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História Da Infância E Multiculturalismo

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História da infância eHistória da infância e
multiculturalismomulticulturalismo
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Bem vindo(a)!
Caros (as) alunos (as), esta é uma oportunidade para que você descubra um pouco
mais sobre as vicissitudes do ser criança. Tudo o que conhecemos hoje nossa
hábitos, nossa forma de nos relacionarmos, como olhamos para as crianças, en�m,
tudo é histórico! Relacionar temas como infância, educação e multiculturalismo, nos
permite um olhar mais abrangente de um tema que foi por muito tempo esquecido.
Para começar, iniciamos nossa discussão com a seguinte questão: como foi
construída a imagem de infância que temos hoje? Nem sempre prevaleceu a ideia
de que as crianças precisavam ser amadas e cuidadas, eram tratadas como um ser
substituível em períodos de alta mortalidade infantil. Alinhado à isso, discutiremos o
próprio conceito de infância, o que caracteriza esta fase tão especial da vida
humana? Tudo isso, sem perder o foco da inserção das crianças na família e na
sociedade.
A unidade II será dedicada exclusivamente em pensar as políticas públicas para as
crianças e adolescentes. Diante de um cenário de diversos abusos e violências
contra o infante, qual o papel do Estado? Veremos que o Estado e sociedade civil se
comportaram de diferentes formas no decorrer do tempo para sanar a problemática
da criança carente.
Após isso, já em nossa terceira unidade estudaremos algumas das normativas legais
na educação infantil, compreendendo as principais legislações para esta
estruturação. Abarcaremos o papel do educador enquanto um dos responsáveis
para a formação plural da criança, bem como salientaremos o importante papel da
escola, principalmente diante de questões que ameacem o bem-estar do infante.
Por �m, na unidade IV você verá alguns saberes e fazeres da educação multicultural,
de forma que o docente possa lançar de metodologias e teorias que o possibilitem
trabalhar com pluralidade, tendo em vista a complexa realidade brasileira.
Esperamos que você possa aproveitar as discussões aqui iniciadas!
Bons Estudos!
Unidade 1
Conceito de infância,
família e suas
historicidades
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Introdução
Atualmente é consenso de que as crianças devem ser protegidas, amadas e
cuidadas, mas você sabia que nem sempre foi assim? O olhar histórico sobre a
infância nos permite ver como através dos tempos os olhares do adulto sobre o
infante se modi�cou radicalmente. Você saberia dizer como a criança passou de um
ser substituível e ignorado a praticamente o “rei” da casa em nossos tempos
modernos? Pois então, a investigação histórica nos dá pistas de como este processo
pode ter acontecido.
Para começarmos, vamos nos permear pela abordagem histórica sobre a infância,
compreendendo que é um campo de estudo relativamente recente aqui no Brasil.
Iremos entender também que a visão que conservamos sobre infância é construída
e que é necessário desnaturalizar. Parte desta visão foi elaborada com base no olhar
do adulto sobre criança, com pouco ou nenhum espaço para que houvesse uma
representação mais próxima de fato do mundo infantil.
Em seguida, vamos nos adentrar no conceito de infância articulado com suas
complexidades. Além da de�nição legal do que se compreende infância, levantamos
questionamentos sobre as linguagens próprias deste universo. Veremos que
entender as compreensões que se faz sobre a infância diz respeito a re�etir em quais
condições contextuais esta infância ressurge e quais são as suas conexões com o
mundo social.
No terceiro tópico, o mais denso de todos, apresentamos um breve histórico da
infância, focando principalmente na realidade brasileira. Entretanto, traçaremos um
cenário referente a infância na antiguidade, na Idade Média e na Modernidade, para
depois falarmos da particularidade do ser criança no Brasil no decorrer do tempo e
em diferentes classes sociais.
Por �m, nos dedicaremos a pensar o papel da família e sociedade na constituição da
criança. Mostraremos a multiplicidade de famílias, que fogem da de�nição de
família nuclear ou tradicional, mas que além de estarem amparadas pela legislação
como tais, também exercem in�uência signi�cativa na construção do sujeito.
Bons estudos!
Introdução e conceitos
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Quando falamos em infância nos dias atuais, evoca-se a noção de direitos, proteção
e cuidado, principalmente no que se refere ao papel da família e sociedade na
educação das crianças. É bem verdade que nem sempre foi assim, esta fase da vida
humana não era tratada de forma especial e mesmo as investigações cientí�cas não
tomavam a infância como objeto de estudo. Esse movimento de transformação no
olhar para a criança obedece, sobretudo, ao desenvolvimento histórico que permitiu
que hoje várias instâncias da sociedade estejam comprometidas com a proteção,
educação e investigação acerca da infância.
Falar em história da infância e suas diversas manifestações no seio cultural, exige
que entendamos a operação histórica. Poderíamos fazer uma longa discussão sobre
quais elementos recaem na construção do conhecimento histórico, no entanto, este
não é nosso objetivo central. Cabe dizer, em primeiro lugar, o que não é da alçada da
história. O senso comum insiste em apresentar a História como uma narrativa
cronológica de eventos históricos considerados importantes, normalmente
encabeçados por grandes personagens.
Certamente, essa visão acerca da história predominou por muito tempo no
horizonte da disciplina. Porém, a história não se trata apenas de narrar as
informações de grandes personagens e eventos. A própria possibilidade do estudo
histórico da infância nos revela isso. Burke (1992, p. 11) salienta que tudo passou a ser
objeto da história: “a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira e a
limpeza, os gestos e o corpo”. A ampliação do campo de estudos da história
acontece por volta de 1970 e rea�rma a perspectiva não estudar apenas os eventos
políticos, diplomáticos ou religiosos, mas também de olhar para o cotidiano e para
os marginalizados, ou seja, investigar as mentalidades em um olhar histórico.
É neste sentido que o historiador francês Philippe Ariès publica, ainda na década de
1960, a obra “História social da infância e da família”, que é uma das referências no
estudo da história da infância. Em um recorte que passa pelo período medieval até a
época Moderna, Ariès (1978), procurou demonstrar na sua obra como a concepção
de infância foi construída e ela não existia no período medieval vindo a existir apenas
no período moderno. Del Priore (2013) chama atenção que antes de publicar uma
obra voltada exclusivamente à história da infância, Ariès já começava a esboçar suas
ideia acerca da abordagem histórica da criança em 1948, no capítulo dedicado à
história da criança e da família, em seu livro “História das populações francesas e de
suas atitudes face à vida desde o século XVII”.
No Brasil, a história da infância ainda tem sido pouco estudada, ainda que haja um
crescimento nas últimas décadas. Podemos aqui pontuar trabalhos importantes tais
como de Mary Del Priore, organizadora e escritora da obra “História da criança no
Brasil”, com a primeira publicação em 1991, bem como o livro “História social da
infância no Brasil” de 1996, organizado por Marcos Cezar de Freitas e que faz parte
de uma trilogia de outras obras dedicadas a pensar o tema. No caso de Freitas (2016),
o interesse surgiu ainda em 1990 quando o Instituto Franciscano de Antropologia –
IFAN buscou estimular o debate em torno da questão social da criança, do “ser
criança” no Brasil.
Além de desnaturalizar a visão de infância que carregamos, abordagem histórica
ainda cumpre uma função de desnudar a realidade, como nos chama atenção Del
Priore (2010):
Para começar, a história sobre a criança feita no Brasil, assim como no
resto do mundo, vem mostrando que existe uma enorme distância
entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, pelas
não governamentais e pelas autoridades, daqueleno qual a criança
encontra-se cotidianamente imersa. O mundo que a “criança deveria
ser” ou “ter” é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes,
sobrevive. (DEL PRIORE, 2010, p. 8).
A vertente histórica, portanto, versa pelo estudo das práticas infantis, para além das
designações ideais da infância. Além disso, existem diferenças entre falar de uma
história da infância europeia e uma história da infância brasileira. Se na tese de Ariès
(1978) encontramos a ausência de um sentido da infância que vai se trans�gurar na
época moderna, no Brasil a realidade é outra. Del Priore (2010), sustenta que no
Brasil a marcas da escravidão e maciça falta de escolarização, colocou a criança seja
em um processo de normatização dos corpos ou largados à violência e
desamparados pelo Estado.
@freepik
Coube a história, como demonstrou
Ariès (1978), desnaturalizar a visão
que a sociedade contemporânea
possui sobre a infância . 
Isso começa pela própria
importância que damos em registrar
uma criança, contabilizar sua idade
e imputar um registro de
nascimento, representado por
números. Não era comum que uma
pessoa da Idade Média, ou mesmo
do início da Idade Moderna
lembrasse de sua idade
corretamente. 
Já indicando que a nossa facilidade
e esforços para deixar claro a idade
da criança, seja no seio familiar e
comunitário, como para questões
legais, era radicalmente diferente do
que em épocas antecessoras. 
No entanto, na concepção de Del Priore (2013) entender historicamente a infância
não consiste apenas em olhar para o passado como abusivo em direção às crianças,
como sustentou Demause (1989). O autor, se valendo dos métodos da psico-história,
compreende que “quanto mais se retrocede ao passado mais baixo é o nível de
puericultura e mais expostos estão à morte violenta, ao abandono, aos golpes, ao
terror e aos abusos sexuais” (DEMAUSE, 1989, p. 15). Contextualizando a história da
infância em uma perspectiva brasileira, Del Priore (2013) leva em consideração os
episódios de terríveis sofrimentos das crianças, mas relata que não se pode resumir
a história da infância a isso. A autora, através de sólida documentação, encontra
relatos de afeto materno no século XVII, tanto entre as mães livres quanto entre as
escravizadas. Por isso, Del Priore (2010) tem como objetivo:
[...] resgatar a história da criança brasileira não apenas enfrentando um
passado e um presente cheio de tragédias anônimas – como a venda
de crianças escravas, a sobrevida nas instituições, as violências sexuais,
a exploração de sua mão de obra –, mas tentando também perceber
para além do lado escuro. A história da criança simplesmente criança,
suas formas de existência cotidiana, as mutações de seus vínculos
sociais e afetivos, sua aprendizagem da vida através de uma história
que, no mais das vezes, não nos é contada diretamente por ela. (DEL
PRIORE, 2010, p. 16).
Conceber historicamente a infância perpassa, portanto, em colher testemunhos que
não são necessariamente os das crianças, mas analisa-se os relatos de viajantes, de
médicos sanitaristas, de cartas jesuíticas, en�m tudo que possa revelar um pouco do
cotidiano e sobre as relações sociais. Para isso, a história adota uma perspectiva
social, que busca entender como a criança foi representada em cada época. Essa
situação implica na própria construção que fazemos sobre infância:
Podemos compreender a infância como a concepção ou a
representação que os adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou
como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa
fase da vida. A história da infância seria então a história da relação da
sociedade, da cultura, dos adultos, com essa classe de idade e a história
da criança seria a história da relação das crianças entre si e com os
adultos, com a cultura e a sociedade. Mas a opção por uma ou outra
perspectiva é algo circunscrito ao mundo dos adultos, os que escrevem
as histórias, os responsáveis pela formulação dos problemas e pela
de�nição das fontes a investigar. (FREITAS; KUHLMANN JR; 2002, p. 7
apud FREITAS, 2016, p. 9-10).
O que a citação acima indica é que falar sobre a história das crianças incide em
buscar as representações que os adultos fazem desta fase, ainda que haja o esforço
genuíno para compreender o mundo infantil. Inclusive, a imputação de adjetivos em
torno das crianças em uma dada época indica o posicionamento daquela sociedade
em torno do infante, permitindo traçar imagens acerca das práticas desta:
Os adjetivos que acompanham a palavra criança são indícios da
construção da “autoridade” de quem se pronuncia. A criança tem sido
acompanhada de palavras como “normal” ou “anormal”, “saudável”,
“de�ciente”, “hiperativa”, “agressiva”, “inteligente” etc., e essa
adjetivação faz parte, como diria Raymond Williams, do repertório de
palavras-chave com o qual também podemos ler a ação dos homens
no tempo e no espaço. (FREITAS, 2016, p. 11)
Assim, as palavras são apenas um dos indicativos que mostram como cada época
representa a infância, seja por fontes médicas, jurídicas, governamentais, dentre
outras, ou mesmo de relatos que evidenciem o caráter cotidiano da vida das
crianças. É importante salientar, como lembra Dourado (2009), que o conceito
histórico de infância, deixa de ser um dado meramente biológico, de estágio da vida
humana, e passa a ser objeto de preocupação de vários âmbitos sociais que
projetam sobre o futuro, isto é, busca potencializar-se o presente, focando na
vivência das crianças, para a perpetuação de determinados valores.
Com isso, podemos perceber algumas diretrizes que guiam o estudo da criança por
viés histórico. O primeiro deles é que a visão de criança que temos hoje, como
sujeito de direitos, com necessidade de uma formação institucionalizada por meio
de escola, e sujeito digno de proteção, não é algo naturalmente dado, mas é produto
de uma construção histórica. Em segundo lugar, é possível notar que as vozes das
crianças por meio da documentação histórica muitas vezes é difícil de ser ouvida,
por isso, como defende Del Priore (2010), são necessários esforços para que estas
vozes sejam ouvidas e possamos tirá-las do anonimato histórico.
O conceito de infância
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Para compreender o conceito de infância, que é múltiplo e complexo, é necessário
que compreendamos que existem diferenças entre infância e criança. De acordo
com Heywood (2004), infância designa uma categoria abstrata referente a um
estágio da vida, enquanto que crianças se refere ao grupo de indivíduos. Por isso, a
seguir vamos discutir acerca desta primeira etapa da vida humana.
O interesse cientí�co pela infância não �cou apenas no campo da história, mas a
sociologia, a psicologia, a psicanálise e outros âmbitos do conhecimento procuraram
de�nir esta etapa da vida. O que é esta fase tão particular de nosso desenvolvimento
e por quê hoje ela nos parece tão distante e incompreensível? A compreensão sobre
a infância está sujeita a modi�cações de acordo com tempo e espaço em que são
enunciadas, porém, a palavra infância em sentido etimológico vem do latim
infantia, como explicam Ferreira e Sarat (2013):
Um exemplo concreto acerca da dimensão de tais representações pode
ser aferido na etimologia da palavra infância, que vem do verbo fari e
que signi�ca falar, ter a faculdade e o uso da fala; infans, antis (que não
fala, que tem pouca idade, infantil, criança). Infantia, portanto, signi�ca
di�culdade ou incapacidade de falar, mudez. (FERREIRA; SARAT, 2013,
p. 237)
A de�nição desta fase da vida ainda encontra subsídios legais. Diante do processo
de redemocratização do cenário político brasileiro, nasce a Constituição Federal em
1988, em linhas gerais, o documento retrata a criança e o adolescente como sujeitos
de direito, especialmente nos artigos 227, 228 e 229. Já com o Estatuto da Criança e
do Adolescente de 1990, de acordo com Freitas (2016) materializa o conteúdo da
Constituição. O ECA considera criança todo e qualquer indivíduo até os doze anos de
idade. Já nesta de�nição jurídicavemos a intenção em de�nir a criança como ser
que necessita de proteção não apenas da família, mas do Estado e da sociedade em
geral. Esboça-se, portanto, a infância como fase onde se tem pleno direito à vida e
saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e social, à
educação, ao esporte, à cultura, ao lazer, à proteção no trabalho, dentre outros. A
questão da proteção à infância colocada pelo ECA esteve sujeita aos movimentos
que advogavam pela causa, que estiveram subsidiados, para além da observação
empírica da realidade, pelo amplo suporte teórico que buscou de�nir o que é
infância.
Já vimos que a partir do viés histórico, que a infância pode ser entendida como “a
concepção ou a representação que os adultos fazem sobre o período inicial da vida,
ou como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase da
vida” (KUHLMANN; FERNANDES, 2004, p. 15). Como lembram Ferreira e Sarat (2013,
p. 238) as representações históricas da infância incorrem o risco de se pautar em
uma perspectiva “adultocêntrica”, assim “prevalece a visão do adulto como
responsável pela criança que não sabe se defender e não pensa adequadamente.”
Isso não quer dizer que a relação entre infância e vida adulta não é legítima, mas sim
perpassa em entender as linguagens infantis:
Os seres humanos não só podem, mas também devem aprender com
outras formas preexistentes de linguagens de uma sociedade
especí�ca. Eles devem aprendê-las não só para se comunicar com os
outros, mas também para se tornarem indivíduos totalmente
funcionais (ELIAS, 2009, p. 27 apud FERREIRA; SARAT, 2013, p. 238-239).
Inferimos, portanto, que compreender o mundo infantil diz respeito a conhecer uma
linguagem que lhe é própria, mas também reside em compreender a infância como
categoria social, isto é, reconhecer os aspectos particulares que designam infância e
também perceber as interações sociais destes indivíduos com relação a outras
categorias sociais.
Kramer (2006) esclarece que a ideia de infância, enquanto categoria social, nasce
com base na percepção da classe média e no tratamento direcionado às crianças.
Neste sentido, a autora concorda com Ariès (1978), para quem a infância, retratada
no sentido de cuidado e proteção, seria um produto da sociedade burguesa
moderna. Porém, dada a diversidade de contextos, a infância é representada de
formas diferentes, de acordo com os recortes de classe, econômicos, dentre outros.
Por muito tempo ainda, os pobres vão encarar a mortalidade infantil
como fatalidade a ser aceita na ordem natural das coisas. Para os ricos,
no entanto, esse fenômeno torna-se um inimigo a ser combatido, a �m
de preservar os futuros cidadãos que deverão ocupar-se dos rumos da
sociedade. (DOURADO, 2009, p. 3)
Perceba que, as ideias que são construídas sobre a infância são múltiplas e se
inserem não apenas nas diferenciações impostas pelo tempo e espaço, mas
também critérios socioculturais devem ser levados em consideração. Isso leva, de
acordo com Kramer (2006) a seguinte questão: de qual infância estamos falando?
Para além da sua diversidade de representações, especialistas discutem se a infância
estaria desaparecendo. Não estamos a falar aqui sobre a infância como fase
biológica da vida, a qual todos temos que passar, mas sim a ideia de pureza,
ingenuidade e proteção que sofre constantes abalos no mundo contemporâneo.
Vemos com frequência crianças vivendo na extrema pobreza, vítimas de trabalho
infantil e diversos abusos. Isso seria su�ciente para a�rmar que a ideia idílica com
sorrisos, brincadeiras e cuidados de infância teria desaparecido? Na concepção de
Postman, citado por Kramer (2006), com a era pós-industrial essa concepção, como
criação humanitária da modernidade, de criança teria desaparecido. Com o advento
da mídia e internet e o acesso irrestrito das crianças ao mundo adulto, essa ideia de
pureza infantil teria sumido.
Entender que dentro da categoria social da infância, existem crianças que são
sujeitos históricos e sociais, e que, por isso, compartilham das questões sociais do
seu tempo é importante neste quesito. Entretanto, é importante pontuar o que é
especí�co desta fase da vida, que são as brincadeiras. As brincadeiras, neste sentido,
não são apenas um modo de distração infantil, são formas que os indivíduos nesta
fase produzem cultura e são produzidos por ela. (KRAMER, 2006).
A infância, mais que estágio, é uma categoria da história: existe uma
história humana porque o homem tem infância. As crianças brincam,
isso é o que as caracteriza. Construindo com pedaços, refazendo a
partir de resíduos ou sobras [...], na brincadeira, elas estabelecem novas
relações e combinações. (KRAMER, 2006, p.15, grifo nosso).
No âmbito das brincadeiras e dos jogos, Benjamin (2017) nos alerta para o fator
geracional envolvido, ou seja, da relação entre mundo infantil e mundo dos adultos.
Os brinquedos são sempre uma imposição do mundo adulto, ainda que não sejam
imitações de instrumentos deste mundo, “pois, quem senão o adulto oferece
primeiramente às crianças os seus brinquedos?” (BENJAMIN, 2017, p. 96). No
entanto, é graças à imaginação infantil que estes objetos impostos se tornam, de
fato, brinquedos.
Kramer (2006) reti�ca a propensão lúdica própria da infância para as brincadeiras ao
dizer que as crianças se utilizam de “restos da história”, isto é, podem manipular e
criar narrativas através daquilo que não há muito valor para a sociedade em geral,
criando uma cultura:
Elas reconstroem das ruínas; refazem dos pedaços. Interessadas em
brinquedos e bonecas, atraídas por contos de fadas, mitos, lendas,
querendo aprender e criar, as crianças estão mais próximas do artista,
do colecionador e do mágico, do que de pedagogos bem
intencionados. A cultura infantil é, pois, produção e criação. (KRAMER,
2006, p. 16)
A constituição da infância e a sua cultura está ligada ao seio social da qual as
crianças fazem parte. É preciso entender, que estes indivíduos são sujeitos sociais,
que são produzidos pelo seu contexto, mas também agem sobre ele. Toda carga de
tradições e valores, as práticas sociais e as experiências que essas crianças passarão
durante essa fase vida, in�uenciam as suas ações e na gama de signi�cados que dão
às coisas, às pessoas e também às relações sociais. (KRAMER, 2006).
As crianças possuem uma natureza singular, que as caracteriza como
seres que sentem e pensam o mundo de um jeito muito próprio. Nas
interações que estabelecem desde cedo com as pessoas que lhe são
próximas e com o meio que as circunda, as crianças revelam seu
esforço para compreender o mundo em que vivem, as relações
contraditórias que presenciam e, por meio das brincadeiras, explicitam
as condições de vida a que estão submetidas e seus anseios e desejos.
(BRASIL, 1998, p. 21)
É necessário entender, portanto, que o conceito de infância é amplo e dinâmico e
não está submetido a explicações simplistas. O caráter de infância que possuímos
hoje é construído e essa construção obedece a nossas próprias con�gurações
sociais. Assim, se quisermos compreender de forma mais apurada o conceito de
infância é sempre necessário entender o contexto em que suas práticas sociais estão
colocadas.
História da infância
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Atualmente, compartilhamos da visão de que a infância é uma fase especial,
dedicada às brincadeiras e aos primeiros anos de formação, porém, nem sempre foi
assim. Veremos a seguir que as concepções acerca da infância se modi�caram
muito no decorrer da história. Começaremos na Antiguidade greco-romana,
perpassando pela Idade Média, pela Modernidade, até a contemporaneidade
focando na realidade brasileira.
Na Roma Antiga, podemos perceber que a criança desde seu nascimento precisava
ser aceita pelo pai, assim o nascimento não era apenas um fator biológico. Segundo
Veyne (1989) quando o pai erguia a criança do chão indicava que este ente paterno
estava aceitando criá-la. Assim, era comum que o pai não aceitasse a criança,
simplesmente porque não havia interesseou mesmo porque a criança era
considerada “defeituosa”. Com isso, abundam testemunhos de aborto, de morte de
crianças e abandono, que eram consideradas aceitáveis:
A criança que o pai não levantar será exposta diante da casa ou num
monturo público; quem quiser que a recolha. Igualmente será
enjeitada se o pai estiver ausente, o tive ordenado à mulher grávida [...]
Enjeitavam ou afogavam crianças malformadas (nisso não havia raiva, e
sim razão, diz Sêneca: É preciso separar o que é bom do que não pode
servir para nada), ou ainda os �lhos de sua �lha que “cometeu uma
falta”. Entretanto, o abandono dos �lhos legítimos tinha como causa
principal a miséria de uns e a política patrimonial de outros. [...]
Contudo mesmo os mais ricos podiam enjeitar um �lho indesejado
cujo nascimento pudesse perturbar disposições testamentárias já
estabelecidas (VEYNE, 1989, p. 24).
A citação acima aponta que a nível de costumes, na Roma Antiga, a criança tinha
pouco valor, mas a tradição helênica (grega) tem a dizer sobre o infante? Platão (IV
a.C.) foi um �lósofo, que dentre uma vasta obra, versou sobre a criança e o que
acreditava ser seu papel na sociedade. Platão tinha em mente um problema
primordial: como “entender, enfrentar e reverter a degradação da Atenas de seu
tempo.”? (KOHAN, 2003, p. 13). Esta pergunta se ligava ao fato de que para o �lósofo
existiria uma conexão entre as virtudes da polis e as virtudes dos indivíduos, por isso,
era necessário e urgente discutir sobre a formação do cidadão desde o seu berço.
(KOHAN, 2003).
A corrupção dos jovens, para Platão, se explicaria pela falta de instrução na infância,
por isso, seria necessário pensar em novo modelo de criança e de educação, que
agiriam em favor do bem comum. A partir disso, podemos perceber que a infância
em si não era um problema �losó�co, mas sim a questão da conservação do bem
estar da polis. (KOHAN, 2003).
Kohan (2003) sustenta que nos escritos de Platão é possível enxergar algumas
marcas centrais:
a) a primeira marca que distinguimos no conceito platônico de infância
é a possibilidade quase total e, enquanto tal, a ausência de uma marca
especí�ca; a infância pode ser quase tudo; essa é a marca do sem
marca, a presença de uma ausência; b) a segunda marca é a
inferioridade em face do homem adulto, do cidadão, e sua
conseqüente equiparação com outros grupos sociais, como as
mulheres, os ébrios, os anciãos, os animais; essa é a marca do ser
menos, do ser desvalorizado, hierarquicamente inferior;4 c) em uma
terceira marca, ligada à anterior, a infância é a marca do não
importante, o acessório, o supér�uo e do que se pode prescindir,
portanto, o que merece ser excluído da pólis, o que não tem nela lugar,
o outro depreciado; d) �nalmente, a infância tem a marca instaurada
pelo poder: ela é o material de sonhos políticos; sobre a infância recai
um discurso de necessidade e o sentido de uma política que necessita
da infância para erigir-se em perspectiva de um futuro melhor.
(KOHAN, 2003, p. 16).
Para Platão, é na educação que se construiria o caráter de um indivíduo. Primeiro as
crianças deveriam ser iniciadas na música, logo em seguida na ginástica, mas
também havia o conhecimento das fábulas, que era ensinado desde a mais tenra
idade. Contudo, o que as crianças poderiam ou não ouvir também era objeto de
preocupação do �lósofo, por isso, a intenção era que se evitassem histórias cujo teor
viesse de encontro com os valores da nova polis, ou mesmo que contenha mentiras,
que poderiam comprometer sua formação no futuro. Este posicionamento se dava
pelo fato de que Platão acreditava que tudo o que acontecia na vida adulta seria
resultado direto de uma semente plantada na infância, na medida que depois do
caráter formado, este era incorrigível. (KOHAN, 2003).
Kohan (2003) nos chama atenção ao dizer que em um primeiro momento esta visão
parece extremamente positiva, mas:
[…] essa potencialidade, esse ser potencial, esconde, como
contrapartida, uma negatividade em ato, uma visão não a�rmativa da
infância. Ela poderá ser qualquer coisa. O futuro esconde um não ser
nada no presente. Não se trata de que as crianças já são, em estado de
latência ou virtualidade, o que irá devir; na verdade, elas não têm forma
alguma, são completamente sem forma, maleáveis e, enquanto tais,
podemos fazer delas o que quisermos. (KOHAN, 2003, p.18)
Platão coloca as crianças em posição de inferioridade com relação aos homens
adultos no aspecto espiritual e físico. Em seu texto “As Leis”, o �lósofo retrata as
crianças como impulsivas, inaptas para quietude corporal e da voz, propensas à
desordem e sem harmonia, características que seriam próprias do homem adulto.
Com isso, as crianças eram igualadas às mulheres e aos escravos, que eram
igualmente vistas como inferiores e incapazes de versar opiniões. (KOHAN, 2003).
O sentimento de desprezo com relação à infância perdurou durante a Idade Média.
Heywood (2004) aponta que havia um sentimento de insensibilidade na criação dos
�lhos, assim considerava-se que não valia a pena despender tamanha energia para
um ser tão pequeno que tinha poucas chances de sobrevivência. Essa visão também
foi percebida por Ariès (1978, p.10), que observou que, ao longos dos séculos XII ao
XVII,   enquanto a criança ainda era pequena era vista como uma “coisinha
engraçadinha” ou mesmo como “um animalzinho, um macaquinho impudico”, mas
sua morte não causava comoção, porque logo viria outra criança que a substituiria.
A visão sobre a criança obedecia a um critério utilitarista, ou seja, o infante quando
bem pequeno poderia ser facilmente substituído e ao chegar aos sete anos poderia
exercer funções semelhantes ao adulto. Assim, a criança após esta idade era vista
como útil à economia familiar, partilhando dos ofícios exercidos pelos pais. Isso
quando a criança não era enviada para que outra família a criasse e era devolvida ao
seio familiar aos sete anos para ajudar nos afazeres de sua família e comunidade.
(ARIÈS, 1978).
Cabe lembrar também que eram diferentes os tratamentos para com os meninos e
as meninas. As meninas “costumavam ser consideradas como o produto de relações
sexuais corrompidas pela enfermidade, libertinagem ou a desobediência a uma
proibição”. (HEYWOOD, 2004, p. 76). Mas de maneira geral, a criança era
invisibilizada na Idade Média, chegando ao ponto de sequer ser retratada nas artes,
sendo retratada como um adulto de porte menor. O que �ca claro para Ariès (1978) é
que neste período havia uma ausência de sentimento de infância. Contudo, esta
posição tem sido confrontada por outros estudiosos do tema.
Desta forma, os sentimentos de afeição e cuidado raramente eram percebidos, estes
�cam, sobretudo, nas mãos das mulheres ou mesmo das amas. A visão acerca dos
cuidados para com a infância começou a mudar sensivelmente graças ao papel da
Igreja Católica. A valorização da família e dos laços de sangue, baseadas nas
narrativas bíblicas, foram força motriz para que a Igreja no século XVIII considerasse
ato de bruxaria quem tentasse matar crianças. Dada a larga in�uência da Igreja
Católica durante a Idade Média, percebemos que a narrativa bíblica do culto ao
menino Jesus, juntamente com a história do massacre de crianças por Herodes,
reforçaram a ideia de que a criança era uma mediadora da terra com o céu. (ARIÈS,
1978); (HEYWOOD, 2004).
Ariès (1978) destaca que durante a Idade Média não haviam festas religiosas
direcionadas para as crianças, a não ser as de caráter pagão. Apenas a partir do
século XVI que foi criada a primeira comunhão, que progressivamente foi se
tornando a maior festa religiosa infantil e continua a ser até os dias atuais. A
importância da primeira comunhão enquanto evento histórico, reside no fato que
pela primeira vez a vida da criança passou a ser registrada e observada, na medida
em que não se permitia a utilização deste rito para crianças muito pequenas e
“especialmente [para] aquelas que forem travessas, levianas a algum defeito
considerável.” (ARIÈS, 1978, p. 97)
É no alvorecer da Idade Moderna, quandoas condições de higiene foram
melhoradas e a burguesia começou a se formar, que a preservação da infância
começa ser objeto de preocupação não apenas da Igreja. Isso perdurou durante os
séculos XV, XVI e XVII, quando foi reconhecida a importância da formação para a vida
adulta. A partir disso, os pais passaram a se interessar pela vida dos �lhos. Dourado
(2009) acrescenta que esta preocupação com a formação e preservação da vida das
crianças, veio acompanhada de um próprio sentido de preservação dos bens da
família. Neste sentido, sob a ótica burguesa, formara-se a ideia de que era na criança
que se deveria depositar a ideia de um futuro.
Instaurou-se, portanto, o sentimento de afeto e de apego entre os séculos XVII e
XVIII, período no qual a infância passou a ser entendida como momento de
fragilidade e ingenuidade. Com isso, Ariès (1978) observa que dá-se início a um
comportamento de “paparicação”, especialmente nas classes mais abastadas, que
diz respeito a mimar os infantes e tratá-los como um meio de entretenimento dos
adultos. A partir disso, a morte prematura da criança começa a ser acompanhada de
dor e sofrimento.
Ainda neste período, sob in�uência da Igreja e do Estado, a perspectiva educacional
ganha terreno, ainda que seja no sentido disciplinador. Trata-se de um movimento
que buscava colocar a criança no que se acreditava ser seu devido lugar, assim
como se fazia com outros segmentos marginalizados da sociedade, tais como os
loucos, os pobres, as prostitutas, dentre outros. (ARIÈS, 1978). Para a nossa sociedade
contemporânea pode soar estranho criar um paralelo entre as crianças e os grupos
citados, contudo, é necessário entender, como já pontuamos, que a sociedade
medieval e em transição para a época moderna, entendia a criança como ser
pertencente a uma camada inferior da sociedade. E é neste ínterim que as
instituições educacionais infantis nascem, com uma proposta moralizadora,
disciplinadora e de controle.
As escolas não eram propriamente direcionadas às crianças, na verdade estas
instituições estavam vinculadas à Igreja e buscavam formar clérigos, portanto,
acolhia não apenas crianças, como também jovens e adultos. Com a criação de
escolas voltadas para crianças na Idade Moderna, o que vemos é a introdução da
disciplina, inspirada nos modelos eclesiásticos: “A disciplina escolar teve origem na
disciplina eclesiástica ou religiosa; ela era menos um instrumento de coerção do que
de aperfeiçoamento moral e espiritual.” (ARIÈS, 1978, p. 126). Vale ressaltar também
que este tipo de educação não era destinada às meninas, enquanto os meninos de
uma família poderiam frequentar a escola, às meninas cabia pouca ou nenhuma
instrução formal.
Heywood (2004), considera que a criação paulatina de instituições formais de ensino
para crianças, representou a “descoberta” da infância na Idade Moderna. Tratou-se
de um movimento de diferenciação entre o mundo infantil e o mundo adulto, no
qual as crianças deveriam passar por uma espécie de quarentena, a escola, para que
assim pudessem ingressar no mundo adulto.
A história da infância a qual nos dedicamos até agora versa sobre uma condição
europeia, porém, esta história é sensivelmente diferente em terras brasileiras. Del
Priore (2010) explica a distância em falar de uma história da infância europeia e uma
história da infância no Brasil:
Em primeiro lugar, entre nós, tanto a escolarização quanto a
emergência da vida privada chegaram com grande atraso. Comparado
aos países ocidentais onde o capitalismo instalou-se no alvorecer da
Idade Moderna, o Brasil, país pobre, apoiado inicialmente no antigo
sistema colonial e, posteriormente, numa tardia industrialização, não
deixou muito espaço para que tais questões �orescessem. Sem a
presença de um sistema econômico que exigisse a adequação física e
mental dos indivíduos a esta nova realidade, não foram implementados
os instrumentos que permitiria a adaptação a este novo cenário. (DEL
PRIORE, 2010, p. 10-11)
Enquanto a Europa vivia o início da Idade Moderna, nós éramos colônia e os valores
burgueses de cuidado e proteção para com o infante não haviam chegado. A
educação era realizada de forma esparsa, por meio das escolas jesuíticas e não eram
acessíveis aos pobres e muito menos às crianças escravizadas. Até o século XIX, no
Brasil, o trabalho ainda era visto pelas famílias menos abastadas como a “melhor
escola”. (DEL PRIORE, 2010). Aqui, não se trata de fazer um paralelo como se a
realidade europeia fosse a ideal e o Brasil mais atrasado. Pelo contrário, devemos
entender que a situação das crianças brasileiras está intimamente ligada com o
modelo econômico colonial, aqui imposto após a invasão de Portugal em 1500, que
gerou novas realidades e consequência para todos os âmbitos da vida social. Assim,
a condição de pobreza e escravidão nos primeiros séculos do Brasil, pesaram de
maneira signi�cativa nos ombros dos pequenos.
Há um consenso entre historiadores que apesar do Brasil ter sido “descoberto” em
1500, sua colonização foi de fato empreendida após 1530. Nas embarcações lusitanas
não vinham apenas os homens, mas também mulheres – em menor número – e
crianças que muitas vezes serviam de grumetes e pajens. Os grumetes eram
meninos entre nove e dezesseis anos responsáveis pela limpeza das embarcações e
auxílio dos marinheiros e normalmente estes eram recrutados entre órfãos ou
famílias de pedintes em Portugal. Entregar o �lho para desempenhar esta função
era na maioria das vezes vista com bons olhos por estas famílias, já que poderiam
aproveitar-se do soldo recebido pelo trabalho dos meninos, ou, pelo menos, livrar-se
de uma boca a mais para alimentar. (RAMOS, 2010).
O recrutamento de meninos para trabalhar nas embarcações era comum e em
alguns casos o número de crianças era igual ao número de adultos, já que as
condições sanitárias da Europa levavam a uma alta mortalidade e,
consequentemente, a uma baixa disponibilidade de mão de obra adulta. Mas os
grumetes desempenhavam funções tão ou mais perigosas que os marujos, como
demonstra o relato de uma viagem de 1560
[...] aos dezanove de julho, que foi um sábado sobre a noite, [...] fazendo
com o vento muito, por serem de través, estando o gajeiro da gávea em
pé em cima para descer, bem descuidado, deu a nau um balanço
grande, com que meteu, e lançou o pobre grumete por cima da gávea,
que veio pelo ar cair ao mar, dando com as pernas e partes do corpo
em os pés de um homem que a bordo estava pegado, o qual consigo
houvera de levar ao mar, deixando-o aleijado da grande pancada que
lhe deu de um deles, e desfazendo a cabeça em pedaços, com os
miolos fora dela, nas vergas, que todas �caram tinta do seu sangue.
(BRITO, 1971 [1735] apud RAMOS, 2010, p. 26)
Não apenas isso, aos grumetes eram impostas as piores condições de acomodação e
alimentação. Acomodados perto dos doentes e expostos as condições climáticas, as
crianças também viviam com menos comidas do que os demais
tripulantes, sobrevivendo com bolachas apodrecidas, ratos, baratas e água, que
também não se encontrava no melhor estado. Essa situação fazia com que os
infantes fossem sistematicamente sucumbidos pela inanição e pelo escorbuto,
causado pela falta de vitamina C. (RAMOS, 2010).
Já para os pajens, designados a servir um membro da nobreza, o cotidiano era um
pouco menos difícil. A estas crianças era imputada a tarefa de servir mesas, arrumar
os aposentos e proporcionar todo o conforto para o seu o�cial. Os pajens, ao
contrário dos grumetes, não sofriam castigos severos e também eram considerados
superiores aos grumetes. Eles também tinham uma alimentação melhor, já que
seus o�ciais eram autorizados a trazerem alimentos mais diversi�cados,
aumentando a chance de sobrevivência dos pajens em caso de doenças. (RAMOS,
2010).
SAIBA MAIS
Os anos entre 1500 e 1530 são considerados “anos perdidos” e a
historiogra�a (a escrita da história) tem di�culdades em narrar os fatos
que antecederam 1530 pela falta de documentação relativa ao período.
Contudo, sabe-se que o Brasil foi rota para diversosmarginalizados pela
história, que são ignorados pela narrativa o�cial. São viajantes,
náufragos e pessoas deixadas para trás ou enviadas para cumprir pena
em terras brasileiras, que podem também ser considerados os
primeiros brasileiros. (BUENO, 1998).
Além dos grumetes e pajens, haviam as “órfãs” menores de dezesseis anos, as quais,
na verdade, eram sequestradas de famílias mais pobres. Essas meninas eram
expostas a situações de assédio e abuso sexual de forma constante:
Como o estupro de meninas pobres, maiores de 14 anos, di�cilmente
era punido – o que estava bem de acordo com a tradição medieval que
só punia o estupro se “as vítimas tivessem de 12 a 14 anos” – as meninas
embarcadas como órfãs poderiam ser violadas por grupos de
marinheiros mal-intencionados que �cavam dias à espreita em busca
dessa oportunidade. Por medo de serem depreciadas no mercado
matrimonial para o qual estavam direcionadas, ou por vergonha,
terminavam ocultando o fato, de modo que os relatos a respeito são
praticamente inexistentes. (RAMOS, 2010, p. 37)
En�m, o cotidiano das crianças que embarcavam para as terras brasileiras era
extremamente penoso. Neste cenário, o universo infantil e o ser criança não tinham
espaço, já que a utilização da mão de obra e do corpo das crianças era regra. Assim,
estas crianças forçosamente eram integradas ao mundo adulto. Por isso, raramente
chegavam ilesas ao local de destino, seja �sicamente ou emocionalmente. (RAMOS,
2010).
Nas primeiras décadas de colonização portuguesa no Brasil, uma das ordens que
teve maior in�uência foi a Companhia de Jesus. A ordem jesuítica era missionária e
visava converter o gentil para a fé cristã e aqui no Brasil isso se cristalizou através do
ensino. Acreditava que juntamente com o ensino moralizante, disciplinador e
inspirado pela palavra de Deus, todo o povo poderia se converter. Cabe lembrar que
para os jesuítas o principal alvo de conversão eram os índios, considerados como um
“papel em branco”, sob o qual poderia imprimir-se qualquer doutrina.
(CHAMBOULEYRON, 2010).
A Companhia de Jesus no Brasil escolheu o caminho do ensino das crianças, mas
existia uma preocupação docente no cerne da ordem, pois havia uma preocupação
em formar não apenas seus membros, mas também a juventude para que estes
pudessem propagar os valores de cristandade. Com este intuito e observando que
os índios adultos, em geral, eram arredios aos ensinamentos dos padres, os jesuítas
focavam o ensino para as crianças, consideradas mais maleáveis.
(CHAMBOULEYRON, 2010).
As crianças indígenas eram consideradas o meio pelo qual o cristianismo chegaria
até ao restante da população. Com isso, a intenção dos jesuítas era que essa
geração, formada sob o embasamento cristão, substituiria a geração dos seus pais,
cujos comportamentos eram considerados inapropriados, tais como nudez,
poligamia e antropofagia. (CHAMBOULEYRON, 2010).
Os jesuítas se dedicavam a ensinar o português, a leitura, a escrita, músicas, além de
prezar pela disciplina. Neste sentido, os castigos físicos eram comuns, ainda que os
padres propriamente ditos fossem impedidos de aplicá-los e tivessem que designar
a outrem. A persistência dos castigos físicos na educação vinha da convicção por
parte dos jesuítas de que as crianças aprenderiam mais facilmente pelo temor do
que pelo amor. (CHAMBOULEYRON, 2010).
Um receio comum era de que estas crianças ao entrarem na puberdade
esquecessem do aprendizado durante o período de catequização, ou mesmo,
depois que casassem mudassem da aldeia onde cresceram – o que era uma
tradição indígena – e voltassem para o que os padres entendiam como degradação
dos costumes. Essa situação apenas fortalecia a ideia de que os índios deveriam ser
submetidos à autoridade para se converter realmente, calcados na ideia de
vigilância constante e de castigos físicos. (CHAMBOULEYRON, 2010).
Além dessa tentativa de catequização por meio do ensino, a opção de educação
formal para as crianças �cava restrita às crianças da elite e isso �cou mais claro
durante o período imperial, por volta do século XIX. A maioria dos relatos deste
período são de professores e professoras que chegaram ao Brasil, após a abertura
dos portos em 1808, que chegavam para lecionar em escolas particulares.
Era muito comum que reclamassem não apenas do clima tropical, mas também do
comportamento das crianças brasileiras, bem diferentes do que presenciavam na
Europa. Um dos professores estrangeiros chegou a dizer que “uma criança brasileira
é pior que mosquito hostil [...] crianças no sentido inglês não existem no Brasil”
(EDGECUMBE, 1886 apud MAUAD, 2010, p. 168).
Os registros históricos das crianças no Brasil imperial podem ser vistos por meio das
fotogra�as. É claro que este recurso era limitado à elite e as fotogra�as, portanto,
revelam como as classes mais endinheiradas olhavam para o infante . As crianças
eram vestidas com seus melhores trajes, normalmente inspirados em modelos
franceses, muitas vezes inadequados ao clima brasileiro. (MAUAD, 2010).
No que se refere ao ensino, as escolas formais se orgulhavam em fornecer uma
aprendizagem enciclopédica, ou seja, pautada na memorização. A educação
também �cava a cargo da família, que deveria ser o eixo moralizador da criança.
Neste sentido, havia diferenciações bem claras entre o ensino de meninos e de
meninas, enquanto os primeiros deveriam desenvolver atributos intelectuais, as
meninas �cariam a par das habilidade manuais:
Os meninos da elite iam para a escola aos sete anos e só terminavam
sua instrução, dentro ou fora do Brasil, com um diploma de doutor,
geralmente de advogado. Num colégio conceituado como o Externato
Pedro II, frequentado por quase todos os �lhos da aristocracia
cafeicultora imperial e pela elite urbana, havia um rol exaustivo de
disciplinas que englobava: �loso�a, retórica, poética, religião,
matemática, geogra�a, astrologia, cronologia, história natural, geologia,
ciências físicas, história, geogra�a descritiva, latinidade, língua alemã,
língua inglesa, língua francesa, gramática geral e nacional, latim,
desenho caligrá�co, linear e �gurado e música vocal, distribuídas ao
longo de sete anos. (MAUAD, 2010, p. 184-185)
Meninas com indumentárias inspiradas em modelos franceses
Fonte: MAUAD, 2010
À revelia da educação fornecida aos meninos, a educação feminina era articulada
em outros moldes:
O mesmo observador apontava para o fato de que a educação
feminina, iniciada aos sete anos e terminada na porta da igreja, aos 14
anos, supervalorizava o desempenho feminino na vida social. Na Corte
imperial, das meninas da alta sociedade, exigia-se perfeição no piano,
destreza em língua inglesa e francesa, e habilidade no desenho, além
de bordar e tricotar. (MAUAD, 2010, p.187)
A preocupação dos pais da elite com a educação dos �lhos revela um aspecto
importante que marca nossa sociedade até os dias atuais, que é a preocupação com
a vida futura dos �lhos. Assim, a morte prematura passa a ser motivo de tristeza em
um contexto em que não haviam vacinas, doenças contagiosas eram pouco
conhecidas e as condições de higiene eram precárias. É a partir disso que nascem os
mecanismos de cuidados na primeira infância para evitar a mortalidade infantil, que
�cou a cargo das mulheres. As mães tinham uma árdua tarefa na criação dos �lhos,
especialmente porque os nascimentos eram consecutivos. As mulheres da elite,
visando atenuar-se do fardo da amamentação, designavam amas de leite,
normalmente escravas, para cumprir tal função. (MAUAD, 2010).
A situação das crianças escravizadas, caso chegassem com vida na travessia do
Atlântico, era completamente oposta das crianças da elite. A morte de crianças
escravas com menos de dez anos chegou a representar até um terço das mortes
entre os escravos, dentre estes dois terços morriam antes dos dois anos e 80% antes
de completar cinco anos de idade. Além disso, muitas destas crianças perdiam os
pais muito cedo. Estima-se que na capital �uminense no século XIX, metade das
crianças de até cinco anos eram órfãs. (GOÉS; FLORENTINO,2010)
Em determinadas situações a criança órfã �cava ligada à sua rede parental, irmãos,
tias, tios, avós ou mesmo padrinhos e madrinhas sem ligação de sangue. Como
estratégia de sobrevivência em comunidade, os escravizados utilizavam-se de um
sacramento da Igreja para fortalecer seus vínculos sociais e proteger seus �lhos:
Os escravos puseram o catolicismo a seu serviço para fazer parentes e
famílias. O batismo e a irmandade, mais do que incorporá-los ao
rebanho de um Deus-Pai de �lho branco, possibilitava refazer a vida
pela criação de uma comunidade africana como não havia na própria
África. (GOÉS; FLORENTINO, 2010, p. 222)
Apesar disso, as crianças escravizadas passavam pelo o que se chamava
“adestramento” que ia até os doze anos de idade. Eram introduzidas em diversos
serviços como pastoreio, remendos de roupas, trabalho com marcenaria, nas
lavouras e em afazeres domésticos e o tipo de especialidade indicava seu preço no
mercado de escravos. À medida que se aprendia um ofício também assimilavam o
ser escravo pela ótica senhorial. Diferente dos homens e mulheres escravizados, para
os quais eram dirigidos suplícios públicos, às crianças eram destinadas pequenas
humilhações com grandes consequências, tanto pelos senhores como pelos seus
�lhos. (GOÉS; FLORENTINO, 2010).
Com a abolição da escravidão e a instauração da República no �nal do século XIX,
uma nova realidade se tornou presente na vida do pequenos brasileiros: a
criminalidade. Com a falta de políticas públicas para a população escrava recém-
liberta e a falta de oportunidade para ingressar no novo modelo de trabalho
assalariado, as crianças sofriam com o estigma da marginalização. Essa associação
entre malandragem e a criança pobre foi recorrente no século XX – e continua a
povoar o imaginário social até os dias atuais.
A modi�cação paulatina da estrutura econômica da sociedade brasileira, com novos
padrões de consumo e outra dinâmica do trabalho, fez inchar as cidades e as
contradições sociais �caram mais evidentes. Nesta nova con�guração, o mundo do
trabalho e “vadiagem” eram colocadas em dicotomia. Enquanto o mundo do
trabalho era vinculado ao imigrante estrangeiro, a alcunha da vagabundagem era
inferido aos brasileiros, principalmente à população ex-escrava. (SANTOS, 2010)
A infância era vista como a “semente do futuro” e a delinquência era vista como um
problema sério a ser combatido. De acordo com o Código Penal de 1890, os maiores
de 14 já poderiam ser criminalmente imputáveis, os mais novos até os nove anos de
idade, poderiam ser enquadrados como criminosos desde que tivessem
discernimento dos seus atos, ainda que fosse questionável o que enquadraria como
discernimento. A grande maioria dos “crimes” eram relativos a vadiagem e baderna
e as crianças e adolescentes poderiam �car reclusos, sob um regime pautado no
trabalho como disciplinador. (SANTOS, 2010).
Nas primeiras décadas do século XX houve o processo de industrialização do Brasil,
que até então era predominantemente agrário, este cenário tornou-se mais
evidente em São Paulo. As crianças neste contexto, assim como os adultos, eram
utilizadas como mão-de-obra barata e acidentes de trabalho e mortes prematuras
eram comuns nas fábricas. É claro que a situação das crianças no ambiente de
trabalho causava revolta entre os membros da classe operária:
A implantação da indústria e sua consequente expansão norteou o
destino de parcela signi�cativa de crianças e também de adolescentes
das camadas economicamente oprimidas em São Paulo, como havia
norteado em outras partes do mundo. E, como em outras partes do
mundo, o trabalho infantojuvenil em São Paulo imprimiria, talvez mais
do que qualquer outra questão, legitimidade ao movimento operário.
Nos pequenos trabalhadores, as lideranças saberiam identi�car a causa
preciosa, capaz de revelar aos olhos dos contemporâneos e também da
posteridade, a condição da classe operária no que esta tinha de mais
miserável. (MOURA, 2010, p.315)
Essa classe operária era sobretudo estrangeira, normalmente vinda da Itália, fugindo
da fome e do frio. Desde o �m do século XIX até as primeiras décadas do séculos XX
abundavam anúncios procurando crianças e adolescentes para trabalhar na
indústria têxtil. Era de interesse do empresariado que as crianças fossem inseridas
precocemente nas atividades laborais, pois o salário pago era menor em
comparação aos homens adultos. Além disso, as cargas horárias eram
extremamente exaustivas, variando entre 12 e 14 horas diárias, impossibilitando ou
criando di�culdades para a frequência escolar. (MOURA, 2010).
As legislações vigentes até procuravam limitar o trabalho até os doze anos de idade,
ou mesmo proibir a jornada noturna ou funções insalubres. Contudo, na prática,
com a falta de �scalização, o trabalho infantil foi utilizado largamente no processo
de industrialização brasileiro, gerando marcas que vemos até os dias atuais.
A partir dos anos 1920, mediante a este cenário, surgem as primeiras políticas
públicas. Diante de um grande número de crianças desamparadas, marcadas pela
violência, negligenciadas pela família e exploradas no trabalho, o Estado procurou
assumir posição com relação aos infantes:
A partir dos anos 20, a caridade misericordiosa e privada praticada
prioritariamente por instituições religiosas tanto nas capitais como nas
pequenas cidades cede lugar às ações governamentais como políticas
sociais. A sua expansão ocorrerá entre as duas ditaduras (Estado Novo,
de 1937 a 1945 e a Ditadura Militar, de 1964 a 1984), quando aparecem os
dois primeiros códigos de menores: o de 1927 e o de 1979. Todavia, com
a restauração das eleições presidenciais e a retomada do regime
político democrático – mesmo com as limitações impostas pelo voto
obrigatório –, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13
de julho de 1990, pela lei no 8.069. Uma nova dimensão da caridade
será concretizada combinando, com especial equilíbrio, ações privadas
e governamentais. (PASSETTI, 2010, p. 424).
Um exemplo de política pública voltada para infância nas primeiras décadas do
século XX, foi o Código dos Menores de 1927, que articula o caráter assistencial
público e privado em direção às crianças. Esse Código denota uma crescente
preocupação com os chamados delinquentes e se volta para a devida punição, de
forma que se regenerem a integrem a sociedade regida pela nova ótica capitalista
brasileira, se tornando assim, bons trabalhadores. (LONGO, 2007).
Mais tarde, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, o ideário de adequação das
crianças e adolescentes no projeto capitalista se torna mais evidente, apostando
sobretudo, no caráter pedagógico do trabalho. Os ditos menores improdutivos –
nesta categoria estão dos chamados vadios, delinquentes ou mendigos – eram
direcionados para instituições correcionais, sob a égide do judiciário e com o braço
do executivo. (LONGO, 2007).
Depois de um breve período de democracia, entre a ditadura de Vargas e a ditadura
militar, em 1964 a criança e o adolescente marginalizado é enquadrado como
“menor em situação irregular”, em condições como “I - privado de condições sócio
econômicas; II - vítimas de maus-tratos; III- perigo moral; IV - privado dos pais ou
responsáveis; V - desvio de conduta; VI - autor de infração penal.” (LONGO, 2007, p. 5).
Dentre os aspectos citados, qualquer um poderia tornar a criança/adolescente
passível de institucionalização, ou seja, de con�namento em instituições estatais.
Isso só vai mudar com o ECA, do qual falaremos em mais detalhes na próxima
unidade. Com o exposto acima acerca da história da infância, pudemos perceber
que é uma história de sujeitos marginalizados do seio da sociedade e que a
preocupação com o cuidado e proteção da infância é recente. A discussão em torno
da infância engloba diferentes instâncias da sociedade, mas principalmente debate-
se sobre o papel da família na construção da infância, tópico que explanaremos a
seguir.
Getúlio Vargas
Fonte: wikipedia
Infância, família e
categoria social: discutindo
o conceito
AUTORIAMaria Helena Azevedo Ferreira
Como salientou Ariès (1978), o sentimento de cuidado e atenção à criança é
relativamente novo, faz parte da cultura moderna a preocupação hodierna que a
família tem com os pequenos. A família hoje se organiza em torno da vida da
criança, dos seus estudos, ensinamentos morais e bem-estar físico e mental. É
verdade que esta con�guração de família “estruturada” não corresponde à realidade
em muitos lares, onde a crianças, seja por questões estruturalmente construídas ou
situações particulares, continua sendo negligenciada.
Ariès (1978) destaca que é a partir da passagem da época medieval para o período
moderno que a responsabilidade sobre a formação do sujeito recai sobre a família e
essa formação estava também sobre o resguardo da religião, provedora de
instruções morais para a família, que deveria transmitir à criança. É claro que os
contornos da família se modi�cam durante o tempo, assim pode-se dizer que
família é uma construção social, assim como a infância – que está correlacionada
com a família – também o é.
Cabe dizer que as de�nições acerca da família são múltiplas e não dizem respeito
apenas ao recorte do que se diz “tradicional”, ou seja, homem, mulher e �lhos. A
concepção de multiplicidade do que se considera família encontra respaldo, em
primeiro lugar, na Constituição Federal de 1988, conforme dispõem Paschoal e
Marta (2012):
O § 4º do Art. 226 da Constituição de 1988 dispõe que “[...] entende-se,
também, como entidade familiar à comunidade formada por qualquer
dos pais e seus descendentes”, estamos nos referindo à família
monoparental, que é o campo, por excelência, da mãe solteira, das
mães ou, excepcionalmente dos pais, que pretendem assumir sozinhos,
sua maternidade ou paternidade, dos divorciados, dos separados, dos
viúvos, dos �lhos sem pai, en�m, de tudo aquilo que nega as situações
de normalidade previstas pelo antigo Código Civil, quando se referia à
família legítima. (PASCHOAL; MARTA, 2012, p. 232)
A citação deixa claro que o conceito que família estende-se desde as relações
parentais, isto é, pai e mãe criando o (a) �lho (a), até a as relações monoparentais,
que dizem respeito ao pai ou a mãe sozinhos criando a criança. Não apenas isso, a
Constituição de�ne família também as relações anaparentais, na qual não há a
presença dos genitores, mas pode se constituir na criação pelos irmãos ou mesmo
“por famílias distintas que se unem formando uma família comum; a família
homoafetiva, se forma em torno da união conjugal entre pessoas do mesmo sexo
[...]”. (PASCHOAL; MARTA, 2012, p. 232).
Contudo, o reconhecimento jurídico de famílias monoparentais e anaparentais é
fenômeno recente na história do Brasil:
A história da proteção à infância no Brasil é marcada pela emergência
do modelo de família nuclear, baseada nos moldes burgueses e ditada
pelo saber especialista que logo ganha espaço no meio jurídico,
justi�cando a intervenção do Estado junto àqueles considerados
desviantes. (SILVA Jr; ANDRADE, 2007, 426).
Em virtude disso, muitos comportamentos infantis considerados problemáticos
eram justi�cados na origem de uma família “desestruturada”, ou seja, que não
correspondiam ao modelo parental. Desde a história recente do Brasil vê-se por
parte de organizações, com a tutela do Estado, a insistência em proteger a infância,
baseada na defesa dita família tradicional brasileira. (SILVA Jr; ANDRADE, 2007).
Como dissemos, família, enquanto categoria social, é construída e essa construção
depende da comunidade na qual está inserida. Sendo assim, a família tem
importância máxima no que diz respeito a formação da criança, é nela que o infante
tem seu primeiro contato com o seio social. Não é por acaso, portanto, que a
Constituição dirija também à família a responsabilidade da proteção e cuidado da
criança.
SAIBA MAIS
Os meninos e as guerras
Durante esta unidade você viu que a noção de infância, enquanto fase
especial da vida humana é recente na história da humanidade. A
separação entre mundo adulto e mundo infantil veio apenas no século
XIX na Europa e foi marcada por estudos no âmbito da pedagogia,
psicologia e pediatria, que ajudaram a demarcar este estágio da vida
enquanto particular. Mas antes disso, os meninos entre 14 anos
engrossavam as frentes de batalha nas guerras, lado a lado com os
homens. No Brasil não foi diferente, as crianças eram recrutadas pela
Marinha e também foram chamadas a combater na Guerra do
Paraguai, um dos mais sangrentos con�itos na história brasileira.
Fonte: VENANCIO, 2010
REFLITA
“[...] querer conhecer mais sobre a trajetória histórica dos
comportamentos, das formas de ser e de pensar das nossas crianças, é
também uma forma de amá-las todas, indistintamente melhor.” (DEL
PRIORE, p. 19, 2010).
Você acabou de ver que nem sempre a vida das crianças foi muito fácil e pode ser que tenha percebido o contraste com as
crianças da atualidade. Mesmo assim, é importante compreender que mesmo nos tempos contemporâneos existem
crianças desprovidas do mínimo para sobrevivência. Este olhar, de reconhecimento de multiplicidades – sejam diferenças
entre passado e presente ou dentro do presente – é graças a percepção histórica, que nos ajuda e muito a compreender a
quantas anda a situação da criança no presente.
Neste sentido, no primeiro tópico você reconheceu como opera a abordagem histórica acerca do tema infância,
entendendo que este tipo de estudo ainda é recente no Brasil. Viu também sobre a necessidade de nos destituir de pré-
concepções sobre a infância, pois entendemos que tais noções foram sendo construídas ao longo do tempo. Além disso,
pudemos averiguar que boa parte do que se diz sobre a criança está baseado apenas na concepção do adulto, dando
pouco ou nenhum valor na representação que a criança faz de si mesma.
No tópico seguinte, falamos sobre o conceito de infância e suas facetas. Primeiro começamos pelas de�nições legais do
que se compreende infância e também adentramos em discussões sobre a relevância da compreensão das linguagens
infantis na de�nição deste conceito. Pudemos compreender também como são importantes as diferenças contextuais ao
falarmos de infância a �m de que possamos enquadrá-la em um cenário amplo e diverso.
No terceiro tópico, �zemos uma considerável apresentação da história da infância, que não pretendeu esgotar a discussão,
que introduziu alguns panoramas centrais. Começamos pela Antiguidade, pela Idade Média e pela Idade Moderna, mas
nosso foco foi a história da infância no Brasil, compreender sua extensão e multiplicidades de contextos.
Por �m, nos dedicamos a pensar a constituição da família no seio social e sua correlação com a infância. Abordamos a
diversidade de famílias, que não atendem ao modelo construído de família tradicional, mas isso não retira seu caráter de
família, inclusive no âmbito legal.
Leitura Complementar
Breve histórico da exploração do trabalho infanto-juvenil
Gilmar de Jesus Pereira
Ao tratar da questão histórica do trabalho infantil, pretende-se de maneira geral apresentar alguns registros do emprego
da mão-de-obra do grupo, para uma compreensão geral da evolução cultural, social e legislativa.
Primeiros registros históricos
Desde os tempos antigos da humanidade, é possível veri�car o trabalho das crianças junto às famílias e tribos. Oliva (2006,
p. 29) a�rma que "é quase certo que o emprego de crianças e jovens no trabalho existe desde que o mundo é mundo".
Encontra-se também na antiguidade sementes legislativas de proteção aos menores trabalhadores. O código de
Hamurábi previa que, se um artesão adotasse um menor, deveria ensinar-lhe seu ofício.
Oliveira, ao comentar a forma de trabalho na fase arqueológica, esclarece:
O trabalho humano era desenvolvido de forma primitiva, com a utilização de instrumentos rudimentares, destinando-se
apenas à subsistência do homem. Não se encontra referências expressas ao labor de crianças, sendo possível, porém, a
exemplo de mulheres, �cassem com a tarefa de colher frutos espontâneos da natureza, enquanto os homensse
ocupavam com os trabalhos de maior risco (caça por exemplo) (OLIVEIRA, 1997, apud OLIVA, 2006, p.30).
Já entre os egípcios, registros históricos mostram que os �lhos aprendiam o ofício com os pais.
Conclusão - Unidade 1
No período Romano, o contrato de aprendizagem era �rmado de três modos: o mestre obtinha a remuneração pelo ensino
ministrado, poderia pagar os serviços do menor ou ser compensado pelo ensino com os serviços.
Ensina Oliva (2006, p. 31) que para os Gregos e os Romanos, os escravos, que não eram reconhecidos como pessoas e sim
como coisas, eram de propriedade dos seus senhores. Todos os �lhos nascidos dos escravos passavam a ser propriedade
dos possuidores de seus pais e eram obrigados a trabalharem para os seus donos ou para terceiros em benefícios de seus
dominadores.
O período do século XI ao século XV é marcado pelas corporações de ofício e pela aprendizagem no período medieval. As
Corporações de Ofício marcaram o denominado corporativismo, já que era caracterizado por trabalho livre e artesanal
urbano.
Em virtude do êxodo dos trabalhadores da zona rural, provocado pela exploração dos antigos senhores feudais, bem como
da ativação do movimento comercial nas cidades, artesãos (não exclusivamente, mas de forma predominante) se
agrupavam, jungidos pela identidade de pro�ssão e como o �to de defender seus interesses, concentrando-se na zona
urbana. (OLIVA, 2006, p. 37).
A contribuição de Montoya Melgar (1997, p. 112) é relevante: "o aprendiz celebrava o contrato por volta dos doze anos de
idade e a aprendizagem tinha duração variável, que podia oscilar entre dois e dez anos, de acordo com a di�culdade do
ofício".
As jornadas de trabalho eram longas e o regime era autoritário, o que se estendia aos aprendizes. Oliva comenta sobre
alguns motivos que levaram à decadência das corporações de ofício, destacando o descontentamento dos aprendizes em
relação aos mestres.
A demorada aprendizagem, a di�culdade cada vez maior de acesso à condição de mestre, o despotismo e uma série de
outros problemas, dentre os quais o início da formação de novas corporações por companheiros rebelados (as
companhias), com o �to de combater entrasse de�nitivamente em declínio. (2003, p. 39).
Com efeito, as corporações de ofício entram em declínio, oportunizando outras formas de trabalho dos menores. [...]
Fonte: PEREIRA, 2017.
Livro
Filme
Unidade 2
Atendimento às crianças:
papel do estado e as
políticas sociais
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Introdução
Ao longo do tempo muitas foram as abordagens frente ao atendimento às crianças.
Reconhecia-se o papel fundamental que o Estado e sociedade teriam à frente se
quisessem romper com o longo histórico de abusos e violências, por isso a
importância das políticas sociais dirigidas especi�camente para este público, para
que crianças e adolescentes tivessem o direito não apenas de viver, mas viver com
dignidade.
Para que você compreenda como se deu este processo, apresentaremos no primeiro
tópico desta unidade uma discussão que versa sobre as premissas históricas do
atendimento à crianças e adolescentes. Você verá que a primeira preocupação do
Estado era com a delinquência e é com base nisso que são desenhadas as primeiras
ações para combater a família desestruturada – considerada o motivo da
criminalidade. É neste contexto que surge o Código dos Menores de 1927, cujo teor
você verá que estava voltado muito mais pelo caráter punitivo, do que
necessariamente de integração. Durante a Ditadura Militar outras providências
neste sentido serão tomadas, o que mudará apenas com o Estatuto da Criança e do
Adolescente.
O ECA ou Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das mais importantes
legislações sobre a temática, será assunto do nosso próximo tópico. Primeiro, você
verá alguns antecedentes históricos do Estatuto e como este estava alinhava a
instâncias mundiais, que preconizavam o direito universal da criança a vida, saúde,
educação, dentre outros. A discussão sobre o ECA se funde com as reivindicações no
contexto da Constituinte e por isso apresenta premissas altamente democráticas.
Sua estruturação e difusão por todo o território brasileiro foi fundamental para
promover mudanças em âmbitos institucionais, a �m de proteger a criança e o
adolescente.
Por �m, no último tópico falaremos de maneira breve sobre a intersecção entre as
necessárias políticas públicas, as quais discutimos durante a unidade e as ações de
governos pautados pela ideologia neoliberal, que imperou no Brasil nas últimas
décadas do século XX e parece querer emergir novamente. Estas políticas, pautadas
no ideário de austeridade �scal, desconsideram a responsabilidade do Estado em
fornecer os instrumentos necessários para a efetivação das políticas públicas,
causando graves ameaças conquistadas a duras penas.
Bons estudos!
Análise histórica das
políticas sociais voltadas à
criança e suas raízes
históricas
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
Como vimos na unidade anterior, nem sempre o sentimento de cuidado e proteção
para com as crianças foram presentes na história. Com o avanço do braço do Estado
nos problemas sociais, podemos ver breves avanços no que diz respeito às políticas
sociais. Ainda que nos dias de hoje muitas destas políticas sejam de�citárias, elas
são importantes como garantias legais para a proteção do infante.
A nova realidade que despontou no Brasil República, com a vinda de imigrantes e a
situação dos escravos libertos, gerou um problema social sem precedentes. A
pobreza e a fome levaram muitos pais a abandonarem seus �lhos e desde então o
que �cava a cargo da �lantropia de entes privados passou a ser visto como um
problema do Estado. (PASSETTI, 2010).
A preocupação central do Estado era a delinquência, vista como proveniente de
famílias desestruturadas. Diante de um cenário no qual agitadores políticos
cobravam do Estado melhores condições de trabalho, saúde e educação, o Estado
passou a chamar para si esta responsabilidade. Com isso, havia a intenção de
integrar as crianças destas famílias à sociedade, para que no futuro não caíssem na
criminalidade. (PASSETTI, 2010).
Alguns fatos, como o abandono crescente de crianças à santas casas a �m de que
estas pudessem ter um futuro melhor, bem como as intensas greves do proletariado
cobrando melhores condições para as crianças; tornaram evidente a demanda por
políticas sociais voltadas aos menores. (PASSETTI, 2010).
Com a greve de 1917, as autoridades governamentais são despertadas
para a situação social dos operários e de suas famílias e tanto a
plataforma de Rui Barbosa à presidência, em 1919, quanto a de
Washington Luis candidatando-se ao governo de São Paulo, em 1920,
passaram a tratar o problema não mais como caso de polícia mas como
questão social. (PASSETTI, 2010, p. 426)
Pode-se dizer que o século XX trouxe à tona inúmeras contradições sociais e o
Estado logo nas primeiras décadas começa a esboçar algumas políticas públicas.
Primeiro, por meio do decreto de 20 de dezembro de 1923, que regulamentou a
proteção aos menores abandonados, ligando esse quadro à pobreza e delinquência:
O já citado decreto no 16.272, de 20 de dezembro de 1923, dizia em seu
artigo 24, § 2o: se o menor for abandonado, pervertido ou estiver em
perigo de o ser, a autoridade competente promoverá a sua colocação
em asilo, casa de educação, escola de preservação, ou o con�ará a
pessoa idônea, por todo o tempo necessário à sua educação, contanto
que não ultrapasse a idade de 21 anos. (PASSETTI, 2010, p. 431).
Mais tarde, em 1927, surge o Código dos Menores, o qual já citamos brevemente, que
tratava a internação como medida e�caz para redução de delinquência entre
crianças e adolescentes. Havia uma abordagem multidisciplinar, que articulava
preceitos médicos e jurídicos, no tratamento da criança e do adolescente dentro do
âmbito das instituições de reclusão. A partir desta abordagem, instaurou-se a
disciplina a norma como eixos educativos destes jovens, a �m de atender a
reprodução do sistema capitalista, que noalvorecer da década de 1930 começava a
se fortalecer nas grandes cidades. (LONGO, 2007).
Esta prática, sustentada pelo Código dos Menores, possuía um caráter controverso,
já que a delinquência era e é fruto da desigualdade social e ainda recebia a punição
do sistema que gerou essa desigualdade. Algumas instituições dedicadas a cuidar
exclusivamente deste problema social foram criadas, como foi o caso do SAM
(Serviço de Assistência ao Menor) criado durante o governo de Getúlio Vargas e mais
tarde a FUNABEM – hoje conhecida como Fundação CASA – fundada durante o
regime militar. (LONGO, 2007).
A emergência do populismo de Vargas, a conquista dos direitos trabalhistas em
1943, não consegue tirar da marginalidade um grande contingente populacional,
fazendo perpetuar o problema da criança e do adolescente delinquente. Com isso, a
questão dos menores volta para o centro dos debates ainda em 1943 na forma da Lei
de Emergência:
Esta lei promoverá uma mudança no Código de Menores de 1927, com
os trabalhos de uma comissão revisora do mesmo, que de�nirá o
critério de ‘periculosidade’ manifesta na personalidade do adolescente
como determinante para a decisão dos encaminhamentos do juiz.
(LONGO, 2007, p. 3).
As decisões em torno do destino do menor dito delinquente foram colocadas nas
mãos do judiciário, com a assistência do comissário de menores e de um médico.
Após o �m da era Vargas em 1945, a SAM foi alvo de denúncias de maus-tratos e
violência contra os internos. Mas mesmo com estas denúncias, pouco foi feito em
termos de políticas sociais para melhorar as condições destas crianças e
adolescentes.
Após um breve período de democracia, eclode a ditadura militar em 1964 e com ela
se instaura a Política Nacional do Bem- Estar do Menor (PNBM). Essa política não é
tomada como uma garantia de direitos, mas sim uma forma de garantir o
crescimento econômico e o controle de uma população miserável. É a partir da
PNBM que é criada a FUNABEM:
Neste contexto, a FUNABEM é criada para conter o avanço da
marginalidade infanto-juvenil, mas com um verniz de modernidade no
atendimento. O novo enfoque assistencialista de atendimento coloca
para a criança e o adolescente pobres o feixe de carências bio-psico-
sócio-culturais. O padrão de desenvolvimento normal seria o jovem da
classe média e, portanto, mais uma vez o estigma da marginalização
dos pobres estaria preservado. (LONGO, 2007, p. 4)
Esta nova política tinha a pretensão de modi�car comportamentos não apenas pela
reclusão, mas considerava fundamental a educação na reclusão, voltada a correção
de desvios comportamentais. (LONGO, 2007). Sob a gestão de Médici, terceiro militar
do regime, entendia-se que o Brasil deveria passar não apenas pelo “milagre
econômico”, mas também pelo “milagre social”, sob o qual o ideário da FUNABEM
estava assentado.
É neste período também que se incorpora a expressão “menor” de uma vez por
todos no âmbito das políticas públicas. Essa expressão já fazia parte do sistema
jurídico, mas começa a ocupar a nível nacional e dos estados uma importância na
esfera administrativa. Mediante a isso, se empreende não apenas uma expressão
dirigida à crianças e adolescentes, mas também um arcabouço de práticas
circunscritas ao “menor”. (MIRANDA, 2016).
Como já pontuamos, houve uma alteração do Código dos Menores de 1927 no ano
de 1979, que instaura a nomenclatura de “menor em situação irregular”:
Ao rede�nir a situação de abandono material e moral, o Código de
Menores de 1979 considerava a expressão “situação irregular” a melhor
forma de abranger aqueles estados de “marginalização” que
caracterizavam o “menor”, mantendo, no entanto, uma postura de
diferenciação em relação a um destinatário considerado desajustado e
não integrado, reiterando-se ainda que essas condições se devem à
situação de irregularidade da própria família do ‘menor’. (FRONTANA,
1999 apud MIRANDA, 2016, p. 62)
O Código dos Menores de 1979 reconhecia o problema do abandono como principal
gerador de insegurança nas grandes cidades e para sanar isso contava com o
mecanismo da vigilância das crianças e das famílias. É importante frisar que neste
contexto, a criança e o adolescente em situação de vulnerabilidade social, tornaram-
se objeto de preocupação nacional permanente, ou seja, um problema alinhado à
doutrina de Segurança Nacional. Assim, a correção comportamental destes
menores acontecia sob as vias da pedagogia do trabalho nas instituições, como a
FUNABEM. (MIRANDA, 2016).
Cabe lembrar que a partir da abertura política da década de 1970/1980, a sociedade
civil passa a ter mais voz ativa em torno dos problemas sociais, inclusive acerca das
políticas públicas que envolvem a criança e o adolescente. Outro aspecto
importante é que estamos a falar de um contexto extremamente delicado com
relação aos direitos humanos e isso será discutido nas legislações posteriores. Por
isso, os avanços, em termos de políticas públicas, acontecem em 1988 com a
Constituição Federal e mais tarde com o Estatuto da Criança e do Adolescente em
1990, o qual trataremos a seguir.
Estatuto da criança e do
adolescente: avanços e
desa�os
AUTORIA
Maria Helena Azevedo Ferreira
O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma das mais importantes legislações
que tratam das particularidades desta categoria social no Brasil. Promulgado em
1990, o ECA tentou varrer os últimos vestígios que mais de vinte anos de
autoritarismo trouxeram para as políticas sociais dirigidas à crianças e adolescentes.
Por isso, o Estatuto é fruto da luta de movimentos sociais que buscavam efetivar os
direitos universais das crianças e dos adolescentes.
Você viu que no que diz respeito ao tratamento da criança e do adolescente
vigorava o Código dos Menores, mas assim que houve sinais de reabertura política, a
sociedade civil se organizou para cobrar a revisão imediata deste Código para que
este estivesse alinhado com a Declaração dos Direitos Universais da Criança de 1959.
Mas o que pregava essa Declaração?
A Declaração dos Direitos da Criança da ONU em 1959 provocou
discussão mundial em torno das demandas da população infantil. A
Declaração cobrou dos Estados Nacionais o compromisso com a defesa
da proteção especial às crianças, a garantia da universalização dos
direitos a todas as crianças, bem como a garantia da educação primária
gratuita e obrigatória. (LONGO, 2007, p. 6)
Mediante a pressão dos órgãos internacionais, foi instaurada em 1975, a “CPI do
Menor”. A Comissão Parlamentar, que presidia a CPI, tinha o intuito de investigar as
problemáticas da criança e do adolescente carente no país. Após algum tempo, os
resultados da CPI apontaram para a necessidade de criar melhores instrumentos
capazes de sanar a carência de políticas públicas dirigidas a este público, visando
diminuir o abandono e a crescente criminalidade. (LONGO, 2007).
Houve reações também da sociedade civil frente ao problema, como foi o caso da
Igreja Católica. A Arquidiocese de São Paulo fundou, em 1978, a Pastoral do Menor,
com essa fundação, emerge a �gura do “educador de rua”, que acompanhava os
menores em situação de vulnerabilidade social e tinha como compromisso
denunciar essa situação. Essa abordagem por parte da Igreja Católica, alinhava-se
com uma vertente progressista da Igreja, demonstrando apoio aos marginalizados
da sociedade. (LONGO, 2007).
Nos anos 1980 fundou-se o Projeto “Alternativas de Atendimento a Meninos de Rua”,
uma parceria da UNICEF, do Ministério da Previdência e Assistência Social e da
FUNABEM. Longo (2007) a�rma que tratou-se de um momento de “criatividade
institucional”, no qual ideias e lideranças de movimentos sociais foram articuladas a
�m de pensar soluções para o atendimento de crianças e adolescentes.
Este projeto Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância,
em inglês United Nations Internacional Children’s Emergency Fund.
Identi�cava, registrava e divulgava iniciativas comunitárias bem sucedidas no
tratamento de crianças de rua. Isso, de certa maneira, fortalecia o repasse da
responsabilidade

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