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Jaime Balmes - O Critério

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JAIME BALMES 
, 
O CRITERIO 
Edicão patrocinada pela Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo, 
em comemoracão ao centenário da 
morte do insigne filósofo espanhol 
* 
EDITôRA ANCHIETA 
S. PAULO, MCMXLVIII 
NIHIL OBSTAT 
S. Paulo, 12 de outubro de 1948 
Pe. José Varani 
CENSOR 
IMPRIMATUR 
t Paulo Rolim Loureiro 
BISPO A UXTI..IAR 
São Paulo, 13-X-1948 
EXPLICAÇAO NECESSARIA 
Partindo para a Europa com a caravama de es­
tudantes da Faeuldade: de Direito da Pontifícia Uni­
versidade Católica de São Paulo, deixou-me o dilecto 
armigo Prof. Dr. J. P. Galvão de Sousa a honrosa 
incumbência de cuidar da publicação do O Critério 
de Jaime Balmes com que celebrasse a dita Univer­
sidade o centenário do falecimento do insigne filó­
sofo espanhol. 
Exíguo o templO par-a uma tradução imediata e 
actual da afamada obra, houve que a;proveitar c 
versão antiga de João Vieira, editada p·or Chardron 
em 1877 (2.a edição) e por tantos atributos notável. 
Prestando-se o dr. João Payão Luz ao sacrifí­
cio do exempla1· da sua biblioteca como original para 
a tipografia aviámo-nos ao coteio com o texto cas­
telhano. Baseara-se, porém, o tradutor na versão 
frfkncesa de M. Manec, alegando que "nela se aper-
1 eiçoara o texto original". 
Não convimos com o juízo de João Vieira. 
Para ganha.r tempo, todavia, fomos obrigados 
a ater-nos apenas à revisão de eertas pequenas 
VI O CRITÉRIO 
infidelidades em que com razão se pudera dizer ser 
o "traduttore" um "traditore", e à actualização da 
ortografia. 
Para esta operação urgente e melindrosa, so­
corremo-nos também dos préstimos da distinta Prof.a 
Maria Ricardina Mendes de Almeida e, mercê de to­
dos esses passos, pudemos entregar o� originais à 
Editôra Anchieta, a qual generosamente se prontifi� 
cara a ser a publicadora da obra, em tempo hábil 
para que o volume viesse a surgir à luz na data 
convencionada, que é esta. 
Do Prof. J. P. Galvão de Souza, ainda na 
Europa, recebemos as páginas pospostas a estas 
explicações. 
A todos quantos nos auxiliaram a>ara que a pu­
b licação saísse a contento, deixamos aqui expresso o 
nosso "muito obrigado " . 
Arlindo VEIGA DOS SANTOS 
São Paulo, 28 de j ulho de 1948. 
PREFACIO 
1848 foi um ano eminentemente revolucionário. 
Enquanto o judeu Karl Marx redigia o Manifesto Comu­
nista; traçando a diretriz da revolução mundial, movimen­
tos subversivos alastravam-se pela Europa derrubando 
governos e fazendo sossobrar regimes. 
Naquêle mesmo ano, jovem ainda, entregava a alma 
ao Criador um ilustre filósofo e publicista espanhol cuja 
pena estivera sempre a serviço da Igreja e da Pátria, os 
dois alvos contra que se voltavam as arremetidas da im­
piedade e do internacionalismo revolucionãrio. Fizera-se 
paladino das tradições do seu povo então postas em cheque. 
E com 38 anos apenas passaria à hist'ória como um dos 
maiores pensadores dre sua época. Assim foi que o Cardeal 
Joaquim Pecci, futuro Papa Leão. XIII, considerou Jaime 
Balmes, com quem travara relações na Bélgica. 
Homem de gabinete e de ação, Balmes nunca esteve 
alheio aos problemas do seu tempo. Soube dividir-se entre 
as especulações da metafísica e as questões candentes da 
atualidade social. Participou da vida polit'ica da Espanha 
procurando harmonizar as correntes tradicionalistas que se 
degladiavam numa incompreensão da gravidade do mo·· 
mento quando deviam estar unidas em face da maré 
montante das fôrças da Revolução. 
2 P R E F A C I O 
Sua obra, espelhando um talento polimorfo de pas· 
mosa fecundidade, se diria de alguém já avançado em 
anos de estudo, de meditação e de experiência. Dominou 
todos os sistemas filosóficos modernos com uma 
penetração genial, sabendo colher aqui e ali fragmentos 
de verdade como faz a abelha ao extrair o mel das mais 
variadas flôres. Não se deixou, porém, levar pelas águas 
turvas do ecletismo. E por outro lado evifando com 
maestria os escolhos do idealismo e do empirismo, que 
haviam feito naufragar a tantas inteligências de escol, 
assentou um dos marcos iniciais da restauração da filo­
sofia perene, à qual seria dado decidido impulso depois 
da Encíclica Aeterni Patris de Leão XIII. 
Metafísico sereno enquanto, nas páginas da Filosofia 
Fundamental, aprofundava o estudo do valor do conheci· 
mento, Balmes se transformava num jornalista vibrante 
ao escrever para as colunas de El Pensamiento de la 
Nación. 
Título bem expressivo o dêste periódico, para indicar 
o sentido da doutrinação cívica de quem soube com tanta 
clarividência interpretar o pensamento da nação espa· 
nhola, sent'indo perfeitamente os imperativos da unidade 
nacional e ao mesmo tempo dos particularismos regio­
nais. 
Já se tem notado que há, em Balmes, num grau emi· 
nente, as qualidades próprias do gênio catalão. Mas o 
seu espírito excedeu os limites da Catalúnia, fundindo-se, 
por assim dizer, com a complexidade do gênio espanhol. 
E transpôs ainda\ as fronteiras de sua pátria, integrando· 
-se na cultura européia, ou melhor, na universidade da 
civilização cristã. 
O redator de El Pensamiento de la Nación foi tam· 
bem um dos fundadores de La Civilización: teve sempre 
voltadas as preocupações para os destinos da Espanha e 
P R E F A C I O 
da Cristàndade. Dai o nos ter deixado aquela magnífica 
síntese histórico-filosófica El Protestantismo comparado 
con el Catolicismo, que Menendez y Pelayo não hesifou 
em classificar como o maior livro espanhol do século. 
Estudando o catolicismo e o protestantismo nas suas re· 
!ações com a civilização européia, focalizou problemas que 
ainda hoje se revestem da mais viva oportunidade. Obra 
definitiva e clássica no assunto, apesar do seu carácter 
polêmico, motivada que foi por um livro de Guizot. 
Balmes, manejando a pena de jornalista ou a de pole· 
mista, não perdia a objetividade, a lucidez, o equilíbrio 
do filósofo. 
A razão dêsse domínio sôbre si mesmo está no modo 
por que entendeu a filosofia. Admirável a plasticidade 
de sua inteligência, capaz de se alçar aos grandes vôos 
da metafísica e logo após tornar ao terra-a-terra do quo· 
tidiano sem perder o senso da realidade· e das coisas prá· 
ticas! 
Muita gente imagina os filósofos tipos exóticos e 
infensos ao convivia social, vivendo numa esfera diferente 
da que é habitada pelo comum dos mortais . . . E quantas 
vezes os culpados deste juizo são os próprios cultores da 
filosofia! Não temos visto grandes espíritos afeitos a 
elucubrações filosóficas tornarem-se, de um momento para 
outro, irreconhecíveis pela falta de lógica ou as divaga· 
ções abstractas e sem nenhum contacto com o real, quando 
se põem a tratar de assuntos sociais ou políticos de ordem 
prática ? Perturba-lhes a visão das coisas uma filosofia mal 
compreendida que não serve para a vida. A êstes pode 
caber muito bem o sentido pejorativo que chegou a ad· 
quirir a palavra "filósofo". Não, porém, a quantos com· 
preendam a �ilos_�fia como amor à sabedoria; disciplina 
mental,· escola de formação da inteligência e da vontade 
na procura da verdade objetiva� Assim a compreendeu 
4 P R E F Á C I O 
sempre Balmes, e se quisermos a chave do seu segrêdo, 
êle mesmo no-la dará : acha-se nas páginas de um livrinho 
maravilhoso e único no gênero - El Criterio. 
Alguém procurou desfazer no valor filosófico da obra 
de Balmes. Escandalizou-se, talvez, com a simplicidade 
dêste livrinho e não pôde conformar-se em ver a filosofia 
reduzida a uma linguagem accessível, popular. Não admira 
que os homens habituados ás excentricidades da filosofia 
moderna pensem de tal forma. Mas o facto é que a sã 
filosofia tem por vestíbulo o senso comum. A simplicidade 
é marca de um espirit'o objectivo, de uma inteligência que 
sabe tirar das mais comesinhas e triviais afirmações os 
mais profundos ensinamentos. 
Aos que se comprazem com a linguagem abstrusa de 
certos filósofos de hoje, Balmes desagradará. Aos que pro­
curam na filosofia os inebriamentos de um licor altamente 
fermentado, serão insípidas as páginas de Balmes.Mas 
aos espíritos sedentos da água pura, cristalina e bem­
fazeja da verdade, serão sempre de valor inestimável : 
um depurativo para a mente, um eliminant'e das toxinas 
que contaminam o intelectualismo hodierno. 
Não sei de livro mais necessário do que O Critério 
de Balmes para a mocidade de hoje. 
Com efeito, pareoe que nunca houve, como nos dias 
correntes, tanta falta de . . . critério. 
Os homens dão-nos a impressão de não raciocinar,· 
mais com a lógica natural do espírito humano. E quando · 
raciocinam, não sabem tirar das grandes verdades reli­
giosas, morais e sociais as conseqüências tôdas em que 
importam para a vida. 
Além disso, o subjetivismo mais desenfreado impera 
na filosofia moderna desde Descartes e sobretudo Kant. 
Passou da filosofia à moral, à· estética, à politica. Não 
admira, pois, que se tivesse chegado a perder até mesmo 
P R E FACI O 
, 1 o senso da distinção entre o bem e o mal, entre o betv 
�l e o extravagante, entre a liberdade e o arbitrio. 
Tudo isso por um desequilibrio profundo, a atingir a 
própria estrutura mental e com efeitos irremediáveis no 
que concerne à formação do carácter e à educação da 
vontade. 
Bem outra seria a situação se todos seguissem as 
regras tão simples ensinadas por Balmes no O Critério, 
uma espécie de lógica prática que deveria andar de mão 
em mão servindo de livro de cabeceira para a mocidade 
estudiosa. 
Certamente a muitos causará extranheza o conteúdo 
destas páginas. Coisas de senso comum, coisas que todo 
o mundo sabe desde que começa a pensar. E' verdade. 
Pois aí está precisamente o grande valor dêste compên­
dio numa época em que nada é mais necessário do que 
saber pensar. 
Enquanto os adeptos da revolução social festejam 
o centenário do Manifesto Comunist'a e dos movimentos 
subversivos de 1848, tratemos nós de ouvir as lições de 
Balmes, propugnador da ordem nas idéias e na sociedade, 
filósofo restaurador do senso comum e publicista mestre 
do pensamento contra-revolucionário. Comemorando o 
centenário de Balmes, aprendamos com o Autor do 
O CRITÉRIO a pensar bem e querer o bem para bem 
viver. 
J. P. GALVÃO DE SOUSA 
(Professor da Pontiflcla Univer­
sidade Católica de São Paulo). 
o 
, 
CRITERIO 
CAPiTULO I 
Considerações preliminares 
I 
EM QUE CONSISTE O PENSAR BE'M. 
QUE É A VERDADE? 
Pensar .bem consiste ou em conhecer a verdade, 
ou em dirigir o entendimento pelo caminho que a 
ela conduz. A verdade é a realidade das coisas . 
Conhecer as coisas tais como são em si é possuir a 
verdade ; de modo diferente, é êrro. Sabemos que 
há Deus, e este conhecimento é uma verdade, por­
que realmente Deus existe . Sabemos que a variedade 
das estações depende do sol, e este conhecimento é 
uma verdade, porque realmente assim é. Sabemos 
que a obediência às leis, a boa fé nos contractos, a 
fidelidade aos amigos, são virtudes : saber isto é 
conhecer outras tantas verdades ; da mesma sorte 
O CRITÉRIO 
fora cair em erro j ulgar boas e dignas de louvor a 
perfídia, a ingratidão, a inj ustiça. 
Para pensar bem, busque-se conhecer a verdade, 
isto é, a realidade das coisas. De que serve discor­
rer com subtileza, ou aparentar profundeza, sem o 
pensamento conforme à realidade ? Um lavrador, 
um modesto artista que conheçam bem os obji:ldos de 
sua profissão, pensam e falam melhor sobre estes 
objectos do que um filósofo que, revestindo sua igno­
r.ância de elevados conceitos e palavras altissonantes, 
pretende ensinar o que ignora. 
li 
DIFERENTES MODOS DE CONHECER A VERDADE 
As vezes só imperfeitamente conhecemos a ver­
dade. A realidade apresenta-se-nos então, não tal 
como efectivamente é, mas incompleta, aument·ada ou 
mudada. Assim, se a certa dist.ância desfila uma 
coluna de homens, de sorte que vemos brilharem as 
armas, mas sem distinguir os traj es, o que podemo::, 
concluir é haver gente armada ; mas será um ajunta­
mento popular, ou um corpo de tropas ? a que parte 
do exército pertence ? Não o podemos saber. A 
verdade não se nos apresenta toda ; só temos um 
conhecimento imperfeito ; falta-nos ver distintamen­
te o uniforme. 
ú CRITÉRIO 9 
Se, iludidos pela distância ou qualquer outra 
causa, supomos gratuitamente que tais homens estão 
fardados de modo que realmente não estão, ainda 
neste caso há imperfeição de conhecimento; ajunta­
mos alguma coisa que na realidade não existe. 
Enfim, se tomamos uma cousa por outra, como, 
por exemplo, um vestido amarelo por branco, alte­
ramos ainda a verdade ; mudamos um obj ecto em um 
outro. 
O entendimento que possui uma verdade em 
toda a sua extensão é como estes bons espelhos que 
representam os obj ectos exactainente como são. �a 
posse do erro, o entendimento pode ser coinparado 
coin os caleidoscópios que enganain a vista oferecen­
do-lhe imagens sein realidade. Finalmente, nos ca­
sos em que só possui parte da verdade, é coino os 
espelhos Inal estanhados ou dispostos de certa ma­
neira, os quais apresentain os objectos reais, Inas de 
modo que eles não são, porque lhes alteram as 
proporções e a figura. 
III 
DIVERSIDADE DOS ESPíRITOS 
O bom pensador procura ver nos objectos tudo o 
que contêin, e nada mais. Homens há que têm o 
talento de ver muito em tudo ; porém, cabe-lhes a 
lÓ O CRITtRIO 
desgraça de verem o que aí não há e não verem o 
que realmente há. O sucesso mais indiferente, uma 
circunstância qualquer lhes fornece matéria abun­
dante para discorrer profusamente-; para, como se 
costuma dizer, levantar castelos no ar. Grandes 
fazedores de projectos, belos palradores ! 
Outros padecem do defeito contrário; vêem bem, 
mas pouco. Penetram as coisas dum só lado, e se 
este lhes desaparece não vêem mais nada. Estes 
são propensos a sentenciosos e obstinados. Como 
caipiras que j amais saíram de sua roça, p·ara eles 
o mundo termina no horizonte. 
Um entendimento lúcido, capaz e exacto abarca 
em seu estudo o obj ecto plenamente; encara-o sob 
todas as faces, em todas as suas relações. A con­
versação e os escritos dos homens assim dotados 
distinguem-se por sua clareza, precisão, exactidão. 
Cada palavra sua põe em relevo uma ideia e esta 
ideia corresponde à realidade das coisas; elucidam­
-nos e persuadem, deixam-nos plenamente satisfeitos. 
Dizemos com assentimento sem reserva : sim, é ver­
dade, tem razão. Nenhum esforço é mister para 
os seguir em seus raciocínios. C aminhamos por ca­
minho plano, no qual o que nos conduz nos faz notar 
a propósito as maravilhas que se encontram na pas­
sagem. - Se a matéria é abstracta e difícil, e o ca­
minho é escuro e se some nas entranhas da terra, 
não importa! O nosso guia é mais prático; sabe 
O CRITtRIO 11 
como s� diminui a fadiga e economiza o tempo; tem 
nas mãos um archote de vivíssima claridade. 
IV 
A PERFEIÇÃO DAS PROFISSõES DEPENDE DA 
PERFEIÇÃO COM QUE SE CONHECEM OS 
OBJECTOS DELAS 
O conhecimento perfeito das coisas na ordem 
científica forma os verdadeiros sábios ; na ordem 
prática e para a direcção da vida, faz. os prudentes ; 
na administraç.ão dos negócios públicos, forma os 
grandes estadistas. Enfim, em todas as profissões, 
o mais hábil é o que conhece melhor as matérias de 
que trata e de que se serve. Este conhecimento, po­
rém, há-de ser prático e abranger também os por­
menores da execução que, por assim dizer, são pe­
quenas verdades, de que se não pode prescindir para 
o conhecimento completo das coisas. Estas verda­
des são numerosas, até nas profissões mais simples. 
Um exemplo : qual será o melhor agricultor ? O que 
melhor conhecer as qualidades dos terrenos, das se­
mentes e das plantas, os melhores métodos e os me­
lhores instrumentos de lavoura ; o que à terra fizer 
produzir melhores frutos, com menos despesas, em 
menos tempo e com mais quantidade, finalmente que 
possuir mais verdades relativas à prática da agri­
cultura. 
12 b CiUTtRIÓ 
O mBsmo acontece com o carpinteiro, com o 
comerciante : o mais hábil deles será o que possuir 
maior número de verdades concernentes a sua 
arte ; o que mais a fundo conhecera realidade 
das coisas que o ocupam. 
v 
A TODOS INTERESSA PENSAR BEM 
A arte de bem pensar interessa não somente aos 
filósofos, senão a todos os homens, por mais simples 
que sejam. O entendimento é um dom precioso ou­
torgado pelo Criador, é a luz que nos deve guiar, é, 
portanto, para o homem o dever por excelência ; 
se se apaga, ficamos às escuras, caminhamos às 
apalpadelas. Não devemos ter o entendimento em 
inacç.ão, sob pena de se embotar e tornar estúpido ; 
porém, alimentando-a, avivando-a, convém que a sua 
chama nada se altere na bondade. Deve esclarecf'r 
sem deslumbrar, mostrar o caminho sem extravios. 
VI 
COMO SE DEVE ENSINAR A ARTE DE PENSAR BEM? 
A ârte de pénsar bern não sé aprende t::1nto 
com regras como com exemplos. Aos que profes· 
O CRIT�RIÓ 13 
sam esta arte multiplicando os preceitos e observa­
ções analíticas, perguntamos o que pensariam de 
uma ama que, para ensinar os meninos a falar ou 
nadar, empregasse semelhante método ? Mas não 
se infira que condeno tod·as as regras. O que sus­
tentamos é que s-e deve usar delas com sobriedade, 
sem pretensão filosófica e sobretudo que hão-de ser 
simples e práticas. Ao lado da regra, o exemplo. 
Um menino pronuncia defeituosamente certas pala­
vras ; que fazem os pais ou mestres para o corrigir ? 
Pronunciam-nas como devem ser pronunciadas, e lhas 
mandam repetir em seguida. " Escuta bem como 
digo . . . vai, agora tu . . . não ponhas os lábios desse 
modo, não faças tanto esforço com a língua ", e ou­
tras coisas assim. Eis o exemplo ao lado do pre­
ceito; a regra e logo a maneira de a pôr em prática. 
CAPíTULO II 
A atenção 
Assim como há meios conducentes ao conheci 
mento da verdade, também há obstáculos que nos 
impedem chegar a ela. Ensinar a empregar uns 
e desviar dos outros, eis a arte de bem pensar. 
I 
DEFINIÇÃO DA ATENÇÃO, SUA NECESSIDADE 
A atenção é a aplicação do espírito a um objecto 
qualquer. Para bem pensar, é mister, antes de tudo, 
saber ser atento. O machado não corta, se não é 
aplicado à árvore ; a foucinha é inútil nas mãos do 
ceifador, se não encontra espigas. 
Algumas vezes, os obj ectos se apresentam ao 
espírito, sem que ele lhes atente, de modo que su­
cede vermos sem olhar, ouvir sem escutar ; porém 
o conhecimento adquirido por tal modo é sempre li-
16 O CRIT�RIO 
geiro, superficial, muitas vezes inexacto ou comple­
tamente erróneo. O espírito inatento fica por assim 
dizer fora de si, não vê o que se lhe mostra. Esfor­
cemo-nos por ·adquirir o hábito da atenção, quer no 
movimento dos negócios, quer na quietação dos 
estudos. Temos tido muitas vezes ocasião de obser­
var que o que nos falta para compreender é menos 
a inteligência suficiente, do que suficiente aplicação 
do espírito, a atenção. 
Se escutamos a narração dum sucesso qualquer, 
distraídos e deixando flutuar ao acaso a imagina­
ção, interrompendo o narrador com mil questões e 
digressões estranhas, o que daqui resulta é que 
circunstâncias importantes nos escapam, que traços 
essenciais passam sem nos impressionar, e que, se 
depois quisermos contar o facto, ou meditàr snbre 
ele afim de formarmos nosso j uízo, ele se apresenta. 
à reminiscência incompleto e desfigurado. Proce­
derá o êrro de nossa incapacidade, ou de não termos 
prestado suficiente atenção ao narrador ? 
li 
VANTAGENS DA ATENÇÃO E INCONVENIENTES 
DE SUA FALTA 
A atenção multiplica as forças do espírito de 
um modo incrível, e como que alonga o tempo. 
O CRITtRIO 17 
Por meio da atenção o homem ilustra-se incessan­
temente ; é à atenção que ele deve a precisão e ela� 
reza de suas idéias ; deve-lhe até as maravilhas da 
memória, pois que em virtude da atenção é que as 
idéias se classificam no cérebro com ordem e método. 
Os que só frouxamente atendem, passeiam seu 
entendimento por lugares distintos ao mesmo tem­
po ; aqui recebem uma impressão, além uma mui 
diferente ; acumulam deste modo cem coisas inco� 
nexas que, longe de os aj udar para a aclaração e 
retenção, se confundem, se embaralham, se destróem 
umas às outras. Não há leitura, conversação, es� 
pectáculo, que não possam, por mais insignificantes 
que pareçam, oferecer algum obj ecto de instrução. 
A atenção toma nota e recolhe as coisas mais insig� 
nificantes, a distracção deixa cair ao chão, como re­
fugo, o ouro e as pedras preciosas. 
III 
COMO SE PRESTA ATENÇÃO. ESPíRITOS 
FRíVOLOS E CONCENTRADOS 
Poder-se-á crer que tal atenção demanda muita 
fadiga, mas é um êrro. Quando digo atenção, não 
�ntendo a fixidez dum espírito que, por assim dizer, 
18 O CRITÉRIO 
se crava nos obj ectos, mas sim uma aplicação serena, 
repousada, que permite que cada coisa tenha a sua 
hora e. nos deixa a agilidade necessária para passar 
de um trabalho ao outro. Esta atenç.ão não é in­
compatível com as diversões ou recreio. Com ef-eito, 
recrear-se a gente não é deixar de pensar, é dar 
tréguas •aos assuntos de estudo laborioso e consagrar­
-se a estudos mais fáceis. O sábio que interrompe 
os seus estudos árduos e p-rofundos para ir saborear 
um momento os encantos do campo compraz-se em 
observar o estado das coisas ; atende aos trabalhos 
dos lavradores, ao murmúrio das fontes, ao canto das 
aves ; esta atenção distrai-o, não o fatiga. 
Estou tão longe de considerar a atenç.ão como 
. abstracção severa e contínua, que conto -como ho­
. mens distraídos não somente os estouvados, mas 
ainda os ·absorvidos em si mesmos. Aqueles dissi­
pam-se fora de si ; estes p-erdem-se dentro de si 
mesmos, nas vagas profundezas de suas divagaç.ões. 
Tanto uns como os outros carecem de conveniente 
atenção, isto é, aquela que se deve aplicar ao objecto 
de que se ocupa. 
O homem atento é também o que tem mais 
urbanidade e cortesia. Feris o amor próprio da· 
queles a quem não escutais. E'' de notar aqui que 
um acto de urbanidade ou um acto contrário se cha· 
mam atenção ou falta d-e atenção. 
O CRITÉRIO 19 
IV 
AS INTERRUPÇõES 
Acrescentemos que até os estudos mais profun­
dos, raramente exigem uma atenção tal que os não 
possamos interromper sem grave dano. Pessoas há 
que se queixam amargamente se a desoras uma vi­
sita ou um ruído qualquer inesperado lhes vem cor­
tar o fio das idéias. Fracos cérebros ! verdadeiros 
. daguerreótipos em que o mais leve movimento, a 
interrupção mais passageira basta para confundir 
tudo. Este defeito, natural em algumas pessoas, 
em outras, afectação vaidosa e pueril, acusa sempre 
completa ausência de concentração ou recolhimento 
interior. Como quer que seja, esforcemo-nos por 
adquirir uma atenção que seja ao mesmo tempo 
forte e flexível. E' mister que nossas concepções 
não sejam a guisa de imagens daguerreotípicas, mas 
sim quadros bem desenhados. Interrompido o pin­
tor, deponha seus pincéis para os retomar quando 
puder prosseguir em sua obra. Se um corpo es­
tranho lhe faz sombra, desvia-o e tudo fica reparado. 
CAPíTULO III 
Escolha da carreira 
I 
VAGA SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA TALENTO 
Cada um deve consagrar-se inteiramente à pro­
fissão para a qual sentir maior aptidão. Esta re­
gra é da maior importância ; muitas vezes tem sido 
esquecida ou desprezada, e daí vem, segundo a mi­
nha convicção, que as artes e as ciências não têm 
ainda feito os progressos decisivos de ·que são sus­
ceptíveis. Para alguns a palavra talento significa 
cap·acidade absoluta ; um espírito fadado para uma 
coisa deve sê-lo igualmente para todas. Erro capital. 
Um homem pode ser duma capacidade prodigiosa 
num ramo de conhecimentos humanos, e mostrar-se 
medíocre ou completamente nulo em outros. Certa­
mente Napoleão e Descartes são dois grandes espíritos 
22 O CRITÉRIO 
e todavia nenhum ponto de semelhança têm. Supo­
nhamos que mudavam seus pensamentos : o gênio da 
guerra não compreenderia o gênio da filosofia ; o 
conquistador colocaria o pensador em o número da­
queles que com desdém chamava ideólogos. 
Poder-se�ia escrever um livro sobre os talentos 
comparados, assinalando as diferenças radicais que 
osdistinguem. A cada um sua parte de força e de 
fraqueza. Há poucos homens, não há talvez nenhum, 
que chegue a uma igual superioridade em todas as 
coisas. Não nos mostra a observação que certas apti­
dões se contrariam e prejudicam mutuamente ? Com 
efeito um espírito generalizador raramente possui a 
exactidão minuciosa. Pedi ao poeta que vive de ins­
pirações e imagens grandiosas, que se suj eite à re­
gularidade compassada das matemáticas ! 
li 
O INSTINTO NOS INDICA A CARREIRA QUE 
MELHOR SE NOS ADAPTA 
Às faculdades que o Criador nos distribui em 
graus diferentes, acrescenta um instinto preciso que 
nos indica o seu emprego. Se um espírito se com­
praz com certos trabalhos, ele os. busca com perseve­
rança ; outro, pelo contrário, experimenta repugnân­
cia quase invencível e constante para a esses trab-a-
O CRITÉRIO 23 
lhos se dedicar. Não nos enganamos nisto. A natu­
reza nos adverte que recebemos, no primeiro caso, 
disposições felizes, e, no segundo, inaptidão para tal 
mister. O sentido do gosto, se não está alterado por 
alguma doença ou maus hábitos, distingue os alimen­
tos sãos dos que o não estão. O mesmo acontece 
com o olfacto. Deus não podia ter menos cuidado 
pela alma que pelo corpo. 
Os pais, os mestres, os directores de estabeleci­
mentos de educação farão bem se prestarem a devida 
atenção a esta verdade. Quantos talentos, com efeito, 
que, bem dirigidos, teriam dado os mais precisos 
frutos, se consomem inutilmente, pelo facto de terem 
sido consagrados à carreira para que não haviam 
sido feitos ! 
Todos podem fazer este exame. O mesmo alu­
no, desde a idade de doze anos por diante, está nos 
casos de compreender quais são os trabalhos que lhe 
custam menos e os estudos em que se acha com mais 
aptidão e inteligência. 
III 
MEIOS PARA DISCERNIR AS APTIDõES 
PARTICULARES DUM MENINO 
Fazei passar diante dos meninos produtos di­
versos, obras notáveis da indústria e da inteligência 
24 O CRITtiUO 
humana ; conduzi-os aos lugares em que o instinto ele 
cada um possa ser posto em presença de objectos de 
sua escolha. Tal método vos será muito útil, muito 
seguro. · Na revelação das aptidões, a natureza faz 
aqui o que seria incapaz de conseguir o estudo mais 
atento. 
Um mecanismo engenhoso atrai a atenção dum 
grupo de meninos de doze anos. O maior número 
admira um momento e passa ; um só se detém e pa­
rece longo tempo esquecido do mais. A curiosidade 
de seu exame, as questões cheias de senso que dirige, 
a compreensão rápida do maquinismo que assim o 
interessa, tudo isto não terá alguma significação 
para o observador atento ? 
Ledes o trecho duma bela poesia e se entre eles 
está algum Lope de Vega, um Ercilla, um Calderon, 
vedes brilharem os seus olhos, altear-lhe o peito; e 
a imaginação do menino sente-se inflamada por um 
sopro que nem compreende. Falou a natureza; desig­
na-vos um poeta. 
É mister não contrariar as aptidões, não as for­
çar. De dois meninos extraordinários, confiados à 
vossa conduta, podeis não dar à sociedade senão dois 
homens de extrema mediocridade. A águia e a ando· 
rinha distinguem-se pela força e agilidade de suas 
asas, porém jamais a águia lançou o seu vôo à 
b CRITtRIÓ 25 
maneira da andorinha, nem a andorinha à maneira 
do rei dos ares : 
. . . Tenta te diu quid ferre recusent 
Quid valeant humeri. 
Este conselho de Horácio, dirigido aos escrito­
res, nós o dirigimos a todo o homem que se decide 
a abraçar uma profissão qualquer. 
éAPfTULO IV 
Da possibilidade 
I 
CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS DE NOSSO ENTENDI­
MENTO. QUESTCES A PROPOR 
Para dar a meu assunto toda a clareza de que 
o julgo susceptível, dividirei os actos de nosso enten­
dimento em duas classes : actos especulativos e actos 
práticos. Chamo especulativos os que param no co­
nhecimento, e práticos os que conduzem à acção ou a 
determinam. 
Quando simplesmente se trata de conhecer uma 
coisa, podemo-nos propor as questões seguintes : 
t.a tal coisa é ou não P'ossível ? Existe ou não 
existe ? Qual é a sua natureza? As regras, com 
28 O CRITÉRIO 
cuja aj uda se podem resolver satisfatoriamente 
estas três questões abrangem tudo o que diz respeito 
à ciência especulativa. 
Em toda e qualquer acção, é evidente qne nos · 
propomos um fim. Daí as questões: 1." qual é esse 
fim ? qual o melhor meio de o conseguir ? 
Peço instantemente ao leitor que fixe a aten­
ção e, se puder, grave na memória as prereden­
tes divisões. Facilitar-lhe-ão a inteligência do que 
deve seguir-se e serão de grande auxílio para. 
estabelecer a ordem em seus pensamentos. 
li 
O POSSíVEL E O IMPOSSíVEL. CLASSIFICAÇÃO 
Possibilidade. A idéia contida nesta palavra é 
correlativa à de impossibilidade. Com efeito, a afir­
mação duma arrasta à negação da outra. 
As palavras possibilidade e impossibilidade ex­
primem idéias diferentes, segundo se aplicam às cou­
sas em si mesmas ou sõmente à ·causa que as pode 
produzir. Todavia estas idéias têm relações muito 
íntimas, como vamos ver. Consideradas relativa­
mente a um ser, independente da causa, a possibili­
dade e impossibilidade chamam-se intrínsecas ; ex-
O CRITtlUO 29 
trínsecas se se aplicam às causas. Apesar da sim­
plicidade e clareza aparente desta definiç.ão, para 
completamente alcançar o sentido, é indispensável 
seguir-me nas diferentes classificaç.ões que vou expor 
nos seguintes parágrafos. 
Poder-se-á estranhar que definamos a impossi­
bilidade antes de definir a possibilidade. Mas um 
pouco de reflexão fará ver que este método é lógico. 
A palavra impossibilidade, não obstante ter sentido 
negativo, não deixa de apresentar uma idéia positiva, 
a i déia de contradiç.ão entre as cousas, de exclusão, 
de oposição, de luta, por assim dizer ; de modo que, 
vindo a desaparecer esta contradição, concebemos a 
possibilidade. Daí vêm estes modos de dizer: tal 
cousa é possível, pois que nada se lhe opõe, não tem 
contradição. Como quer que seja, o conhecimento 
do impossível dá o de possível e vice-versa. 
Alguns filósofos distinguem três espécies de im­
possibilidade : impossibilidade metafísica, física e 
moral. Adoptarei esta divisão, acrescentando-lhe um 
novo membro : a impossibilidade do senso comum. Em 
seu lugar se verá em que me fundo. Talvez, melhor 
seria dar à impossibilidade metafísica o nome de 
impossibilidade absoluta; o nome de impossibilidade 
natural à impossibilidade física, e à impossibilidade 
moral o nome de impossibilidade ordinár-ia. 
O CRITÉRIO 
III 
EM QUE CONSISTE A IMPOSSIBILIDADE 
METAFíSICA OU ABSOLUTA 
A impossibilidade metafísica ou absoluta é a 
que se refere à mesma essência das coisas ; por 
outra, um facto é absolutamente impossível, quando 
sua existênci'a envolver consigo o absurdo : ser e 
não ser ao mesmo tempo. Um círculo triangular é 
um impossível absoluto ; porque seria e não seria 
ao mesmo tempo um círculo ; porque seria e não 
seria um triângulo. Cinco igual a seis é impossível 
absoluto, porque cinco seria cinco e não cinco, e o 
seis seria seis e não seis. Um vício virtuoso é im­
possível absoluto, porque seria vício e não vício ao 
mesmo tempo. 
IV 
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E A 
OMNIPOT:f:NCIA DIVINA 
O que é absolutamente impossível não poderia 
oocistir em caso algum. Quando dizemos que Deus 
é omnipotente, não queremos dizer que haja nele o 
poder de fazer absurdos. A existência e a não exis-
O CRITÉRIO 31 
lencia ao mesmo tempo, do mundo, de Deus, o v1c10 
virtuoso e outras incoerências desta ordem, eviden­
temente não podem estar debaixo da acção da omni­
potência. Como muito bem observou Sto. Tomás, 
devemos dizer que tais coisas não podem ser feitas 
e não que . Deus as não pode f'azer : segue-se daí 
que a impossibilidade intrínseca envolve igualmente 
a impossibilidade extrínseca absoluta, isto é, que 
nenhuma coisa é capaz de produzir o que de si 
mesmo é absolutamente impossível. \ · 
v 
A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E OS DOGMAS 
A afirmaÇ-ão duma impossibilidade absoluta 
implica idéia perfeitamenteclara de termos j ulgados 
contraditórios. Declarar uma cousa impossível, só 
porque a não podemos compreender, é simultânea­
mente dar a conhecer o orgulho e a impotência de 
nossa razão. Relevemos a este propósito a sem 
razão dos que rejeitam certos mistérios do cristia­
nismo, argüindo-os de pretendida impossibilidade. 
O dogma da Trindade, o da Incarnação, seguramente 
estão acima da fraca inteligência do homem ; mas que 
podemos nós concluir da nossa impotência ? Deus 
trino e uno ; uma mesma natureza e três pessoas 
distintas, como pode ser isso ? Não o sei ; porém 
32 O CRITtRIO 
minha ignorância não me permite o inferir que haja 
contradição. Por ventura compreendo o que é essa 
natureza, o que são essas pessoas de que me falam ? 
Não : logo quando quero j ulgar se é possível ou não . 
o que delas dizem, acho-me com o desconhecido. 
Que sabemos nós dos segredos da Divindade ? 
O Eterno quis pronunciar algumas palavras miste­
riosas para exercitar nossa obediência e humilhar 
nosso orgulho, porém não quis levantar o denso véu 
que separa esta vida mortal do oceano de .luz e de 
verdade. 
VI 
IMPOSSIBILIDADE FíSICA OU NATURAL 
A impossibilidade física ou natural eonsiste em 
um facto estar fora das leis da natureza. E' natural­
mente impossível que uma pedra, deixada de ser 
sustida no ar, não caia ; que a água, abandonada a 
si mesma, não tome o seu nível ; que um corpo, mer­
gulhado num fluido de menos densidade, não afunde ; 
que o sol pare em sua carreira, etc . . . , porque as 
leis da natureza prescrevem a queda dos graves, o 
nivelamento das águas, e assim por diante. Deus, 
que estabeleceu estas leis, tem poder para as sus­
pender ; o homem é que o não pode. O que natural­
mente é possível para Deus, não o é para a criatura. 
. 
O CRITÉRIO 
VII 
MODO DE JULGAR DA IMPOSSIBILIDADE 
NATURAL 
33 
Podemos afirmar que um facto qualquer é na­
turalmente impossível, quando saibamos que existe 
lei que se oponha à realização deste facto, e que esta 
oposição não é destruída ou neutralizada por ne­
!,huma outra lei. É lei da natureza que o homem, 
deixando de ter ponto de apoio, caia para o chão, 
porque é mais pesado que o ar ; porém existe uma 
. outra lei, em virtude da qual um corpo formado de 
diversas partes e e3pecialmente menos pesado do 
que o meio em que se acha mergulhado, aí se sus­
tenha ou eleve, mesmo quando uma das suas partes 
seja mais pesada que o fluido, ambiente. Assim um 
homem colocado num balão aerostático, conveniente­
mente construído, eleva-se aos ares, e este fenómeno 
está perfeitamente em harmonia com as leis. da na­
tureza. A extrema pequenez de certos insectos imped� 
que a sua imagem se pinte na retina de nossos olhos 
de modo perceptível para nós ; mas, em virtude das 
leis a que a luz está submetida, a direcção dos raios 
pode ser modificada de tal modo que, por meio duma 
lente microscópica, esses raios, partidos dum objeeto 
pequeníssimo, se desviam em seu ponto de contacto 
34 O CRl'rnRIO 
com a retina, e aí tracem uma imagem muito maior 
que a realidade ; de modo que não será naturalmente 
impossível que certos seres imperceptíveis à vista 
d€sarmada, se nos apresentem, com auxílio do mi- · 
croscópio, com proporções consideráveis . 
. Por estas considerações se vê quanto importa 
não proclamar tal ou tal fenómeno como natural­
mente impossível, senão depois de maduro exame. 
A natureza é prodigiosamente poderosa e a 
maior parte de seus segredos nos são desconhecidos. 
Se no século V se dissesse que ainda havi·a de vir. 
tempo em que, por acção dum pouco de vapor compri­
mido, se haviam de vencer distâncias em uma hora 
que então levariam um dia inteiro a vencer, esta facto 
seria declarado naturalmente impossív€1 ; e, todavi-a 
o menino que hoje viaj a em caminho de ferro com­
preende perfeitamente que é levado na rápida car­
reira por agentes puramente naturais. Quem sabe 
as descobertas destinadas ao futuro e qual o aspecto 
que apresentará o mundo da:qui a dez séculos ? 
Sej amos embora cautos em crer a existência de fenó­
menos extraordinários ; não nos deixemos embalar por 
sonhos dourados ; porém não classifiquemos de natu­
ralmente impossível o que um descobrimento feliz 
poderá mostrar mui realizável. Não prestemos fé 
levianamente a transformações inconcebíveis, mas 
não as malsinemos de extrava.g;âncias e absurdos. 
O CRITÉRIQ 
VIII 
SOLUÇÃO DUMA DIFICULDADE SOBRE OS 
MILAGRES 
35 
Destas observações surge aparentemente uma 
dificuldade de que os incrédulos não se têm esque­
cido de lançar mão. E i-la em toda a sua força : 
" Os fenômenos chamados milagres são produzidos 
por causas desconhecidas, mas naturais ; de modo 
algum provam a intervenção divina, e, portanto, em 
nada apoiam a verdade da religião cristã. " 
Este argumento é tão especioso quanto fútil. 
Um homem de nascimento obscuro, sem letrBs, 
perdido na multidão, sem meios humanos de atrair 
a si a atenção dos outros, não possuindo ao menos 
um lugar em que repousar a cabeça, este homem 
apresenta-se à sua nação, trazendo-lhe uma doutrina 
tão nova quanto sublime. Pedem-lhe os testemu­
nhos de sua missão e ele os dá. A sua voz, os cegos 
vêem, os surdos ouvem, os mudos falam, os paralí­
ticos andam ; as mais rebeldes enfermidades desapa­
recem repentinamente ; os que hão expirado, os que 
desceram ao túmulo levantam-se de seu esquife; 
até os que há dias jaziam, lançando já 'as exalações 
empestadas da morte, saem de seus túmulos obedien­
tes à voz que lhes diz : Levantai-vos ! - Eis o con­
junto dos factos. 
36 O CRITtRIO 
Empenhar-se-á o mais obstinado naturalista PN 
descobrir aqui a acção das leis naturais ocultas ? 
Com boa fé, ousar-se-á taxar de imprudência o� 
cristãos que crerem que tais prodígios se não podiam . 
operar sem intervenção divina? Credes que com o 
tempo se descubra o segredo de ressuscitar os mortos, 
e não por meio da ciência, mas ao chamamento duma 
voz que manda ? A operação da cataracta terá al­
guma semelhança com a acção de abrir os olhos a 
um cego de nascimento ? Os processos empregad0s 
para dar movimento a um membro paralisado asse:. 
melham-se por ventura a este outro : Levanta-te, 
toma o teu leito e volta para tua casa ? Virá c..'ia em 
que as ciências hidrostáticas e hidráulicas dêm à 
simples palavra humana o poder de acalmar as va­
gas enfurecidas e forçá-las a tornarem-se· mansas 
debaixo dos pés de quem caminha sobre elas, como 
um rei sobre prateadas alfombras ? 
E que diremos se a tão imponente testemunho 
se aj untam o cumprimento das profecias, a santi­
dade duma vida sem manchas, a elevação da dou­
trina e a pureza da moral ; enfim o sacrifício da 
vida, uma morte heroica no meio· de tormentos e ul­
trajes ; o ensinamento sustentado, proclamado até 
ao fim com uma serenidade, uma doçura cheia de 
majesíaJe, até ao último suspiro que exala nestas 
solenes pa}avras deixadas à terra : Amor e perdão ? 
O CRITÉRIO 37 
Não se nos fale, pois, de leis ocultas, de impos­
sibilidades aparentes ; não se oponha a tão convin­
cente evidência esta palavra desconsoladora " que'm, 
sab e ? " Esta dificuldade, que seria razoável s e se 
tratasse dum facto isolado, envolto em obscuridades, 
sujeito a mil combinações diferentes, se se obj ecta 
contra o cristianismo é não só infundada, senão 
também contrária ao senso comum. 
IX 
IMPOSSIBILIDADE MORAL OU ORDINARIA 
A impossibilidade moral ou ordinária é a que 
está em oposição com o curso regular dos sucessos. 
Esta definição é susceptível de numerosas interpre· 
tações ; pois que a idéia de curso ordinário é tão 
el ástica, é aplicável e tão difenmtes objectos, que 
pouco pode dizer-se em geral que seja proveitoso 
na prática. Esta impossibilidade nada tem que ver 
com a absoluta ou a natural ; as cousas moralmente 
impossíveis não deixam por isso de ser muito pos­
síveis absoluta e naturalmente. 
Daremos uma idéia mui clara e simples da im­
possibilidade ordinária, se dissermos que um facto 
é impossível desta maneira, quando,no curso regular 
das coisas, tal facto raras vezes ou nunca se dá. 
Vejo um grande personagem cujo nome e títulos 
38 O CRITÉRlO 
andam na boca de todos e a quem se tributam as 
honras devidas à sua dignidade. É moralmente im­
poosível que o nome seja suposto, que o personagem 
seja um impostor ; e todavia tem havido enganos . 
desta ordem. 
Vemos a cada passo que a impossibilidade moral 
desaparece por intervenção duma causa extraordiná­
ria ou imprevista que muda o curso dos aconteci­
mentos. Um comandante que acaudilha um punhado 
de soldados, partidos de longes terras, aborda a pla­
gas desconhecidas e se encontra com um imenso con:­
tinente povoado por milhões de habitantes. Lança 
fogo às naus e diz : Marchemos. Aonde vai ? con­
quistar vr.stos reinos com alguns soldados. É im­
possível, este aventureiro é um louco ! Deixai-o ! sua 
demência é a do heroísmo e do gênio. . A impossibi­
lidade vai tornar-se um sucesso histórico. O aven· 
tureiro chama-se Fernando Cortês, e a sua loucura 
dá à Espanha um novo mundo. 
X 
IMPOSSIBILIDADE DO SENSO COMUM, IMPRO· 
FRIAMENTE CONFUNDIDA COM A 
IMPOSSIBILIDADE MORAL 
A pal·avra impossibilidade moral tem algumas 
vezes um sentido muito diferente do que lhe have-
O CRlTtRIO 
mos dado até aqui. Há factos impossíveis, cuj a im­
possibilidade absoluta ou natural se não pode afirmar ; 
e com tudo nós estamos de tal modo certos de que 
são irrealizáveis que nem a impossibilidade absoluta 
produziria certeza mais completa . Um homem tem 
encerrado numa urna uma grande quantidade de 
caracteres de imprensa, que supomos todos cúbicos 
p·ara que não haj a mais probabilidade de que caiam e 
fiquem sobre tal ou tal face. Mistura-os, agita-os 
muitas vezes sem ordem e os lança enfim ao acaso. 
Será possível que em sua queda estes caracteres com­
ponham o episódio de Dido ? 
Não, responde instantâneamente todo o homem 
de senso . Esperar seria loucura. Estamos tão pro­
fundamente convencidos da impossibilidade do facto, 
que apostaríamos a vida com a maior tranqüilidade. 
É de notar que nenhuma impossibilidade me­
tafísica há aqui, porque nos caracteres nenhuma 
repugnância existe a colocarem-se do modo desej ado . 
Um compositüi· os distribuiria desta maneira em pou­
co tempo e com a maior facilidade. Nenhuma lei da 
natureza se opõe a. que estes caracteres caiam sobre 
uma ou sobre outra face, ao lado uns dos outros, de 
modo que produzissem o efeito desej ado ; não se pod e 
invocar a impossibilidade natural. Existe por tanto 
uma impossibilidade doutra ordem, que nada tem de 
comum com as du·as primeiras e que igualmente difere 
da que apelidamos impossibilidade moral, p·elo único 
40 O CRITfRIÓ 
facto de que ela está fora do curso regular dos su­
cessos. Damos-lhe o nome de impossibilidade do 
senso comum. 
A teoria das probabilidades e das combinações 
evidenciam esta impossibilidade, medindo, por assim 
dizer, distância imensa que separa a possibilidade 
dum fenómeno da sua realização. Não quis o Autor 
da natureza que certas convicções de soberana im­
portância precisassem de ser meditadas ; pois que. 
doutro modo, muitos homens ficariam delas privados. 
Eis porque no-las deu sob a forma de instinto. Em· 
vão vos esforçaríeis por as combater, nem ainda aos 
mais rudes. Não saberiam responder-vos ; porém, 
meneando a cabeça, diriam de si para si : Este fi­
lósofo, que crê na possibilidade de tais despropósitos, 
deve não estar são do j uízo. 
Quando a natureza fala do fundo de nossa alma 
com voz tão clara, tão imperiosa, seria toleima não 
a escutar. Só à� vezes alguns homens chamados 
filósofos se obstinam nesse labor ingrato. Esquecem 
que fora do senso comum não há filosofia e que o 
absurdo é mau caminho para chegar à sabedoria. 
CAPíTULO V 
Da existencia ; conhecimentos adquiridos pelo 
testemunho imediato dos sentidos 
I 
NECESSIDADE DO TESTEMUNHO DOS SENTIDOS ; 
DIFERENTES MODOS COM QUE NOS 
APRESENTAM AS COISAS 
Depois de termos estabelecido os princípios e 
as regras ·que nos dev·em guiar nas questões da pos­
sibilidade, passemos às questões da existência, que 
nos oferecem um campo muito mais vasto e de mais 
úteis e freqüentes aplicações. 
Por duas maneiras distintas pódemos adquirir 
a certeza da1 existência ou não existência de um ser, 
a certeza de que uma coisa existe ou não existe : 
por nós mesmos ou por meio doutrem. 
42 
------------------------------------------�-
O conhecimento que •adquirimos por meio dos 
sentidos pode ser mediato ou imediato. Ou os sen­
tidos nos apresentam os objectos à nossa inteligência, 
ou, das imagens que estes, objectos proC..'uzem, a inte� 
lig.ência infere a existência de uma ordem de fenó­
menos e de factos; colocados acima da esfera dos sen­
tidos. A vista me adverte imediatamente da exis­
tência de um edifício que aparece diante de mim. 
O pedaço de uma coluna, alguns restos de mosaico, 
uma inscrição me fazem saber que no lugar onde 
descubro estes obj ectos se elevava outrora um temp1o 
romano. Em ambos os casos devo ·aos sentidos o 
conhecimento adquirido : imediatamente no primeiro, 
de modo mediato no segundo. 
Sem o auxílio dos sentidos o homem nem ao me­
nos chegaria a conhecer a existência dos entes ima­
teriais. Na verdade, a inteligência merguÍhad·a num 
eterno adormecimento não poderia ad·quirir este con­
nhecimento, a menos que Deus viesse em seu auxílio 
por meios sobrenaturais, meios de que não temos de 
ocupar-nos aqui. 
À distinção que acabamos de expor em nada obs­
tam os sistemas que possam adoptar-se sobre a origem 
das idéias. Quer elas sejam inatas ou adquiridas, quer 
provenham directamente dos sentidos, ou somente des­
pertadas por estes, é evidente que nada poderíamos, 
que nada saberíamos sem que previamente esses po­
derosos auxiliares da inteligência tenham sido 
O CRITtRIO 43 
postos em acção. Deixemos os ideólogos imaginarem 
o que quiserem sobre as operações intelectuais de 
um homem privado de todos os seus órgãos ; como 
verificar o erro ou a verdade de seus sistemas ? 
O infeliz não poderia comunicar nem pela palavra, 
nem mesmo por sinais. De mais não se trata aqui 
de um ente excepcional, mas do homem, do homem 
dotado de órgãos, e a experiência nos ensina que, 
nestas condições, o homem conhece, e que conhece 
o que sente e por meio de que o sente. 
II 
ERROS A QUE ESTAMOS SUJEITOS POR OCASIÃO 
DOS SENTIDOS. MEIOS DE OS REMEDIAR. 
EXEMPLOS 
Se o conhecimento imediato que os sentidos nos 
dão da existência de uma coisa é algumas vezes afec­
tado de erro, é porque não sabemos servir-nos destes 
admiráveis instrumentos. Quando os objectos mate­
riais obrarem sobre nossos órgãos, excitando impres­
sões em nossa alma, procuremos descobrir de onde 
vem esta impressão, e até que ponto ela corresponde 
à existência do objecto que parece produzi-la. Eis 
a regra. Alguns exemplos melhor a farão compre­
ender. 
44 O CRITÉRIO 
Vislumbro ao longe uma coisa que se move, e 
digo : Acolá está um homem. Aproximando-me po­
rém do obj ecto, vej o que tomei por um homem um 
arbusto agitado pelo vento. Enganou-me o sentido . 
da vista ? não, porque a impressão que me trans­
mitira. não era outra qu€ a de um corpo em movi­
mento, e se eu tivesse dado à impressão suficiente 
atenção teria reconhecido que não me apresentava 
um homem. Havia transformado minha impressão. 
O erro pertence portanto à insuficiência da. atenção 
e não ao sentido da vista. 
Pelo facto de achar certa semelhança entre um 
objecto confuso em movimento e um homem visto ao 
longe, passei da semelhança para o homem e con­
cluí de uma coisa para outra, €squecendo que a 
aparência e a realidade são duas coisas inteiramente 
distintas. 
Tendes algumas razões para cr€r que se deve 
dar uma batalha a certa distância do lugar em que 
vos achais, e por isso parece-vos ouvir o troar do 
canhão € credes abertas as hostilidades. Todavia 
não há nada disso . Quem deveis acusar de vosso 
erro ? o ouvido ? De nenhum modo. Acusai a vós 
mesmos. Havia um ruído,com efeito ; mas era o 
que, numa floresta próxima, produziam as macha­
dadas de um lenhador ; era o ruído de uma porta 
que se fechava ou qualquer outro que de algum modo 
semelhava o troar do canhão ao longe. Estáveis 
Ó CRITÉRIO 45 
por ventura bem seguros de que a causa da ilusão não 
estava junta de vós? Tínheis o ouvido suficiente­
mente exercitado para discernir a verd·ade, atenta a 
distância em que se deviam dar as descargas de arti­
lheria, a posição do lugar, a direcção do vento? Não 
foi o sentido da audição que vos enganou, foi a levian­
dade, a precipitação. A sensaç.ão era o que devia ser : 
vós é que lhe fizestes dizer o que realmente não dizia. 
Suponhamos que se apresenta a alguém um man­
jar delicioso ; prova-o e afirma ser mau, detest�vel ; 
o seu paladar estragado assim lho faz sentir. Onde 
está a causa do erro? não no órgão do gosto qut> 
apenas foi ocasião, senão na importância que lhe 
deu, devendo ter em vista que só quando o paladar 
está bem disposto é que pode indicar as qualidades 
do alimento. 
III 
É MISTER, EM CERTOS CASOS, EMPREGAR MAIS DE 
UM SENTIDO A FIM DE COMPARAR SEU 
TESTEMUNHO 
Observemos que para chegar a conhecer por 
meio dos sentidos a existência de um objecto qual­
quer, é preciso algumas vezes empregar mais de um 
sentido, e que sempre é mister estar premunido con-
46 O CRITtRIO 
tra a ilusão. Discenir até que ponto a existência 
de um objecto corresponde à sensação recebida, é 
evidentemente a obra da comparação, fruto da expe­
nencia. Um cego a quem se faz a operação da ca­
taracta não precisa as distâncias, e só depois de ter 
adquirido a conveniente prática da vista é que pode 
j ulgar das formas e das proporções. Tal prática 
nós a adquirimos desde a infância, sem dar por isso. 
e eis por que cr€mos que basta abrir os olhos para 
conhecermos os objectos tais quais eles são. Uma 
bem simples experiência, e que podemos renovar 
muitas vezes, nos convencerá do contrário. 
Um adulto e um menino vêem, através de um 
vidro de óptica, algumas pinturas representando 
uma paisagem, animais ferozes, uma batalha, et�. 
Ambos recebem a mesma impressão, porém nem a 
I 
batalha, nem os animais ferozes amedrontam o adul-
to, que bem sabe que não tem a realidade diante dos 
olhos. Não é sem esforço que conserva a ilusão, e 
por vezes pr€cisa de suprir por meio da imaginação 
as imperfeições do instrumento ou dos quadros; para 
melhor saborear o espectáculo. 
Pelo contrário, o menino que não compara, que ! · 
. I 
atende só á sensação isolada, e que nela se absorve, · 
agita-se e chora à vista dos soldados que se degolam, 
e dos animais ferozes de que tem medo. 
O CRITÉRIO ·17 
IV 
OS SÃOS DO CORPO E DOENTES DO ESPíRITO 
Costumam os que tratam do .bom uso dos sen­
tidos adv·ertir que é mister cuidar em que alguma 
jndisposição nos afecte os órgãos, de modo que assim 
nos transmitam sensações enganosas. Ê sem dúvida 
conselho prudente ; porém não dá a utilidade que 
se crê. Os enfermos raramente se dedicam a estu­
dos sérios, e ·assim os seus erros são de mínima im­
portância ; além de que a doença de um órgão logo 
adverte que se não deve confiar em seu testemunho. 
Mas, sobretudo, precisam de advertência e de regras 
os que, sendo sãos do corpo, o não são da inteligência; 
que põem ao serviço de uma idéia que os preocupa 
todos os sentidos ao mesmo tempo, e os forçam a 
perceber ( quem sabe ? de boa fé talvez ) tudo que 
venha em auxílio do sistema que adoptam. Que não 
d escobrirá nos corpos celestes o astrónomo, que se 
arma com telescópio, não para escrutar serenamente 
as profundezas dos céus, mas para neles achar a 
todo o custo -as provas que apoiem alguma asserção 
aventurada ? 
Disse eu intencionalmente que semelhantes erros 
podiam ser de boa fé. Efectivamente, muitas vezes 
48 O CRinRlO 
o homem se engana a si, antes de enganar os outros. 
Dominado por sua opinião favorita, atormentado pe­
lo desej o de ·achar provas que dela estabeleçam a 
verdade, e{>tuda os o bjectos, não para cornpreende1:, 
rnas para ter razii,Q., __ Deste modo, descobre tudo o que 
busca ; o mais das vezes, os sentidos lhe dizem outra 
coisa ou não dizem nada ; não importa : as mais leves 
aparências bastam para sua preocupação. "É isto ! " 
exclama ele com transporte. E sufoca com cuiC.'ado as 
dúvidas que se levantam em seu espírito. Imputa­
-as à falta de fé em seu incontrastável saber e se · 
impõe a obrigação de estar satisfeito, fechando os 
olhos à luz afim de enganar os outros, sem se ver 
na necessidade de mentir. 
Basta ter estudado o coração do homem para 
reconhecer a verdade destas observações : · debate­
mos em nós certas questões com deplorável parcia­
lidade. Se temos falta de convicção, trabalhamos 
para a formar em nosso espírito. O labor é penoso 
a princípio, a tarefa é difícil, porém logo o hábito 
vem fortalecer os fracos, se o orgulho intervém a 
não permitir retrocesso ; e o ·que começou lutando 
contra si mesmo com um engano que se lhe não 
ocultava de todo, acaba por ser realmente enganado 
e se abisma em sua ilusão com obstinação invencível. 
O CRITÉRIO 49 
v 
SENSAÇõES REAIS, MAS SEM OBJECTO EXTERNO 
Nem sempre os nossos erros provêm das exa­
gerações dos j uízos, ou das transformações que fa­
zem experimentar à sensação : há outra espécie deles. 
Sob impulso de uma idéia fixa a imaginação solici­
tando incessantemente o mesmo órgão, acaba por 
dominar, por alterar a acção vital, e por criar sen­
sações reais, que não têm outra causa que a mesma 
imaginação. Chega-se a sentir o que não existe. 
Para compreender este fenómeno, lembremo-nos que 
a sensação não se verifica no órgão, mas sim no 
cérebro, posto que a força do hábito nos leve a re­
ferir a impressão à parte afectada do organismo. 
Perderemos a vista se se der lesão grave no nervo 
óptico, e todavia o olho fica são. Toda a sensibili.:. 
dade se extingue no membro que deixa de estar em 
comunicação com o cérebro. Infere-se destes fenô­
menos que o cérebro é o centro das sensações e que, 
se a impressão que um órgão exterior costumava aí 
produzir é excitada, após um acto interno, a sensação 
dá-se independentemente da impressão exterior. 
Suponhamos que um órgão recebe de um corpo 
qualquer uma impressão e a comunica ao cérebro 
por meio do nervo A, produzindo neste nervo a vi-
50 O CRIT�R!O 
braç.ão B. Se por qualquer outra causa, puramente 
interior e moral, se produzir no mesmo nervo A a 
mesma vibração B, experimentar-emos necessària­
mente o que experimentaríamos se o órgão fosse 
materialmente afectado. 
A razão e a observação acham-se acordes neste 
ponto. A alma adquire conhecimento dos objectos 
exteriores por meio dos sentidos, mediatamente, ou 
imediatamente por meio do cérebro ; por tanto, logo 
que este recebe tal ou tal impressão, a alma não 
pode deixar de a referir ao ó1·gão do qual ordinària­
mente procede, e ao objecto que a costuma produzir. · 
Se ela advertir que o corpo está doente, saberá tomar 
as devidas precauções contra o erro ; mas não d-ei­
xará de receber a sensação, pelo facto de desconfiar 
de seu testemunho. Quando Pascal via ante si um 
abismo aberto, embora a razão lhe . dissesse . que es­
tava no império da ilusão, experimentava a sensação 
que se experimenta à beira de um abismo ; seu& 
esforços não logravam subj ugar a ilusão. O fenó­
meno nada tem de estranho para os que têm algu­
mas noções sobr-e estas matérias. 
VI 
OS MANíACOS E OS CISMATICOS 
A exaltação é uma espécie de loucura intermi­
tente e parcial. Uma imaginação exaltada pode cair 
O CRITÉRIO 51 
nos mesmos erros que um cérebro doente. As ma­
nias são um fenômeno deste gênero ; contínuas ou 
momentâneas, extravagantes ou sérias, diferem tan­
to em suas espécies como em sua intensidade. O 
\,cavaleiro da Mancha via formidáveis exércitos em 
: simples rebanhos de ovelhas ; e gigantes desmesura­' dos nos moinhos de vento. Levado por sua imagina-
ção, por sua fantasia, pela mania que o domina, 
talsábio, tal astrónomo, tal naturalista verá em seu 
telescópio, em suas retortas, em seu microscópio, os 
mais bizarros e estranhos fenômenos. 
Os grandes pensadores, os homens absorvidos 
em si mesmos estão mais arriscados a cair em ma­
nias científicas ou ilusões sublimes. A triste huma­
nidade sempre arrasta após si a sua herança 
de fraqueza. O próprio gênio está a ela suj eito. 
Uma mulher nervosa ouve, no murmúrio das brisas, 
lamentosos gritos, vê espectros num raio da lua brin­
cando através das clareiras, os gritos estridentes 
das aves noturnas são para ela vocações de demônios . 
. · \ Infelizmente, nem só as mulheres são dotadas dessas 
: 'imaginações ardentes que tomam por realidades -as 
extravagâncias de suas fantasias. 
CAPíTULO VI 
Conhecimentos adquiridos mediatamente 
pelos sentidos 
I 
TRANSIÇÃO DO CONHECIDO PARA O DESCONHECIDO, 
DO QUE É PERCEBIDO PELOS SENTIDOS 
PARA O QUE ELES NÃO PERCEBEM 
Aos sentidos devemos o conhecimento imediato 
de grande número de objectos ; mas maior é ainda 
o daqueles que os sentidos não atingem, porque es­
tes são incorpóreos ou fora de seu alcance. O edi­
fício levantado sobre a base estreita dos conheci­
mentos adquiridos por meio dos sentidos é tão gi­
gantesco, que o espírito hesita assombrado à sua 
vista, e só lhe resta crer em sua solidez. 
Onde os sentidos não podem chegar, supre 
o entendimento passando do conhecido ao desconhe-
54 O CRITtRIO 
cido, dos obj ectos sensíveis aos que o não são . A 
lava derramada por sobre o solo nos revela a exis­
tência de um vulcão que não vimos ; as conchas e 
outros mariscos, achados no alto das montanhas, 
fazem crer a existência de um transbordo de águas 
e nos indicam uma catástrofe de que estamos longe 
de ser testemunhas. Certos trabalhos subterrâneos 
mostram que em tempos anteriores se exploravam 
minas nos lugares que visitamos. Asruínas de uma 
cidade antiga assjnalam habitações de homens há 
muito desaparecidos da cena do mundo. Deste modo 
os sentidos nos apresentam objectos, e, por meio des­
tes obj ectos, o entendimento nos leva ao conhecimento 
de outros diferentes. 
Mas é mister ter em vista, que esta transição do 
conhecido para o desconhecido supõe uma idéia p,rê­
via, mais ou menos geral, do obj ecto desconhecido, 
e que ao mesmo tempo conheçamos tal ou qual de­
pendência entre os dois. Assim nos exemplos da­
dos, se é certo que não conheoemos . precisamente 
nem o vulcão, nem os minérios, nem os habitantes 
da cidade em ruínas, ao menos conhecemos de uma 
maneira geral estes obj ectos e as suas relações com 
os objectos que os sentidos nos apresentam. Da con­
templação do admirável maquinismo do universo, 
o homem não poderia elevar-se ao conhecimento do 
Criador, se não possuísse as idéias de efeito e de 
causa, de ordem e inteligência. Diga-se de passa-
O CRITÉRIO 55 
gem : só esta observação destrói o sistema dos qut: 
não querem ver no entendimento senão sensaçõeE 
transformadas. 
li 
COEXISTl!:NCIA E SUCESSÃO 
Não estamos autorizados a inferir a existência 
simultânea de dois fenómenos senão de sua mútua 
dependência. E portanto preciso conhecer esta 
dependênci'a ; toda a dificuldade está aí. Se pu­
déssemos penetrar nas profundezas onde se oculta 
a natureza das coisas, bastar-nos-ia fixar-nos sobre 
um objecto para conhecer logo todas as proprieda­
des, todas as relações que ligam estes objectos aos 
outros. Infelizmente não é assim. Tanto na ordem 
física como na moral, as idéias que possuímos so­
bre os princípios constitutivos dos seres são poucas 
e incompletas : segredos preciosos cuidadosamente 
velados pela mão do Criador. Assim a natureza 
oculta nas profundezas de seu seio os seus tesouros 
mais raros e mais preciosos. 
Esta carência de luzes relativamente à essên­
cia das coisas nos leva muitas vezes a concluir a 
dependência de fenómenos do simples facto de sua 
existência ou sucessão. Inferimos que uma coisa 
depende de outra só porque existem simultânea-
56 O CRlTÊRIO 
mente, ou porque uma se produz em seguida à outra. 
Daí freqüentes erros. E quem é que possui espírito 
assás seguro e esclarecido para conhecer sempr-e 
em que caso ou em que circunstância a coexistência 
e sucessão são ou não sinais de dependência ? 
Estabeleçamos em primeiro lugar como in­
contestável que nem a existência simultânea de dois 
entes ou factos, nem sua sucessão imediata, consi­
deradas em si mesmas, provam suficientemente, nes­
tes entes ou factos, relação de dependência. 
As plantas venenosas e empestadas entrelaçam 
algumas vezes as suas flores com as flores de plantas 
medicinais e aromáticas ; um réptil carregado de ve­
neno arrasta-se às vezes ao lado da borboleta com asas 
de ouro ; o assassino que foge à justiça humana oculta­
-se nas matas onde caça o honest0 caçador ; uma brisa 
· fagueira passa e rar€faz o ar, e logo muge o furacão, 
trazendo em suas negras asas tremenda tempestade. 
E ' portanto temerário julgar das relações que 
dois fenómenos têm entre si p elo simples facto de que 
algumas vezes os vimos unidos ou suced€ndo com 
curtos intervalos. Não será a tal sofisma que �e­
vemos imputar as predições sempre renovadas e 
sempre desmentidas sobre as variações atmosféricas ; 
as conj ecturas aventuradas sobre fontes, metais pre­
ciosos, etc. ? Algumas vezes tem acontecido que as 
nuvens depois de' terem afectado tal ou tal posição se 
dissolvem em chuva ; a tal ou tal direcção dos ventos 
0 CRITtRIO 57 
ou nevoeiros sobrevenha tempestade, e há logo quem 
se apresse a concluir que havia relação entre os dois 
fenómenos ; toma-se um como indicação do outro, e 
esquece-se que a coexistência, aqui, podia S·er intei­
ramente indiferente ou casual. 
III 
DUAS REGRAS SôBRE A COEXISTJ!:NCIA E A 
SUCESSÃO 
A importância da matéria exige que estabele­
çamos algumas regras. 
1. a Quando a experiência prolongada nos mos­
tra dois fenómenos cuj a existência é simultânea, de 
modo que a aparição ou ausência de um arrasta 
constantemente a aparição ou ausência do outro, 
podemos legltimamente afirmar que tais f€nómenos 
têm entre si certa ligação, e partindo da existência 
de um inferir a existência do outro. 
2.a S,e dois fenómenos se sucedem invariàvel­
mente, de sorte que o primeiro seja sempre seguido 
do segundo, tendo a existência deste sempre assina­
lado a existência daquele, concluamos sem medo de 
errar que eles estão ligados entre si por certa de­
pendência. 
58 O CRITtRIO 
Seria difícil talvez demonstrar filosOficamente 
estas proposições ; porém os que tentarem pô-l'as em 
dúvida devem observar que o bom senso, razão su­
perior da humanidade, as toma por regras ; que a 
ciência, em grande número de casos, se inclina dian­
te delas, e que, na maior parte de suas investigações, 
o nosso entendimento não tem outro guia. 
Está universalmente reconhecido que certo ta­
manho, forma, cor, etc., são para os frutos sinais 
de niaturidade. Como é que o camponês que os co­
lhe sabe esta relação ? Como é que da forma, da 
cor e outras apar.ências que percebe por meio dos 
sentidos, infere uma qualidade que não experimen­
ta, o sabor ? Se lhe pedirdes que vos explique 
a teoria deste encadeamento de idéias, não saberá 
responder ; mas esforçai-vos por lhe provar que ele 
se engana e ele rirá da vossa filosofia ; inabalável 
em sua crença, pela simples razão " de que ele tem 
visto sempre a coisa assim. " 
Sabe-se que certo grau de frio congela os lí­
qüidos, que certo grau de calor os reduz ao estado 
primitivo. 
A razão destes fenómenos é geralmente igno­
rada, e todavia ninguém põe em dúvida a relação 
que existe entre a col).gelação e · o frio, entre a li­
qüefação e o calor. Talvez se poderiam suscitar 
algumas- dificuldades sobre as causas que os físi­
cos assinam a esses factos, porém vulgarmente não 
O CiUTtRIÓ 59 
&e atende ao parecer dos sábios para formar opi­
nião. Os dois factos existem, sempre reunidos ; con­
soante se diz, portanto estão ligados por alguma 
relação. 
Será fácilfazer inúmeras aplicações desta re­
gra ; porém as que precedem bastarão para que qual­
quer as encontre de per si. Somente direi que a 
maior parte dos nossos actos se baseiam sobre o prin­
cipio seguinte : a existência simultânea de dois fe­
nómenos, observad·a durante tempo considerável, nos 
autoriza a concluir que, produzindo-se um, o outro 
se dew�rá produzir também. Se esta regra não fos­
se tida eomo certa, o comum dos homens não poderia 
obrar, e os mesmos filosófos se achariam mais em­
baraçados do que talvez cuidem. Pouco mais lon­
ge iriam do que o vulgo. 
A segund·a regra tem grande analogia com a 
primeira ; repousa sobre os mesmos principias e 
aplica-se à mesma ordem de factos. A constante 
experiência nos ensina que as aves saem dos ovos. 
Ninguém até hoje explicou satisfatOriamente como 
do líqüido encerrado na casca se forma aquele pe­
queno ser tão admiràvelmente organizado. Se a 
ciênda conseguisse dar explicação completa do fe­
nómeno, tal explicação não seria para uso do povo ; 
e todavia, nem o comum da gente, nem os sábios he­
sitam em crer que existe relação de dependência 
entre o aludido líqüido e a ave ; não se duvida que 
60 O CRIT�RlO 
essa maravilha animada teve origem em uma subs­
tância informe contida na casca do ovo. 
Poucos homens compreendem, ou para melhor 
dizer, todos ignoramos de que modo a terra vegetal 
concorre para a .germinação das sementes, para o 
desenvolvimento das plantas, e qual é a causa que 
apropria certas qualidades de terrenos, ·antes que 
outros, a produções determinadas ; mas isso é cons­
tantem�mte observado ; temos dados bastantes para 
crer que uma coisa depende da outra ; para, pela 
presença da segunda, podermos inferir seguramente 
a existência da primeira . 
IV 
CAUSALIDADE, OBSERVAÇOES. UMA REGRA 
DE DIALÉCTICA 
Importa no entanto distinguir entre a suces­
são uma só vez observada e a que o é muitas vezes. 
No primeiro caso, a sucessão não implica causali­
dade, nem relação de espécie alguma ; no segundo, se 
não supõe S·empre dependência de causa e efeito, in­
dica pelo menos uma causa comum� Se o fluxo e o 
refluxo das águas do mar, tão sõmente algumas ve­
zes, coincidisse com tal ou tal posição da lua, não 
se poderia legitimamente concluir existência da re-
b CRITtRIÓ 61 
lação entre os dois f.enómenos ; porém sendo cons­
tante a coincidência, com razão se conclui desta 
persistência que, se um destes dois factos não tem o 
outro por causa, ambos têm, pelo menos, uma causa 
idêntica, e que andam ligados em sua origem. 
Como quer que seja, com razão os dialécticos 
taxam de sofisma o raciocínio seguinte : Post hoc, 
ergo pro<pter hoc. " Depois disto, logo por causa disto 
mesmo " : porque, em primeiro lugar, não se trata da 
sucessão produzindo-se duma maneira constante ; e, 
em segundo lugar, bem pode esta sucessão indicar 
dependência duma causa comum, mas não que dos 
dois fenómenos um seja a causa do outro. 
Em nossos juízos sobre os fenómenos da natu­
reza, procedemos exactamente como nas cousas da 
vida, modificando a aplicação da regra segundo a 
importância do obj ecto. Em certos casos con­
tentamo-nos com uma ou poucas experiências ; em 
outros, queremos numerosas e repetidas ; aliás so­
mos sempre conduzidos pelo mesmo princípio : dois 
factos que se sucedem invariàvelmente têm entre si 
certa dependência ; a existência dum revela a exis­
tência do outro. A simultaneidade supõe um laço, 
uma relação entre os factos, ou. uma relação de dois 
factos com um terceiro. 
62 O CRITÉRIO 
v 
RAZÃO DE UM ACTO QUE NOS PARECE 
PURAMENTE INSTINTIVO 
A inclinação natural que nos leva a inferir da 
coexistência ou sucessão de dois factos uma relação 
entre esses factos, inclinação que nos parece uma 
cega inspiração do instinto, é na realidade a aplica­
ção inteligente, ainda que despercebida, dum prin� 
cípio primitivo gravado no fundo de nossa alma. 
Podemos considerar como acidental a coincidência 
que se dá algumas vezes, e portanto não lhe ligar 
idéia alguma de relação ; mas, quando a coincidên� 
cia se repete e se renova incessantemente, " há 
aqui encàdeamento, diz,emos nós sem hesitar, há 
mistério. O poder do acaso não vai tão longe ! " 
Desse modo, estudando a fundo as faculdades 
do homem, reconhecemos em tudo a mão poderosa 
da Providência que se comprazeu em enriquecer 
nosso entendimento com os dons mais preciosos e 
diversos. 
CAPíTULO VII 
A lógica de acordo com a caridade 
I 
SABEDORIA DA LEI QUE PROíBE OS JUíZOS 
TEMERÁRIOS 
A lei cristã, que proíbe os J Uizos temerários, 
nã.o é somente caridade, é também uma lei de pru­
dência e boa lógica. Nadá mais temerário do que 
j ulgar, por simples aparências, duma acção qual­
quer, e principalmente da intenção que a produziu. 
No curso ordinário das coisas os menores su­
cessos são tão complicados, os homens acham-se co­
locados em situações tão diversas, obram por moti­
vos tão diferentes, querem as coisas sob pontos de 
vista tão opostos, que, muitíssimas vezes, nos bas­
taria mudar de lugar para passar da cólera à 
64 O CRIT�RIO 
indulgência, para compreender, para desculpar uma 
acção, um modo de pensar ou de obrar de que antes 
nos tínhamos admirado e escandalizado, e que es­
távamos resolvidos a condenar sem apelo. 
II 
EXAME DA MAXIMA: "JULGA MAL DAS COIS AS 
E NAO TE ENGANARAS" 
Crêm alguns dar uma regra de proceder muito 
sábia dizendo : Pensa mal e não te enganarás, e cor­
rigir d·este modo a moral do Evangelho. " E' preciso 
não ser demasiado ingênuo, dizem a cada passo ; é 
tolice fiar-se a gente em palavras. Os homens são 
maus. A amizade está nas acções e não em boas pa­
]avras " : como se o Evangelho aconselhasse a impru­
dência e imbecilidade ; como se Cristo, recomendan­
do-nos que fôssemos simples como a pomba, nos não 
advertisse logo que fôssemos prudentes como a ser­
pente ; como se não ensinasse a não crer em todo o 
espírito, e que pelos frutos se conhecessem as árvo· 
res ; como se, nas primeiras páginas da Sagrada 
Escritura, a propósito da malícia humana, não 
lêssemos : "O espírito do homem inclina-se ao mal 
desde a sua adolescência ! " 
Esta máxima perniciosa, que arvoraria em meio 
de chegar à verdade a malignidade de nosso coração, 
O CRITÉRIO 65 
é tão contrária à sã razão como à cariuade evangélica. 
Não nos ensina com efeito 'a experiência que ainda 
o maior mentiroso sempre diz mais verdades que 
mentiras ? que o mais depravado ente pr�tica mais 
acções boas que más ? Por natureza o homem ama a 
verdade e o bem ; só pelo império das paixões se 
desvia destes sentimentos. O mentiroso cede à sua 
inclinação, quando a mentira favorece seus interes­
ses ou serve sua vaidade. O ladrão rouba, o ho 
mem de má fé falta à sua palavra, o rixoso disputét, 
mas quando a ocasião solicíta ou a paixão arrasta 
Se tais homens cedessem constantemente a seus maus 
instintos, tornar-se-iam monstros ; seu vício degene­
raria em demência, e a sociedade, para bem da or .. 
dem e da moral, ver-se-ia forçada a expulsá-los de 
... 
seu seio. 
Concluamos. Seria portanto contra a razão e 
a j ustiça acreditar no mal sem razões suficientes, 
e em nossos j uízos tomar nossa malícia como garan­
tia da verdade. 
Suponhamos que numa urna estão algumas es­
feras negras misturadas com outras brancas, cem 
vezes mais numerosas ; poder-se-á tirar, à primeira 
vez, uma esfera negra ? - Pode ser . . . Mas vós 
afirmais, e eis o erro ! 
66 O CRITtRIO 
III 
ALGUMAS REGRAS PARA JULGAR DO 
PROCEDIMENTO DOS HOMENS 
Estas regras são j udiciosas precauções . Filhas 
da prudência, não alteram a simplicidade. 
Regra Primeira 
Não d�vemos fiar-nos da virtude do comum 
dos homens posta a prova muito dura. 
Resistir a tentações violentas é o triunfo das 
almas fortes, da virtude passada pelo cadinho das 
c<>ntrariedad.es, e poucos homens possuem seme­
lhante virtude. A experiência nos ensina que, nas 
situações extremas, quase sempre a fraqueza huma­
na sucumbe ; os livros sagrados confirmamesta 
experiência : " Quem ama o perigo, no perigo 
morrerá". 
Sabeis que um honrado comerciante se acha 
nas circunstâncias mais precárias quando todos o 
crêm em posição florescente. Sua reputação, o fu­
turo de seus filhos depende duma operação pouco 
delicada, mas muito lucrativa. Se a realiza, tudo 
fica reparado ; no caso contrário, descobre-se o se-
O CRITÉRIO 67 
gredo de sua postçao ; a ruína é inevitável. Q.ue 
fará ele ? . . . - Se a operação vos pode prej udicar, 
acautelai-vos a tempo. Afastai-vos dum edifício que, 
nas circunstâncias ordinárias, resistiria sem dúvi­
da, mas que poucas garantias terá de segurança, che­
gando o furacão. 
Duas pessoas jovens, de trato amável e bela fi­
gura, travaram relações íntimas e freqüentes ; são 
virtuosos, bem o sei ; quando não houvesse outros 
motivos bastaria a honra para os manter nos limi­
tes do dever, bem o sei também. Em todo o caso 
se a coisa vos interessa, tornai imediatamente as 
vossas medidas, senão calai-vos. Não julgueis te­
meràriamente, mas pedi a Deus por eles, que bem 
pode ser que as preces não sejam inúteis. 
Fazeis parte do govêrno de vosso país ; os tem­
pos correm maus, as circunstâncias críticas, um de 
vossos subordinados, incumbido dum cargo impor­
tante, está sendo sitiado noite e dia por um ini­
migo que dispõe de inesgotáveis meios de ataque . . . 
sonantes e de boa lei. Segundo se vos figura, o 
empregado é homem honrado e -ãemais está ligado 
à vossa causa por fortes e numerossos compromissos . 
Sobretudo, é entusiasta em certos princípios e os de­
fende com ardor. Não importa. Não percais este 
negócio de vista. Fazeis bem em crer que a honra e 
convicções do subordinado podem resistir a uma má­
quina de guerra do peso de cinqüenta mil peças de 
68 O CRITÉRIO 
ouro ; porém o melhor será não o pôr à prova, prin­
cipalmente se as conseqüências forem irreparáveis. 
Vedes a autoridade em perigo ; querem impor 
a seu representante um acto, a que ele não pode 
subscrever sem se aviltar, sem faltar aos deveres 
mais sagrados, sem comprometer interesses da pri­
meira ordem. O magistrado é de um carácter natu­
ralmente recto ; em toda a sua carreira não há que 
exprobar-lhe nem uma só perfídia e sua rectidão é 
acompanhada de certa firmeza. Os antecedentes 
são os melhores ; em todo o caso, quando ouvirdes 
roncar a tempestade, quando virdes a sedição subir 
as escadas do pretório e o ousado demagogo bater à 
porta, levando em uma mão o auto para assinar e 
na outra o punhal ou trabuco, receai mais pela 
honra do que pela vida do magistrado ! E' prová­
vel que o· homem não morra ; a integridad€ não é 
o heroísmo. 
E' portanto permitido, e até muito prudente, 
em certos casos, não confiar muito na virtude dos 
homens, principalmente quando para praticar a 
virtude precisam de uma superiorid-ade da alma que 
a razão e a experiência nos apresentam muito rara­
mente. E' de notar ainda que para suspeitar mal 
não é preciso esperar ·que o apuro seja tal qual o 
acabamos de pintar. Para os maus, uma simples 
ocasião equivale a uma tentação violenta. Assim na 
aplicação, antes de formar juízo (é a única regra 
O CRITÉRIO 69 
que se pode estabelecer) devemos considerar qual 
é a pessoa, graduando as probabilidades de resis­
tência ou de queda pela sua inclinação habitual de 
fazer mal, ou pela longa prática do bem. 
Estas considerações dão origem a novas regras. 
Regra segunda 
Inteligência, inclinações, carácter, moralidade, 
interesses, numa palavra, tudo o que pode influir 
sobre as determinações de um homem, eis o que nos 
é preciso conhecer para conjecturar com alguma 
probabilidade qual será o seu procedimento em dado 
caso. 
Ainda que dotado de livre arbítrio, o homem 
não deixa de estar submetido a uma multidão de 
influênci'as que poderosamente contribuem para de­
terminar suas decisões, e o esquecimento de uma 
destas influências pode levar os nossos j uízos a erro. 
Por exemplo, um homem está colocado numa posi­
ção que o expõe a trair seus deveres ; parece à pri­
meira vista que basta conhecer a moralidade desse 
homem e as dificuldades que à moralidade fazem con­
trapeso, para prognosticar mal sobre o seu êxito ; 
mas deixamos de ter em conta uma qualidade im­
portante sem a qual, em semelhantes casos, todas 
seriam comprometidas - firmeza de carácter. Que 
provém do esquecimento desta qualidade ? serem nos-
70 O CBlTtBlO 
sas esperanças algumas vezes enganadas com um 
homem de bem, e excedê-las um homem mau. Na 
luta que a virtude sustenta contra o mal, está longe 
de ser inútil que as paixões enérgicas combatam por 
ela. Uma alma ardente e fortemente temperada 
exalta-se e adquire no perigo novas forças. O 
orgulho vem em auxílio ao sentimento do dever. O 
homem que se compraz em arrostar os perigos e 
vencer as dificuldades sente-se mais resoluto, mais 
ousado com os aplausos da própria con�ciência. 
Para ele, ceder é fraqueza, recuar é covardia, e mos­
trar que tem medo, é cobrir-se de infâmia. 
O homem de intenção recta e coraç.ão puro, mas, 
pusilânime olhará as coisas de modo muito dife­
rente. A linha do dever está traçada, mas para 
a seguir é
. 
preciso arrostar a morte, " deixar uma 
família ao abandono. O sacrifício, além de tudo, não 
remediará o mal, quem sabe ? talvez o aumente. 
É mister dar ·ao tempo o que o tempo exige ; demais, 
o dever não é alguma coisa abstracta e absoluta. 
As virtudes que a prudência não modera deixam de 
merecer o nome de virtudes. " 
Finalmente o homem honesto encontrou o que 
buscava, um parl'amentário entre 
. 
o bem e o mal. 
O medo com s·eu próprio traje não serviria para o 
caso ; tomou a máscara da prudência, a capitula­
ção não se fará esperar muito. 
O CRIT�Riú 71 
O exemplo é palpável e nada tem de imaginá­
rio ; é preciso atender a todas as circunstâncias que 
dizem respeito ao indivíduo, antes de formar j uízo 
sobre ele. Desgraçadamente o conhecimento dos 
homens é um dos mais difíceis estudo&_ Aprender 
a j ulgar rectamente dos caracteres não é obra de um 
só dia. 
Regra terceira 
Devemos cuidadosamente despoj ar-nos de nos­
sas idéias e afeições particulares e guardar-nos de 
crer que os outros obrarão necessàriamente como nós 
obraríamos. 
T'odos temos experimentado que o homem se 
inclina a j ulgar dos outros, tomando-se por termo 
de comparação. Daí o seguinte provérbio : " Quem 
mal não faz, mal não pensa" ; e este outro : " O ladrão 
desconfia da própria sombra". Esta inclinação na­
tural constitui obstáculo quase invencível à impar­
cialidade de nossos j ujzos . Expõe o homem de bem 
a cair nas armadilhas do mau, e muitas vezes for­
nece armas à maledicência contra a inocência mais 
pura, contra as mais altas virtudes. 
A reflexão, aj udada por custosos desenganos, 
chega algumas vezes a curar este defeito, origem 
de inúmeros males para o indivíduo e para a so­
ciedade. 
72 O CRIT�RiO 
Mas, como tem raízes tanto no entendimento 
como no coração do homem, é preciso sempre es­
tar alerta para que se não reproduza incessante­
mente. 
Na maior parte dos raciocínios, o homem pro­
cede por analogia. " Tem-se dado sempre um facto ; 
por tanto continuará a dar-se ; tal fenómeno segue­
-se comumente a tal causa, logo também hoje deve 
seguir-se. " Quando temos de formar um j uízo, cha­
mamos logo a comparação em nosso auxílio. · Se um 
exemplo isolado confirma nosso modo de pensar, 
temos mais segurança nele ; se a experiência nos 
fornece muitos, temos logo a causa como demons­
trada. Pois não é natural que, quando buscamos 
comparações, as empreguemos dos objectos que nos 
são mais �onhecidos e familiares ? Ora, como para 
formar j uízo ou conj ecturas sobre o proceder dos ou­
tros é nec.essário ter em conta os motivos que influ­
em sobre as determinações da vontade, instintiva­
mente atendemos ao que costumamos fazer em iguais 
circunstâncias, e atribuímos aos outros as nossas 
maneiras de ver e de apreciar os obj ectos. 
Esta explicação, tão simples . quanto verdadei­
ra,

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