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UM PANORAMA DAS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM ALICERÇADO NO LIVRO DIDÁTICO. RESUMO: O livro didático (LD) é um material pedagógico considerado o mais tradicional e, certamente, o mais utilizado nas escolas. Em função de sua importância, em 1985 criou-se o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), que consiste na distribuição gratuita de livros didáticos para os alunos das escolas públicas de ensino fundamental de todo o país. O Banco Mundial situa o livro em quarto lugar de importância na aprendizagem dos alunos. Observamos, assim, que o LD é um dos recursos mais aclamados e utilizados pelos professores em muitas escolas, porém esse recurso não é tão perfeito assim, pois muitas vezes é conciso, deixando o aluno sem problematizar muito. As questões, em sua maioria, não levam o aluno a refletir sobre o meio, sobre a sociedade e sobre a vida em si. Dentro disso, discutiremos as orientações filosóficas apresentadas no livro Marxismo e filosofia da linguagem, de Bakhtin/Volochinov (2010), embasados também em Geraldi (1984), Zanini (1999), Soares (1998), Travaglia (1996) e Perfeito (2005). Realizaremos essa discussão a partir de um livro didático de Língua Portuguesa do 8º ano. As questões analisadas serão de duas unidades distintas do livro: a primeira refere- se à unidade 2: Língua e gramática normativa, a qual apresenta três capítulos; a segunda, refere-se à unidade 3: Ortografia e pontuação, a qual apresenta, também, três capítulos. Esta atividade surgiu diante da disciplina Ensino-aprendizagem do Português I, na qual a docente mostrou aos discentes a necessidade de se discutir sobre as concepções de linguagem, pois são elas que nos guiarão no ofício da docência. Diante da análise, chegamos à conclusão de que nas unidades selecionadas é predominante o uso da concepção que tem a linguagem como expressão do pensamento. Palavras-chave: Livro didático. Concepções de linguagem. Aprendizagem significativa. 1. Considerações iniciais De acordo com Bakhtin (1986), a linguagem é o fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações, que constitui a realidade fundamental da linguagem, compreendida pelo princípio dialógico: “a palavra constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro” (BAKHTIN, 1986, p. 113). Nessa concepção, o ser humano usa a linguagem para agir no contexto social, pois língua e linguagem são concebidas como atividades interativas, como forma de ação social, como espaço de interlocução possibilitando a prática social dos mais diversos tipos de atos. Em relação à concepção de língua, Bakhtin afirma que ela é uma abstração quando concebida isolada da situação social que a determina. Para o autor, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN, 1986, p. 124). A linguagem é o cerne da nossa discussão, especificamente a linguagem dentro do livro didático. Discutiremos, ao longo do corpo do trabalho, como essa linguagem ocorre permeando os diversos gêneros textuais, quais são as atividades produzidas a partir dela e em quais concepções elas se encaixam. Diversas análises foram e continuam sendo realizadas a partir dos gêneros discursivos centralizando-se, na maioria das vezes, na abordagem enunciativo-discursiva de Bakhtin (1929/1953), que dá destaque ao processo de interação verbal e ao enunciado. Atualmente, os programas escolares têm avançado em sua busca por trabalhar novos e diferentes gêneros textuais. Essa postura visa atender à proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de fundamentar o ensino da língua materna nos gêneros do discurso, sejam eles orais ou escritos. No entanto, ao folhearmos alguns livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio utilizados por várias escolas públicas e privadas, percebemos que ainda existem algumas falhas na elaboração do contexto das questões, as quais não possibilitam ao aluno “sair do texto”, pensar além, mas os deixam focados somente no que está posto na superficialidade do texto, sem chances de se utilizar recursos metalinguísticos. Assim, discutiremos todos esses aspectos ao longo de nosso trabalho, e ele está dividido da seguinte forma: 1 – Considerações iniciais; 2 – Introdução às concepções de linguagem; 2.1 – Linguagem como expressão do pensamento; 2.2 – Linguagem como instrumento de comunicação; 2.3 - Linguagem como forma de interação; 3 – Apresentação do corpus e análise; 4 – Considerações finais. 2. Introdução às concepções de linguagem Na presente seção, serão abordadas as três concepções de linguagem baseadas em Geraldi (1984), Zanini (1999), Soares (1998), Travaglia (1996) e Perfeito (2005) em consonância com a discussão levantada por Bakhtin/Volochinov (2010), com o objetivo de esclarecer e exemplificar os diversos métodos que direcionam as práticas em sala de aula. Para isso, a seção será dividida em três subseções com a finalidade de elucidar as concepções de linguagem e, desta forma, dialogar com os autores supracitados. 2.1 Linguagem como expressão do pensamento Na obra Marxismo e filosofia da linguagem, mais especificamente no capítulo “Duas orientações do pensamento filosófico-linguístico”, Bakhtin/Volochinov (2010) instigam o leitor a refletir a respeito do que é a linguagem e qual seu objeto de estudo, porém observam que : “Toda vez que procuramos delimitar o objeto de pesquisa, remetê-lo a um complexo objetivo, material, compacto, bem definido e observável, nós perdemos a própria essência do objeto estudado, sua natureza semiótica e ideológica” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p.72). É a partir da problemática de isolar e de delimitar a linguagem apenas como objeto de estudo que os autores tecerão suas críticas às duas orientações filosóficas, as quais eles intitulam, respectivamente: “subjetivismo idealista” e “objetivismo abstrato”. Esta subseção será direcionada ao subjetivismo idealista, uma concepção genuinamente estética, na qual Bakhtin/Volochinov (2010) indicam quatro pontos que as fundamentam, são eles: 1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (“energia”), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala 2. As leis da criação linguística são essencialmente as leis da psicologia individual. 3. A criação linguística é uma criação significativa, análoga à criação artística. 4. A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquanto sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria da criação linguística, abstratamente construída com vistas à sua aquisição prática como instrumento pronto para ser usado (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010, p.74- 75) Dessa forma, percebe-se que essa tendência resume o ato de fala como uma ação individual que parte de um comportamento padronizado, segundo as normas da psicologia, e entende a realização linguística a partir de sua organização estrutural. É diante dessas características que o subjetivismo idealista dialoga com a concepção de “linguagem como expressão do pensamento”, a qual Geraldi (1984) procurou relacionar à prática educacional que se baseia na gramática tradicional como parâmetro de ensino, o chamado “tradicionalismo”. Perfeito (2005) afirma que a prática educacional baseada na concepção de linguagem como expressão do pensamento direciona o falante para uma organização do pensamento que se fundamenta nas normas do bem falar e do bem escrever, exigindo clareza e precisão. Essa concepção tradicionalista da língua foi amplamente utilizada nas décadas de 50 e 60. Isso porque o ensino, nesse período, era voltado para a camada mais privilegiada da população que, até então, era quem possuía acesso ao ensino e já chegava à escolacom razoável domínio do dialeto padrão/culto. Soares (1998, p.54) aponta que “A função do ensino da Língua Portuguesa era, assim, fundamentalmente, levar ao conhecimento, talvez mesmo apenas ao reconhecimento, das normas e regras de funcionamento desse dialeto de prestígio. ”. Ou seja, o aluno era um agente passivo que não refletia sobre o uso da língua. Essa concepção preparava- o apenas para classificar e seguir as normas de concordância, acentuação, regência, ortografia, pontuação e tudo o mais que estivesse pré-determinado pela gramática teórico-normativa. Diante desse cenário, Zanini (1999, p.80) afirma: “A inadequação dessa forma de ensinar residia no fato de que os conceitos e informações transmitidos nem sempre encontravam respaldo no contexto do aluno, que não entendia o porquê de ter que os assimilar, já que na prática não conseguia vislumbrar a sua utilização”. Percebe-se que esta concepção não apresenta eficácia no processo de aprendizagem da língua, uma vez que não interage com o contexto social do aluno e retira dele a capacidade de refletir e aprender ativamente. Vale ressaltar que, a partir dos anos 60, ocorreu uma democratização do ensino. Nesse contexto, a população menos privilegiada começou a ingressar na escola e, com isso, houve o surgimento da forma não-padrão da língua diante da variedade sociocultural que a escola passou a abrigar. Diante dessa nova necessidade que se impunha, surge a segunda concepção de linguagem, a qual é vista como instrumento de comunicação, e que será abordada na próxima subseção. 2.2 Linguagem como instrumento de comunicação Diante do novo cenário que se colocava, buscou-se uma fundamentação histórica da língua e vislumbrou-se o “outro” no processo de comunicação, outrora inexistente. Os estudos da língua propostos por Saussure (1969) foram extremamente importantes na mudança de visão que se tinha da linguística. A partir de tais estudos, surgiram os termos: mensagem, emissor e receptor, admitindo, dessa forma, a relação dialógica da língua. Na segunda orientação exposta por Bakhtin/Volochinov (2010) o objetivismo abstrato, os autores indicam algumas proposições que compõem essa orientação filosófico-linguística. Eles apontam quatro proposições que a norteiam, resumidamente: a língua é um sistema estável que segue uma norma; as leis da língua dialogam com os signos linguísticos dentro de um sistema fechado; as construções linguísticas não possuem relação com valores ideológicos; por último, os atos individuais de fala são vistos como deformações do modelo normativo. Essa orientação abordada por Bakhtin/Volochinov (2010) foi o gancho propulsor para a construção da concepção de linguagem como instrumento de comunicação, a qual surgiu em face do processo de democratização do ensino que ocorreu nos anos 60 e da necessidade em atender o novo público que surgia na escola. Essa concepção pretendia dar um aspecto mais instrumental e um uso mais prático no processo de ensino e aprendizagem de língua materna. O objetivismo abstrato discutido por Bakthin/Volochinov (2010) dialoga com a segunda concepção de linguagem abordada por Perfeito (2005), na qual a língua é vista como um código que transmite uma mensagem de um emissor para um receptor, mas essa mensagem é isolada de seu uso. Ao trazer tal concepção para o ambiente escolar, é possível perceber que o professor atua como o emissor, a pessoa que detém todo o conhecimento, ou seja, o portador da mensagem; e, o aluno, como agente passivo, o receptor da mensagem. Para Travaglia (1996): “Essa concepção levou ao estudo enquanto código virtual [...] Isso fez com que a Linguística não considerasse os interlocutores e a situação de uso como determinantes das unidades e regras que constituem a língua” (TRAVAGLIA, 1996, p.22). Basicamente, implica dizer que existe a preocupação com o papel do interlocutor no processo de comunicação, no entanto não se considera os fatores sociais e históricos no contexto de fala e, com isso, reduz-se esse ato a uma mera decodificação. Com a ascensão dessa nova concepção de linguagem, surgiu uma certa dependência do livro didático por parte do professor, pois ele não tinha liberdade e, talvez, pré-disposição para planejar livremente suas aulas, uma vez que tudo o que precisavam estava posto nos livros. Foi, então, a partir disso que se criou o que Zanini (1999) chama de A década dos modelos. Nos livros didáticos continham, majoritariamente, exercícios de repetição e de seguir o modelo, isso porque o aluno era visto como um sujeito pronto para internalizar o conhecimento pelo método da repetição e, assim, a visão do reforço foi muito marcada. Dentro desse contexto, no que diz respeito à gramática, predominavam os exercícios de repetição de regras para o uso de pontuação e acentuação; seguir o modelo de frase; encontrar componentes que estruturam a oração; termos essenciais e acessórios da oração; funções de linguagem: expressiva/emotiva, apelativa/conativa, referencial/informativa. Em linhas gerais: o que prevalecia era o ato de repetir e de identificar, mais uma vez isolado de sua utilização. Esse modelo foi seguido sem contestações por muito tempo. Então, por meados da década de oitenta, iniciou-se uma certa inquietação na área da linguística, pois novos estudos surgiram e vislumbrou-se a possibilidade de um novo método de ensino. Segundo Zanini (1999, p.82): “Tentando compensar esse esvaziamento de conteúdo, essa falta de reconhecimento da história da língua e da história do indivíduo e essa cisão entre os sujeitos, começa a surgir, mais definidamente, na década de 80, um novo professor de língua materna”. Esse fato conduzirá a uma nova concepção de linguagem. 2.3 Linguagem como forma de interação As duas concepções expostas anteriormente tornaram-se obsoletas diante da evolução dos estudos linguísticos e, a partir disso, surge um questionamento a respeito do objeto de estudo da língua: como refletir a respeito do objeto de estudo sem perder a sua essência? Para isso, Bakhtin/Volochinov (2010) afirmam que é necessário realizar uma integração do meio social e do contexto imediato para o envolvimento de toda a estrutura física, psicológica e fisiológica que será vinculada à língua e à fala, para então transformar-se em linguagem. Diante da necessidade de reformular os conceitos sobre linguagem, e sobre o processo de ensino e aprendizagem, é que surge a linguagem como forma de interação, na qual não se vê a língua apenas como instrumento de comunicação, pois agora ela passa a ser vista como enunciação. A concepção de linguagem como forma de interação dialoga com a interação verbal de Bakhtin/Volochinov (2010) quando afirmam que a verdadeira essência da língua reside no fenômeno social da interação verbal, que é resultado da enunciação, ou das enunciações. Segundo Soares (1998): “[...] inclui as relações da língua com aqueles que a utilizam, com o contexto em que é utilizada, com as condições sociais e históricas de sua utilização” (SOARES, 1998, p.59). Mediante essa afirmação, percebe-se que o ato de fala não se limita apenas à produção mental que será expressa para o social, mas também à situação social que determinará o que será enunciado. No ambiente escolar, essa concepção busca levar o aluno a refletir criticamente sobre as coisas que o cercam e a utilizar a língua como uma forma de interação com o outro. Esse processo se dá pela leitura, interpretação e produção de textos e análise linguística. Essa produção textual é vista como processo contínuo de construção e de reflexão mediado pelo professor. Já não cabe mais utilizar o termo Gramática, agora entendida como análise linguística, pois ela não será mais abordada de forma isolada, como nas concepções anteriores, conforme afirma Perfeito (2005): [...] a análise linguística se dá no sentido de se observar em um texto – de determinado(s)gênero(s) – o arranjo textual e as marcas linguístico-enunciativas, vinculadas às condições de produção (interlocução, suporte, possíveis finalidades, época de publicação e circulação...) no processo de construção de sentidos (PERFEITO, 2005, p.61) Em sala de aula, faz-se necessário um diálogo constante entre professor e aluno, pois este não é mais visto como agente passivo, mas sim como agente que exerce ativamente sua capacidade reflexiva e crítica. Tudo isso será proporcionado pelo ato de leitura, interpretação de textos, produção, reescrita e análise de sentidos provocados pela posição dos elementos gramaticais. 3. Apresentação do corpus e análise Nesta seção, analisaremos quatro questões de um livro didático de Língua Portuguesa, do 8º ano, publicado pela editora Moderna (2012), intitulado Singular & Plural: Leitura, produção e estudos de linguagem. Optamos por trabalhar com questões de duas unidades diferentes: unidade 2: Língua e gramática normativa, a qual apresenta três capítulos: 1 (período composto), 2 (período composto por coordenação) e 3 (operadores argumentativos); e unidade 3: Ortografia e pontuação, a qual apresenta, também, três capítulos: 1 (ortografia), 2 (acentuação das palavras) e 3 (pontuação). Decidimos selecionar dessa forma, pois as questões são muito parecidas, algumas possuem o mesmo comando, praticamente. Vale ressaltar que não utilizaremos todas as questões de todos os capítulos elencados acima. Assim, indicaremos, antes de introduzi-las, à qual capítulo e unidade elas pertencem. A prática consiste em apresentar as questões e, logo após, comentá-las, tendo como base nossos conhecimentos acerca das concepções de linguagem. Comecemos pela questão do capítulo 1 (período composto) da unidade 2 (Língua e gramática normativa): 1. Releia estas frases. I. Eu não comi todo o chocolate! II- Só guardei pra depois! a) Quantos verbos foram utilizados nessas frases? Copie-os no caderno. b) Quantas orações há nessas frases? A questão em destaque pede para que o aluno apenas releia as frases e indique quantos verbos foram utilizados, copiando-os no caderno, e indique quantas orações há nas frases dispostas. Não vimos explicações acerca do que sejam verbos e orações, nem sobre como as palavras estruturalmente conhecidas como “verbos” podem exercer outras funções dentro das frases, tais como substantivos, por exemplo. Ou seja, o aluno deve seguir, aqui, somente a prescrição, sem levar em conta outras abordagens. Assim, subentendesse que o aluno já deva ter esse conhecimento prévio acerca da gramática, do que se enquadra como “verbo”. Com base nessas informações, podemos dizer que essa questão se enquadra na concepção que tem a linguagem como expressão do pensamento, pois conforme visto em Perfeito (2005), essa concepção, no que concerne ao ensino de língua, dá ênfase à gramática teórico-normativa. É o que podemos verificar, uma vez que a questão tem como objetivo levar o aluno a seguir as prescrições, para poder identificar e enumerar, sem refletir sobre a alternativa. A próxima questão também se encontra no capítulo 1 (período composto) da unidade 2 (Língua e gramática normativa). Vejamos o que pede o comando: 2. Releia este período Eles pensam no formato do livro [...], fazem orçamentos, pensam nos tipos de papel, escolhem a capa, a gráfica, ajustam o texto e as ilustrações em parceria com os autores da obra. a) Em seu caderno, copie separadamente as orações que compõem esse período, destacando o verbo de cada uma delas. b) Quantas orações há no período? Essa questão segue o mesmo modelo da anterior, pois pede para que o aluno identifique as orações e diga quantas são. Quando o leitor começa a ler o comando, o qual traz um pequeno texto, imagina que irá responder perguntas sobre o texto em si, sobre seu conteúdo, mas o que se pede, na verdade, é referente aos aspectos normativos. Em relação a isso em se utilizar textos com a finalidade de pedir ao aluno para que se retire apenas os verbos, por exemplo , podemos dizer que é um problema, de certo modo. Nesses casos, é como se os textos fossem apenas um “produto acabado” que têm verbos, orações, períodos, etc. O que queremos salientar é que o aluno poderá internalizar essa ideia de que ler textos é algo “chato”, uma vez que ele não consegue enxergar uma aplicabilidade dessa atividade (de classificar, enumerar, identificar, etc.) na sua prática do dia a dia. Dessa forma, entendemos que essa questão se enquadra na concepção que tem a linguagem como expressão do pensamento, uma vez que conduz o aluno ao caminho de “seguir as regras”. No caso da referida questão, foi exigida do aluno apenas a sua habilidade em identificar, destacar e enumerar, conforme ditam as prescrições, o que não o possibilita o exercício da reflexão. Vejamos, agora, a questão que pertence ao capítulo 1 (ortografia) da unidade 3 (Ortografia e pontuação): Para começar, leia as frases a seguir. Quem tem aflição (substantivo) está aflito (adjetivo) Um órgão que serve para a locomoção (substantivo) é um órgão locomotor (adjetivo) Um texto que faz argumentação (substantivo) é argumentativo (adjetivo) 1. Em cada uma dessas frases, aparece um adjetivo e um substantivo pertencentes à mesma família. Agora, você fará o mesmo. Escreva o caderno o(s) adjetivo(s) que pertencem à mesma família de cada um dos substantivos listados no quadro a seguir. O exercício exposto acima pede para que o aluno observe o modelo e depois refaça, em seu caderno, do mesmo modo como fora colocado no exemplo. Para isso, ele deverá utilizar o quadro em destaque. Embora a atividade peça para classificar o que é substantivo e o que é adjetivo, o que predomina é a prática de “seguir o modelo”. Esse sistema de “faça de acordo com o modelo” é um tanto quanto decadente, pois nele, conforme visto em Perfeito (2005, p. 36): “focaliza-se o estudo dos fatos linguísticos por intermédio de exercícios estruturais morfossintáticos, na busca da internalização inconsciente de hábitos linguísticos, próprios da norma culta. ” Isso indica que o conteúdo é abordado de forma isolada e superficial. Assim, entendemos que essa questão se adequa à concepção que tem a linguagem como instrumento de comunicação. Além disso, é importante que se atente para a abordagem que está sendo feita: a relação entre os eixos paradigmático e sintagmático. É um assunto que requer um pouco de cautela ao ser abordado, pois são coisas diferentes que levam em consideração aspectos diferentes. Por exemplo, vamos observar como foram colocadas as palavras nos exemplos acima. O que há de comum entre elas são apenas os radicais, pois as terminações são diferentes (ex: aflição/aflito; locomoção/ locomotor). Como saber quando é substantivo e quando é adjetivo só pelas terminações das palavras? De fato, em alguns casos há a possibilidade de se identificar a classe Conjunção edição negação abstração transcrição inspeção imposição Instrução erudição relação inscrição adição repetição distinção Exceção descrição ação restrição direção condução emoção da palavra pela sua terminação, mas veja o caso de aflito e locomotor, as terminações são diferentes, será então necessário decorar essas estruturas. Isso significa que o aluno deverá seguir o modelo sempre, uma vez que não lhe fora ensinado analisar as relações entre as palavras no eixo sintagmático, mas somente as formas do eixo paradigmático. Para entender melhor, acontece da seguinte forma: temos a frase “O homem está aflito” e “O aflito vem chegando”, note que nos dois casos nós temos a mesma palavra: aflito. Isso significa dizer que estamos trabalhando com o eixo paradigmático, pois corresponde à morfologia da palavra. No entanto, a sua função não é a mesma nas duas frases. Na primeira, “aflito” está com a função de adjetivo, na segunda, com a função de substantivo.Nesse caso, estamos lidando com o eixo sintagmático, essa é a grande diferença. O que o professor pode fazer para ensinar esse assunto de forma mais efetiva é mostrar ao aluno que a palavra pode assumir, a depender do contexto, outra classe de palavra diferente daquela estipulada na entrada do dicionário. A questão seguinte pertence ao capítulo 2 (Acentuação das palavras) da unidade 3 (Ortografia e pontuação): 1. No caderno, copie as palavras a seguir e acentue-as corretamente. Se tiver dúvidas, consulte o dicionário. A atividade acima pede para que o aluno acentue corretamente as palavras, ou seja, deve-se classificar o que é “certo” e o que é “errado”. Trata-se de um exercício sobre acentuação, logo, deve-se seguir o que preceitua a gramática teórico-normativa. Não vimos outras orientações sobre como resolver a questão além da “consulte o dicionário em caso de dúvida”. O aluno deverá apenas identificar, localizar e acentuar as palavras, sem refletir sobre o porquê daquela acentuação. Nesse caso, a questão se encaixa na concepção que tem a linguagem como expressão do pensamento. Pacote rainha loja familia numero (subst.) mas (porém) mas (malvadas) ideia so heroi viuvo moi abacaxi magoa (subst.) heroico beco parabens lampada feiura nupcias raizes sotãos faceis carater orfão imã armazem passaro republica pa Conforme visto na primeira seção, Soares (1998, p.54) aponta que essa concepção tradicionalista da língua foi amplamente utilizada nas décadas de 50 e 60. O aluno era um agente passivo que não refletia sobre o uso da língua, pois era capacitado apenas para dominar as normas gramaticais. É justamente o que ocorre na referida questão, visto que o aluno, de acordo com nosso entendimento acerca da leitura do comando, não tem chances de atuar como sujeito ativo desse processo de aprendizagem. No entanto, pode-se tentar trabalhar o assunto sobre acentuação de uma outra maneira; por exemplo, levar o aluno a entender por que uma palavra é acentuada da forma que é. Um bom início seria buscar a origem do léxico e mostrar como era a sua estrutura, a sua pronúncia, o que foi modificado etc. O estudo sobre o Latim é de grande valia, nesse caso. Geralmente, os professores de Língua Portuguesa têm essa disciplina na sua formação, então por que não a utilizar para fazer o aluno refletir sobre o uso e sobre o trabalho com a língua? Assim, ainda que a questão sobre acentuação se enquadre na primeira concepção de linguagem, o professor poderá abordá-la utilizando-se de outras metodologias, as quais facilitem a compreensão do aluno, não o deixando refém do ato de decorar, ou do dicionário. Assim, com base nas análises realizadas nessa seção, verificamos que é predominante a concepção de linguagem como expressão do pensamento. Isso é negativo, de certa forma, pois as atividades voltadas para essa concepção não instigam o processo reflexivo dos alunos. No entanto, isso não significa que elas devam ser extintas dos livros didáticos, ou da prática de sala de aula. Partimos do pressuposto de que elas podem ser utilizadas, mas de forma equilibrada; tudo irá depender do professor. Ele poderá começar a aula, por exemplo, trabalhando com essas questões mais direcionadas para a concepção de linguagem como expressão do pensamento e terminar trabalhando com questões da concepção de linguagem como forma de interação, ou planejar de outra forma, conforme as necessidades da turma, desde que haja uma certa proporcionalidade. Por fim reformularemos, com base na terceira concepção, a qual tem a linguagem como forma de interação, uma das questões analisadas anteriormente. Selecionamos a questão do capítulo 1 (período composto) da unidade 2 (Língua e gramática normativa), a qual se enquadra na concepção que tem a linguagem como expressão de pensamento: 1. Releia estas frases. I. Eu não comi todo o chocolate! II- Só guardei pra depois! a) Quantos verbos foram utilizados nessas frases? Copie-os no caderno. Essa questão é baseada na charge. No entanto, no livro didático, as únicas coisas que são retiradas da referida charge são as frases I e II, ou seja, não se aproveitou o gênero “charge” para trabalhar com o aluno uma atividade voltada para a linguagem como forma de interação, apenas se utilizou dela com o fim de levar o aluno a identificar, classificar e enumerar, conforme prega a linguagem como expressão de pensamento. Assim, apresentaremos essa questão modificada e, logo após, teceremos nossos comentários acerca dela: Releia estas frases. I. Eu não comi todo o chocolate! II- Só guardei pra depois! a) levando-se em consideração o contexto evidenciado na charge, e com base nas frases I e II, qual é o verbo que causa o efeito de humor? Por quê? Com base nessa reformulação, essa poderia ser uma possível resposta: a) O verbo que causa o efeito de humor na charge é o “guardei”. Se analisarmos a frase de forma isolada, sem atentar para a imagem, imaginamos que o garoto, de fato, guardou o chocolate para depois para não deixar a mãe furiosa. No entanto, o efeito de humor se dá porque “guardar”, em seu sentido real, significa “tomar conta, pôr em um lugar apropriado”. O humor está justamente no entendimento do que seja esse “lugar apropriado”, pois para o garoto o lugar é embaixo do seu lençol, mas para a mãe, não! Dessa forma, podemos ver qual a diferença entre a questão voltada para a primeira e a questão voltada para a terceira concepção. Se antes ela fora utilizada somente com o fim de levar o aluno a identificar, destacar e enumerar, agora ele tem a possibilidade de refletir sobre o que está sendo pedido. Isso ocorre, pois de acordo com a concepção que tem a linguagem como forma de interação, a língua é tida como atividade social. Além disso, conforme visto em Perfeito (2005), no ensino da gramática são focalizados o processo reflexivo e a construção de sentidos, trabalhando-se, ainda, com a categorização dos gêneros. No caso da questão modificada, o aluno é levado a formular sua resposta colocando sua atividade reflexiva em prática e, ainda, a recorrer ao seu conhecimento de mundo, ao contexto social no qual está inserido. 4. Considerações finais Com base em nossa análise acerca das unidades selecionadas, observamos que houve a predominância da concepção que tem a linguagem como expressão do pensamento, visto que a maioria das questões dá ênfase à gramática teórico-normativa, na qual o aluno deve reconhecer o “certo” e o “errado”. Além disso, verificamos que se deu ênfase ao famoso “seguir as regras”, em que não é permitido ao aluno ir além do texto, refletir sobre. O aluno, assim, é tido como um agente passivo, sem possibilidade de discutir e de problematizar, pois ele deve seguir somente o que está no texto, nada além disso. Soares (1998, p.54) aponta que essa concepção tradicionalista da língua foi amplamente utilizada nas décadas de 50 e 60. Ao considerar a língua como uma unidade imutável, não se tem abertura para o estudo das variações linguísticas, uma vez que isso implicaria “variações” de pensamento, algo incabível nesse contexto. As regras da gramática normativo-prescritiva expressam uma obrigação e uma avaliação de certo e errado. É por isso que, nessa gramática, a concepção que se tem da língua é aquela que valoriza a forma de falar e escrever da "norma culta" ou "variedade padrão", sendo o seu aprendizado reduzido ao aprendizado da normatização da gramática. Isso não quer dizer que o uso de questões dessa concepção esteja totalmente errado. Entendemos que o professor deve, também, se valer dessa concepção, mas ela não deve ser o único meio utilizado. Ele deve perpassar por ela, assim como pelas demais, porém deve haver um certo equilíbrio para que se alcance melhores resultados,sendo o principal: a aprendizagem efetiva do educando. Destarte, deve partir do professor essa sede de buscar questões que levem o aluno a entender e a refletir sobre o que está sendo aprendido; contribuindo, dessa forma, para a sua formação enquanto sujeito individual e social. Referências BAKHTIN/VOLOCHINOV, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 2010. GERALDI, J, W. Concepções de linguagem e ensino de português. In: GERALDI, J,W. O texto na sala de aula; leitura e produção. Cascavel: Assoeste, 1984 , p.41-49. PERFEITO, A, M. Concepções de linguagem, teorias subjacentes e ensino de língua portuguesa. In: Concepções de linguagem e ensino de língua portuguesa (Formação de professores EAD 18). V. 1. Ed. 1. Maringá: EDUEM, 2005. P.27-75 SOARES, M. Concepções de linguagem e ensino da Língua Portuguesa. In: BASTOS, N. B. (Org). Língua Portuguesa: história, perspectiva, ensino. São Paulo: Educ, 1998. TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996. ZANINI, M. Uma visão panorâmica da teoria e da prática do ensino de língua materna. Acta Scientiarum. Maringá- Paraná. Volume 21. P. 79-88. 1999.
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