Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Historiografia Vagner Carvalheiro Porto Revisada por Vagner Carvalheiro Porto (setembro/2012) É com satisfação que a Unisa Digital oferece a você, aluno(a), esta apostila de Historiografia, parte integrante de um conjunto de materiais de pesquisa voltado ao aprendizado dinâmico e autônomo que a educação a distância exige. O principal objetivo desta apostila é propiciar aos(às) alunos(as) uma apre- sentação do conteúdo básico da disciplina. A Unisa Digital oferece outras formas de solidificar seu aprendizado, por meio de recursos multidis- ciplinares, como chats, fóruns, aulas web, material de apoio e e-mail. Para enriquecer o seu aprendizado, você ainda pode contar com a Biblioteca Virtual: www.unisa.br, a Biblioteca Central da Unisa, juntamente às bibliotecas setoriais, que fornecem acervo digital e impresso, bem como acesso a redes de informação e documentação. Nesse contexto, os recursos disponíveis e necessários para apoiá-lo(a) no seu estudo são o suple- mento que a Unisa Digital oferece, tornando seu aprendizado eficiente e prazeroso, concorrendo para uma formação completa, na qual o conteúdo aprendido influencia sua vida profissional e pessoal. A Unisa Digital é assim para você: Universidade a qualquer hora e em qualquer lugar! Unisa Digital APRESENTAÇÃO SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 5 1 AS ESPECIFICIDADES DA HISTÓRIA ......................................................................................... 7 1.1 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................12 1.2 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................12 2 A HISTÓRIA COMO CONCEITO ................................................................................................... 13 2.1 Conceito Histórico, o que é? .....................................................................................................................................14 2.2 As Condições de Emergência da História dos Conceitos ..............................................................................15 2.3 Resumo das Escolas Historiográficas ....................................................................................................................16 2.4 Escola Russa ....................................................................................................................................................................16 2.5 Escola Italiana .................................................................................................................................................................17 2.6 Escolas Alemã e Espanhola .......................................................................................................................................17 2.7 Escola Anglo-Saxã ........................................................................................................................................................18 2.8 A Escola Francesa ..........................................................................................................................................................18 2.9 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................19 2.10 Atividades Propostas ................................................................................................................................................19 3 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA: O EXEMPLO DAS RELAÇÕES ESCRAVISTAS...... 21 3.1 A Contribuição de Gilberto Freyre .........................................................................................................................22 3.2 Uma Crítica à Teoria do Escravo-Coisa ..................................................................................................................24 3.3 O Escravo como Sujeito Ativo das Relações Escravistas ................................................................................26 3.4 Resumo do Capítulo ....................................................................................................................................................29 3.5 Atividades Propostas ...................................................................................................................................................29 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................... 31 RESPOSTAS COMENTADAS DAS ATIVIDADES PROPOSTAS ..................................... 33 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................. 35 Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 5 INTRODUÇÃO Caro(a) aluno(a), Este manual busca apresentar ao aluno do curso de História da Unisa, na modalidade a distância, os fundamentos da Historiografia como ciência, seus métodos de pesquisa, suas abordagens, o universo temático atual desta disciplina e sua relação com a prática do professor de História nos níveis fundamen- tal e médio do ensino. A disciplina Historiografia tem como meta a análise e a discussão do processo de construção do pensamento histórico e dos fundamentos teóricos e metodológicos das várias correntes historiográficas brasileiras. Muito do conteúdo trabalhado na disciplina Pesquisa em História II será rememorado, melhor, aprofundado, pois que temas como História Positivista, Marxista, Estruturalista e Nova História fazem parte da discussão das duas matérias em questão. A apostila se divide em quatro partes. Primeiramente se apresentam à discussão conteúdos vincu- lados ao fazer histórico, ao pensamento historiográfico que emerge no século XVIII, perpassa as filosofias da história do século XIX e culmina com as características que a Historiografia adotou ao longo do século XX. Segundo, discutem-se a história como conceito e, posteriormente a necessidade de se discutir e avaliar as condições para a emergência da História dos Conceitos. Terceiro, discutem-se as principais tendências historiográficas da Historiografia do século XX, destacando as escolas russa, italiana, alemã, espanhola, anglo-saxã e francesa. E quarto, dentre as tantas possibilidades de exemplificação de aborda- gem historiográfica no Brasil, optamos por evidenciar a construção historiográfica referente aos negros escravos desde o pensamento historiográfico do início do século XX, os conceitos inovadores de Gilberto Freyre, a crítica à construção historiográfica do escravo-coisa, culminando com os estudos atuais, alicer- çados especialmente na História Social. Acreditamos que se você trabalhar conosco essas questões todas que nos propomos a apresentar, ao final do curso você estará potencialmente preparado para realizar uma excelente pesquisa em Histó- ria. Bom estudo!!! Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 7 AS ESPECIFICIDADES DA HISTÓRIA1 Os historiadores têm em sua vida cotidiana a necessidade de “encontrar” o passado. Assim, como não vivenciou o processo histórico estu- dado, sua tarefa é procurar os fragmentos e, por meio destes, construir afirmações possíveis. Ao escolher determinado objeto de pesquisa, conse- quentemente, há que se considerar que o méto- do – a maneira na qual se movimenta em meio à documentação – não está separado da escrita – resultado do trabalho. E isso interfere na deter- minação do que seja a História, pois, felizmente, não se faz um trabalho dividido em duas partes: na primeira, são descritas as referências teórico- -metodológicas; na segunda, o “restante” da pes- quisa composto pelo conteúdo. Dessa maneira,as questões relativas à natu- reza da História não devem ser pensadas somen- te no resultado final do trabalho, mas sim de for- ma múltipla, isto é, no olhar em conjunto lançado para os objetos, os métodos e a documentação. A História deve ser perpassada de maneira reflexiva por estas análises, desta forma a Histo- riografia deve ser entendida como um pool de es- pecialidades como: dimensões (enfoques); abor- dagens (modos de fazer a História) e domínios (áreas de concentração e objetos possíveis). Esse exercício deve ser feito com riqueza de problema- tizações e com extensa bibliografia. Entendendo desta forma, do Iluminismo para os nossos dias, por exemplo, uma enorme perda de uma formação mais humanística e com- pleta ocorreu, pois as exigências da vida moderna vão estabelecendo mais e mais especializações, criando assim um universo fragmentado no que diz respeito à questão do saber. E sabemos que isso se acentuou definitivamente no século XX e, por dois caminhos, acabou contribuindo também para fragmentação da História: de um lado, a cres- cente especialização e, de outro, a fragmentação de expectativas (não existe uma única forma de ver as coisas). Isolado no seu pequeno mundo, o historia- dor deve enfrentar os riscos de sua hiperespecia- lização ao mesmo tempo que recebe estímulos sociais e institucionais para aprofundá-la cada vez mais. O historiador das últimas décadas do século XX viu-se assim autorizado, tanto pela tendência à hiperespecialização do homem moderno, como pelas novas modas historiográficas, a cuidar zelo- samente de seu pequeno canteiro como se nada mais importasse além de uma rosa rara. Há muito já se discutiu as referências das su- postas “divisões” em: História Econômica, História Social, História da Cultura, História das Mentalida- des etc., mas a amplitude efetiva da vida humana e da realidade social não se “enquadra” somente numa dessas compartimentações, daí a necessi- dade de que, embora cada campo tenha as suas especificidades, o historiador necessita buscar as “interconexões”; para tanto, não terá sucesso ple- no se não conhecer todos os enfoques possíveis. A História Demográfica é uma dimensão importante a ser examinada pelos historiadores e tem trazido muitas contribuições, especialmente a partir da década de 1950, quando ocorreu um entrelaçamento com a História Regional. Os pio- neiros foram os historiadores franceses, sobretu- do Coubert e Pierre Vilar. É igualmente um campo rico em reflexões, pois, ao ter como prioridade de análise a “população”, essa noção já traz em si um grande leque de possibilidades. À medida que vai conectando os aspectos mais especificamente re- lacionados às categorias populacionais (como a mortalidade ou a natalidade), com frequência ob- Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 8 tidos através de métodos estatísticos e de abor- dagem quantitativa, para depois relacionar estes aspectos de modo a dar a perceber a vida social de uma determinada comunidade, a História De- mográfica estabelece interfaces com a História Social. Para utilizar uma imagem mais eloquente, a História Demográfica vai se convertendo muito claramente em um tipo de História Social na razão direta em que a história da mortalidade vai deri- vando para uma história da morte, mostrando-se também neste particular a possibilidade de uma interface ainda mais específica com a História das Mentalidades. Nesse sentido, uma “boa” História Demo- gráfica obriga-se a dialogar com outros aspectos que ultrapassam a sua própria dimensão. Ainda que parta dos fatos demográficos, o historiador não pode deixar à margem os fatos culturais, eco- nômicos, políticos e antropológicos. A História da Cultura Material dedica-se aos objetos materiais em sua interação como os aspectos mais concretos da vida, correlacionan- do-os em seus usos e apropriações sociais. No- vamente, verificamos a necessidade de fazer co- nexões e a dificuldade de “enquadrar” os temas da História num único campo de conhecimento. Dessa forma, móveis, objetos decorativos, ferra- mentas, máquinas, matérias-primas que darão à luz objetos manufaturados, veículos que os trans- portarão ao longo de grandes avenidas e estradas com destino a determinados grupos de consumi- dores que por estes bens terão de pagar em moe- da sonante. Tudo isso pode ser objeto de uma His- tória da Cultura Material. O historiador da cultura material estará com frequência estudando o do- mínio da vida cotidiana, da vida privada, embora estes domínios também possam ser partilhados por historiadores voltados predominantemente para outras dimensões ou enfoques, como é tam- bém o caso da História das Mentalidades. Ainda que exista uma materialidade cultu- ral criada pelo homem, existe também uma mate- rialidade natural. Ao considerar que a sociedade estabelece contato com o mundo material, não se pode esquecer que já existia um universo antes de sua intervenção. A Geo-História lida com esse aspecto. Os trabalhos de Fernando Braudel e Le Roy Ladurie se inscrevem nesta perspectiva. Dadas as especificidades, as polêmicas teó- rica e metodológica trazidas pela História das Mentalidades, podemos constatar que, apesar de tratar de temas abordados por outros campos, essa “forma” de fazer história tem uma particulari- dade. É importante que tenhamos claro e enten- damos que não são, portanto, os domínios pri- vilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem o tipo de história que fazem, mas sim a dimensão da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo das repre- sentações coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo. Assim, os tratamentos que os historiadores das mentalidades têm empregado, como: abor- dagem serial, eleição de um recorte privilegiado e abordagem extensiva das fontes, têm contribuí- do para ampliar a concepção documental, o que propicia uma abertura aos modos de fazer Histó- ria, deixando inclusive marcas na Historiografia brasileira dos anos de 1980. Podemos também acrescentar aqui a dis- cussão existente no campo da Psico-história: campo definido e atravessado pelas preocupa- ções advindas da Psicologia. Citemos dois auto- res: Wilhelm Reich e Erich Fromm. O primeiro se propõe a desenvolver uma interação entre a ideo- logia e o inconsciente. O segundo manifesta-se em termos de “filtro condicionado socialmente” (FROMM, 1978, p. 56-57). Mas a necessidade de pensar a correlação entre a História e a Psicologia é propiciada, principalmente, por Norbert Elias. Para Elias, o psicólogo acredita que as estru- turas psicológicas dos homens não sofrem mu- danças. Em contrapartida, os historiadores, preo- cupados com os fatos, pouco têm a dizer para os psicólogos. A sua proposta é superar essa incom- DicionárioDicionário Cultura Material: a cultura material está associada à arqueologia e inclui um conjunto de objetos: tecidos, utensílios, ferramentas, adornos, meios de transporte, moradias etc., que formam o ambiente concreto de determinada sociedade. Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 9 preensão mútua. Introduzir simultaneamente uma abordagem social e uma profunda consciên- cia histórica no âmbito da Psicologia é sua pedra de toque. A História Cultural, ao tratar de uma diver- sidade de objetos (ciência, cotidiano, literatura, arte etc.); ao considerar os sujeitos produtores e receptores de cultura (sistema educativo, impren- sa, meios de comunicação); ao abordar também práticas, processos e padrões, é totalmente rica e abriga em seu seio as diferentes formas de tra- tamento destes objetos. Sem contar as possibili- dades trazidas pelas noções que acoplam o seu universo como “linguagens”, “representações” e “práticas”. Nesse sentido, pode-se pensar a História Cultural como: toda Historiografia que se tem vol- tado para o estudo da dimensão cultural de uma sociedade historicamente localizada.Não é aleatoriamente que a História Cultural tem atraído o interesse de diversos historiadores no século XX. Assim, articulando a História Cultu- ral, a História Social e a História Política, a Escola Inglesa do Marxismo (Thompson, Hobsbawm e Christopher Hill) repensa o materialismo histórico em suas noções de “infraestrutura” e “superestru- tura”. Com os marxistas da Escola Inglesa, o mun- do da cultura passa a ser examinado como parte integrante do “modo de produção” e não como mero reflexo da infraestrutura econômica de uma sociedade. A dimensão cultural de Thompson acres- centou conceitos fundamentais ao materialismo histórico. Sua influência pode ser sentida na His- toriografia Brasileira, dentro outros, por meio de João José Reis e Kátia Mattoso. Não se pode des- considerar que os estudos de cultura correlacio- nados com uma dimensão histórica e social atin- giram maturidade nos anos de 1970, mas sua raiz deve ser buscada em intelectuais como Lukács (1885-1971) e Antonio Gramsci (1891-1937). A Escola de Frankfurt – grupo que surgiu na Alemanha em 1924, sendo seus principais repre- sentantes: Theodor Adorno, Erich Fromm, Hebert Marcuse, Walter Benjamin, Max Horkheimer – trouxe outras possibilidades de reflexão. Voltan- do-se para a cultura de massas, o papel da ciência e tecnologia no mundo moderno, tem se aqui também um interesse pelas questões pertinentes à alienação, à perda da autonomia do sujeito e à sociedade industrializada. Para compreenderem todos esses objetos a partir de uma perspectiva aberta, os frankfurtianos expandem audaciosa- mente os limites do Materialismo Histórico: fiéis aos textos primordiais de Marx – sobretudo àque- les que abordam a alienação, a ideologia, o feti- chismo (coisificação) da mercadoria e a dimensão cultural e filosófica tocada pelos Manuscritos de 1844 –, eles também se tornam leitores atentos de Nietzsche, de Heidegger, de Freud. Para podermos entender a abrangência dos trabalhos sobre cultura, podemos citar ainda as contribuições de Mikhail Bakhtin e Todorov. Ao primeiro deve-se a noção de “circularidade cul- tural” e ao segundo, o termo “choque de cultura”. Ambos são de extrema importância para aqueles que se dedicam a esta área. Acrescenta-se um outro grupo de historiadores que abarca essas discussões que é liderado por Roger Chartier e Michel de Certeau. Ambos atuam em consonân- cia com o sociólogo Pierre Bourdieu, o qual tem grande importância para a conexão entre Histó- ria Cultural e História Política. As noções de “prá- ticas” e “representações”, as quais são primordiais para o historiador da Cultura, são explicitadas por Chartier. De acordo com este horizonte teórico, a Cultura (ou as mais diversas formações culturais) poderia ser examinada no âmbito produzido pela relação interativa entre estes dois polos. Tanto os objetos culturais seriam produzidos entre práti- cas e representações, como os sujeitos produto- res e receptores de cultura circulariam entre estes dois polos, que, de certo modo, corresponderiam respectivamente aos “modos de fazer” e aos “mo- dos de ver”. AtençãoAtenção A História Cultural e a História Antropológica também são importantes componentes da dis- cussão historiográfica. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 10 Após dedicar nossa atenção aos conceitos e às noções que perpassam qualquer reflexão encaminhada pela História Cultural – ideologia, símbolo, representação e prática –, retomemos a abordagem pela noção de representação fei- ta por Chartier. As representações para Chartier inserem-se em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação – em outras palavras, são produzidas aqui verdadeiras lutas de representações. E estas lutas geram inúmeras apropriações possíveis das representações, de acordo com os interesses sociais, com as imposi- ções e as resistências políticas, com as motivações e as necessidades que se confrontam no mundo humano. Pensando em termos de História Política e História Social, identificamos problematizações que partem do uso dos termos “Político” e “Social”. No primeiro caso, o que permite classificar um tra- balho historiográfico dentro da História Política é a prioridade no “poder”. Mas essa determinação é extremamente complexa como demonstra o autor: Mas que tipo de poder? Pode-se privilegiar desde o estudo do poder estatal até o estudo dos micropoderes que aparecem na vida cotidiana. O segundo caso é ainda mais complexo. No que tange à História Social, a grande questão que se coloca é se ela pode ser de fato considerada uma especialidade, com seus objetos próprios, ou se o “social” acaba coincidindo com a sociedade, o que consequentemente, faria com que este en- foque a transformasse numa categoria transcen- dente englobando todas as outras especialidades da História. É mister que saibamos que não existem fa- tos políticos, econômicos ou sociais isolados. O autor demonstra que, se não problematizarmos as questões do passado, não conseguiremos en- tender que nem toda História é Social. Assim, qualquer informação historicizada pode ser tra- tada socialmente, é correto dizer, mas é também verdade que nem toda História é necessariamen- te social. Se é possível elaborar uma História So- cial das Ideias ou uma História Social da Arte que se restrinjam a discutir obras do pensamento ou da criação artística sem as reestruturar dentro do seu ambiente social mais amplo, desde que se problematizem as questões, é possível que haja uma História Social tanto do ponto de vista de uma “macro-história” quanto de uma “micro-his- tória”, e não há limitações para o que seja tomado como fonte. Quanto à História Econômica, dificilmente haverá dúvidas relativas aos objetos desta espe- cialidade. Pode-se estudar qualquer um dos três aspectos envolvidos pelas atividades econômi- cas: Produção, Circulação e Consumo. Contudo, há uma ressalva para aqueles que se dirijam para este caminho. Abordar os aspectos econômicos da História não pode significar apenas um traba- lho de coleta de caráter quantitativo. Esse tipo de trabalho, para não cair na coleta anacrônica de fatos econômicos do passado, dever estar vincu- lado a uma posição que é também filosófica, teó- rica e metodológica. Todas essas questões que foram colocadas até agora nos instigam a pensar a História como um campo de possibilidades, em que as interco- nexões com os diversos enfoques podem estar associadas a uma reflexão que veicula a impor- tância dos conceitos, a relatividade das “divisões” e a necessidade de buscar um embasamento teó- rico para cada objeto de estudo. Não nos esqueçamos que os “modos de fa- zer a História” advindos da História Oral, da His- tória do Discurso, da História Imediata, da Histó- ria Serial e da História Quantitativa, da História Regional e da Micro-História – como já faláramos quando trabalhamos a disciplina Pesquisa em História II – também são aspectos que não se fur- tam da construção historiográfica. A História Oral se refere a um tipo de fonte produzida pelo próprio historiador ao trabalhar com os testemunhos orais. Suas preocupações neste âmbito estarão relacionadas ao tipo de entrevista que será utilizado na coleta de depoi- mentos, ao uso ou não de questionários pré-dire- cionados e assim por diante. Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 11 No que tange à questão da História do Dis- curso, pode-se haver uma abordagem qualitativa, quantitativa ou serial. Assim, os textos podem ser pensados como “objeto de significação” e “obje- to de comunicação”. No primeiro caso, deve-se à organização interna do texto e, no segundo, à reflexão sobre o contexto histórico-social em que está inserido. De acordo com esta visão comple- xa e multidimensional do texto que se mostra a mais adequada para o historiador, podemos dizer que a análise de um discurso deve contemplar si- multaneamente três dimensõesfundamentais: o intratexto, o intertexto e o contexto. O “intratexto” corresponde aos aspectos internos de texto e im- plica exclusivamente na avaliação do texto como objeto de significação; o “intertexto” refere-se ao relacionamento de um texto com outros textos; e o “contexto” corresponde à relação do texto com a realidade que o produziu e o envolve. Assim, a História do Discurso, a qual exami- na os discursos associados ao universo em que foram produzidos, tem gerado diversos posicio- namentos teóricos. As asserções de Foucault são, sem dúvida, o “fio condutor” de muitas discus- sões. Ao estender à noção de discurso, o corpo, a sexualidade e a loucura são vistos como relações de poder. Priorizar a forma pela qual as socieda- des se enxergam ou se apoderam dos discursos, um importante caminho para se entender as rela- ções de poder em uma dada sociedade. Ao abordar a temática da História Imediata, o autor a difere da História do Tempo Presente. Esta prescinde do envolvimento do historiador, já aquela não. Como exemplo, podemos afirmar que Leon Trotski, ao escrever uma História da Re- volução Russa, ou Júlio César, ao discorrer sobre a história da guerra da Gália, cada qual a sua ma- neira, fizeram uma História Imediata. Isso porque Trotski está inserido e escreve dentro de um res- pectivo “tempo histórico”. Já a História Serial introduziu, em meados do século XX, a possibilidade de constituir “séries” de fontes e abordá-las de acordo com técnicas es- pecíficas. Assim, esta abordagem refere-se tanto ao tipo de fontes, quanto ao método de trabalhá- -las. Relaciona-se intimamente com a História Quantitativa. A História Regional por sua vez estuda um espaço específico e as relações sociais que nele se estabelecem. Dessa forma, podemos diferen- ciar História Regional da Micro-História, pois esta é, metaforicamente falando, como enxergar algo do oceano inteiro através de uma simples gota d’água. Podemos utilizar as obras de Bakhtin – ainda que este não seja dado como micro-histo- riador – e de Ginzburg para abordar a noção de “circularidade cultural”, ao invés da oposição en- tre cultura erudita e cultura popular. Outro aspecto importante neste item, e que, novamente, reporta-nos à importância das definições, é a delimitação correta do campo his- toriográfico enquanto abordagem ou forma de fazer a História. De fato, a Micro-História surgiu como um movimento de historiadores italianos associados a uma determinada linha editorial. Es- tes historiadores foram os primeiros a apontarem para a riqueza de possibilidades proporcionada pela microanálise social. Também se interessa- vam por determinados temas que escapavam ao lugar-comum dos tradicionais objetos da Macro- -História tradicional. Contudo, a Micro-História deve ser definida como campo e não como uma corrente localizada de historiadores. E também não deve ser vista como restrita a uma determi- nada temática. Na verdade, a princípio, qualquer tema seria passível de ser abordado a partir de um olhar micro-historiográfico. As temáticas e os objetos da História são de número infinito, pois podem se referir aos agen- tes históricos, a ambientes sociais ou ambientes de estudo. Assim, existem domínios históricos que se prestam a historiadores que trabalham com diferentes dimensões históricas e as várias Saiba maisSaiba mais A Universidade de São Paulo (USP) possui um nú- cleo de estudos em História Oral chamado NEHO. Nele você pode acessar textos que discutem e de- batem aspectos teóricos e metodológicos da Histó- ria Oral. Confira no site: http://neho.vitis.uspnet.usp. br Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 12 abordagens. Mas existe também domínios espe- cíficos, a exemplo, a História da Arte ou a História da Literatura, que são subespecialidades da His- tória Cultural. Dentre outras, uma questão importante ainda deve ser tratada: refere-se à relação entre o conhecimento e a sociedade que o legitima. Des- ta forma, é possível que algum campo que hoje seja tratado como “domínio” – dada a importân- cia que lhe é atribuída – possa posteriormente ser tratado como uma “dimensão”. O giro do calei- doscópio historiográfico, enfim, ocorre em conso- nância com as motivações de uma época, com as suas necessidades sociais, com as suas nem sem- pre perceptíveis imposições políticas, com a sua capacidade de colocar determinados problemas. Enfim, essas poucas observações são ape- nas uma parte das importantes asserções trazidas por esta apostila, mas é necessário destacar que a inspiração de um olhar crítico para a literatura concernente à Historiografia nos auxilia verificar as diversas possibilidades deste campo de conhe- cimento, mas obviamente sem perder de vista o rigor das análises perpassadas pelas questões teóricas e metodológicas. Cabe, ainda, ressaltar que duas obras - A Escrita da História: novas perspectivas, de Peter Burke, e À Beira da Falésia: a história entre certe- zas e inquietude, de Roger Chartier -, dentre tan- tas importantes obras, propiciam-nos uma visão ampla sobre o “Fazer História”, problematizando o diálogo que esta constrói com outras áreas de conhecimento, aliando, assim, os meandros que envolvem a prática e a escrita deste ofício às refle- xões teóricas necessárias e promissoras. 1.1 Resumo do Capítulo Caro(a) aluno(a), neste capítulo discutimos as seguintes questões: 1. Fazer da História uma ciência é desenvolver teoria e métodos de construção e análise. 2. O historiador necessita buscar as “interconexões” com os aspectos históricos abordados. Para tanto, não terá sucesso pleno se não conhecer todos os enfoques possíveis. 3. A História Demográfica. 4. A História da Cultura Material. 5. A História das Mentalidades. 6. Os “modos de fazer a História” advindos da História Oral, da História do Discurso, da História Imediata, da História Serial e da História Quantitativa, da História Regional e da Micro-História. 1.2 Atividades Propostas Caro(a) aluno(a), agora que já iniciamos a discussão, vamos verificar a compreensão: 1. O que é a História Demográfica e a partir de quando começaram suas contribuições? 2. Em que contexto surgiu a Micro-História? Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 13 A HISTÓRIA COMO CONCEITO2 Discute-se, atualmente, muito mais a forma como a história é escrita do que se ela nos diz al- guma coisa verdadeira sobre o passado. A certeza de que a História é um conhecimento de bases científicas capaz de reconstituir acontecimentos do passado tem sido a principal preocupação dos historiadores desde a consolidação desta disci- plina. Diferenciar-se do modo romanceado de se narrar os acontecimentos tornou-se uma exigên- cia da disciplina histórica e a sua consolidação só foi possível na medida em que se instituíram re- gras para produzir o conhecimento histórico. A caracterização e sistematização destes procedimentos de pesquisa e investigação do passado, bem como as questões teóricas que en- volviam a interpretação dos dados da pesquisa histórica fizeram com que surgissem inúmeras es- colas historiográficas (que serão abordadas mais adiante). Já a partir do final do século XIX e início do século XX, os historiadores passaram a ser re- conhecidos de acordo com os procedimentos de pesquisa e as orientações teóricas que eles ado- tavam. Essa é mais uma das questões que preten- demos discutir nesta apostila: o problema do co- nhecimento histórico tanto pelo ângulo de seus procedimentos de investigação, como também pelas suas orientações teóricas e, por fim, por suas preocupações literárias com a escrita da história. Para tanto, dividiremos esta seção em duas partes distintas, mas que se interligam na preo- cupação de dar conta dos problemas que envol- vem o conhecimento histórico no passado e no presente. A primeira parte será dedicada à definição de nosso objeto de investigação, isto é, a proble- matização do que é o conhecimento histórico nos dias de hoje. Nestesentido, procuraremos diag- nosticar quais os problemas que mais incomo- dam os historiadores. E, na parte seguinte, procuraremos delinear de que maneira estas questões que atormentam os historiadores atuais foram despertadas em um momento crítico para as Ciências Humanas, data- do entre as décadas de 1950 e 160 do século XX. Dentro do quadro de indagações sobre as bases do conhecimento histórico, daremos ênfase a duas “escolas” historiográficas europeias que pro- jetaram as suas referências por todo o mundo oci- dental, inclusive o Brasil. Referimo-nos à “escola” dos Annales, um agrupamento de historiadores franceses que se reuniu em torno de uma revista, e à “escola” marxista inglesa, formada por militan- tes e egressos do partido comunista inglês. Ainda que outras vertentes historiográficas tenham se manifestado nesse período, principalmente, em países de enorme tradição como a Alemanha e a Itália, durante essas décadas o debate históri- co girou em torno das questões levantadas pelas Ciências Humanas da França e da Inglaterra. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 14 2.1 Conceito Histórico, o que é? Uma das marcas da Historiografia moderna foi a crescente troca do objeto na produção do conhecimento pelo sujeito. Invertia-se, assim, o primado do que caracterizou o cientificismo de fins do século XIX, pois não nos esqueçamos que, na construção História do século XIX, o que im- portava era o objeto estudado, pouco se conside- rando o sujeito histórico. Uma das consequências dessa fixação na dupla sujeito/objeto foi a simpli- ficação da linguagem como campo de estudos da Historiografia. Ou a linguagem era mero veículo de comunicação de um mundo de objetos autô- nomos, ou o exercício livre de uma subjetividade individual ou coletiva. O que a história dos con- ceitos trouxe de novo foi considerar a linguagem como um fenômeno irredutível às demais dimen- sões do real, ou seja, a partir desse novo olhar, a linguagem foi investida de uma autonomia rela- tiva digna de tratamento teórico-metodológico específico. Entender a linguagem como constituída e constituinte da realidade não seria suficiente para prover uma agenda de investigação historiográ- fica. No interior da linguagem, os conceitos são os objetos de maior efetividade histórica, eles fazem a mediação entre experiência e expecta- tiva, individual e social, o linguístico e o extralin- guístico. Nos conceitos, a linguagem opera como força histórica, consolidando ou desfazendo configurações do mundo da vida. Um conceito histórico é sempre resultado da precipitação de um conjunto experiencial, surge no mundo tão materialmente quanto qualquer coisa, não como mera representação mental. Aqui não importa a divisão metafísica entre o material e o imaterial. Um conceito histórico é tão material quanto um processo produtivo, por isso não pode ser tratado apenas como representação. Em sua existência, um conceito realiza-se por atos de fala; não é uma ideia na mente de um autor, mas um conjunto rastreável de performances discursivas capaz de deixar vestígios concretos para a investigação his- toriográfica, pois os autores/historiadores são ras- treáveis. Afinal, não são eles frutos de seu tempo? Um conceito histórico não é uma invenção livre da subjetividade do historiador, mas uma totalidade semântica produzida na contingência histórica. Portanto, cabe ao pesquisador recupe- rar essas dimensões disponíveis nos vestígios e na própria continuidade histórico-cultural. Podemos chamar isso também de historicidade. Recuperar os significados em disputa dos conceitos históricos exige uma reconstrução complexa de seus contextos de enunciação, tanto em sua dimensão sincrônica, quanto diacrônica. Essa exigência materializa-se em um novo olhar sobre os textos canônicos lidos e relidos pela His- tória Intelectual e pela História das Ideias. Obras até então negligenciadas de gran- des autores ou mesmo autores esquecidos pelas visões hegemônicas são recuperadas como mo- mentos fundamentais para a compreensão do contexto discursivo. Jornais e panfletos, dicioná- rios e vocabulários, assim como os debates parla- mentares tornaram-se matéria-prima fundamen- tal para a reconstrução dos contextos discursivos, ou seja, tornaram-se fontes indispensáveis para o historiador. A velha categoria da influência, cara à tradi- cional História das Ideias, cede lugar a formas de transplantação e tradução de uma mesma expe- riência histórica em diversos cenários nacionais, regionais e locais. A figura solar do sujeito-autor com sua intencionalidade é relativizada frente à nova concepção do texto enquanto aconteci- mento e pragmática, bem como pela ênfase nos contextos e nos jogos de linguagem que têm como território não a mente autoral, mas os veí- culos de circulação e os espaços de sociabilidade. Da mesma forma que o sujeito-autor, tam- bém o sujeito-nação tem sua capacidade expli- cativa relativizada quando nos damos conta das múltiplas territorialidades relacionais concreta- mente produzidas em um determinado tempo- Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 15 -espaço. Não é possível falar de conceitos nacio- nais enquanto algo isolado das teias formadas na circulação entre o local, o regional e o global. Os conceitos são sintomas e produtores de transformações sociais, portanto, mesmo que possamos e devamos articulá-los com as demais dimensões constitutivas da realidade, não po- demos nos esquecer de seus movimentos autô- nomos, capazes de produzir novas e imprevistas configurações. Assim, um conceito não é uma ideia ou uma palavra, não é uma representação, nem parte de um imaginário coletivo. Os conceitos históricos são fenômenos reais que atuam em qualquer so- ciedade humana, instrumentos cognitivos produ- zidos na existência concreta. Os sujeitos históricos possuem graus de consciência variados e sempre polêmicos acerca dos conceitos. A definição dos conceitos históricos fundamentais é sempre ob- jeto de disputa social, não cabendo ao historiador estabelecê-los normativamente como deve fazê- -lo com suas categorias de análise, mas os descre- ver em sua amplitude variável e narrá-los em sua dinâmica concreta. Recorrendo a um corpus documental repre- sentativo, torna-se possível datar o momento em que um novo conceito nasce ou que novos sig- nificados aderem a velhas palavras. Embora um conceito quase sempre esteja associado a um vo- cábulo, ele não se reduz a uma palavra. Um con- ceito é uma forma específica de lidar com campos da realidade ao mesmo tempo que os organiza, tornando-os instrumentais. Ele nos faz cegos para fenômenos desses mesmos campos que extrava- sam ou contradizem a estrutura lógico-semântica que o conceito impõe. Por isso, uma mudança conceitual envolve, na maioria das vezes, a aber- tura de uma nova experiência da realidade. AtençãoAtenção A leitura dos textos históricos deixa de ser apenas a busca de uma romântica simpatia pelo autor ou ainda a coleta de informações não intencionais como matéria-prima da História Social, das repre- sentações coletivas ou da crítica das ideologias. Como testemunho histórico efetivo de mundos da vida não mais inteiramente disponíveis, os tex- tos podem nos oferecer um acesso privilegiado às formas pelas quais determinada sociedade ex- perimentou, concebeu e prefigurou a realidade. 2.2 As Condições de Emergência da História dos Conceitos Como um produto intelectual do segundo pós-guerra, a História dos Conceitos surgiu em um cenário de profunda revisão do projeto mo- derno. A concepção normativa de modernidade, forjada na segunda metade do século XVIII, per- durou, não sem profundos questionamentos, até a década de 1950 do século XX. Os grandes relatos de uma modernização progressiva em curso linear na história do Ocidente esgotavam- -se tanto do ponto de vista teórico, como em consequência das investigações que revelava uma nova complexidade para a chamadaHistória Moderna, em particular para o período entre os séculos XVIII e XIX. A compreensão normativa da modernida- de esteve sempre como fundamento da própria Historiografia desde o século XIX. Com a histo- ricização do moderno, a Historiografia também receberia nova perspectiva. Desde então, e por diversas frentes independentes da História dos Conceitos, nossa compreensão da História Mo- derna e da História da Historiografia transformou- -se profundamente. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 16 2.3 Resumo das Escolas Historiográficas Desde o nascimento da Modernidade, no final do século XVII, a Historiografia adquiriu con- figuração antropológica, promovendo o advento do homem como principal referência das ciências empíricas e filosóficas. Dentro da Modernidade, a partir do esquema tripartite iluminista – que divide a História em Antiga, Medieval e Moder- na –, a Contemporaneidade permaneceu, por muito tempo, apenas como um último período. Após críticas a essas concepções de devir e com influência do local de produção, iniciou-se uma nova reflexão sobre a periodização na História. O século XX viu emergir um redirecionamento entre a produção de dado conhecimento histórico, do centro de produção filosófica que foi, posterior- mente, chamado de acadêmico; o que fez conver- gir para a ruptura com a forma tradicional de se confeccionar História. A História Contemporânea nasce, então, com a necessidade de novas técnicas de análise, não lhe sendo cabíveis os métodos de estudo da História Medieval e Moderna. O excesso de do- cumentação e a inexistência de um considerável distanciamento dos fatos caracterizam a Con- temporaneidade e promovem diversos questio- namentos sobre os acontecimentos que são ob- jetos de estudo. Além disso, os estudos recentes de História Contemporânea buscam evitar uma visão geral da Contemporaneidade e a superação do Eurocentrismo. A documentação em demasia suscita, ainda, o problema da coerência da narra- tiva, o que se tornou o principal ponto de disputa em torno da História Contemporânea. Tais peculiaridades instigam diversos estu- dos com base nas dificuldades de se fazer a His- tória Contemporânea – vista por alguns como “História do Tempo Presente” –, uma vez que a Contemporaneidade está posta para o presente e a História para o passado, levantando a problemá- tica de que o presente não deveria ser excluído da História. Assim, diversas escolas se propuseram a analisar a construção de uma História Contempo- rânea, como é exposto por Osvaldo Coggiola em seu texto História e Contemporaneidade, no qual o autor discorre sobre a percepção das concepções e os direcionamentos das principais escolas histo- riográficas nos dois últimos séculos. DicionárioDicionário Eurocentrismo corresponde a uma expressão que emite a ideia no mundo como um todo de que a Europa e seus elementos culturais são referência no contexto de composição de toda sociedade moderna. Essa ideologia de centralidade cultural europeia ganhou uma proporção tão grande que, dentro e fora da Europa, existe a visão de que esta representa toda a cultura ocidental no mundo. 2.4 Escola Russa A História Contemporânea, para a Esco- la Russa, é feita em cima de uma periodização ideológica, com recorte na época do capitalismo industrial. O período da Historiografia russa tem início em 1917, com a instauração da Revolução Russa, e estende-se até 1945. Seus pensamen- tos conduzem a História como um apêndice da História Econômica, retrocedendo em relação à produção da Historiografia socialista. A História ganha caráter publicitário e tem como principais pensadores Lênin, Pokrovski, Stálin e Issac Deuts- cher. Pokrovski e Lênin baseiam-se em métodos associativos entre teoria e prática. A História seria uma ciência política que deveria ser ensinada às Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 17 massas, dando a essas uma consciência de classe. Tais autores ainda pregam a valorização da parti- cularidade concreta de cada momento histórico. Para Stálin, a História da Contemporaneida- de fica reduzida à história do desenvolvimento das forças produtivas, com a tarefa de desvendar as leis de produção e o desenvolvimento econô- mico da sociedade. Sua interpretação do conceito de modo de produção é considera por Coggiola (2007) como linear-vulgar, com um esquema sim- plista de sucessão cronológica em um “primitivis- mo acorde com o deserto intelectual do Stalinis- mo” (COGGIOLA, 2007, p. 143). No período pós-Stálin, a velha Historiogra- fia retorna através de uma guinada conservadora em direção à Historiografia ocidental, sendo re- produzidos seus métodos, períodos e narrativas. 2.5 Escola Italiana A Historiografia italiana está fortemente marcada pela dimensão nacional. Assim, o corte cronológico da Contemporaneidade é feito na Restauração Monárquica e não na Revolução De- mocrática. Nessa Escola, destacam-se Benedetto Cro- ce – um dos mais ilustres representantes da cor- rente italiana –, Antonio Gramsci e Caetano Boni- fácio. Para Benedetto Croce, a história é sempre contemporânea. Já Antonio Gramsci, em embate travado no âmbito interno da Escola, considera como ponto crucial de entendimento da História Contemporânea a ruptura histórica no Settecen- to (incluindo as lutas da época revolucionária e napoleônica na França) e o Risorgimento italiano. Os métodos utilizados pela Escola Italiana baseiam-se na tradição marxista e os manuais di- dáticos imperam com datação de 1815 ao final do século XIX, em um corte eurocêntrico de periodi- zação que segue os recortes da História Contem- porânea na Itália. 2.6 Escolas Alemã e Espanhola Percebe-se que os objetos de estudos das duas escolas apresentam-se bastante distintos. A Escola Alemã entende a História a partir da Eu- ropa; ao passo que a Escola Espanhola tenta par- tir de uma reinterpretação dos acontecimentos recentes, numa perspectiva global, inserindo os países de periferia como participantes ativos do todo. A Escola Alemã entende basicamente como Contemporâneo os acontecimentos do período da “Guerra Fria”. Tratados com erudição, os estu- dos dessas questões acabam sofrendo um inevi- tável parcelamento, pois se concentram nos estu- dos sobre a Europa, sendo as demais regiões do globo tratadas de forma separada. Além do par- celamento dos resultados, a exacerbada erudição leva a um detalhamento excessivo, que provoca confusão na interpretação dos dados. A escola busca entender o mundo numa visão extrema- mente imersa em seu próprio estado de pós-se- gunda guerra: um país que vivia a atmosfera dual da batalha “silenciosa” entre os regimes capitalis- tas e socialistas. Já a perspectiva espanhola é mais ampla. A Escola Espanhola busca o Contemporâneo em assuntos recentes, englobando os países consi- derados de periferia. Aproxima-se aos pressupos- tos da Escola Francesa, que entende a disciplina como a dialética entre passado e presente. Os expoentes mais lembrados da Escola Alemã são Peter Gay e R. A. C. Parquer. O repre- sentante da Escola Espanhola é Joseph Fontana. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 18 A Escola Anglo-Saxã critica a História Tradi- cional, uma vez que essa é escrita a partir de um ponto fixo do qual é traçado um desenvolvimen- to contínuo. A História Contemporânea, ao con- trário do que pregava a Historiografia praticada no restante da Europa, deve escolher um ponto final e não inicial, privilegiando a discussão com ênfase na narrativa, mais do que na estrutura e na história imediata. Na tradição Anglo-Saxã, a Contemporanei- dade limita-se geralmente ao período posterior à Primeira Guerra Mundial. A escola é marcada pela forma reacionária, anticoletivista e anticomunista, tendo como expoentes Eric Hobsbawm, Geoffrey Barraclogh e Arnold Toynbee. 2.7 Escola Anglo-Saxã Saiba maisSaiba mais Os trabalhos de Eric Hobsbawm – A era do capital: 1848-1875.9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. [Pu- blicado originalmente em 1975]; A era dos extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. A era dos Impérios: 1875-1914. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. [Publicado originalmente em 1987] e A era das revoluções: 1789-1848. Lisboa: Editorial Presen- ça, 1986. [Publicado originalmente em 1962] – são muito importantes para a sua formação e cai muito em concurso público para professor de história. 2.8 A Escola Francesa Mesmo mantendo o domínio sob o campo intelectual na produção do saber, a Escola France- sa é bastante questionada. Como uma das princi- pais fontes de críticas, podemos destacar o corte definidor entre História Moderna e Contemporâ- nea. Este recorte colocava a Revolução de 1789 como marco, o que, para alguns críticos, deixa o historiador muito próximo de seu objeto de estu- do. Assim, o distanciamento necessário para evi- tar a superficialidade diante da necessidade de confrontar fatos, acontecimentos e informações não é alcançado. De várias ideias e dois conceitos básicos a respeito da História Contemporânea, a Escola Francesa surge com um conceito inicial mais tra- dicional, que vê o Contemporâneo como objeto de estudo da História. Com corte definidor da História Contemporânea a partir do fim do Antigo Regime, tal vertente não possui grande número de historiadores dispostos a estudá-la. Já a dialé- tica entre o passado e o presente é que agita a problemática do segundo conceito proposto. O historiador passa, assim, a valorizar o presente e a estudá-lo. Existem, ainda, outras concepções dentro da Historiografia Francesa. Para alguns autores, como, por exemplo, Marc Ferro, o cinema é o ele- mento definidor da Contemporaneidade, sendo a fonte documental específica da história con- temporânea. Junto com René Remond e Louis Girard, Marc Ferro compartilha de uma visão eu- rocêntrica da história. Já Marc Bloch e Lucien Feb- vre, historiadores mais recentes, criticam a Escola Francesa Tradicional e propõem uma nova forma de “fazer” História, dando espaço às histórias das diversas sociedades. Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 19 2.9 Resumo do Capítulo Caro(a) aluno(a), neste capítulo discutimos as seguintes questões: 1. A História como conceito. 2. O que a História dos Conceitos trouxe de novo foi considerar a linguagem como um fenôme- no irredutível às demais dimensões do real. 3. As Escolas Historiográficas. Espero que a discussão tenha sido proveitosa... 2.10 Atividades Propostas Agora vamos avaliar sua compreensão: 1. Como é feita a História Contemporânea para a Escola Russa? 2. Em alguns aspectos, a Escola Francesa é bastante questionada. Por quê? Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 21 HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA: O EXEMPLO DAS RELAÇÕES ESCRAVISTAS3 Em meados do século XIX, tiveram início no Brasil as discussões acerca das questões raciais, mais intensamente no período final do Império, quando uma série de novas ideias chegaram ao Brasil. As teorias raciais importadas da Europa fo- ram muito bem acolhidas em instituições científi- cas de ensino e pesquisa do período, locais estes frequentados pela elite pensante da nação. Esses intelectuais consideravam o negro um ser inferior biologicamente e portador de toda a negativida- de presente na sociedade brasileira. Acreditavam que a mestiçagem constituía-se como principal entrave para o desenvolvimento do país e para a construção da nação, posto que o empreendi- mento tinha como modelo a civilização europeia. A problemática da mescla cultural na histó- ria do Brasil foi colocada em nossos horizontes de investigação desde os começos da Historiografia nacional. Foi sob o rótulo da “miscigenação racial” que apareceu pela primeira vez como proposta vencedora do concurso promovido na década de 1840 pelo recém-fundado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Quem a formulou foi o alemão Karl von Martius, naturalista, botânico, viajante que deixou preciosos registros sobre a natureza e as gentes do Brasil no século XIX. Em Como se deve escrever a história do Brasil, Mar- tius afirmou que a chave para se compreender a história brasileira residia no estudo do cruzamen- to das três raças formadoras de nossa nacionali- dade – a branca, a indígena, a negra –, esboçando a questão da mescla cultural sem, contudo, de- senvolvê-la. Martius, como naturalista ilustrado, pensava o “hibridismo racial” do mesmo modo como pensava o cruzamento de plantas ou ani- mais, porém sua relativa sensibilidade etnológica fê-lo ao menos rascunhar o que já se chamou de “sincretismo” cultural e atualmente se formula como circularidades ou hibridismos culturais. Imagem de Von Martius Fonte: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edica o=14&id=128 Uma leitura mais aprofundada sobre o tra- balho de Von Martius e demais pensadores do sé- culo XIX, e mais especificamente no que se refere às teorias racistas e à miscigenação no Brasil, pode ser feita no livro O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1871-1830), de Lilia Moritz Schwarcz (ver referência completa da obra nas referências bibliográficas). Outro “homem de ciência” da época era Nina Rodrigues. Para ele, a raça negra no Brasil, por mais que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que se cercou o revol- Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 22 tante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turife- tários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. Oliveira Viana, apesar de atribuir o caráter negativo à presença do negro e à miscigenação, acreditava que o Brasil tinha futuro enquanto ci- vilização moderna, pois a mestiçagem constituía- -se em um dos caminhos para o branqueamento racial. Esse intelectual, permeado da tradição his- toriográfica conservadora do Império, escreveu na década de 1920 do período republicano. Foi nesse cenário de negatividade que um sociólogo pernambucano promoveu uma guinada interpre- tativa ao incorporar o viés culturalista de análise de Franz Boas em detrimento do determinismo geográfico e racial presente nessa Historiografia remanescente do período imperial. 3.1 A Contribuição de Gilberto Freyre Considerado revolucionário por muitos his- toriadores, Gilberto Freyre recriou radicalmente o Brasil. Nas palavras de Sandra Pesavento (2003, p. 54-55), “negritude, mestiçagem e lusitanismo” compunham “o tripé sobre o qual se apoiou o au- tor pra ressignificar a alma da nação, valorizando- -a e fornecendo dela uma imagem positivada, para os brasileiros e para o exterior”. Entre as de- mandas da década de 1930, pode-se apontar, de forma sintética, a preocupação de harmonizar o “antigo” frente às demandas do “novo”. O “novo” pode ser traduzido como a necessidade de re- construir ou inventar uma identidade nacional nova, sobretudo, havia a urgência de “uma positi- vidade que permitisse a coesão social e inspirasse otimismo à nação” (PESAVENTO, 2004, p. 179). O livro Casa-Grande & Senzala, publicado em 1933, constitui-se como principal expoente da obra de Gilberto Freyre. Para ele, a estrutura econômica brasileira alicerçada na monocultura, no latifúndio, na agroexportação e na escravidão provocou a bipolarização social: de um lado, se- nhores e brancos, e de outro, escravos e negros. Entretanto, esse antagonismo social foi atenuado pelo tipo de relação estabelecida entre senhores e escravos, permitindo, assim, a miscigenação racial. Desse modo, a miscigenação acabou por atenuar as diferenças sociais entre os dois grupos. Em uma análise comparativa com a escravidão anglo-saxônica, Freyre conclui que foi a plastici- dade do colonizador português aliada à empatia entre as raças que possibilitou a miscigenação no Brasil, processo este que, por sua larga recorrên- cia, permitiu quese estabelecesse no Brasil uma “democracia racial”. Entretanto, essa “democracia racial” não anulou as diferenças ou os antagonismos sociais. O mestiço, apontado como uma espécie de mar- co de origem da sociedade brasileira e ponto convergente entre as metades conflitantes, não simbolizava a diluição das diferenças ou dos an- tagonismos. A positividade da miscigenação, vi- sualizada por Freyre, residia não no antagonismo ou no equilíbrio, mas no que conceituou de “equi- líbrio de antagonismos”. A partir desse recurso, o sociólogo elaborou um método para pensar toda a dinâmica da sociedade brasileira. A colonização brasileira era vista por Frey- re (1987) como uma ação coletiva das raças que compunham o povo brasileiro: brancos, negros e índios e, sobretudo, mestiços. O “espírito patriar- cal”, “patriarcalismo escravocrata” ou “patriarcalis- mo brasileiro” era justificado por meio da concep- ção de que a colonização, apesar de representar uma imposição imperialista tipicamente euro- peia, por outro lado, significou uma adaptação do colonizador à nova situação e ambiente. Dessa forma, entendia que o empreendimento colonial português constituía-se como um sistema social novo, caracteristicamente brasileiro, não apenas um sistema de trabalho, mas de convivência so- cial, de educação, de estilo político, de religião, de vida em família e intimidade. Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 23 Capa do Livro Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre O caráter patriarcal da sociedade escravista foi evidenciado pelo papel tutelar assumido pelo colonizador luso, posto que o negro, apesar de sua contribuição e participação na estruturação da sociedade brasileira alicerçada sob a família patriarcal lusa, foi visto por Freyre como um in- divíduo passivo e incapaz de agir politicamente devido à mácula da escravidão. Dessa forma, ca- bia ao branco, leia-se o português, regê-lo. Assim, segundo Gilberto Freyre, no caso dos escravos constituídos certamente em família, à sombra das casas-grandes e dos velhos engenhos, terá havi- do, na adoção de nomes fidalgos, menos vaidade tola que natural influência do patriarcalismo, fa- zendo pretos e mulatos, em seu esforço se ascen- são social, imitarem os senhores brancos e ado- tarem-lhe as formas exteriores de superioridade. A tese que perpassa a obra de Freyre, como visto, é a tentativa de atribuir positividade ao pas- sado colonial e à herança lusitana que, por sua originalidade, proporcionou ao mundo, segundo ele, o único exemplo bem-sucedido de integra- ção racial. Deve-se levar em conta que apesar do caráter revolucionário e inovador da obra, Frey- re observou a sociedade escravista da janela da Casa-Grande. Freyre apesar de revolucionário no método e na originalidade de sua pesquisa e in- terpretação, sob outro aspecto, foi conservador ao ressaltar em seu argumento a benignidade da escravidão, pensamento típico do conservadoris- mo do século XIX. Saiba maisSaiba mais A autora Emília Viotti da Costa produziu a obra Da Senzala à Colônia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. Essa obra é muito importante para se conhecer a situação histórica do negro no Brasil. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 24 A obra de Freyre foi duramente criticada pela Historiografia de esquerda por eliminar o conflito e a violência nas relações sociais e, nes- se sentido, foi caracterizada como “conservado- ra, equivocada e não-científica” (PESAVENTO, 2003, p. 62). Apenas nos anos 1990 que Freyre e sua obra foram reabilitadas em um contexto de emergências das discussões acerca da diferença cultural e da alteridade na globalização. Nesse cenário, Freyre ajuda a pensar questões como a delimitação de fronteiras e identidades em um mundo considerado fluido, mas que não elimi- nou do imaginário social tais fronteiras (étnicas, identitárias, raciais). Freyre torna-se importante por tratar de temas que se situavam à margem da história (Brasil, mestiçagem e negros) por outras perspectivas. Do mesmo modo, converge com a preocupação contemporânea de recompor atra- vés de outras fontes. 3.2 Uma Crítica à Teoria do Escravo-Coisa Até o limiar dos anos de 1930, o que se po- deria chamar de Historiografia brasileira tratava, pois, a miscigenação não como problema de in- vestigação, mas como problema moral ou patoló- gico que cabia resolver para o bem da nação. Nas décadas 1930 e 1940, mudaria sensi- velmente a maneira de lidar com a miscigenação racial e cultural que Von Martius sugerira estudar havia quase cem anos. Foi o tempo em que apa- receram as três grandes sínteses de nossa Histo- riografia, obras que Antônio Cândido destacou como livros-chave para se compreender o Brasil depois da Revolução de 1930 e que, no seu en- tender, funcionam até hoje como referências do pensamento social brasileiro. A saber, Casa-gran- de e senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hol- landa, publicado em 1936; e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., publicado em 1942. Destes três, ateremos nossas atenções para a problemática que se faz presente para Freyre. Parte da Historiografia brasileira foi conta- giada pela positividade de Freyre, e a tendência comparativa da escravidão brasileira com a norte- -americana influenciou historiadores dos dois paí- ses. Na década de 1950, especialmente nos Esta- dos Unidos, onde a luta pelo reconhecimento da igualdade dos negros emergia, as contestações a esse viés interpretativo surgiram. Para esses his- toriadores, o escravismo foi bastante similar nos dois países e não foi mais brando em um ou outro lugar. No Brasil, Florestan Fernandes e Roger Bas- tide, na década de 1950, foram incumbidos, pela Unesco, de coordenar um estudo. Dentre os ob- jetivos, residia compreender como se deu a “in- tegração racial” postulada por Freyre na tentativa de superar a realidade caótica em que se encon- travam as relações raciais no contexto pós-guerra – contexto de efervescência política e emergên- cia da Guerra Fria. Foto de Florestan Fernandes, que disse: “Afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade.” O grupo era formado ainda por Emilia Viot- ti da Costa, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Os historiadores procuravam identificar e analisar o caráter violento da instituição escra- Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 25 vista, enquanto que os sociólogos investigavam vestígios acerca da manutenção da intolerância racial e da discriminação no Brasil. Oriundos da Escola Sociológica da USP, procuraram, sobretu- do, demonstrar a face cruel da escravidão e incor- porar o conflito social (ou a luta de classe) na aná- lise das relações escravistas. Nesse cenário, vale lembrar, o marxismo foi revalorizado e largamen- te utilizado para contestar a ordem mundial capi- talista imposta pelos americanos, para denunciar as condições de trabalho nas fábricas, enfim, para legitimar a luta política. Assim, fica compreensível que as conclusões a que chegou o grupo oriundo da USP não convergiram com a proposta inicial, de tal modo que se constituiu como principal crí- tico à teoria de Gilberto Freyre. A coisificação jurídica do escravo foi apre- sentada pela primeira vez na segunda metade do século XIX por Perdigão Malheiro, um importante jurista à época da discussão da Lei do Ventre Livre de 1871. Para ele, o escravo “reduzido à condição de cousa, sujeito ao poder e domínio ou proprie- dade de outro, é havido morto, privado de to- dos os direitos e não tem representação alguma” (VAINFAS; CARDOSO, 1997, p. 32). Nessa perspectiva, a subjetivação da con- dição de coisa pelo escravo fez com que este apenas espelhasse passivamente os significados sociais impostos pelos senhores;em outras pala- vras, o negro era visto como um indivíduo inabi- litado à ação e ao pensamento autônomo e mero receptor de valores e normas senhoriais. A teoria do escravo-coisa pode ser entendida enquanto reconhecimento social da condição de pessoa humana que era negado aos escravos, objetiva e subjetivamente, pelos homens livres. Além disso, graças aos mecanismos socializadores da ordem AtençãoAtenção O lado cruel da escravidão, se poderíamos por assim dizer, foi evidenciado através da teoria do escravo-coisa, que se tornou tão forte quanto o mito da democracia racial e da amenidade nas relações escravistas. escravocrata, às condições materiais de vida do escravo e às formas pelas quais os escravos se inseriam no processo de produção, as represen- tações mantidas pelos senhores sobre a inferiori- dade objetiva dos escravos e sobre a impossibili- dade natural de o escravo reagir à sua condição eram aceitos em condições normais de funciona- mento do sistema pelos próprios escravos. O historiador Caio Prado Júnior, contempo- râneo à Escola Sociológica da USP, também pos- tulou acerca da coisificação do escravo em sua condenação ao legado colonial que Freyre per- sistiu em defender. Para ele, o escravo foi vítima do cativeiro que lhe roubou toda a positividade, situação que afetou toda a sociedade brasileira. Sidney Chalhoub, historiador filiado à Historio- grafia Social da escravidão, em uma crítica ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, aponta que a violência da escravidão não transformava os negros em seres “incapazes de ação autonômi- ca” (CHALHOUB, 1996, p. 43-44), nem em passivos receptores de valores senhoriais, nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis. Acreditar nisso pode ser apenas uma opção mais cômo- da: simplesmente desancar a barbárie social de um outro tempo traz implícita a sugestão de que somos menos bárbaros hoje em dia, de que fi- zemos realmente algum “progresso” dos tempos da escravidão até hoje. A ideia de que ela supõe ingenuidade e cegueira diante de tanta injustiça social é parte também da estranha crença de que sofrimentos humanos intensos podem ser de al- guma forma pesados ou medidos. Além da teoria do escravo-coisa, havia tam- bém a do escravo-rebelde, ou seja, aquele escra- vo que reage à sua condição de coisa através da revolta e do desespero. Jacob Gorender (1978, p. 87) apontou que “o primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro”. Fernando Henrique Cardoso (1977, p. 12-14) colocou que ao escravo restava “apenas a negação subjetiva da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta e pela ânsia indefinida e ge- nérica de liberdade”. Suely Queiroz (2003, p. 51) aponta que a coerção e a repressão, como formas Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 26 de controle social, geravam “um círculo vicioso: a violência gerava a rebeldia do escravo, punida com mais violência. As punições, por sua vez, con- duziam a maior rebeldia”. Uma mudança de entendimento do negro se deu com a clássica obra Da Senzala à Colônia, de Emilia Viotti da Costa, que a escrevera em 1966. Em seu estudo, a autora não percebeu o escravo como coisa. Fugindo da análise estritamente eco- nômica e sociológica, reconstituiu aspectos coti- dianos da senzala, como os ritos, as crenças e as danças. A partir dessa análise, constatou a cruel- dade presente na escravidão. A resistência escra- va e as revoltas nas senzalas foram consideradas por ela chaves fundamentais para o entendimen- to da falência da escravidão. 3.3 O Escravo como Sujeito Ativo das Relações Escravistas A partir dos anos 1980, começou a ser de- lineada uma outra linha interpretativa no campo da Historiografia da escravidão, especialmente por tratar-se da década em que se comemoraria o Centenário da Abolição. Essas pesquisas procura- ram aprofundar os estudos acerca da escravidão para além do estruturalismo e das classificações em esquemas rígidos. Os autores filiados a essa matriz interpretativa eram influenciados pela Nova História francesa, pelo neomarxismo do in- glês E. P. Thompson, por Eugene Genovese, den- tre outros. Essa Historiografia procurava inscrever o escravo com sujeito ativo nas relações escravis- tas, procurando identificar e analisar, em fontes documentais, diversas indícios da inter-relação estabelecida entre senhores e cativos. Busca-se apreender nas fontes o cotidiano dos escravos, as brechas nas quais estes visualizavam espaços de autonomia, mobilidade e sociabilidade, as estra- tégias de resistência ao trabalho compulsório e de acomodação como forma de diminuir a tensão e mesmo como forma de negociação e aquisição de privilégios com o senhor. Sidney Chalhoub, em sua dissertação de mestrado, de 1986, no que se refere à utilização de processos criminais como fonte para a pesqui- sa historiográfica, aponta que é na análise de cada versão, no contexto de cada processo e na obser- vação da repetição das relações entre as versões em diversos processos que podemos desvendar significados e penetrar nas lutas de contradições sociais que se expressam e, na verdade, produ- zem-se nessas versões ou leituras. Senhores e escravos, apesar de se situarem em polos sociais divergentes, são vistos como sujeitos intrinsecamente relacionados. Para se entender a dinâmica existente na escravidão, torna-se importante compreender as relações de classe que se estabeleciam e não apenas os cri- térios econômicos e raciais. Pode-se dizer, assim, que “uma classe dominante não se desenvolve simplesmente de acordo com as tendências ine- rentes à sua relação com o meio de produção; desenvolve-se em relação à classe específica ou classes que ela domina” (CARDOSO, 1977, p. 32). Dessa forma, a complexidade presente nas rela- ções escravistas teria engendrado uma psicologia especial, costumes, vantagens e desvantagens econômicas e problemas sociais que apareceram em toda sociedade escravocrata, mesmo que apenas como tendências fracamente manifesta- das. O conceito “paternalismo” utilizado por essa matriz interpretativa ampara-se na concepção acerca da escravidão no Sul dos Estados Unidos. Nessa perspectiva, o senhor compreendia o pa- ternalismo como uma estratégia de dominação e uma forma de minar gradativamente a solida- riedade existente entre os escravos, apesar de reconhecê-los como humanos. Já para os cativos, o paternalismo consistiu em um dispositivo para resistir ao processo de desumanização e para conquistar direitos e espaços de autonomia (for- Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 27 mação de famílias nucleares, prática de cultos re- ligiosos etc.). Assim, o paternalismo reforçou, de um lado, o racismo e a exploração, mas, de outro, permitiu ao escravo o reconhecimento de sua si- tuação na ordem escravista. No que se refere ao emprego do conceito paternalismo, para caracterizar um sistema de re- lações sociais, o historiador inglês E. P. Thompson (1987, p. 13-14) alerta que “nenhum historiador sensato deve caracterizar toda uma sociedade como paternalista ou patriarcal”, posto que esse é um termo vacilante que subentende “um mo- delo da ordem social visto de cima” (THOMPSON, 1987, p. 15). O temo ‘paternalismo’ também está presente na obra do escritor e político Machado de Assis. Assim, nos contos machadianos, o pater- nalismo anula os antagonismos sociais e traduz a visão senhorial vigente no século XIX, em que os dependentes deveriam perceber suas condi- ções “somente a partir dos valores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores, sendo assim inviolável o surgimento de solidariedades horizontais características de uma sociedade de classes” (SCHWARZ, 1990, p. 71). Entretanto, a existência de uma “ideologia paternalista não sig- nifica a inexistência de solidariedades horizontais e, por conseguinte, de antagonismos sociais”, ou seja, “subordinação não significanecessariamen- te passividade” (SCHWARZ, 1990, p. 72). Ao tentar demonstrar a existência dos anta- gonismos sociais, esse viés de análise acaba por ampliar o conceito de resistência em detrimento das posturas bipolares que permearam a Historio- grafia da escravidão. A resistência foi incorporada ao dia a dia da instituição escravista, quer seja nas estratégias e nos espaços de autonomia conquis- tados pelos escravos ou na leitura que estes fa- ziam do paternalismo. Dessa forma, para o escra- vo: resistir significava a utilização estratégica das normas sociais, a valorização de microscópicos e altamente significativos gestos e comportamen- tos que não só tornavam a estúpida realidade do cativeiro suportável, como contribuíam decisiva- mente para a corrosão desse sistema. A resistência podia ser abrandada com a acomodação, ou seja, a aceitação de certas nor- mas tácitas de convivência mútua entre senhores e escravos. As ações de rebeldia e acomodação dependiam demasiadamente das circunstâncias, pois, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas, quanto de conflitos. Assim, pode-se dizer que os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, situando-se na sua maioria e a maior par- te do tempo numa zona de indefinição entre um polo e outro. Da mesma forma, compreende-se que para cada Zumbi existiu, com certeza, um sem número de escravos que, longe de estarem passivos ou conformados com sua situação, pro- curaram mudar sua condição de acordo com as estratégias mais ou menos previstas na sociedade na qual viviam. As brechas abertas nesse sistema de domí- nio permitiam aos escravos o acesso a espaços de mobilidade, sociabilidade e autonomia. A “brecha camponesa”, por exemplo, pode ser apontada como um desses espaços onde o escravo via a possibilidade de ter uma economia independen- te do seu senhor. Já nos domingos ou dias santos que o escravo tinha “para si”, podia sociabilizar- -se, estabelecendo com outros cativos, libertos e mesmo livres, laços de solidariedade ou mesmo de conflito. A moradia independente, por sua vez, permitia ao escravo maior autonomia para desen- volver suas atividades econômicas e menor vigi- lância senhorial, o que pode ter contribuído “para a falência de significados sociais essenciais à con- tinuidade da instituição da escravidão”. Como visto, esses eram momentos onde se afrouxava a vigilância senhorial e que podem ser apontados como mecanismos de controle e manutenção da ordem escravista, pois forneciam uma válvula de escape para as pressões resultan- tes da escravidão. DicionárioDicionário Zumbi, líder escravo (1655-20/11/1695). Símbolo da resistência negra contra a escravidão, é o último chefe do Quilombo dos Palmares. Vagner Carvalheiro Porto Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 28 A análise da sociedade escravista, pois, não pode partir apenas da ideia de que a vontade se- nhorial determinava exclusivamente as relações pessoais e que o escravo, em troca de orientação e proteção, situava-se apenas como dependente ou subordinado ao domínio paternal. Pressupor que essa ideologia funcionou de forma orgânica significaria esquecer a complexa e ambígua re- lação de classe existente nessa sociedade, bem como cair na armadilha de abrandar a violência presente na escravidão ao restringir essa institui- ção às relações harmônicas estabelecidas entre senhores e cativos. A Historiografia acerca da escravidão não se restringe ao que foi apresentado, mas como se trata de apontamentos acerca das diferentes formas de interpretar as relações escravistas ao longo da Historiografia brasileira, o que foi posto permite uma ideia geral. Gilberto Freyre procurou evidenciar a posi- tividade presente na miscigenação por meio do que conceituou de “equilíbrio de antagonismos”. Retratou a sociedade escravista como uma “de- mocracia racial” regida pelo espírito patriarcal do colonizador de ascendência lusa. O escravo teria contribuído na formação da sociedade patriarcal através da técnica, dos hábitos alimentares, da dança, entretanto, era incapaz de reger-se poli- ticamente, encontrando-se em uma situação de anomalia social. A “escola uspiana” procurou discutir e refu- tar a teoria da democracia racial e da amenida- de nas relações escravistas demonstrando a face cruel da escravidão. Para tanto, incorporaram o conceito de “luta de classes” para analisar as re- lações escravistas, caracterizadas pela violência, pela crueldade e pela dominação dos senhores sobre os escravos que, por sua vez, subjetivaram- -se à condição de coisa. Ao postular a reificação do escravo, essa matriz interpretativa retirou des- te a condição de sujeito histórico, colocando-o como um objeto na rede de opressão, dominação e subordinação senhorial. A rebeldia, nessa pers- pectiva, compunha-se como uma reação e forma de negação da condição reificada. Os estudos atuais, alicerçados especialmen- te na História Social, rejeitam a teoria do escravo- -coisa e do escravo-passivo através da análise densa das fontes documentais, onde se procura apreender e reconstruir aspectos do cotidiano escravista. O escravo, portanto, passa ser visto como sujeito histórico: negocia, resiste, estabele- ce redes de sociabilidade, conquista espaços de mobilidade e autonomia em busca da liberdade ou de tornar a vida em cativeiro o menos árdua possível. A violência deixa de ser o vínculo essen- cial entre senhores e escravos, muito embora não seja em momento algum negada ou atenuada. Entre os dois polos sociais existe, por outro lado, uma intrincada rede de relações e dependências que perpassa toda a sociedade escravista. Formas diferentes de perceber o mesmo quadro permitem o enriquecimento da Histo- riografia da escravidão. Casa Grande & Senzala, Da Senzala à Colônia, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, Visões da Liberdade são leituras importantes (e por que não indispensáveis?) aos que pretendem ingressar nos estudos acerca da escravidão negra no Brasil. Inúmeros autores e obras poderiam ser aqui arrolados e discutidos com maior profundidade, inclusive as fontes lite- rárias e iconográficas, bem como as Historiogra- fias regionais acerca do tema. É importante res- saltar, como Machado de Assis já nos alertou, que cada matriz de análise está inserida em um con- texto e procura responder às suas necessidades explicativas. Cabe ao pesquisador discernir uma da outra evitando anacronismos interpretativos. Adicione-se que, em franca reação à visão reificadora do africano sugerida pelos estudos das décadas de 1960 e 1970, os historiadores buscaram mostrar o negro como sujeito da his- tória, protagonista da escravidão, ainda que não aquilombado, quando não cúmplice do cativeiro. Avançou-se muito nesta linha de investigação, a começar pelo livro de Kátia Mattoso, Ser escravo no Brasil, que recolocou a importância do pater- nalismo como mecanismo de poder senhorial e, por meio disso, negou a quase exclusividade do fator violência como explicação do sistema escra- vista. Indicou também a importância de se estu- Historiografia Unisa | Educação a Distância | www.unisa.br 29 dar a África, o tráfico, as etnias, os mores, as reli- giões para se entender a conformação da cultura negra no Brasil – cultura a que muitos chamaram de afro-brasileira. A valorização ou a descoberta da África para o estudo da escravidão e da formação da cultura brasileira é um dos méritos da recente Historiografia sobre o assunto, o que de certo modo reabilita a obra de Gilberto Freyre, embora as motivações e inspirações sejam hoje, aparen- temente, distintas das do mestre dos Apicucos. Mas é fato que Rebelião escrava no Brasil, de João Reis, livro sobre a Revolta dos Malês na Bahia de 1834, praticamente inaugura nossa moderna His- toriografia, que, para pensar a escravidão negra no Brasil, recorre também à história da África. O mesmo se poderia dizer de A paz das senzalas, de Manolo Florentino
Compartilhar