Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CAPÍTULO 30 A ciência na história Lição de anatomia do Dr. Tulp (1632), óleo sobre tela de Rembrandt (1606-1669). As três principais concepções de ciência___________________ Historicamente, três têm sido as principais con cepções de ciência ou de ideais de cientificidade: a racionalista, cujo modelo de objetividade é a mate mática; a empirista, que toma o modelo de objetivi dade da medicina grega e da história natural do sé culo XVII; e a construtivista, cujo modelo de objeti vidade advém da ideia de razão como conhecimen to aproximativo. A concepção racionalista — que se estende dos gregos até o final do século XVII — afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e de monstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enun ciados e resultados, sem deixar nenhuma dúvida. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado. O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas represen tadas, e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências cien tíficas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas, e não para produzir o co nhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusi vamente pelo pensamento. O objeto científico é mate mático, porque a realidade possui uma estrutura ma temática, ou, como disse Galileu, "o grande livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos". 302 - UNIDADE XI - A ciência A concepção empirista — que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX — afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem esta belecer induções e que, ao serem completadas, ofe recem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resul ta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente a função de verificar e confirmar conceitos, mas a de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais ri gorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de ma neiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio X da realidade. A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A con cepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apre sentava suposições sobre o objeto, realizava obser vações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e a previsões. A concepção construtivista — iniciada em nos so século — considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma re presentação da própria realidade. O cientista com bina dois procedimentos — um vindo do racionalis- mo, outro vindo do empirismo — e a eles acrescen ta um terceiro, vindo da ideia de conhecimento aproximativo e corrigível. Como o racionalista, o cientista construtivista exi ge que o método lhe permita e lhe garanta estabele cer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivis ta exige que a experimentação guie e modifique axio mas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corri gida, modificada, abandonada por outra mais ade quada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade: 1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria; 2. que os modelos dos objetos (ou estruturas dos fenôme nos) sejam construídos com base na observação e na experimentação; 3. que os resultados obtidos possam não só alterar os mo delos construídos, mas também alterar os próprios prin cípios da teoria, corrigindo-a. Diferenças entre a ciência antiga e a clássica ou moderna Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista como o em pirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a clássica ou mo derna (século XVII) de ciência sejam idênticas. Entre as várias diferenças, devemos mencionar uma, talvez a mais profunda: a ciência antiga era uma ciência teorética, ou seja, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles por meios técnicos; a ciência clássica é uma ciência que visa não só ao conhecimento teórico, mas sobretudo à aplicação prática ou téc nica. Francis Bacon dizia que "saber é poder", e Descartes escreveu que "a ciência deve tornar-nos senhores da natureza". A ciência clássica ou mo derna nasce vinculada à ideia de intervir na nature za, de conhecê-la para apropriar-se dela, para con trolá-la e dominá-la. A ciência não é apenas con templação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a natureza. Numa socie dade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a natu reza, a nova ciência será inseparável da técnica. Na verdade, é mais correto falar em "tecnologia" do que em"técnica". De fato, a técnica é um conhe cimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente. Por exemplo, um relógio de sol é um objeto téc nico que serve para marcar horas seguindo o movi mento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um A ciência na história - CAPÍTULO 30 303 objeto tecnológico: por um lado, sua construção pres supõe conhecimentos teóricos sobre as leis do mo vimento (as leis do pêndulo) e, por outro, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber cientí fico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia. As mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciên cia. A primeira delas se refere à passagem do racio- nalismo e do empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de cientificidade baseado na ideia de que a ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, a um ideal de cientifici dade baseado na ideia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma aproximação sobre o modo de funciona mento da realidade, mas não o conhecimento ab soluto dela. A segunda mudança refere-se à passa gem da ciência antiga — teorética, qualitativa — à ciência clássica ou moderna — tecnológica, quan titativa. Por que houve tais mudanças no pensamen to científico? Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (co mo a sociedade) evolui e progride. Evolução e pro gressosão duas ideias muito recentes — datam dos séculos XVIII e XIX —, mas muito aceitas pelas pes soas. Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em "Ordem e Progresso". As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar a metafísica). O tempo seria uma su cessão contínua de instantes, momentos, fases, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (na turais e humanos). Evolução e progresso são a crença na superiori dade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civiliza dos seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galilaico-newtoniana seria superior à aristoté- lica, a física quântica seria superior à de Galileu e à de Newton. Evoluir significa tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir significa ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade su perior. Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é cau sa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer quando, por exem plo, os manuais de história apresentam as "in fluências" que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior. Evoluir e progredir pressupõem uma concepção da história semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente ou a larva são entes que contêm em si mesmos tudo o que lhes acontecerá, ou seja, o fu turo já está contido no ponto inicial de um ser cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o des dobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente. Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos e subde senvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalida de à qual estava destinado desde que surgiu. Quan do digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade — que é a mesma para ele e para o desenvolvido — ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões "desenvolvido" e "subdesenvolvido" foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: paí ses "adiantados"e países "atrasados", isto é, países "evoluídos" e "não evoluídos", países "com pro gresso" e "sem progresso". Em resumo, evolução e progresso pressupõem continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do pre sente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mu danças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos. 304 UNIDADE XI - A ciência Desmentindo a evolução e o progresso científicos_______ A filosofia das ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido às ideias de evo lução e progresso. Isso não quer dizer que a filo sofia das ciências viesse a falar em atraso e regres são científica, pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de caminhar causal e continua mente para a frente, caminhar-se-ia causai e con tinuamente para trás). O que a filosofia das ciên cias compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descon tínuos. Quando, por exemplo, comparamos a geome tria clássica ou geometria euclidiana (que opera com o espaço plano) e a geometria contemporâ nea ou topológica (que opera com o espaço tri dimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias di ferentes, com princípios, conceitos, objetos, de monstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas e não geome trias sucessivas. Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimenta ções e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a ideia de natureza é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são dife rentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente. Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos estudos de filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das pala vras) com a linguística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem, estuda es truturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências. Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como consequência não de uma forma mais evoluí da, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, mas Isaac Newton e a antimaçã, desenho que brinca com a ideia de que a lei da natureza é necessária e universal. A ciência na história - CAPÍTULO 30 305 como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os mé todos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Ba- chelard criou a expressão ruptura epistemológica para explicar essa descontinuidade no conhecimen to científico. —■ epistemologia A palavra epistemologia é composta de dois termos gre gos: episteme, que significa “ciência”, e logia, vinda de logos, que significa “conhecimento”. Epistemologia é o conhecimento filosófico sobre as ciências. Rupturas epistemológicas_____ Um cientista ou um grupo de cientistas come çam a estudar um fenômeno empregando teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando. Encontram, diz Bachelard, um "obstáculo episte- mológico". Para superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou o grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer "não". Precisam dizer "não" à teoria existente e aos métodos e tecnologias exis tentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo de conhecimentos existentes. Assim, uma nova concepção científica emerge, levando tanto a in corporar nela os conhecimentos anteriores quan to a afastá-los inteiramente. Isso significa que, para Bachelard, a história das mudanças científi cas é feita de descontinuidades (novas teorias, no vos modelos, novas tecnologias que rompem com os antigos) mas também comporta continuidades, quando se considera que o novo foi suscitado pe lo antigo e que parte deste é incorporada por aquele. Da mesma maneira, Granger propõe que distin- gamos entre dois tipos de descontinuidades cientí ficas: uma externa e outra interna. A descontinuidade é externa quando há um hia to radical entre uma situação científica caótica, em que os conhecimentos estão dispersos e são inveri- ficáveis, e o surgimento de uma disciplina científica cujos conceitos, métodos e técnicas conseguem "pôr ordem no caos". Essa disciplina ordenadora, rigoro sa e sistemática não muda a ciência anterior, apenas a reorganiza. A descontinuidade é interna quando, mantida uma mesma visão objetiva de um campo de fatos, teorias diferentes se sucedem no interior desse cam po. No livro A ciência e as ciências, escreve Granger: Tomando o exemplo da mecânica, vemos que a mecânica da relatividade restrita está em ruptura com a mecânica newto- niana clássica, e isso não apenas em pontos isolados. Orefe rencial do espaço e do tempo, que serve, digamos, de decoração de fundo para uma mecânica, é fundamentalmente modificado, com os procedimentos de medida dos espaços e dos tempos passando a depender, então, do movimento relativo do obser vador e do observado. A velocidade da propagação do fenôme no luminoso toma-se, em compensação, uma constante univer sal absoluta. Todas as demais modificações do sentido operató- rio dos conceitos físicos decorrem dessa mudança do quadro da descrição dos fenômenos. Quando há descontinuidade interna, não há, po rém, ruptura total, pois, diz Granger, como é manti da a mesma visão objetiva de um campo de fatos, a teoria anterior é incorporada como um caso particu lar (às vezes até diminuto) da nova teoria, mas uni versal. Há descontinuidade, mas não há destruição da teoria anterior. Revoluções científicas________ Diversamente de Bachelard, o filósofo da ciên cia Thomas Kuhn considera que a história da ciência é feita de descontinuidades e de rupturas radicais. Kuhn designa os momentos de ruptura e de criação de novas teorias com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolu ção copernicana, que substituiu a explicação geo- cêntrica de Ptolomeu pela heliocêntrica de Co- pérnico. Segundo Kuhn, um campo científico é criado quando métodos, tecnologias, formas de observa ção e experimentação, conceitos e demonstrações formam um todo sistemático, uma teoria que per mite o conhecimento de inúmeros fenômenos. A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico. O paradigma se torna o campo no qual uma ciência trabalha normalmen te, sem crises. 306 UNIDADE XI - A ciência Kuhn usa a expressão ciência normal para referir- -se ao trabalho científico no interior de um para digma estabelecido. Em tempos normais, um cien tista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado, o explica usando o modelo ou o pa radigma científico existente. Em contraposição à ciência normal, ocorre a revolução científica. Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que o paradigma disponível não consegue explicar um fenômeno ou um fato novo, sendo ne cessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores. Numa revolução científica, não só novos fenômenos são descobertos e conhecimentos antigos são abandonados, mas há uma mudança profunda na maneira de o cientista ver o mundo, como se passasse a trabalhar num mundo comple tamente diferente. A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por saltos ou revoluções. Assim, quando a ideia de próton-elétron-nêutron en tra na física, a de vírus entra na biologia, a de enzima entra na química ou a de fonema entra na linguística, os paradigmas existentes são incapazes de alcançar, compreender e explicar esses objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos. Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos principais: 1. do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho. Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e, portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva; 2. do lado dos não cientistas, porque vivemos sob a ideolo gia do progresso e da evolução, do "novo" e do "fantás tico". Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fomos de micro-ondas, telefones celulares, cura de doenças jul gadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses DIÁLOGOS FILOSÓFICOS Taylorismo O pé de cada pedreiro deve ocupar uma posição determinada em relação à parede, ao balde de ar gamassa e à pilha de tijolos. A altura do balde e da pilha de tijolos deve ser aquela que possibilite um maior conforto ao pedreiro e minimize o número de movimentos necessários para assentar cada tijolo. Todos eles (o pedreiro e os materiais) ficarão em cima de um andaime que é ajustado por um operá rio especificamente treinado, alocado para ir subin do o andaime conforme a parede for-se elevando. Um outro operário especificamente treinado de ve ir preparando baldes de argamassa e substituir os baldes vazios de cada pedreiro, de modo que eles não precisem descer do andaime. Enquanto isso, um outro operário especificamente treinado deve ir selecionando e colocando em pilhas os tijolos que forem descarregados pelo terceiro operário espe cificamente treinado na melhor forma de descarre gar os tijolos do caminhão. Este será dirigido por um motorista especificamente treinado na condução de caminhões de tijolos. Ao lado de todos estes trabalhadores especifi camente treinados estão os gerentes, aqueles que dominam a ciência do assentamento dos tijolos e portanto os que podem determinar o que e como cada trabalhador deve fazer. São os gerentes que treinam os operários para trabalharem com os no vos métodos. São eles que explicam, auxiliam, en corajam cada trabalhador individualmente, ao mes mo tempo que controlam a produção de cada um a fim de recompensar monetariamente aqueles que seguiram corretamente as normas de trabalho im postas. Por outro lado, são também eles que deci dem pela dispensa daqueles operários cuja ignorân cia e preconceito impedem de perceber as vanta gens das normas científicas do trabalho para ambas as partes. Este pequeno exemplo serve para nos dar uma primeira ideia do que é usualmente chamado de taylorismo, o conjunto de estudos desenvolvidos por Frederick Winslow Taylor (1856-1915) e apli cados nas indústrias de todo o mundo, determi nando a organização do processo de trabalho contemporâneo. RAGO, Luzia Magalhães; MOREIRA, Eduardo F. P. O que é taylorismo. 10. reimpr. São Paulo, Brasiliense, 2003. P. 13-4. Coleção Primeiros Passos. A ciência na história - CAPÍTULO 30 307 resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como "signos do pro gresso" e não da diferença temporal. Do lado dos não cientistas, o progresso é uma crença ideológica. Há, porém, uma razão mais profunda para nos sa crença no progresso. Desde a Antiguidade, co nhecer sempre foi considerado o meio mais precio so e eficaz para combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vín culo entre ciência e aplicação prática dos conheci mentos (tecnologias) fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a esperança de vida (remé dios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resulta dos práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evo lução e progresso. Entretanto, Kuhn não recusa totalmente a ideia de um progresso científico. Julga que, evidentemen te, não se pode aceitar a velha ideia do progresso em que se supunha que, com o passar do tempo e o acúmulo de conhecimentos, a ciência se aproximava cada vez mais da verdade; mas pode-se falar em pro gresso toda vez que um novo paradigma ou uma nova teoria se mostram capazes de resolver um maior número de problemas do que os anteriores e de fazer mais e melhores previsões do que eles. Falsificação x revolução_______ Vimos que a ciência contemporânea é construti vista, julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecno logias e novas teorias. Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a reelaboração científica de corre do fato de ter havido uma mudança no concei to filosófico-científico da verdade. Esta, como já vi mos,foi considerada durante muitos séculos a cor respondência exata entre uma ideia ou um conceito e a realidade. Vimos também que, no século XX, foi proposta uma teoria da verdade como coerência in terna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia quando uma ideia não correspondia à coi sa que deveria representar. Na nova concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existên cia de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos. Popper afirma que as mudanças científicas são uma consequência da concepção da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria cientí fica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada. A falsificação se apoia na ideia anterior da verdade como correspondência entre as ideias e as coisas. Ou seja, Popper considera que a antiga noção de verdade não serve para confirmar uma teoria — uma teoria se mantém confirmada graças à sua coerência interna —, mas serve para refutar uma teoria. Para explicar essa diferença entre confirmação (ou verificação) e refutação (ou falsificação), Popper usa o seguinte exemplo: uma teoria científica que disser que "todos os cisnes são brancos" não pode ser verificada ou confirmada porque nenhum ser humano jamais viu ou verá todos os cisnes; todavia, basta que alguém veja um único cisne negro para refutar (ou falsificar) essa teoria. Uma ciência formula hipóteses para resolver problemas e as conserva até que sejam refutadas ou falsificadas por algum fato. Essas hipóteses são ver dades provisórias mantidas até que sejam contes tadas ou não consigam explicar novos problemas. Uma teoria científica é boa, diz Popper, quanto mais aberta estiver a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se basea va. Assim, o valor de uma teoria não se mede por O físico brasileiro e codescobridor do méson pi, Cesar Lattes (1924-2005), em foto de 1980. 308 UNIDADE XI - A ciência sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a ideia de progresso científi co, pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam. A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Kuhn, demonstrou o absurdo da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que uma teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bas tando impor a ela mudanças totais. Cada vez que novos fatos provocaram verdadei ras e grandes mudanças teóricas, essas mudanças não foram feitas com o objetivo de "melhorar" ou "aprimorar" uma teoria existente, mas com o obje tivo de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas o de provocar o surgimento de uma no va teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre ideia e coisa, seja entendida como coerência interna das ideias. Classificação das ciências_____ Ciência, no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados. A primeira classificação sistemática das ciên cias de que temos notícia foi a de Aristóteles, à qual já nos referimos no início deste livro. O filó sofo grego empregou três critérios para classificar os saberes: • critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados, levando à distinção entre as ciências teoré- ticas (conhecimento dos seres que existem e agem inde pendentemente da ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas); • critério da imutabilidade ou permanência e da mutabili- dade ou movimento dos seres investigados, levando à distinção entre metafísica (estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou ciências da nature za (estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemá tica (estudo dos seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração); • critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que estudam a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio agente como fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente). Com pequenas variações, essa classificação foi mantida até o século XVII, quando então os conhe cimentos se separaram em filosóficos, científicos e técnicos. Após esse período, a filosofia tende a desa parecer nas classificações científicas (é um saber di ferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filó sofos franceses e alemães do século XIX, baseando- -se em três critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de resultado obtido. Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias clas sificações anteriores resultou aquela que se costuma usar até hoje: • ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (arit mética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); • ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.); • ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, linguística, psicanálise, arqueologia, história, etc.); • ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na natureza, na vida humana e nas sociedades, como, por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informáti ca, etc.). Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a fí sica subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia, em botânica, zoologia, fisiologia, gené tica, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento, psicologia clínica, psicologia social, etc., e assim sucessivamen te, para cada uma das ciências. Por sua vez, os pró prios ramos de cada ciência subdividem-se em dis ciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas. A ciência na história - CAPÍTULO 30 309 A FILOSOFIA NAS ENTRELINHAS Leia o texto e em seguida responda às questões: A ciência e suas visões de mundo No âmbito das ciências, distinguimos entre ciências naturais e todas as outras. Antigamente, essas outras eram chamadas de ciências do espírito, ou seja, humanidades. Mas isso ocorria somente na Alema nha, porque lá se acreditava no espírito e nas ciências. Hoje isso é considerado até embaraçoso. É por isso que nos países anglo-saxões não se fala de ciências; as disciplinas que tratam do homem e de sua cultura são chamadas humanities; analogamente, os alemães também falam de ciências humanas. As ciências da sociedade, ou ciências sociais, separaram-se das antigas ciências humanas, as filologias, que na Alemanha são preferencialmente chamadas de “ciências do texto”. Comparadas à filosofia ou até mesmo à ideologia, as ciências são consideradas extremamente sólidas. A filosofia sempre implica especulação, e a ideologia é uma religião política de “salvação”. Em oposição a elas, encontram-se as "ciências exatas”. Ao pensarmos em ciências, o que naturalmente nos vem à cabeça em primeiro lugar são as ciências naturais. Elas dispõem de dois meios para aferir a veracidade de seus enunciados, que frequentemente estão interligados aos experimentos e cálculos matemáticosde seus objetos. Uma das inexplicáveis maravilhas do mundo é o fato de a natureza se expressar na linguagem da mate mática pura. Isso constitui um milagre, porque a matemática possui uma gramática que não mostra a menor consideração para com o mundo externo, mas obtém suas regras unicamente da lógica das relações internas. Portanto, é o oposto da natureza, ou seja, é puro espírito. Entretanto, a natureza finge dominar todas as leis da matemática e orientar-se por elas. (SCHWANITZ, Dietrich. Cultura geral - Tudo o que se deve saber. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 325.) Explique as seguintes expressões extraídas do texto: a) “A filosofia sempre implica especulação”: b) "... a matemática possui uma gramática que não mostra a menor consideração para com o mun do externo...”; c) “[A matemática]... é o oposto da natureza, ou seja, é puro espírito”. 310 Imagem do telescópio Hubble em abril de 2009. UNIDADE XI - A ciência Questões 1. Quais as três principais concepções de ciência? 2. Explique brevemente a concepção racionalista de ciência. 3. Explique brevemente a concepção empirista de ciência. 4. Explique brevemente a concepção construtivista de ciência. 5. Explique o que significam as expressões “hipotético-dedutivo” e “hipotético-indutivo”. 6. Quais os princípios do ideal de cientificidade na concepção construtivista de ciência? 7. Qual a principal diferença entre a ciência antiga e a ciência clássica ou moderna? 8. Qual a diferença entre técnica e tecnologia? 9. Explique as ideias de progresso e evolução científicos e a concepção de história pressuposta por elas. 10. Dê alguns exemplos que indiquem a descontinuidade dos conhecimentos científicos. 11. Que significam as expressões “ruptura epistemológica” e “obstáculo epistemológico”, criadas por Gaston Bachelard para se referir às mudanças científicas? 12. Quais os tipos de descontinuidade científica apresentados por Granger? 13. 0 que Thomas Kuhn entende por revolução científica? Quando ela acontece? Por que ela é uma ruptura radical com relação à ciência anterior? 14. 0 que é um paradigma científico e uma ciência normal? 15. Explique o que é uma crise de paradigma científico. 16. Por que, apesar das rupturas e descontinuidades, continuamos acreditando no progresso das ciências? 17. Que justificativa oferece Kuhn para admitirmos, com algumas restrições, a ideia de progresso científico? 18. Como Karl Popper explica a mudança de uma teoria científica? 19. Quais as críticas feitas a Popper por outros filósofos da ciência? 20. Quais os critérios usados por Aristóteles para classificar as ciências? 21. Quais os critérios usados a partir do século XVII para classificar as ciências? INDICAÇÃO DE FILME O pesadelo de Darwin (Áustria, Bélgica, Canadá, Fin lândia, França, Suécia, 2004). Direção de Hubert Sauper. Documentário que mostra e põe em discussão os efeitos sociais e ambientais provocados pela indústria da pesca no Lago Vitória, na Tanzânia, o maior lago tropical do mundo. Nos anos 1950, como experiência científica, a indústria pesqueira introduziu no Lago Vitória a perca, um predador voraz que em poucas décadas eliminou as outras espécies autóctones do lago. Por trás desse de sastre ecológico, no entanto, estão os interesses comer ciais (exportação para o hemisfério norte), em detrimen to da vida do povo local, que vive em situação de miséria. 0 filme não deixa de ser uma crítica à globalização. Cartaz do filme O pesadelo de Darwin, de Hubert Sauper. A ciência na história - CAPÍTULO 30 - 311
Compartilhar