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Revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna Bacharel em Direito Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional e em Direito Público Mestre em Direito Professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin CRB-10/2147 C756 Constituição e administração pública / Cinthia Louzada Ferreira Giacomelli... [et al.] ; [revisão técnica: Gustavo da Silva Santanna]. – Porto Alegre: SAGAH, 2018. 120 p.: il. ; 22,5 cm. ISBN 978-85-9502-348-2 1. Direito constitucional. 2. Administração pública. I. Giacomelli, Cinthia Louzada. CDU 342 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 2 28/02/2018 12:05:41 Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Conceituar normas constitucionais. Explicar a importância da classificação das normas constitucionais para a jurisprudência. Avaliar o tratamento do Supremo Tribunal Federal (STF) à eficácia das normas constitucionais. Introdução As normas constitucionais podem ser classificadas, segundo a sua eficácia, como plena, contida, limitada, imediata, mediata, restringí- vel e programática. Essas classificações têm impacto importante no tratamento jurisprudencial de controvérsias relacionadas a normas constitucionais. Neste capítulo, trataremos do conceito de normas constitucionais, da sua classificação, dos impactos na jurisprudência e do tratamento que lhes é conferido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 93 28/02/2018 12:05:56 Normas constitucionais e a sua classificação A Constituição é a lei fundamental que organiza e fundamenta o ordenamento jurídico com base nos princípios elencados pelo povo no ato de criação de um Estado Democrático de Direito. Conforme ensina Kelsen (1999, p. 155), é a norma de maior hierarquia, pois produz as próprias regras da gênese das leis: A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida se- gundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de depen- dência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental — pressuposta. A norma fundamental — hipotética, nestes termos — é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora. Se começarmos levando em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Consti- tuição representa o escalão de Direito positivo mais elevado. A Constituição é aqui entendida num sentido material, quer dizer: com esta palavra significa- -se a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais. Além disso, a norma fundamental, por conter os valores da nação, possui poder regulador em relação ao conteúdo do ordenamento jurídico e das novas legislações: A Constituição, que regula a produção de normas gerais, pode também determinar o conteúdo das futuras leis. E as Constituições positivas não raramente assim procedem ao prescrever ou ao excluir determinados con- teúdos. No primeiro caso, geralmente apenas existe uma promessa de leis a fixar e não qualquer obrigação de estabelecer tais leis, pois, já mesmo por razões de técnica jurídica, não pode facilmente ligar-se uma sanção ao não-estabelecimento de leis com o conteúdo prescrito. Com mais efi- cácia, porém, podem ser excluídas pela Constituição leis de determinado conteúdo. O catálogo de direitos e liberdades fundamentais, que forma uma parte substancial das modernas constituições, não é, na sua essência, outra coisa senão uma tentativa de impedir que tais leis venham a existir. E eficaz quando pelo estabelecimento de tais leis — v. g., leis que violem a chamada liberdade da pessoa ou de consciência, ou a igualdade — se responsabiliza pessoalmente determinado órgão que participa na criação Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais94 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 94 28/02/2018 12:05:56 dessas leis — chefe do Estado, ministros — ou existe a possibilidade de as atacar e anular. Tudo isto sob o pressuposto de que a simples lei não tenha força para derrogar a lei constitucional que determina a sua produção e o seu conteúdo, de que esta lei somente possa ser modificada ou revogada sob condições mais rigorosas, como sejam uma maioria qualificada ou um quorum mais amplo. Quer isto dizer que a Constituição prescreve para a sua modificação ou supressão um processo mais exigente, diferente do processo legislativo usual; que, além da forma legislativa, existe uma específica forma constitucional (KELSEN, 1999, p. 156-157). As normas constitucionais conformam o sistema jurídico quanto aos procedimentos de criação legislativa, os princípios fundamentais que lhes dão conteúdo válido e diretrizes gerais que estabelecem a conformidade esperada pelas leis que lhes são inferiores. A partir dessa noção de Constituição, trataremos da classificação das normas constitucionais, conforme proposto por Moraes (2003, p. 41) quanto à sua eficácia plena, contida e limitada: São normas constitucionais de eficácia plena “aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular” (por exemplo: os “remédios constitucionais”). Normas constitucionais de eficácia contida são aquelas “que o legislador constituinte regulou suficientemente os interesses relativos a determinada matéria, mas deixou margem à atuação restritiva por parte da competência discricionária do poder público, nos termos que a lei estabelecer ou nos termos de conceitos gerais nelas enunciados”. Por fim, normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que presen- tam “aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses, após uma normatividade ulterior que lhes desenvolva a aplicabilidade”. 95Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 95 28/02/2018 12:05:56 Logo, a Constituição possui normas que incidem sobre determinado suporte fático tal qual qualquer norma positiva, e, portanto, possuem eficácia plena, como as normas sobre o processo legislativo, por exemplo, ou normas em que a Constituição estabelece normas gerais, como os princípios da ordem econômica, previstos no art. 170, que serão regulados em legislações próprias, e normas de eficácia limitada, pois preveem que normas posteriores darão complementariedade ao seu próprio conteúdo. Alternativamente, Moraes (2003, p. 42) traz o a classificação proposta por Maria Helena Diniz, segundo a qual as normas constitucionais são divididas por sua eficácia absoluta, plena e restringível e mediata: Assim, propõe e explica a referida autora, que são normas constitucionais de eficácia absoluta “as intangíveis; contra elas nem mesmo há o poder de emendar. Daí conterem uma força paralisante total de toda a legislação que, explícita ou implicitamente, vier a contrariá-las. Distinguem-se, portanto, das normas constitucionais de eficácia plena, que, apesar de incidirem imediatamente sem necessidade de legislação complementar posterior, são emendáveis. [...] As normas com eficácia plena “são plenamente eficazes..., desde sua en- trada em vigor para disciplinarem as relações jurídicas ou o processo de sua efetivação, por conterem todos os elementos imprescindíveis para que haja a possibilidade daprodução imediata dos efeitos previstos, já que, apesar de suscetíveis de emenda, não requerem normação subconstitucional subseqüente. Podem ser imediatamente aplicadas”. Por sua vez, as normas com eficácia relativa restringível correspondem “às de eficácia contida de José Afonso da Silva, mas, aceitando a lição de Michel Temer, preferimos denominá-la normas constitucionais de eficácia redutível ou restringível, por serem de aplicabilidade imediata ou plena, embora sua eficácia possa ser reduzida, restringida nos casos e na forma que a lei estabelecer; Finalmente, “há preceitos constitucionais que têm aplicação mediata, por dependerem de norma posterior, ou seja, de lei complementar ou ordinária, que lhes desenvolva a eficácia, permitindo o exercício do direito ou do benefício consagrado. Sua possibilidade de produzir efeitos é mediata, pois, enquanto não for promulgada aquela lei complementar ou ordinária, não produzirão efeitos positivos, mas terão eficácia paralisante de efeitos de normas precedentes incompatíveis e impeditiva de qualquer conduta contrária ao que estabelecerem. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais96 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 96 28/02/2018 12:05:56 São normas de eficácia absoluta, portanto, aquelas normas que não podem ser emendadas e cuja eficácia é imediata, caso clássico dos direitos fundamentais, que são a positivação de direitos naturais humanos decla- rados em convenções internacionais e compõem um mínimo de direitos existenciais à nação. As normas de eficácia plena, por sua vez, encontram eco na classificação precedente como aquelas que possuem eficácia à época da vigência da Constituição, e as normas com eficácia restringível são aquelas que podem ser delimitadas pela legislação infraconstitucio- nal. Por fim, as normas de aplicação mediata são aquelas que delegam a integralidade do seu conteúdo à legislação posterior. Finalmente, compõem uma última classificação, conforme a lição de Moraes (2003, p. 43), as normas programáticas, que: [...] são de aplicação diferida, e não de aplicação ou execução imediata; mais do que comandos-regras, explicitam comandos-valores; conferem elasticidade ao ordenamento constitucional; têm como destinatário primacial - embora não único - o legislador, a cuja opção fica a ponderação do tempo e dos meios em que vêm a ser revestidas de plena eficácia (e nisso consiste a discricionariedade); não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjetivos; aparecem, muitas vezes; acompanhadas de conceitos indeterminados ou parcialmente indeterminados. As normas programáticas compõem objetivos mediatos, cujos efeitos, embora o seu conteúdo seja claro, não são atingíveis de imediato, mas servem de baliza para a evolução do próprio Estado Nacional. Um exemplo dessa espécie encontra-se na função do salário mínimo, previsto no art. 7º (BRASIL, 1988), onde este deverá ser “[...] capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”, o que hoje não é possível em relação aos valores fixados nacionalmente, mas compõe um objetivo constitucional a ser atingido pela comunidade brasileira. 97Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 97 28/02/2018 12:05:56 A eficácia depende da espécie de norma constitucional, pois, enquanto a Constituição possui princípios fundamentais que podem ser aplicados de forma imediata, outros princípios dependem de políticas públicas para que possam gerar os seus efeitos. Algumas normas dependem de legislação infraconstitucional, como é o caso dos tributos previstos na Constituição Federal. Já outras têm aplicabilidade imediata, como as normas que tratam do procedimento legislativo. Importância da classificação das normas constitucionais para a jurisprudência Conforme tratamos na primeira seção, a Constituição estabelece as diretrizes para a formulação de leis, os princípios que regem o seu conteúdo e normas de aplicabilidade imediata sobre a organização do ordenamento jurídico. Ainda, é responsável pela coerência normativa em relação aos valores eleitos pelo povo que a confi gura. A sua eficácia pode ser: absoluta, quanto à irrevogabilidade de determinados valores nela con- tida, mesmo pelo instrumento da emenda constitucional, caso das chamadas cláusulas pétreas que compõem os princípios fundamentais relacionados aos direitos naturais reconhecidos pela nação e a própria organização estatal vigente; plena, em relação às normas cujo conteúdo possui imediata aplicabilidade; mediata, quando o seu conteúdo depende de legislação posterior para complementá-las, restringível quando estabelecem regras gerais a serem especificadas pela legislação infraconstitucional; programáticas, quando o seu conteúdo é um ideal a ser realizado pelo Estado, mesmo que seja claro e, em uma primeira leitura, lembre uma norma de eficácia plena. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais98 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 98 28/02/2018 12:05:56 As influências do conceito de eficácia das normas constitucionais na atividade jurisdicional são vastas e dependem da matéria analisada pelo juízo, uma vez que podem compor o controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, ou servir de diretrizes para a resolução de antinomias entre normas infraconstitucionais, entre normas constitucionais ou mesmo conflitos entre normas de hierarquias distintas. Por sua característica fundamental, as normas de eficácia absoluta ser- vem como base para a eliminação de conflitos de ordem hierárquica, pois, conforme Kelsen (1999, p. 146): Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão inferior é considerada como válida, tem de se consi- derar como estando em harmonia com uma norma do escalão superior. Na exposição da construção escalonada da ordem jurídica se mostrará como isto sucede. Com relação às normas infraconstitucionais, as normas constitucionais em geral possuem privilégio hierárquico capaz de resolver qualquer conflito dessa ordem, enquanto as normas de eficácia absoluta ou cláusulas pétreas, por conformarem os princípios basilares da organização estatal e dos valo- res positivados da nação, possuem privilégio, mesmo em relação às demais disposições constitucionais, pois não podem ser revogadas por interpretação nem por emenda constitucional. Além disso, os direitos fundamentais também influenciam a prática jurisprudencial a partir da interpretação conforme a Constituição na forma da jurisprudência dos valores, em que o uso de princípios auxilia na in- terpretação das normas a partir de uma visão constitucional; embora os 99Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 99 28/02/2018 12:05:56 próprios princípios basilares da Constituição possam colidir nesse mesmo uso, em que incidem os postulados da proporcionalidade, razoabilidade e igualdade para a ponderação entre eles: Se dois princípios colidem — o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido —, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contido, nem que o princípio cedentedeva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condi- ções. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir — ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso (ALEXY, 2008, p. 93-94). Já as normas constitucionais de eficácia plena possuem o condão de resolver qualquer controvérsia em relação às normas infraconstitucionais de forma hierárquica, enquanto, havendo controvérsia sobre o próprio sistema constitucional, devem ser utilizadas soluções clássicas de hermenêutica dogmática para solucionar a antinomia, como regras temporais, qualitativas, em relação às cláusulas pétreas ou de maior adequação ao caso concreto por critérios finalísticos-constitucionais (teleológicos) encontrados pelo julgador. As normas de eficácia mediata devem ser interpretadas quanto à com- plementariedade em relação às normas infraconstitucionais, em que estas podem restringir o seu alcance, mas não podem contrariar o seu conteúdo; logo, uma norma infraconstitucional que verse sobre a preservação do meio ambiente equilibrado (art. 225, Constituição Federal) pode estabelecer regras de responsabilidade civil (art. 225, § 3º) em relação à necessidade de com- provação de causalidade e do ilícito relacionados ao dano. No entanto, não podem revogar a norma secundária de responsabilidade civil em relação ao dispositivo constitucional (BRASIL, 1988). Desse modo, as normas cons- titucionais de eficácia mediata estabelecem o conteúdo mínimo para que a legislação infraconstitucional estabeleça as suas bases, novamente, cabendo Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais100 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 100 28/02/2018 12:05:57 ao método hierárquico de interpretação a resolução de controvérsias entre a norma-base e a sua regulação. Finalmente, as normas ditas programáticas, em que pese o seu dispositivo ser expresso, como é o caso do mencionado salário-mínimo, não podem ser compreendidas em sua literalidade, pois a sua eficácia imediata seria impossível conforme as possibilidades fáticas do momento da sua criação. Assim, devem ser interpretadas pela jurisprudência com cautela necessária para compreender qual é o nível de evolução em que a realidade fática se encontra em relação ao programa estabelecido pela Constituição. O método histórico comparando as circunstâncias da criação da norma e as circuns- tâncias da atualidade é o mais indicado para que haja uma devida ponderação entre o conteúdo da norma e as circunstâncias e possibilidades de preenchimento dos seus requisitos graduais no caso concreto. Eficácia das normas constitucionais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal A Constituição, como vimos, possui normas de efi cácia absoluta, plena, mediata e/ou restringível e programáticas. O seu guardião é o STF, órgão do judiciário responsável pelo controle de constitucionalidade das normas e decisões do judiciário. A partir do estudo da jurisprudência, do STF, trataremos de decisões das quais podemos extrair exemplos de aplicação dessas modalidades de efi cácia. Com relação aos direitos constitucionais de eficácia absoluta, em de- cisão sobre colisão entre norma de hierarquia superior (constitucional) na forma da liberdade de expressão, norma fundamental prevista no art. 5, IV e IX, o STF utilizou os critérios de hierarquia sistêmica e ponderação de princípios: 101Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 101 28/02/2018 12:05:57 A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguar- dar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem. 8. Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art. 5º, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as bio- grafias. 9. Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes) (BRASIL, 2016). Ao excepcionar a regra do código civil que proíbe o uso de direitos de personalidade sem autorização prévia da pessoa objeto de descrição no caso de obras biográficas, o Supremo reafirma os valores fundamentais com eficácia imediata e irrevogáveis, mesmo por regras posteriores, como é o caso do Código Civil de 2002, eis que as cláusulas pétreas constitucionais configuram normas de hierarquia superior (ainda que a integralidade da regra tenha se mantido, excepcionando-se o caso em tela para que a norma seja adequada aos preceitos constitucionais). Sobre as normas constitucionais de eficácia plena, a decisão abaixo traz exemplo de aplicação de norma de competência constitucional para uso do foro privilegiado: Ementa: AGRAVO REGIMENTAL — ALEGAÇÃO DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL — FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO — HIPÓTESE NÃO CARACTERIZADA – INQUÉRITO INSTAURADO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDI- Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais102 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 102 28/02/2018 12:05:57 CAS SEM PRERROGATIVA - ENCONTRO FORTUITO DE ELEMENTOS INDICIÁRIOS — A SIMPLES CIRCUNSTANCIA DE O PARLAMENTAR SER SÓCIO DA EMPRESA INVESTIGADA NÃO É SUFICIENTE PARA FIRMAR A COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE - REMESSA REGULAR DO FEITO — FASE EMBRIONÁRIA DAS INVESTIGAÇÕES - NULIDADE NÃO RECONHECIDA — AGRAVO AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO (BRASIL, 2017). Nesse caso, o Supremo aplica o art. 102, I, da Constituição Federal, norma constitucional de eficácia plena que versa sobre a sua competência, em que gozam de foro privilegiado as ações originárias contra o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente, nos casos especificados nas suas alíneas, não se estendendo esse foro às suas atividades que fujam do escopo da sua função (crimes de responsabilidade) ou privilégio do cargo (ações penais comuns) (BRASIL, 1988). Com relação às leis de eficácia mediata, o Supremo, no caso abaixo, re- conhece, mesmo sem a devida Lei Complementar, a existência de município que cumpre com os requisitos consolidados para a sua separação de município de que outrora pertencia: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 6.066, DO ESTADO DO PARÁ, QUE ALTERANDO DIVISAS, DESMEMBROU FAIXA DE TERRA DO MUNICÍPIO DE ÁGUA AZUL DO NORTE E INTEGROU-A AO MUNICIPIO DE OURILÂNDIA DO NORTE. INCONS- TITUCIONALIDADE DE LEI ESTADUAL POSTERIOR À EC 15/96. AU- SÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR FEDERAL PREVISTA NO TEXTOCONSTITUCIONAL. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 18, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. OMISSÃO DO PODER LEGISLATIVO. EXISTÊNCIA DE FATO. SITUAÇÃO CONSOLIDADA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA DA JURÍDICA. SITUAÇÃO DE EXCEÇÃO, ESTADO DE EXCEÇÃO. A EXCEÇÃO NÃO SE SUBTRAI À NORMA, MAS ESTA, SUSPENDENDO-SE, DÁ LUGAR À EXCEÇÃO — APENAS ASSIM ELA SE CONSTITUI COMO REGRA, MANTENDO-SE EM RELAÇÃO COM A EXCEÇÃO (BRASIL, 2007). 103Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 103 28/02/2018 12:05:57 O Supremo, no caso em tela, reconhece que não está restrito à lite- ralidade da lei, de modo que deve proteger os preceitos constitucionais em sintonia com as consequências da sua omissão. Assim, em vista dos prejuízos que acarretariam a mera formalidade, decide pelo reconhecimento da alteração regional em caráter de excepcionalidade, tornando, no caso concreto, uma norma constitucional de aplicabilidade mediata em norma constitucional de eficácia plena a partir da ponderação entre os princípios constitucionais da segurança jurídica, aqui privilegiados em detrimento da segurança do município. Finalmente, sobre as normas programáticas, o STF reconhece a impossi- bilidade da sua aplicação indiscriminada, mas defende a constitucionalidade das políticas públicas que visam à concretização das mesmas, como foi o caso da discussão de constitucionalidade da distribuição gratuita de medicamentos contra o HIV: ARE 685230 AG R / MS CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE — O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, frau- dando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CA- RENTES — O reconhecimento judicial da validade jurídica de Programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF (BRASIL, 2013). Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais104 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 104 28/02/2018 12:05:57 Nesse caso, o Supremo compreende que a eficácia da norma programática não deve ser esvaziada, embora não goze de eficácia plena pela inconsequ- ência que essa interpretação traria ao erário, de forma que políticas públicas pontuais que lhe traduzam eficácia são recepcionadas pela Constituição, desde que ponderadas com os demais deveres do Estado. Assim, é possível concluir que a eficácia das normas constitucionais é tratada pelo STF, ora com rigor doutrinário, ora com flexibilidade em rela- ção aos aspectos materiais da aplicação das normas da Carta Magna, com vista à materialidade da norma, protegendo a Constituição de modo a dar-lhe aplicabilidade, seja esta plena ou limitada de acordo com a complexidade das suas disposições. 1. Leia o que segue e assinale a alternativa que preenche corretamente a lacuna. Segundo Moraes (2003), as normas constitucionais podem ser classificadas por sua ___________________ como absoluta, plena e restringível e mediata. a) Eficiência. b) Natureza jurídica. c) Eficácia. d) Temporalidade. e) Especialidade. 2. As normas que possuem texto claro, porém não podem ser aplicadas na sua integralidade pelas limitações da economia, tecnologia ou questões sociais, são denominadas normas: a) principiológicas. b) axiológicas. c) políticas. d) programáticas. e) positivas. 3. Leia o que segue e assinale a alternativa que preenche corretamente a lacuna. As normas de eficácia mediata dependem de ___________________________ para que possam revestir-se de eficácia plena. a) Legislação complementar. b) Medidas provisórias. c) Decreto legislativo. d) Decreto executivo. e) Sanção jurídica. 105Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 105 28/02/2018 12:05:58 4. Leia o que segue e assinale a alternativa que preenche corretamente a lacuna. Segundo o STF, a legislação complementar é ________________________ para o reconhecimento de incidência da norma constitucional quando requisitos de fato para o cumprimento da norma constitucional estão presentes no caso concreto e as consequências práticas se encontram consolidadas. a) Indispensável. b) Prescindível. c) Imprescindível. d) Excepcionalmente dispensável. e) Revogável. 5. Leia o que segue e assinale a alternativa que preenche corretamente a lacuna. A solução de conflito entre normas constitucionais e infraconstitucionais é resolvido em regra pelo(a) _______________________. a) Lógica pura. b) Mens legis. c) Teleologia. d) Literalidade. e) Hierarquia das normas. ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25 fev. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3689. Relator: Ministro Eros Grau. Julgamento: 10 maio 2007. Disponível em: <https://stf.jusbrasil. com.br/jurisprudencia/14728762/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3689-pa>. Acesso em: 27 fev. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4183. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: 21 mar. 2017. Disponível em: <http:// redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12725995>. Acesso em: 27 fev. 2018. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais106 Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 106 28/02/2018 12:05:58 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ https://stf.jusbrasil/ http://com.br/jurisprudencia/14728762/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3689-pa http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12725995 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815. Relatora: Ministra Carmen Lúcia. Julgado em: 10 jun. 2015. 2016. Disponível em: <http://www. stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000300312&base=baseAco rdaos>. Acesso em: 26 fev. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 685230. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgado em: 5 mar. 2013. Disponível em: <https://stf.jusbrasil. com.br/jurisprudencia/23085690/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo- -are-685230-ms-stf/inteiro-teor-111563975?ref=juris-tabs>. Acesso em: 27 fev. 2018. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MORAES, A. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Leituras recomendadas FERRAZ JUNIOR, T. S. F. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. NADER, P. Introdução ao estudo do Direito. 36. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 107Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais Constituicao_e_Administracao_Publica_Book.indb 107 28/02/2018 12:05:58 http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000300312&base=baseAco https://stf.jusbrasil/ http://com.br/jurisprudencia/23085690/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo- Encerra aqui o trecho do livro disponibilizado para esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtualda Instituição, você encontra a obra na íntegra.
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