 1945/2010, p.787) cujo corpo é a via de expressão, na experiência anoréxica poder-se- ia-se dizer que o corpo objeto é evidenciado. Os atos de comer estão muito relacionados com a mudança do corpo, com a possibilidade de o sujeito engordar e com a visão que outros carregam dele: é o corpo para os outros. Ainda que o sujeito tenha fome, comer é uma ameaça e, por vezes, não é o acontecimento desejado. A fome propriamente dita é imposta por este sujeito a si mesmo, é uma necessidade cujas implicações ultrapassam a necessidade propriamente dita. Na anorexia experiencia-se a fome, luta-se contra ela, impedindo que ela seja suficiente para impor o ato de comer. Ter ou não ter fome não é uma escolha que o sujeito possa controlar constantemente. Quando o sujeito come ele "se confronta com a alteridade do que ele não é" (Legrand & Taramasco, 2016, p. 310), pois se trata de uma injunção que ele não quer se assujeitar. Pode-se dizer que as experiências de comer ou mesmo de sentir fome são vivenciadas pelo corpo sujeito e "posicionam inevitavelmente o sujeito diante do outro" (p. 311), sentido originário desde o nascimento. A ação de não comer o suficiente na anorexia demonstra o papel simbólicodo comer e a ameaça que vai além do seu valor nutricional. Além disso, em casos mais graves, há uma distorção da própria imagem do corpo. O desequilíbrio entre o corpo sujeito e o corpo objeto parece criar essa distorção, uma distância, entre o que é visto e aquele que vê e é a marca da ambiguidade do corpo e da sua constituição mundana. A evidência é colocada no corpo objeto e o corpo sujeito, ainda presente, é dissonante, pois o olhar do outro desempenha um papel crescente. 7 No caso da experiência hiperfágica, poderíamos sugerir que existe uma supressão momentânea do caráter próprio do corpo. O sujeito perde o controle sobre o ato de comer e vive a intensidade de um ato marcado pelo desejo de comer. Há uma espécie de curto-circuito na experiência corporal que se constitui no desequilíbrio entre corpo sujeito e corpo objeto. De um lado, há uma dificuldade em experienciar os sentimentos corporais diante do distanciamento do vivido corporal e também do outro. O sujeito perde, momentaneamente, sua via de ligação, de contato com os outros e consigo mesmo, que lhe forneceria a possibilidade de um controle em relação ao comer. Visa-se o ato de comer, “é preciso” comer de forma imediata. A reaparição, em seguida, do corpo objeto é a condição de possibilidade da culpabilidade por vezes vivida. Ela existe em função de uma vulnerabilidade que se instaura a partir do olhar do outro ou mesmo simplesmente da iminência deste olhar na sua dimensão antropológica: « os comportamentos alimentares são carregados pelas imagens do corpo e as imagens do mundo » (Charbonneau & Moreira, 2013, p. 537). Reconhecendo a ambiguidade do corpo, é possível perceber, através das contribuições de Merleau-Ponty, o risco de se perder o equilíbrio entre o corpo que somos e o corpo que temos. No caso dos transtornos alimentares, a circularidade originária e simplificada fome- alimentação-saciedade não é evidente e esta dinâmica se torna a origem ou mesmo o índice de muito sofrimento. Não se pode reduzir toda a problemática dos transtornos alimentares ao “comer”. No entanto, se as alterações se referem a essa experiência, ela tem um significado. Devemos manter nossa atenção no corpo, mas sabendo que esse corpo é sujeito e também objeto no mundo e para o mundo; faz parte de uma história e a compõe ao desempenhar um papel sempre ambíguo. Tudo o que acabamos de descrever está ancorado no próprio corpo; entender o (des)equilíbrio entre ser e ter um corpo nos parece fundamental no caso dos transtornos alimentares. O esquema corporal: a arquitetônica da corporeidade Do Fenomenologia da percepção aos últimos escritos, Merleau-Ponty critica, discute, explora e define a noção de esquema corporal que se mostrou fecunda para a construção de outros conceitos como o da carne. Ele teve o mérito de ter introduzido na filosofia fenomenológica essa noção (Petit, 2010), até então, usada apenas por neurologistas e psiquiatras. Esta noção se tornou cada vez mais importante e mais explorada por Merleau- Ponty, seja para a definição de seu percurso teórico, seja para a elaboração e sedimentação de 8 outros conceitos. Trata-se de um instrumento teórico indispensável para a germinação do projeto ontológico de Merleau-Ponty (Veríssimo, 2012). Desde o início de sua obra Merleau-Ponty se distancia das definições cognitivistas do esquema corporal como representação para abordar uma compreensão pré-reflexiva, expressiva e sempre ligada ao mundo. Ele considera que o esquema corporal é "uma maneira de expressar que meu corpo está no mundo" (Merleau-Ponty, 1945/2010, p. 780). O esquema corporal "diz respeito a todo o corpo, a todas as suas dimensões vitais, suas possibilidades de expressão e relação com o mundo" (Saint Aubert, 2013, p. 84), ele está em interação consigo mesmo e com o mundo. Tendo um papel de organização, o esquema corporal é, para Merleau-Ponty, "a arquitetônica de uma corporeidade que arquitetura o mundo" (Saint Aubert, 2013, p. 18) e isso se dá através de um tecido relacional que envolve o corpo, o mundo e outros. Nos cursos realizados na Sorbonne, Merleau-Ponty aborda o caráter intersubjetivo do esquema corporal. Ele se interessa pela gênese da percepção do outro, utilizando diferentes aportes da psicologia, encontrados, em particular, nos trabalhos de Wallon e Piaget (Saint Aubert, 2013). Em seu curso Estrutura e conflito da consciência infantil, Merleau-Ponty defende a existência de uma unidade do corpo sempre em relação com o mundo. Trata-se de uma dimensão sensível vivida em um espaço de experiência que transcende as fronteiras de nós mesmos e alcança o mundo. O esquema corporal está "ligado a todo o campo da expressividade animal e humana" (Saint Aubert 2013, p. 73). Desde a infância, essa expressividade apresenta-se como condição de abertura original ao mundo, polarizada pela relação com os outros. O esquema corporal é «portador de significações» (Merleau-Ponty, 1953/2011, p. 162). A partir de um processo de adaptação, ele «se adapta ao mundo para se transfigurar e para transfigurá-lo no mesmo movimento; corpo e mundo se transfiguram mutuamente, se configurando um ao outro» (Saint Aubert, 2013, p. 108). Trata-se de uma metamorfose mútua, de uma dupla afetação, uma invasão de um sobre o outro. Em seu curso sobre O Mundo Sensível e o Mundo da Expressão (1953), Merleau- Ponty considera o esquema corporal como um esquema inter-corporal. A influência do trabalho de Schilder sobre o seu pensamento tornou-se importante e se apresenta, a partir daí, como a base da sua posição filosófica: "o esquema corporal tem uma estrutura libidinal e é habitado em profundidade pelas questões da relação com os outros" (Saint Aubert 2013, p. 121). Essa estrutura libidinal tem uma dimensão importante que afeta nossa relação com o mundo. Em outras palavras, a libido é "o princípio animador do esquema corporal" (p. 123). Este corpo tem sentidos e sempre deseja. Deve-se notar que Merleau-Ponty substitui a libido 9 pelo desejo e insiste na dimensão verdadeiramente relacional do esquema corporal. Tal evolução implica cada vez mais na articulação entre a vida sensório-motora e a vida desejante. A explicitação do esquema corporal revela uma relação consigo mesmo, mas ainda associada a uma relação com os outros. Existe um componente afetivo mais importante que reflete a instalação de uma relação com os outros. O caminho audacioso proposto por Schilder seduziu Merleau-Ponty. Para ambos, o esquema corporal nunca está isolado; existem trocas permanentes, um comércio incessante apoiado por sua capacidade de "destruir-se e construir-se". Merleau-Ponty não abandona a dimensão motora que se tornou importante, especialmente, no Fenomenologia da percepção, mas, a partir de 1953, intensifica a orientação de seu pensamento para o desejo e a relação do corpo com o mundo. É o esquema corporal que é responsável pela tessitura relacional e possibilita a relação com o mundo. Nos cursos sobre A Natureza, Merleau-Ponty revela plenamente sua reflexão sobre o esquema corporal, sobre a intercorporeidade e sobre a questão do outro. Assim, esse progresso e aprofundamento ao longo de suas obras abrem a possibilidade de novas perspectivas sobre a questão dos transtornos alimentares. Retomando aqui sua tese de 1945, Merleau-Ponty defende nesse trabalho o caráter intencional do esquema corporal e enfatiza a dinâmica vivida, a experiência propriamente. Isso indica que há uma experiência vivida no corpo e pelo corpo que leva à construção do esquema corporal. Essa dimensão intencional implica uma abertura que é construída na relação entre o corpo e o mundo. Os significados são produzidos nessa relação e são vividos corporalmente. A unidade não diz respeito apenas ao corpo, resulta do (co)pertencimento do corpo e do mundo. Esta unidade não significa necessariamente harmonia, pois setrata de uma intensa (co)relação em movimento. Essa composição tem uma tensão dialética que tende a estabelecer um movimento de trocas e a ausência desse movimento pode não ser, poderíamos dizer, saudável na medida em que pode produzir um modo desorganizado de ser-no-mundo. Embora o estudo dos transtornos alimentares nunca tenha sido o objetivo de Merleau- Ponty, a concepção que ele propõe sobre o esquema corporal pode ser muito útil para compreendê-los, sendo considerados como uma espécie de falha ou mesmo uma distorção desse processo de significação. O esquema corporal é parte dessa construção que é aberta e não se limita apenas ao próprio corpo, ao indivíduo. Vivenciar um transtorno alimentar está associado a uma operação existencial ancorada na adesão sujeito e mundo, corpo e mundo. O esquema corporal não é uma simples construção individual, os sintomas não são produções de um sujeito isolado e não podem ser considerados como tais, mas como aquilo que permite revelar a instalação do corpo no mundo. 10 A percepção do próprio corpo e a percepção exterior compõem nosso esquema corporal, não podem ser isolados também nos transtornos alimentares. O olhar sobre o mundo e sobre os outros corpos torna possível e molda a maneira como olhamos para nós mesmos e para o mundo. É preciso, então, ir além do comportamento, sem ignorá-lo, e abordar os significados sustentados pelo esquema corporal. Vários comportamentos, como aqueles presentes na experiência anoréxica, por exemplo, quando não se quer comer mesmo quando há fome, na experiência bulímica em que se vomita após um episodio hiperfágico, na experiência obesa em que podem existir episódios de ingestão alimentar significativos ao longo de um episódio de perda de controle do ato de comer, sustentados pela ação do esquema corporal que permite a instalação e organização do corpo no mundo. É uma dinâmica que, nesse caso, não é "positiva", não é regulada e pode levar à produção de sofrimento no sujeito: é o esquema corporal que dá condição para a ação. Existe de fato um desejo na gênese desses modos de ser, mesmo que esse modo de ser seja patológico, como nos exemplos citados; esse desejo se organiza, se apresenta e é produzido de modo intercorporal. O esquema corporal permite implantar o espaço expressivo enquanto incorpora um certo número de coisas que se tornam familiares através do hábito. Integrar tudo não significa, necessariamente, integrar bem ou ainda significar bem. Vivemos um circuito de incorporação. Estamos acostumados a comer desde o nascimento de acordo com um processo de regulação e de "evolução". Mas isso não é tão simples quanto parece, porque cada indivíduo tem sua própria dinâmica condicionada pela necessidade, mas também pelo desejo. As pessoas que sofrem de transtornos alimentares também têm um modo singular de ser e é o esquema corporal que opera essa dinâmica, organiza-a em relação ao mundo e, neste caso, em relação à alimentação. O esquema corporal merleau-pontyano está sempre procurando uma organização, um equilíbrio a partir dos significados e o desejo sempre intervém. Ele se organiza intercorporalmente em um movimento dialético entre o sujeito e o mundo, seu mundo, e isso implica que a problemática dos transtornos alimentares não deve ser abordada apenas como um modo de (des)organização do esquema corporal na esfera individual, mas como uma alteração sempre instituída nessa radicalidade de trocas sujeito e mundo, entre corpos no plural. A potência da carne: um aprofundamento da corporeidade A noção de carne permite que se vá "em direção ao sentido mais profundo da 11 corporeidade" (Saint Aubert, 2013, p. 16). Nas palavras de Merleau-Ponty «é através da carne do mundo que se pode finalmente entender o próprio corpo» (Merleau-Ponty, 1964, p. 299). Seu poder está ligado à sua ousadia na medida em que sinaliza e enfatiza a radicalidade de nossa (co)existência no mundo e de nosso (co)pertencimento. Na medida em que possibilita a compreensão e o aprofundamento do corpo próprio, a carne nos permite considerar as experiências psicopatológicas de maneira mais ampla. Encoraja-nos a procurar nesse tecido carnal as fontes desses modos de sofrimento. Trata-se de compreender aqui os transtornos alimentares de uma maneira que radicaliza nossas relações e a ausência de fronteiras rígidas entre o sujeito, o mundo, os outros e a cultura. A noção de carne torna-se um conceito, e até mesmo uma categoria ontológica fundamental, pois Merleau-Ponty se dá conta da insuficiência do que está expresso no Fenomenologia da percepção sobre a unidade do corpo fenomenal e do corpo objetivo. Para Dupond (2001), ao invés de diferenciar corpo sujeito e corpo objeto, a noção de carne permite escapar do sentido habitualmente atribuído ao corpo, instituindo a carne como matéria comum que assegura a inseparabilidade do corpo vidente e do mundo sensível. (In)visibilidade e invasão: a ancoragem corporal da carne As principais referências quando a discussão diz respeito à noção de carne são O visível e invisível, juntamente com suas notas de trabalho. Desde o início desta obra inacabada, Merleau-Ponty se concentra no visível. Na medida em que o mundo é o que vemos, "temos que aprender a vê-lo" (Merleau-Ponty, 1964, p. 18), afirma o filósofo. Seu objetivo é descobrir o sentido de ser no mundo. Esse sentido se dá no mundo em uma intersecção originária com o universo dos outros. Nosso ser é sempre atingido pela visão que os outros têm de nós (Merleau-Ponty, 1960; Saint Aubert, 2013). Nosso mundo é visual e tem um campo e um alcance aberto e inesgotável, tornando concreta a atmosfera de nossas vidas. O homem está essencialmente no mundo por sua corporeidade, isto é, graças a essa condição mundana do corpo, ele pode ter acesso ao mundo e se institui como ser (in)visível. A carne se apresenta de modo quiasmático em seu caráter eminentemente ambíguo que não deixa espaço para dicotomias. Como “estilo de ser” (Saint Aubert, 2013, p. 111), a carne é, ao mesmo tempo, um modo de habitar o mundo e de considerá-lo como um "modo singular de ser um corpo cuja característica mais essencial e existencial é de ser capacidade de abertura a outrem e ao mundo" (Saint Aubert, 2016, p. 324-325). Isso evoca uma "experiência de nossa condição" (Saint Aubert, 2004b, p. 201), instituída como uma troca “entre carnes” - 12 um comércio constituído na invasão entre "eu e o mundo percebido, entre eu e os outros" (p. 201). Como um modo de expressão, a carne expressa o ser e é animada pelo desejo em sua ancoragem corporal. Estamos no mundo, com nosso corpo, sendo do mundo, isto é, da mesma carne. A noção de carne expande a noção de corpo. Se evocamos a carne neste artigo, é porque consideramos que tal noção pode permitir uma melhor compreensão dos transtornos alimentares na medida em que permite o reconhecimento da radicalidade e o caráter obrigatório de nossa inserção no mundo em seu caráter intersubjetivo. Ficar doente vivenciando um transtorno alimentar não é uma atribuição individual, não é apenas um ato comportamental, mas um modo de estar no mundo cujas condições de possibilidades também são fornecidas por este mundo. Este corpo de carne não deixa de afetar o mundo e de ser afetado por ele em sua profundidade. O corpo é uma marca, ou um sinal, da invasão que assombra a relação do corpo com o mundo. Se o corpo fenomenal implica na experiência vivida de um sujeito em seu corpo e se o corpo objetivo permite a intersubjetividade e a dupla experiência de ser visto e de se ver, apesar da separação didática, eles giram em torno de si ou ainda invadem-se mutuamente na dinâmica corporal (Merleau-Ponty, 1964). No entanto, a violência da invasão pode levar a condições que permitem um desequilíbrio entre o corpo que somos e o corpo que temos (ou deveríamos) ter. O que é vivido no e pelocorpo (nosso corpo) é invadido pelos outros e pelo mundo que não cessam de nos transgredir, de nos invadir. Esta invasão da carne, que marca a relação corpo e mundo, (des)apropria a dimensão própria do corpo na medida em que esta suposta dimensão própria não cessa de ser, ao mesmo tempo, usurpada e instituída nessa tessitura carnal – uma ligação inalienável, ativa e passiva. As formas corporais, o olhar dos outros e de nós mesmos, os julgamentos, para mencionar apenas alguns exemplos, revelam a impossibilidade de sair da dinâmica atual que coloca o corpo no centro das preocupações do sujeito contemporâneo. Os transtornos alimentares podem ser vistos, ao mesmo tempo, como um sinal e como um resultado dessa invasão que coloca o corpo como alvo e "produz" um sujeito, muitas vezes, perdido em sua própria dinâmica corporal. Para reconhecer essa invasão, precisamos de uma outra maneira de enxergar que possa, ao mesmo tempo, compreender esses modos de existência em sua dimensão particular e identificar suas raízes em um tecido carnal que transgride e marca essa subjetividade. 13 O fenômeno do espelho como extensão da relação com o corpo Nas Notas de trabalho do livro O visível e o invisível, Merleau-Ponty afirma: "a carne é um fenômeno do espelho e o espelho é a extensão da minha relação com o meu corpo" (Merleau-Ponty, 1964, p. 309). Esta frase ilustra a posição recorrente que ele assume em seus últimos escritos em relação ao "espelho", uma figura frequentemente evocada na psicanálise, e a base sobre a qual o conceito de carne é forjado. O espelho destaca o fato de que a fenomenalidade da carne pode confundir o corpo objetivo e o corpo fenomenal. Uma comunidade é estabelecida entre o corpo vivido e sua imagem "exterior", revelando a condição dual da carne (de estar aqui e ali, dentro e fora). Podemos dizer que, segundo Merleau-Ponty, a carne é um "fenômeno do espelho" que revela nossos modos de ser-no- mundo e também a visibilidade que nos sustenta e estabelece a ligação (ou mesmo por vezes a mistura) entre o corpo objeto e o corpo sujeito. O espelho, de fato, além de evocar a visibilidade do corpo próprio, introduz uma problemática na medida em que nos obriga a enfrentar nosso corpo e também nossas relações com os outros e com o mundo: ele revela a fenomenalidade da carne. Evidentemente, este espelho que nos coloca em “cena” como "eu" desde a infância, como Wallon, Lacan, Merleau-Ponty e muitos outros demonstraram, continua a moldar-nos e a engajar-nos em nossa condição de mudança, de inacabamento e de vulnerabilidade ao longo de nossas vidas. A leitura de Wallon permitiu a Merleau-Ponty compreender que o esquema corporal desde sua origem investe e é investido por outros esquemas e que isso é revelado pela experiência do espelho (Verissimo, 2012), mostrando o caminho proposto para a representação simbólica do corpo próprio e também sua unificação. Merleau-Ponty, no entanto, critica, apesar de tudo, essa dimensão waloniana que lhe parece demasiado intelectualista, na medida em que, na sua opinião, a criança frente ao espelho, quando consegue estabelecer uma distância sobre a sua imagem, vive uma reestruturação de sua experiência. Com o processo de individualização do corpo próprio, atrelado às experiências especulares e concordando com o que a psicanálise subsequentemente lhe trouxe, especialmente os aspectos defendidos por Lacan, Merleau-Ponty vê a possibilidade de progresso na questão do espelho e suas implicações. O estágio do espelho lacaniano mostra o processo de "descentralização" da criança e, além disso, sua abertura para o mundo (Verissimo, 2012). Esta ideia convém a Merleau-Ponty na medida em que alcança as "relações do ser com o mundo, com os outros" (Merleau-Ponty, 1997, p. 204). Assim, uma função narcisista se instala, ao mesmo tempo, que a intrusão do 14 outro, do mundo. Há uma tensão, "uma reestruturação do esquema corporal" (Merleau-Ponty, 2001), o que demonstra a importância da imagem especular no desenvolvimento infantil e na aprendizagem. No entanto, isso vai além do cognitivo. Uma frase de Merleau-Ponty chama a atenção: "Reconhecer sua imagem no espelho, é para ele (a criança) aprender que pode haver aí um espetáculo de si mesmo (...) ele se torna capaz de ser um espectador de si mesmo. Com a aquisição da imagem especular, a criança percebe que é visível, para si e para os outros" (Merleau-Ponty, 1997, p. 202. Essa visibilidade tende a ser perpetuada, vivida e cada vez mais misturada em função da ambiguidade vidente-visto, uma marca da carne, da nossa carne. Ser visível é também ser julgado, avaliado e obrigado a estar em um corpo que está no mundo e não pode se esconder. Os transtornos alimentares revelam um sujeito que sofre com seu corpo, com seu corpo visto no espelho, com seu corpo que não deixa de ser visível (por si mesmo e pelos outros) e que é vivido como se ele não estivesse de acordo com o corpo "ideal", o corpo desejado; a contemplação do corpo sem sofrimento tornou-se impossível. Ao ganhar visibilidade, o "corpo está sob a jurisdição do visível", afirma Merleau-Ponty (2001, p. 527). Se o corpo é o que se destaca como o mais visível e o ponto de ancoragem no mundo, ele está constantemente sujeito a julgamentos baseados nessa visibilidade. No entanto, o que vê (os outros) e o que é visto (o corpo do sujeito) não é apenas uma impressão dos outros sobre o assunto e vice-versa, mas o resultado de nossa dinâmica relacional e cultural. Toda essa dinâmica, ressaltada pelo espelho, possibilita entender como o desequilíbrio, o confronto entre esse corpo que temos e o corpo que somos é perturbado pelo corpo visto no espelho. Esse corpo de carne que é refletido pelo espelho é nosso corpo, mas também é o modo como é visto pelos outros, pelo mundo. O espelho revela as marcas de nossa carnalidade e os transtornos alimentares revelam o impacto da visibilidade sobre o modo de experienciar o próprio corpo. Há uma vulnerabilidade instituída pelo visível em que o sujeito perde o caráter próprio do corpo que se encontra perdido entre aquilo que se é e aquilo que se tem. Outra influência importante para Merleau-Ponty é a de Paul Schilder, autor já mencionado anteriormente na discussão sobre o esquema corporal. Sua abordagem do espelho, independente da de Wallon e considerando que ele não conhecia o trabalho de Lacan, trata a incompletude como uma característica permanente do esquema corporal que afeta a estruturação identitária. Assim, a concepção de ser um corpo, nosso corpo, é ampliada se admitirmos que a incompletude é uma marca, uma característica, o que equivale a dizer que o “ser é fundamentalmente inacabado, o que induz uma correlação secreta entre ser seu corpo e ser no mundo, ser para o outro" (Saint Aubert, 2013, p. 187). É a nossa "incompletude" que 15 nos fascina diante do espelho. Se o nosso corpo (ou mesmo a imagem que temos dele) não mudasse, não haveria necessidade de olhar para ele, de contemplá-lo com frequência diante do espelho. Temos uma "apetência pelo espelho" (Schilder, 1968, p. 285). Esse inacabamento carrega um peso: nos expropria do nosso corpo próprio e pode perturbar nossa relação com os outros, com o mundo. Em um manuscrito inédito e não publicado, Merleau-Ponty faz a pergunta: "Por que construímos espelhos: para nos ver, para converter o vidente em visível, para completar nosso corpo" (Merleau-Ponty, M. Merleau-Ponty, « Notes de préparation du cours (cours du jeudi, janvier-avril 1961) », in Notes de cours 1959-1961, cours du 2 février 1961, p. 161; cité dans E. de Saint Aubert, op. cit., 2013, p. 198). O espelho persegue a dinâmica vidente-visto e nos conduz uma necessária tentativa de completar um corpo sempre inacabado. O sujeito que vivencia um transtorno alimentar é, particularmente, afetado e vive esse processo de forma aguda, rejeitando, questionandoe, sobretudo, sofrendo com o corpo e com a dinâmica que envolve os atos alimentares. Em O Olho e o Espírito, após ter indicado as sensações evocadas por Schilder durante a observação diante do espelho, Merleau-Ponty enfatiza o "jogo" que se instala frente ao espelho, expondo a carne e a dinâmica do visível (e do invisível das relações). O “homem é espelho para o homem" (Merleau-Ponty, 1964, p. 34), diz ele. Com esta afirmação, ele postula o espelho como "o instrumento de uma magia universal que transforma as coisas em espetáculos, espetáculos em coisas, eu em outros e outros em mim" (p. 34), ou seja, para além de um objeto, o espelho sustenta um poder de mudança e de posicionamento do sujeito diante de si e dos outros; ele perturba essa incompletude e acentua a mistura de nosso tecido carnal. Diante do espelho, não há apenas nós mesmos, não há apenas um corpo objeto refletido, tudo está embaralhado. Merleau-Ponty amplia assim o fenômeno do espelho em direção a um circuito de relações, de (co)pertencimento cujo "olhar do outro é espelho, os outros seres humanos são ‘espelho para mim por seus corpos’" (Saint Aubert, 2013, p. 197). Existe uma suscetibilidade, e mesmo uma vulnerabilidade, em função da condição de ser espelho de nossa carne, o que revela nossa relação com o mundo sempre marcada por nossas projeções e introjeções. A carne faz de toda coisa um espelho e se torna um espelho dos outros e do mundo. É um "conjunto circular" de direções de sentido. Este corpo de carne denota a cumplicidade do sujeito com o mundo (Zielinski, 2002), ou seja, o impacto recíproco do mundo sobre o sujeito e do sujeito sobre o mundo. O espelho mostra esse impacto e sua importância em um mundo, nosso mundo, assombrado pelo outro, mas que exige e também impõe um engajamento, ao mesmo tempo, ativo e passivo. No caso dos transtornos alimentares, vive-se uma radicalidade 16 do impacto do olhar do outro que afeta o modo de ser-no-mundo e o modo de experienciar o próprio corpo. Aquilo que se vê no espelho revela não apenas a forma corporal, mas também o modo de se relacionar com o próprio corpo, com os outros, com a comida. Sem dúvida, nossos atos alimentares são sustentados, e também sustentam, nossas relações. Há um longo percurso entre o fato de ser nutrido durante a infância e alimentar-se sozinho mais tarde, um percurso que conduz a ser capaz de escolher, medir e controlar o que se come. Uma de suas características é a entrada do corpo como sujeito e objeto, sempre inacabado, sempre mudando, mas visado e controlado cada vez mais. Assim, os modos de ser são construídos em relação com o mundo estabelecido e vivido por corpo que deve comer para (sobre)viver. Um corpo que põe em questão os atos alimentares, sempre em determinada situação. Evidentemente, é preciso comer, mas as consequências desse ato (ou mesmo de sua ausência) vão muito além da sobrevivência - o corpo está em cena em seu movimento com a tessitura carnal que reflete esse poder de incorporação. O poder de incorporação da carne A maneira como os outros nos veem nos afeta, o que pode, por exemplo, perturbar nossa maneira de nos vermos, especialmente se considerarmos a potência, inclusive introjetiva, desse olhar do outro. Podemos ver o mundo e os outros, provavelmente, por esse ângulo e com certa tendência projetiva, como parte de um jogo circular regido por incorporações. Trata-se também, é preciso se dizer, de uma dinâmica que pode mudar ou ainda que está sempre mudando diante do nosso (co)pertencimento e do contato com os outros no mundo. A ausência dessa abertura pode ser, inclusive, um sinal de um modo de vida patológico ou rígido diante de nossa mundanidade. Nosso corpo seria então afetado pelo outro, instalando uma dinâmica interacional marcada pela incorporação. Fuchs (2016) situa a incorporação como "uma característica invasiva do 'vivido' ou corpo subjetivo (Leib) que sempre transcende a si mesmo e se conecta com o ambiente" (p. 198). Na medida em que ele aponta uma incorporação mútua, ele mostra que em nossas relações o corpo vivido se estende e se prolonga nas relações com outros corpos. Em outras palavras, a evidência da encarnação, manifestada, sobretudo, pelo olhar, emerge da ação mútua de um sobre o outro. Somos mutuamente afetados pela encarnação e presença do outro na estrutura quiasmática do nosso corpo, o que permite nossas incorporações. Trata-se de um corpo que sente, expressa e afeta e é afetado pelo outro em uma dinâmica tecida pela carne. 17 Merleau-Ponty assume um viés fenomenológico da incorporação diferente daquele da psicanálise que a coloca em relação aos objetos e à sua assimilação no nível do corpo, considerando, principalmente, as relações parentais e a fase oral. Trata-se, nos termos psicanalíticos, de um processo que faz penetrar e manter um objeto no interior de seu próprio corpo, o que constituirá um objetivo pulsional e os modos característicos da fase oral. No entanto, deve-se salientar que a ênfase não está em uma zona erógena, como descrito por Freud na primeira edição de Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, mas em um modo de relação (incorporação). Essa relação, frequentemente utilizada em discussões sobre transtornos alimentares, concentra-se na atividade oral e na ingestão de alimentos, mesmo se outras áreas e outras funções também possam estar implicadas. A incorporação é trazida ao nível de uma experiência corporal, ainda que ela tenha elementos fantasiosos. A discussão psicanalítica da incorporação foi de grande interesse para Merleau-Ponty, que se refere a ela, em particular, nos cursos da Sorbonne em que ele considera a psicologia da criança. Não obstante, sua direção muda e, digamos, "incorpora" outros elementos na medida em que sua concepção de carne evolui e reconhece seu poder de incorporação. Colocar a incorporação dentro da carne deve ser considerado como uma ampliação no sentido de colocá-la em um tecido mais amplo, incluindo o sujeito, o mundo, os outros, a cultura, etc. Assim, a incorporação está ancorada no vivido corporal a partir de nossa tessitura carnal. Temos as marcas de nossas incorporações em um jogo que constitui nossos modos de ser-no-mundo, nosso estilo. Com a preocupação de não hipostasiar excessivamente, podemos dizer que a incorporação é um caminho na psicopatologia e, mais especificamente aqui, para compreender os transtornos alimentares. Quando se come, há uma incorporação que traduz a constituição desse ato e também, de maneira concreta, o fato de que um objeto vindo de fora, exterior, é colocado para dentro, passa para o interior do próprio corpo: a comida se torna corpo e nesse sentido, é incorporado. Entretanto, essa incorporação não é apenas no nível do corpo objeto (Körper), atinge o sujeito em sua totalidade e também implica seus modos de relação com os outros, com o mundo. Mas tudo é incorporado? Nesse jogo ativo-passivo, há rejeições e, portanto, impossibilidade de receber e assimilar tudo, seja no nível desse corpo objeto, seja no nível relacional. Incorporar tudo seria da ordem do excesso e nada a incorporar da ordem da falta. Assim, o desequilíbrio da incorporação pode nos levar tanto à experiência psicopatológica por sua superação quanto por sua ausência. Os atos alimentares revelam uma direção de sentido e, nos transtornos alimentares, há uma concentração de atenção muito ampla sobre "comer" (ou não "comer") e sobre o corpo que está em ação. Há confusão e oposição entre falta de controle e rigidez em relação a "comer". O sofrimento não se origina 18 apenas nos atos alimentares em si, mas no que eles traduzem por sua expressão. Essas expressões, esses modos de ser, são tecidos pela carne que nos coloca nesse circuito infinito de incorporação. Conclusão Ao longo deste artigo, pudemos perceber a fertilidade da fenomenologia de Merleau- Ponty para oestudo dos transtornos alimentares. Sua abordagem fenomenológica, traçada através do corpo, e se estendendo aos modos de organização com o esquema corporal e à radicalidade da tessitura carnal que evidencia nosso (co)pertencimento com e no mundo se evidencia nos transtornos alimentares. Insistimos na importância de ir além do corpo próprio sem abandoná-lo, considerando a fenomenologia de Merleau-Ponty em toda a sua amplitude, o que nos proporciona uma lente mais ampla para a compreensão dos transtornos alimentares inscritos na estrutura do corpo. O esboço de uma fenomenologia clínica dos transtornos alimentares, inspirada nas contribuições de Merleau-Ponty, coloca em cena o modo de ser corpo em seu enraizamento no mundo. Ao focar a experiência, ressaltamos a alteração do modo de se experienciar o corpo nos transtornos alimentares que se instaura a partir da dinâmica intersubjetiva. Trata-se de uma experiência corporal que se compõe a partir dos hábitos, que revela uma objetificação do corpo que conduz a um desequilíbrio entre o corpo sujeito e o corpo objeto, que se (des)organiza intercorporalmente através do esquema corporal e que se constitui em sua carnalidade marcada pela (in)visibilidade, pelo espelho e pelo circuito interminável de incorporações. Estas pistas, que merecem ser exploradas através de pesquisas com aqueles que vivenciam os transtornos alimentares, podem ser seguidas como lente e como inspiração na busca de compreender os diferentes modos de funcionamento que regem os transtornos alimentares. Referências Barbaras, R. (2005), De la phénoménologie du corps à l’ontologie de la chair, in: J.-C. Goddard (org.), Le Corps, Paris, Vrin, 207-250. � Barbaras, R. (2008), Introduction à une phénoménologie de la vie, Paris, Vrin. � Charbonneu, G., Moreira, V. (2013), Fenomenologia do transtorno do comportamento hiperfágico e adicções, in: Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., 16, 4, 529-540. � 19 Corbin, A., Courtine, J-J., Vigarello, G. (2005), Préface, in: G. Vigarello, Histoire du corps. 1. De la Renaissance aux Lumières, Paris, Éditions du Seuil, 07-12. Dastur, F. (2014), Penser ce qui advient, Paris, Les petits Platons, Coll. Les Dialogues de Petits Platons. Dupond, D. (2007), Dictionnaire Merleau-Ponty, Paris, Ellipses. � Fuchs, T. (2016), Intercorporeality and Interaffectivity, Phenomenology and Mind, 11, 194- 209. Legrand, D., Taramasco, C. (2016), Le paradoxe anorexique: quand le symptôme corporel s’adresse à l’autre, in: L’Évolution Psychiatrique, 81, 2, 309-320. Merleau-Ponty, M. (1960), Signes, Paris, Gallimard. Merleau-Ponty, M. (1964), Notes de travail, in: M. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible, Paris, Gallimard, 219-334. Merleau-Ponty, M. (1997a), Être et avoir, in: M. Merleau-Ponty, Parcours (1935-1951), Lagrasse, Verdier, 35-44. Merleau-Ponty, M. (1997b), Les relations avec autrui chez l’enfant, in: M. Merleau-Ponty, Parcous, 1935-1951, Lagrasse, Verdier, 147-229. Merleau-Ponty, M. (2001), Méthode en psychologie de l’enfant, in: M. Merleau-Ponty, Psychologie et pédagogie de l’enfant. Cours de Sorbonne 1949-1952, Lagrasse, Verdier, 465- 538. Merleau-Ponty, M. (2010), Phénoménologie de la perception, in: M. Merleau- Ponty, Œuvres, Paris, Gallimard, 665-1167. Merleau-Ponty, M. (2011), Le monde sensible et le monde de l’expression, Genève, MetisPresses. Petit, J-L. (2010), Corps propre, schéma corporel et cartes somatotopiques, in: A. Berthoz, B. Andrieu (orgs.), Le Corps en Acte, Nancy, Presses Universitaires de Nancy, 41-58. 20 Saint Aubert, E. de (2005), Le Scénario Cartésien. Recherches sur la formation et la cohérence de l’intention philosophique de Merleau-Ponty, Paris, Vrin. Saint Aubert, E. de (2013), Être et Chair I. Du corps au désir: l’habilitation ontologique de la chair, Paris, Vrin. Sichère, V. (1982), Merleau-Ponty ou le corps de la philosophie, Paris, Grasset. Verissimo, D. (2012), Sur la notion de schéma corporel dans la philosophie de Merleau- Ponty: de la perception au problème du sensible, Bulletin d’analyse phénoménologique, VIII, 5, 499-518. Zielinski, A. (2002), Lecture de Merleau-Ponty et Levinas. Le corps, le monde, l’autre, Paris, Presses Universitaires de France.
Compartilhar