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JAIME BALMES , O CRITERIO Edicão patrocinada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em comemoracão ao centenário da morte do insigne filósofo espanhol * EDITôRA ANCHIETA S. PAULO, MCMXLVIII NIHIL OBSTAT S. Paulo, 12 de outubro de 1948 Pe. José Varani CENSOR IMPRIMATUR t Paulo Rolim Loureiro BISPO A UXTI..IAR São Paulo, 13-X-1948 EXPLICAÇAO NECESSARIA Partindo para a Europa com a caravama de es tudantes da Faeuldade: de Direito da Pontifícia Uni versidade Católica de São Paulo, deixou-me o dilecto armigo Prof. Dr. J. P. Galvão de Sousa a honrosa incumbência de cuidar da publicação do O Critério de Jaime Balmes com que celebrasse a dita Univer sidade o centenário do falecimento do insigne filó sofo espanhol. Exíguo o templO par-a uma tradução imediata e actual da afamada obra, houve que a;proveitar c versão antiga de João Vieira, editada p·or Chardron em 1877 (2.a edição) e por tantos atributos notável. Prestando-se o dr. João Payão Luz ao sacrifí cio do exempla1· da sua biblioteca como original para a tipografia aviámo-nos ao coteio com o texto cas telhano. Baseara-se, porém, o tradutor na versão frfkncesa de M. Manec, alegando que "nela se aper- 1 eiçoara o texto original". Não convimos com o juízo de João Vieira. Para ganha.r tempo, todavia, fomos obrigados a ater-nos apenas à revisão de eertas pequenas VI O CRITÉRIO infidelidades em que com razão se pudera dizer ser o "traduttore" um "traditore", e à actualização da ortografia. Para esta operação urgente e melindrosa, so corremo-nos também dos préstimos da distinta Prof.a Maria Ricardina Mendes de Almeida e, mercê de to dos esses passos, pudemos entregar o� originais à Editôra Anchieta, a qual generosamente se prontifi� cara a ser a publicadora da obra, em tempo hábil para que o volume viesse a surgir à luz na data convencionada, que é esta. Do Prof. J. P. Galvão de Souza, ainda na Europa, recebemos as páginas pospostas a estas explicações. A todos quantos nos auxiliaram a>ara que a pu b licação saísse a contento, deixamos aqui expresso o nosso "muito obrigado " . Arlindo VEIGA DOS SANTOS São Paulo, 28 de j ulho de 1948. PREFACIO 1848 foi um ano eminentemente revolucionário. Enquanto o judeu Karl Marx redigia o Manifesto Comu nista; traçando a diretriz da revolução mundial, movimen tos subversivos alastravam-se pela Europa derrubando governos e fazendo sossobrar regimes. Naquêle mesmo ano, jovem ainda, entregava a alma ao Criador um ilustre filósofo e publicista espanhol cuja pena estivera sempre a serviço da Igreja e da Pátria, os dois alvos contra que se voltavam as arremetidas da im piedade e do internacionalismo revolucionãrio. Fizera-se paladino das tradições do seu povo então postas em cheque. E com 38 anos apenas passaria à hist'ória como um dos maiores pensadores dre sua época. Assim foi que o Cardeal Joaquim Pecci, futuro Papa Leão. XIII, considerou Jaime Balmes, com quem travara relações na Bélgica. Homem de gabinete e de ação, Balmes nunca esteve alheio aos problemas do seu tempo. Soube dividir-se entre as especulações da metafísica e as questões candentes da atualidade social. Participou da vida polit'ica da Espanha procurando harmonizar as correntes tradicionalistas que se degladiavam numa incompreensão da gravidade do mo·· mento quando deviam estar unidas em face da maré montante das fôrças da Revolução. 2 P R E F A C I O Sua obra, espelhando um talento polimorfo de pas· mosa fecundidade, se diria de alguém já avançado em anos de estudo, de meditação e de experiência. Dominou todos os sistemas filosóficos modernos com uma penetração genial, sabendo colher aqui e ali fragmentos de verdade como faz a abelha ao extrair o mel das mais variadas flôres. Não se deixou, porém, levar pelas águas turvas do ecletismo. E por outro lado evifando com maestria os escolhos do idealismo e do empirismo, que haviam feito naufragar a tantas inteligências de escol, assentou um dos marcos iniciais da restauração da filo sofia perene, à qual seria dado decidido impulso depois da Encíclica Aeterni Patris de Leão XIII. Metafísico sereno enquanto, nas páginas da Filosofia Fundamental, aprofundava o estudo do valor do conheci· mento, Balmes se transformava num jornalista vibrante ao escrever para as colunas de El Pensamiento de la Nación. Título bem expressivo o dêste periódico, para indicar o sentido da doutrinação cívica de quem soube com tanta clarividência interpretar o pensamento da nação espa· nhola, sent'indo perfeitamente os imperativos da unidade nacional e ao mesmo tempo dos particularismos regio nais. Já se tem notado que há, em Balmes, num grau emi· nente, as qualidades próprias do gênio catalão. Mas o seu espírito excedeu os limites da Catalúnia, fundindo-se, por assim dizer, com a complexidade do gênio espanhol. E transpôs ainda\ as fronteiras de sua pátria, integrando· -se na cultura européia, ou melhor, na universidade da civilização cristã. O redator de El Pensamiento de la Nación foi tam· bem um dos fundadores de La Civilización: teve sempre voltadas as preocupações para os destinos da Espanha e P R E F A C I O da Cristàndade. Dai o nos ter deixado aquela magnífica síntese histórico-filosófica El Protestantismo comparado con el Catolicismo, que Menendez y Pelayo não hesifou em classificar como o maior livro espanhol do século. Estudando o catolicismo e o protestantismo nas suas re· !ações com a civilização européia, focalizou problemas que ainda hoje se revestem da mais viva oportunidade. Obra definitiva e clássica no assunto, apesar do seu carácter polêmico, motivada que foi por um livro de Guizot. Balmes, manejando a pena de jornalista ou a de pole· mista, não perdia a objetividade, a lucidez, o equilíbrio do filósofo. A razão dêsse domínio sôbre si mesmo está no modo por que entendeu a filosofia. Admirável a plasticidade de sua inteligência, capaz de se alçar aos grandes vôos da metafísica e logo após tornar ao terra-a-terra do quo· tidiano sem perder o senso da realidade· e das coisas prá· ticas! Muita gente imagina os filósofos tipos exóticos e infensos ao convivia social, vivendo numa esfera diferente da que é habitada pelo comum dos mortais . . . E quantas vezes os culpados deste juizo são os próprios cultores da filosofia! Não temos visto grandes espíritos afeitos a elucubrações filosóficas tornarem-se, de um momento para outro, irreconhecíveis pela falta de lógica ou as divaga· ções abstractas e sem nenhum contacto com o real, quando se põem a tratar de assuntos sociais ou políticos de ordem prática ? Perturba-lhes a visão das coisas uma filosofia mal compreendida que não serve para a vida. A êstes pode caber muito bem o sentido pejorativo que chegou a ad· quirir a palavra "filósofo". Não, porém, a quantos com· preendam a �ilos_�fia como amor à sabedoria; disciplina mental,· escola de formação da inteligência e da vontade na procura da verdade objetiva� Assim a compreendeu 4 P R E F Á C I O sempre Balmes, e se quisermos a chave do seu segrêdo, êle mesmo no-la dará : acha-se nas páginas de um livrinho maravilhoso e único no gênero - El Criterio. Alguém procurou desfazer no valor filosófico da obra de Balmes. Escandalizou-se, talvez, com a simplicidade dêste livrinho e não pôde conformar-se em ver a filosofia reduzida a uma linguagem accessível, popular. Não admira que os homens habituados ás excentricidades da filosofia moderna pensem de tal forma. Mas o facto é que a sã filosofia tem por vestíbulo o senso comum. A simplicidade é marca de um espirit'o objectivo, de uma inteligência que sabe tirar das mais comesinhas e triviais afirmações os mais profundos ensinamentos. Aos que se comprazem com a linguagem abstrusa de certos filósofos de hoje, Balmes desagradará. Aos que pro curam na filosofia os inebriamentos de um licor altamente fermentado, serão insípidas as páginas de Balmes.Mas aos espíritos sedentos da água pura, cristalina e bem fazeja da verdade, serão sempre de valor inestimável : um depurativo para a mente, um eliminant'e das toxinas que contaminam o intelectualismo hodierno. Não sei de livro mais necessário do que O Critério de Balmes para a mocidade de hoje. Com efeito, pareoe que nunca houve, como nos dias correntes, tanta falta de . . . critério. Os homens dão-nos a impressão de não raciocinar,· mais com a lógica natural do espírito humano. E quando · raciocinam, não sabem tirar das grandes verdades reli giosas, morais e sociais as conseqüências tôdas em que importam para a vida. Além disso, o subjetivismo mais desenfreado impera na filosofia moderna desde Descartes e sobretudo Kant. Passou da filosofia à moral, à· estética, à politica. Não admira, pois, que se tivesse chegado a perder até mesmo P R E FACI O , 1 o senso da distinção entre o bem e o mal, entre o betv �l e o extravagante, entre a liberdade e o arbitrio. Tudo isso por um desequilibrio profundo, a atingir a própria estrutura mental e com efeitos irremediáveis no que concerne à formação do carácter e à educação da vontade. Bem outra seria a situação se todos seguissem as regras tão simples ensinadas por Balmes no O Critério, uma espécie de lógica prática que deveria andar de mão em mão servindo de livro de cabeceira para a mocidade estudiosa. Certamente a muitos causará extranheza o conteúdo destas páginas. Coisas de senso comum, coisas que todo o mundo sabe desde que começa a pensar. E' verdade. Pois aí está precisamente o grande valor dêste compên dio numa época em que nada é mais necessário do que saber pensar. Enquanto os adeptos da revolução social festejam o centenário do Manifesto Comunist'a e dos movimentos subversivos de 1848, tratemos nós de ouvir as lições de Balmes, propugnador da ordem nas idéias e na sociedade, filósofo restaurador do senso comum e publicista mestre do pensamento contra-revolucionário. Comemorando o centenário de Balmes, aprendamos com o Autor do O CRITÉRIO a pensar bem e querer o bem para bem viver. J. P. GALVÃO DE SOUSA (Professor da Pontiflcla Univer sidade Católica de São Paulo). o , CRITERIO CAPiTULO I Considerações preliminares I EM QUE CONSISTE O PENSAR BE'M. QUE É A VERDADE? Pensar .bem consiste ou em conhecer a verdade, ou em dirigir o entendimento pelo caminho que a ela conduz. A verdade é a realidade das coisas . Conhecer as coisas tais como são em si é possuir a verdade ; de modo diferente, é êrro. Sabemos que há Deus, e este conhecimento é uma verdade, por que realmente Deus existe . Sabemos que a variedade das estações depende do sol, e este conhecimento é uma verdade, porque realmente assim é. Sabemos que a obediência às leis, a boa fé nos contractos, a fidelidade aos amigos, são virtudes : saber isto é conhecer outras tantas verdades ; da mesma sorte O CRITÉRIO fora cair em erro j ulgar boas e dignas de louvor a perfídia, a ingratidão, a inj ustiça. Para pensar bem, busque-se conhecer a verdade, isto é, a realidade das coisas. De que serve discor rer com subtileza, ou aparentar profundeza, sem o pensamento conforme à realidade ? Um lavrador, um modesto artista que conheçam bem os obji:ldos de sua profissão, pensam e falam melhor sobre estes objectos do que um filósofo que, revestindo sua igno r.ância de elevados conceitos e palavras altissonantes, pretende ensinar o que ignora. li DIFERENTES MODOS DE CONHECER A VERDADE As vezes só imperfeitamente conhecemos a ver dade. A realidade apresenta-se-nos então, não tal como efectivamente é, mas incompleta, aument·ada ou mudada. Assim, se a certa dist.ância desfila uma coluna de homens, de sorte que vemos brilharem as armas, mas sem distinguir os traj es, o que podemo::, concluir é haver gente armada ; mas será um ajunta mento popular, ou um corpo de tropas ? a que parte do exército pertence ? Não o podemos saber. A verdade não se nos apresenta toda ; só temos um conhecimento imperfeito ; falta-nos ver distintamen te o uniforme. ú CRITÉRIO 9 Se, iludidos pela distância ou qualquer outra causa, supomos gratuitamente que tais homens estão fardados de modo que realmente não estão, ainda neste caso há imperfeição de conhecimento; ajunta mos alguma coisa que na realidade não existe. Enfim, se tomamos uma cousa por outra, como, por exemplo, um vestido amarelo por branco, alte ramos ainda a verdade ; mudamos um obj ecto em um outro. O entendimento que possui uma verdade em toda a sua extensão é como estes bons espelhos que representam os obj ectos exactainente como são. �a posse do erro, o entendimento pode ser coinparado coin os caleidoscópios que enganain a vista oferecen do-lhe imagens sein realidade. Finalmente, nos ca sos em que só possui parte da verdade, é coino os espelhos Inal estanhados ou dispostos de certa ma neira, os quais apresentain os objectos reais, Inas de modo que eles não são, porque lhes alteram as proporções e a figura. III DIVERSIDADE DOS ESPíRITOS O bom pensador procura ver nos objectos tudo o que contêin, e nada mais. Homens há que têm o talento de ver muito em tudo ; porém, cabe-lhes a lÓ O CRITtRIO desgraça de verem o que aí não há e não verem o que realmente há. O sucesso mais indiferente, uma circunstância qualquer lhes fornece matéria abun dante para discorrer profusamente-; para, como se costuma dizer, levantar castelos no ar. Grandes fazedores de projectos, belos palradores ! Outros padecem do defeito contrário; vêem bem, mas pouco. Penetram as coisas dum só lado, e se este lhes desaparece não vêem mais nada. Estes são propensos a sentenciosos e obstinados. Como caipiras que j amais saíram de sua roça, p·ara eles o mundo termina no horizonte. Um entendimento lúcido, capaz e exacto abarca em seu estudo o obj ecto plenamente; encara-o sob todas as faces, em todas as suas relações. A con versação e os escritos dos homens assim dotados distinguem-se por sua clareza, precisão, exactidão. Cada palavra sua põe em relevo uma ideia e esta ideia corresponde à realidade das coisas; elucidam -nos e persuadem, deixam-nos plenamente satisfeitos. Dizemos com assentimento sem reserva : sim, é ver dade, tem razão. Nenhum esforço é mister para os seguir em seus raciocínios. C aminhamos por ca minho plano, no qual o que nos conduz nos faz notar a propósito as maravilhas que se encontram na pas sagem. - Se a matéria é abstracta e difícil, e o ca minho é escuro e se some nas entranhas da terra, não importa! O nosso guia é mais prático; sabe O CRITtRIO 11 como s� diminui a fadiga e economiza o tempo; tem nas mãos um archote de vivíssima claridade. IV A PERFEIÇÃO DAS PROFISSõES DEPENDE DA PERFEIÇÃO COM QUE SE CONHECEM OS OBJECTOS DELAS O conhecimento perfeito das coisas na ordem científica forma os verdadeiros sábios ; na ordem prática e para a direcção da vida, faz. os prudentes ; na administraç.ão dos negócios públicos, forma os grandes estadistas. Enfim, em todas as profissões, o mais hábil é o que conhece melhor as matérias de que trata e de que se serve. Este conhecimento, po rém, há-de ser prático e abranger também os por menores da execução que, por assim dizer, são pe quenas verdades, de que se não pode prescindir para o conhecimento completo das coisas. Estas verda des são numerosas, até nas profissões mais simples. Um exemplo : qual será o melhor agricultor ? O que melhor conhecer as qualidades dos terrenos, das se mentes e das plantas, os melhores métodos e os me lhores instrumentos de lavoura ; o que à terra fizer produzir melhores frutos, com menos despesas, em menos tempo e com mais quantidade, finalmente que possuir mais verdades relativas à prática da agri cultura. 12 b CiUTtRIÓ O mBsmo acontece com o carpinteiro, com o comerciante : o mais hábil deles será o que possuir maior número de verdades concernentes a sua arte ; o que mais a fundo conhecera realidade das coisas que o ocupam. v A TODOS INTERESSA PENSAR BEM A arte de bem pensar interessa não somente aos filósofos, senão a todos os homens, por mais simples que sejam. O entendimento é um dom precioso ou torgado pelo Criador, é a luz que nos deve guiar, é, portanto, para o homem o dever por excelência ; se se apaga, ficamos às escuras, caminhamos às apalpadelas. Não devemos ter o entendimento em inacç.ão, sob pena de se embotar e tornar estúpido ; porém, alimentando-a, avivando-a, convém que a sua chama nada se altere na bondade. Deve esclarecf'r sem deslumbrar, mostrar o caminho sem extravios. VI COMO SE DEVE ENSINAR A ARTE DE PENSAR BEM? A ârte de pénsar bern não sé aprende t::1nto com regras como com exemplos. Aos que profes· O CRIT�RIÓ 13 sam esta arte multiplicando os preceitos e observa ções analíticas, perguntamos o que pensariam de uma ama que, para ensinar os meninos a falar ou nadar, empregasse semelhante método ? Mas não se infira que condeno tod·as as regras. O que sus tentamos é que s-e deve usar delas com sobriedade, sem pretensão filosófica e sobretudo que hão-de ser simples e práticas. Ao lado da regra, o exemplo. Um menino pronuncia defeituosamente certas pala vras ; que fazem os pais ou mestres para o corrigir ? Pronunciam-nas como devem ser pronunciadas, e lhas mandam repetir em seguida. " Escuta bem como digo . . . vai, agora tu . . . não ponhas os lábios desse modo, não faças tanto esforço com a língua ", e ou tras coisas assim. Eis o exemplo ao lado do pre ceito; a regra e logo a maneira de a pôr em prática. CAPíTULO II A atenção Assim como há meios conducentes ao conheci mento da verdade, também há obstáculos que nos impedem chegar a ela. Ensinar a empregar uns e desviar dos outros, eis a arte de bem pensar. I DEFINIÇÃO DA ATENÇÃO, SUA NECESSIDADE A atenção é a aplicação do espírito a um objecto qualquer. Para bem pensar, é mister, antes de tudo, saber ser atento. O machado não corta, se não é aplicado à árvore ; a foucinha é inútil nas mãos do ceifador, se não encontra espigas. Algumas vezes, os obj ectos se apresentam ao espírito, sem que ele lhes atente, de modo que su cede vermos sem olhar, ouvir sem escutar ; porém o conhecimento adquirido por tal modo é sempre li- 16 O CRIT�RIO geiro, superficial, muitas vezes inexacto ou comple tamente erróneo. O espírito inatento fica por assim dizer fora de si, não vê o que se lhe mostra. Esfor cemo-nos por ·adquirir o hábito da atenção, quer no movimento dos negócios, quer na quietação dos estudos. Temos tido muitas vezes ocasião de obser var que o que nos falta para compreender é menos a inteligência suficiente, do que suficiente aplicação do espírito, a atenção. Se escutamos a narração dum sucesso qualquer, distraídos e deixando flutuar ao acaso a imagina ção, interrompendo o narrador com mil questões e digressões estranhas, o que daqui resulta é que circunstâncias importantes nos escapam, que traços essenciais passam sem nos impressionar, e que, se depois quisermos contar o facto, ou meditàr snbre ele afim de formarmos nosso j uízo, ele se apresenta. à reminiscência incompleto e desfigurado. Proce derá o êrro de nossa incapacidade, ou de não termos prestado suficiente atenção ao narrador ? li VANTAGENS DA ATENÇÃO E INCONVENIENTES DE SUA FALTA A atenção multiplica as forças do espírito de um modo incrível, e como que alonga o tempo. O CRITtRIO 17 Por meio da atenção o homem ilustra-se incessan temente ; é à atenção que ele deve a precisão e ela� reza de suas idéias ; deve-lhe até as maravilhas da memória, pois que em virtude da atenção é que as idéias se classificam no cérebro com ordem e método. Os que só frouxamente atendem, passeiam seu entendimento por lugares distintos ao mesmo tem po ; aqui recebem uma impressão, além uma mui diferente ; acumulam deste modo cem coisas inco� nexas que, longe de os aj udar para a aclaração e retenção, se confundem, se embaralham, se destróem umas às outras. Não há leitura, conversação, es� pectáculo, que não possam, por mais insignificantes que pareçam, oferecer algum obj ecto de instrução. A atenção toma nota e recolhe as coisas mais insig� nificantes, a distracção deixa cair ao chão, como re fugo, o ouro e as pedras preciosas. III COMO SE PRESTA ATENÇÃO. ESPíRITOS FRíVOLOS E CONCENTRADOS Poder-se-á crer que tal atenção demanda muita fadiga, mas é um êrro. Quando digo atenção, não �ntendo a fixidez dum espírito que, por assim dizer, 18 O CRITÉRIO se crava nos obj ectos, mas sim uma aplicação serena, repousada, que permite que cada coisa tenha a sua hora e. nos deixa a agilidade necessária para passar de um trabalho ao outro. Esta atenç.ão não é in compatível com as diversões ou recreio. Com ef-eito, recrear-se a gente não é deixar de pensar, é dar tréguas •aos assuntos de estudo laborioso e consagrar -se a estudos mais fáceis. O sábio que interrompe os seus estudos árduos e p-rofundos para ir saborear um momento os encantos do campo compraz-se em observar o estado das coisas ; atende aos trabalhos dos lavradores, ao murmúrio das fontes, ao canto das aves ; esta atenção distrai-o, não o fatiga. Estou tão longe de considerar a atenç.ão como . abstracção severa e contínua, que conto -como ho . mens distraídos não somente os estouvados, mas ainda os ·absorvidos em si mesmos. Aqueles dissi pam-se fora de si ; estes p-erdem-se dentro de si mesmos, nas vagas profundezas de suas divagaç.ões. Tanto uns como os outros carecem de conveniente atenção, isto é, aquela que se deve aplicar ao objecto de que se ocupa. O homem atento é também o que tem mais urbanidade e cortesia. Feris o amor próprio da· queles a quem não escutais. E'' de notar aqui que um acto de urbanidade ou um acto contrário se cha· mam atenção ou falta d-e atenção. O CRITÉRIO 19 IV AS INTERRUPÇõES Acrescentemos que até os estudos mais profun dos, raramente exigem uma atenção tal que os não possamos interromper sem grave dano. Pessoas há que se queixam amargamente se a desoras uma vi sita ou um ruído qualquer inesperado lhes vem cor tar o fio das idéias. Fracos cérebros ! verdadeiros . daguerreótipos em que o mais leve movimento, a interrupção mais passageira basta para confundir tudo. Este defeito, natural em algumas pessoas, em outras, afectação vaidosa e pueril, acusa sempre completa ausência de concentração ou recolhimento interior. Como quer que seja, esforcemo-nos por adquirir uma atenção que seja ao mesmo tempo forte e flexível. E' mister que nossas concepções não sejam a guisa de imagens daguerreotípicas, mas sim quadros bem desenhados. Interrompido o pin tor, deponha seus pincéis para os retomar quando puder prosseguir em sua obra. Se um corpo es tranho lhe faz sombra, desvia-o e tudo fica reparado. CAPíTULO III Escolha da carreira I VAGA SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA TALENTO Cada um deve consagrar-se inteiramente à pro fissão para a qual sentir maior aptidão. Esta re gra é da maior importância ; muitas vezes tem sido esquecida ou desprezada, e daí vem, segundo a mi nha convicção, que as artes e as ciências não têm ainda feito os progressos decisivos de ·que são sus ceptíveis. Para alguns a palavra talento significa cap·acidade absoluta ; um espírito fadado para uma coisa deve sê-lo igualmente para todas. Erro capital. Um homem pode ser duma capacidade prodigiosa num ramo de conhecimentos humanos, e mostrar-se medíocre ou completamente nulo em outros. Certa mente Napoleão e Descartes são dois grandes espíritos 22 O CRITÉRIO e todavia nenhum ponto de semelhança têm. Supo nhamos que mudavam seus pensamentos : o gênio da guerra não compreenderia o gênio da filosofia ; o conquistador colocaria o pensador em o número da queles que com desdém chamava ideólogos. Poder-se�ia escrever um livro sobre os talentos comparados, assinalando as diferenças radicais que osdistinguem. A cada um sua parte de força e de fraqueza. Há poucos homens, não há talvez nenhum, que chegue a uma igual superioridade em todas as coisas. Não nos mostra a observação que certas apti dões se contrariam e prejudicam mutuamente ? Com efeito um espírito generalizador raramente possui a exactidão minuciosa. Pedi ao poeta que vive de ins pirações e imagens grandiosas, que se suj eite à re gularidade compassada das matemáticas ! li O INSTINTO NOS INDICA A CARREIRA QUE MELHOR SE NOS ADAPTA Às faculdades que o Criador nos distribui em graus diferentes, acrescenta um instinto preciso que nos indica o seu emprego. Se um espírito se com praz com certos trabalhos, ele os. busca com perseve rança ; outro, pelo contrário, experimenta repugnân cia quase invencível e constante para a esses trab-a- O CRITÉRIO 23 lhos se dedicar. Não nos enganamos nisto. A natu reza nos adverte que recebemos, no primeiro caso, disposições felizes, e, no segundo, inaptidão para tal mister. O sentido do gosto, se não está alterado por alguma doença ou maus hábitos, distingue os alimen tos sãos dos que o não estão. O mesmo acontece com o olfacto. Deus não podia ter menos cuidado pela alma que pelo corpo. Os pais, os mestres, os directores de estabeleci mentos de educação farão bem se prestarem a devida atenção a esta verdade. Quantos talentos, com efeito, que, bem dirigidos, teriam dado os mais precisos frutos, se consomem inutilmente, pelo facto de terem sido consagrados à carreira para que não haviam sido feitos ! Todos podem fazer este exame. O mesmo alu no, desde a idade de doze anos por diante, está nos casos de compreender quais são os trabalhos que lhe custam menos e os estudos em que se acha com mais aptidão e inteligência. III MEIOS PARA DISCERNIR AS APTIDõES PARTICULARES DUM MENINO Fazei passar diante dos meninos produtos di versos, obras notáveis da indústria e da inteligência 24 O CRITtiUO humana ; conduzi-os aos lugares em que o instinto ele cada um possa ser posto em presença de objectos de sua escolha. Tal método vos será muito útil, muito seguro. · Na revelação das aptidões, a natureza faz aqui o que seria incapaz de conseguir o estudo mais atento. Um mecanismo engenhoso atrai a atenção dum grupo de meninos de doze anos. O maior número admira um momento e passa ; um só se detém e pa rece longo tempo esquecido do mais. A curiosidade de seu exame, as questões cheias de senso que dirige, a compreensão rápida do maquinismo que assim o interessa, tudo isto não terá alguma significação para o observador atento ? Ledes o trecho duma bela poesia e se entre eles está algum Lope de Vega, um Ercilla, um Calderon, vedes brilharem os seus olhos, altear-lhe o peito; e a imaginação do menino sente-se inflamada por um sopro que nem compreende. Falou a natureza; desig na-vos um poeta. É mister não contrariar as aptidões, não as for çar. De dois meninos extraordinários, confiados à vossa conduta, podeis não dar à sociedade senão dois homens de extrema mediocridade. A águia e a ando· rinha distinguem-se pela força e agilidade de suas asas, porém jamais a águia lançou o seu vôo à b CRITtRIÓ 25 maneira da andorinha, nem a andorinha à maneira do rei dos ares : . . . Tenta te diu quid ferre recusent Quid valeant humeri. Este conselho de Horácio, dirigido aos escrito res, nós o dirigimos a todo o homem que se decide a abraçar uma profissão qualquer. éAPfTULO IV Da possibilidade I CLASSIFICAÇÃO DOS ACTOS DE NOSSO ENTENDI MENTO. QUESTCES A PROPOR Para dar a meu assunto toda a clareza de que o julgo susceptível, dividirei os actos de nosso enten dimento em duas classes : actos especulativos e actos práticos. Chamo especulativos os que param no co nhecimento, e práticos os que conduzem à acção ou a determinam. Quando simplesmente se trata de conhecer uma coisa, podemo-nos propor as questões seguintes : t.a tal coisa é ou não P'ossível ? Existe ou não existe ? Qual é a sua natureza? As regras, com 28 O CRITÉRIO cuja aj uda se podem resolver satisfatoriamente estas três questões abrangem tudo o que diz respeito à ciência especulativa. Em toda e qualquer acção, é evidente qne nos · propomos um fim. Daí as questões: 1." qual é esse fim ? qual o melhor meio de o conseguir ? Peço instantemente ao leitor que fixe a aten ção e, se puder, grave na memória as prereden tes divisões. Facilitar-lhe-ão a inteligência do que deve seguir-se e serão de grande auxílio para. estabelecer a ordem em seus pensamentos. li O POSSíVEL E O IMPOSSíVEL. CLASSIFICAÇÃO Possibilidade. A idéia contida nesta palavra é correlativa à de impossibilidade. Com efeito, a afir mação duma arrasta à negação da outra. As palavras possibilidade e impossibilidade ex primem idéias diferentes, segundo se aplicam às cou sas em si mesmas ou sõmente à ·causa que as pode produzir. Todavia estas idéias têm relações muito íntimas, como vamos ver. Consideradas relativa mente a um ser, independente da causa, a possibili dade e impossibilidade chamam-se intrínsecas ; ex- O CRITtlUO 29 trínsecas se se aplicam às causas. Apesar da sim plicidade e clareza aparente desta definiç.ão, para completamente alcançar o sentido, é indispensável seguir-me nas diferentes classificaç.ões que vou expor nos seguintes parágrafos. Poder-se-á estranhar que definamos a impossi bilidade antes de definir a possibilidade. Mas um pouco de reflexão fará ver que este método é lógico. A palavra impossibilidade, não obstante ter sentido negativo, não deixa de apresentar uma idéia positiva, a i déia de contradiç.ão entre as cousas, de exclusão, de oposição, de luta, por assim dizer ; de modo que, vindo a desaparecer esta contradição, concebemos a possibilidade. Daí vêm estes modos de dizer: tal cousa é possível, pois que nada se lhe opõe, não tem contradição. Como quer que seja, o conhecimento do impossível dá o de possível e vice-versa. Alguns filósofos distinguem três espécies de im possibilidade : impossibilidade metafísica, física e moral. Adoptarei esta divisão, acrescentando-lhe um novo membro : a impossibilidade do senso comum. Em seu lugar se verá em que me fundo. Talvez, melhor seria dar à impossibilidade metafísica o nome de impossibilidade absoluta; o nome de impossibilidade natural à impossibilidade física, e à impossibilidade moral o nome de impossibilidade ordinár-ia. O CRITÉRIO III EM QUE CONSISTE A IMPOSSIBILIDADE METAFíSICA OU ABSOLUTA A impossibilidade metafísica ou absoluta é a que se refere à mesma essência das coisas ; por outra, um facto é absolutamente impossível, quando sua existênci'a envolver consigo o absurdo : ser e não ser ao mesmo tempo. Um círculo triangular é um impossível absoluto ; porque seria e não seria ao mesmo tempo um círculo ; porque seria e não seria um triângulo. Cinco igual a seis é impossível absoluto, porque cinco seria cinco e não cinco, e o seis seria seis e não seis. Um vício virtuoso é im possível absoluto, porque seria vício e não vício ao mesmo tempo. IV A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E A OMNIPOT:f:NCIA DIVINA O que é absolutamente impossível não poderia oocistir em caso algum. Quando dizemos que Deus é omnipotente, não queremos dizer que haja nele o poder de fazer absurdos. A existência e a não exis- O CRITÉRIO 31 lencia ao mesmo tempo, do mundo, de Deus, o v1c10 virtuoso e outras incoerências desta ordem, eviden temente não podem estar debaixo da acção da omni potência. Como muito bem observou Sto. Tomás, devemos dizer que tais coisas não podem ser feitas e não que . Deus as não pode f'azer : segue-se daí que a impossibilidade intrínseca envolve igualmente a impossibilidade extrínseca absoluta, isto é, que nenhuma coisa é capaz de produzir o que de si mesmo é absolutamente impossível. \ · v A IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E OS DOGMAS A afirmaÇ-ão duma impossibilidade absoluta implica idéia perfeitamenteclara de termos j ulgados contraditórios. Declarar uma cousa impossível, só porque a não podemos compreender, é simultânea mente dar a conhecer o orgulho e a impotência de nossa razão. Relevemos a este propósito a sem razão dos que rejeitam certos mistérios do cristia nismo, argüindo-os de pretendida impossibilidade. O dogma da Trindade, o da Incarnação, seguramente estão acima da fraca inteligência do homem ; mas que podemos nós concluir da nossa impotência ? Deus trino e uno ; uma mesma natureza e três pessoas distintas, como pode ser isso ? Não o sei ; porém 32 O CRITtRIO minha ignorância não me permite o inferir que haja contradição. Por ventura compreendo o que é essa natureza, o que são essas pessoas de que me falam ? Não : logo quando quero j ulgar se é possível ou não . o que delas dizem, acho-me com o desconhecido. Que sabemos nós dos segredos da Divindade ? O Eterno quis pronunciar algumas palavras miste riosas para exercitar nossa obediência e humilhar nosso orgulho, porém não quis levantar o denso véu que separa esta vida mortal do oceano de .luz e de verdade. VI IMPOSSIBILIDADE FíSICA OU NATURAL A impossibilidade física ou natural eonsiste em um facto estar fora das leis da natureza. E' natural mente impossível que uma pedra, deixada de ser sustida no ar, não caia ; que a água, abandonada a si mesma, não tome o seu nível ; que um corpo, mer gulhado num fluido de menos densidade, não afunde ; que o sol pare em sua carreira, etc . . . , porque as leis da natureza prescrevem a queda dos graves, o nivelamento das águas, e assim por diante. Deus, que estabeleceu estas leis, tem poder para as sus pender ; o homem é que o não pode. O que natural mente é possível para Deus, não o é para a criatura. . O CRITÉRIO VII MODO DE JULGAR DA IMPOSSIBILIDADE NATURAL 33 Podemos afirmar que um facto qualquer é na turalmente impossível, quando saibamos que existe lei que se oponha à realização deste facto, e que esta oposição não é destruída ou neutralizada por ne !,huma outra lei. É lei da natureza que o homem, deixando de ter ponto de apoio, caia para o chão, porque é mais pesado que o ar ; porém existe uma . outra lei, em virtude da qual um corpo formado de diversas partes e e3pecialmente menos pesado do que o meio em que se acha mergulhado, aí se sus tenha ou eleve, mesmo quando uma das suas partes seja mais pesada que o fluido, ambiente. Assim um homem colocado num balão aerostático, conveniente mente construído, eleva-se aos ares, e este fenómeno está perfeitamente em harmonia com as leis. da na tureza. A extrema pequenez de certos insectos imped� que a sua imagem se pinte na retina de nossos olhos de modo perceptível para nós ; mas, em virtude das leis a que a luz está submetida, a direcção dos raios pode ser modificada de tal modo que, por meio duma lente microscópica, esses raios, partidos dum objeeto pequeníssimo, se desviam em seu ponto de contacto 34 O CRl'rnRIO com a retina, e aí tracem uma imagem muito maior que a realidade ; de modo que não será naturalmente impossível que certos seres imperceptíveis à vista d€sarmada, se nos apresentem, com auxílio do mi- · croscópio, com proporções consideráveis . . Por estas considerações se vê quanto importa não proclamar tal ou tal fenómeno como natural mente impossível, senão depois de maduro exame. A natureza é prodigiosamente poderosa e a maior parte de seus segredos nos são desconhecidos. Se no século V se dissesse que ainda havi·a de vir. tempo em que, por acção dum pouco de vapor compri mido, se haviam de vencer distâncias em uma hora que então levariam um dia inteiro a vencer, esta facto seria declarado naturalmente impossív€1 ; e, todavi-a o menino que hoje viaj a em caminho de ferro com preende perfeitamente que é levado na rápida car reira por agentes puramente naturais. Quem sabe as descobertas destinadas ao futuro e qual o aspecto que apresentará o mundo da:qui a dez séculos ? Sej amos embora cautos em crer a existência de fenó menos extraordinários ; não nos deixemos embalar por sonhos dourados ; porém não classifiquemos de natu ralmente impossível o que um descobrimento feliz poderá mostrar mui realizável. Não prestemos fé levianamente a transformações inconcebíveis, mas não as malsinemos de extrava.g;âncias e absurdos. O CRITÉRIQ VIII SOLUÇÃO DUMA DIFICULDADE SOBRE OS MILAGRES 35 Destas observações surge aparentemente uma dificuldade de que os incrédulos não se têm esque cido de lançar mão. E i-la em toda a sua força : " Os fenômenos chamados milagres são produzidos por causas desconhecidas, mas naturais ; de modo algum provam a intervenção divina, e, portanto, em nada apoiam a verdade da religião cristã. " Este argumento é tão especioso quanto fútil. Um homem de nascimento obscuro, sem letrBs, perdido na multidão, sem meios humanos de atrair a si a atenção dos outros, não possuindo ao menos um lugar em que repousar a cabeça, este homem apresenta-se à sua nação, trazendo-lhe uma doutrina tão nova quanto sublime. Pedem-lhe os testemu nhos de sua missão e ele os dá. A sua voz, os cegos vêem, os surdos ouvem, os mudos falam, os paralí ticos andam ; as mais rebeldes enfermidades desapa recem repentinamente ; os que hão expirado, os que desceram ao túmulo levantam-se de seu esquife; até os que há dias jaziam, lançando já 'as exalações empestadas da morte, saem de seus túmulos obedien tes à voz que lhes diz : Levantai-vos ! - Eis o con junto dos factos. 36 O CRITtRIO Empenhar-se-á o mais obstinado naturalista PN descobrir aqui a acção das leis naturais ocultas ? Com boa fé, ousar-se-á taxar de imprudência o� cristãos que crerem que tais prodígios se não podiam . operar sem intervenção divina? Credes que com o tempo se descubra o segredo de ressuscitar os mortos, e não por meio da ciência, mas ao chamamento duma voz que manda ? A operação da cataracta terá al guma semelhança com a acção de abrir os olhos a um cego de nascimento ? Os processos empregad0s para dar movimento a um membro paralisado asse:. melham-se por ventura a este outro : Levanta-te, toma o teu leito e volta para tua casa ? Virá c..'ia em que as ciências hidrostáticas e hidráulicas dêm à simples palavra humana o poder de acalmar as va gas enfurecidas e forçá-las a tornarem-se· mansas debaixo dos pés de quem caminha sobre elas, como um rei sobre prateadas alfombras ? E que diremos se a tão imponente testemunho se aj untam o cumprimento das profecias, a santi dade duma vida sem manchas, a elevação da dou trina e a pureza da moral ; enfim o sacrifício da vida, uma morte heroica no meio· de tormentos e ul trajes ; o ensinamento sustentado, proclamado até ao fim com uma serenidade, uma doçura cheia de majesíaJe, até ao último suspiro que exala nestas solenes pa}avras deixadas à terra : Amor e perdão ? O CRITÉRIO 37 Não se nos fale, pois, de leis ocultas, de impos sibilidades aparentes ; não se oponha a tão convin cente evidência esta palavra desconsoladora " que'm, sab e ? " Esta dificuldade, que seria razoável s e se tratasse dum facto isolado, envolto em obscuridades, sujeito a mil combinações diferentes, se se obj ecta contra o cristianismo é não só infundada, senão também contrária ao senso comum. IX IMPOSSIBILIDADE MORAL OU ORDINARIA A impossibilidade moral ou ordinária é a que está em oposição com o curso regular dos sucessos. Esta definição é susceptível de numerosas interpre· tações ; pois que a idéia de curso ordinário é tão el ástica, é aplicável e tão difenmtes objectos, que pouco pode dizer-se em geral que seja proveitoso na prática. Esta impossibilidade nada tem que ver com a absoluta ou a natural ; as cousas moralmente impossíveis não deixam por isso de ser muito pos síveis absoluta e naturalmente. Daremos uma idéia mui clara e simples da im possibilidade ordinária, se dissermos que um facto é impossível desta maneira, quando,no curso regular das coisas, tal facto raras vezes ou nunca se dá. Vejo um grande personagem cujo nome e títulos 38 O CRITÉRlO andam na boca de todos e a quem se tributam as honras devidas à sua dignidade. É moralmente im poosível que o nome seja suposto, que o personagem seja um impostor ; e todavia tem havido enganos . desta ordem. Vemos a cada passo que a impossibilidade moral desaparece por intervenção duma causa extraordiná ria ou imprevista que muda o curso dos aconteci mentos. Um comandante que acaudilha um punhado de soldados, partidos de longes terras, aborda a pla gas desconhecidas e se encontra com um imenso con: tinente povoado por milhões de habitantes. Lança fogo às naus e diz : Marchemos. Aonde vai ? con quistar vr.stos reinos com alguns soldados. É im possível, este aventureiro é um louco ! Deixai-o ! sua demência é a do heroísmo e do gênio. . A impossibi lidade vai tornar-se um sucesso histórico. O aven· tureiro chama-se Fernando Cortês, e a sua loucura dá à Espanha um novo mundo. X IMPOSSIBILIDADE DO SENSO COMUM, IMPRO· FRIAMENTE CONFUNDIDA COM A IMPOSSIBILIDADE MORAL A pal·avra impossibilidade moral tem algumas vezes um sentido muito diferente do que lhe have- O CRlTtRIO mos dado até aqui. Há factos impossíveis, cuj a im possibilidade absoluta ou natural se não pode afirmar ; e com tudo nós estamos de tal modo certos de que são irrealizáveis que nem a impossibilidade absoluta produziria certeza mais completa . Um homem tem encerrado numa urna uma grande quantidade de caracteres de imprensa, que supomos todos cúbicos p·ara que não haj a mais probabilidade de que caiam e fiquem sobre tal ou tal face. Mistura-os, agita-os muitas vezes sem ordem e os lança enfim ao acaso. Será possível que em sua queda estes caracteres com ponham o episódio de Dido ? Não, responde instantâneamente todo o homem de senso . Esperar seria loucura. Estamos tão pro fundamente convencidos da impossibilidade do facto, que apostaríamos a vida com a maior tranqüilidade. É de notar que nenhuma impossibilidade me tafísica há aqui, porque nos caracteres nenhuma repugnância existe a colocarem-se do modo desej ado . Um compositüi· os distribuiria desta maneira em pou co tempo e com a maior facilidade. Nenhuma lei da natureza se opõe a. que estes caracteres caiam sobre uma ou sobre outra face, ao lado uns dos outros, de modo que produzissem o efeito desej ado ; não se pod e invocar a impossibilidade natural. Existe por tanto uma impossibilidade doutra ordem, que nada tem de comum com as du·as primeiras e que igualmente difere da que apelidamos impossibilidade moral, p·elo único 40 O CRITfRIÓ facto de que ela está fora do curso regular dos su cessos. Damos-lhe o nome de impossibilidade do senso comum. A teoria das probabilidades e das combinações evidenciam esta impossibilidade, medindo, por assim dizer, distância imensa que separa a possibilidade dum fenómeno da sua realização. Não quis o Autor da natureza que certas convicções de soberana im portância precisassem de ser meditadas ; pois que. doutro modo, muitos homens ficariam delas privados. Eis porque no-las deu sob a forma de instinto. Em· vão vos esforçaríeis por as combater, nem ainda aos mais rudes. Não saberiam responder-vos ; porém, meneando a cabeça, diriam de si para si : Este fi lósofo, que crê na possibilidade de tais despropósitos, deve não estar são do j uízo. Quando a natureza fala do fundo de nossa alma com voz tão clara, tão imperiosa, seria toleima não a escutar. Só à� vezes alguns homens chamados filósofos se obstinam nesse labor ingrato. Esquecem que fora do senso comum não há filosofia e que o absurdo é mau caminho para chegar à sabedoria. CAPíTULO V Da existencia ; conhecimentos adquiridos pelo testemunho imediato dos sentidos I NECESSIDADE DO TESTEMUNHO DOS SENTIDOS ; DIFERENTES MODOS COM QUE NOS APRESENTAM AS COISAS Depois de termos estabelecido os princípios e as regras ·que nos dev·em guiar nas questões da pos sibilidade, passemos às questões da existência, que nos oferecem um campo muito mais vasto e de mais úteis e freqüentes aplicações. Por duas maneiras distintas pódemos adquirir a certeza da1 existência ou não existência de um ser, a certeza de que uma coisa existe ou não existe : por nós mesmos ou por meio doutrem. 42 ------------------------------------------�- O conhecimento que •adquirimos por meio dos sentidos pode ser mediato ou imediato. Ou os sen tidos nos apresentam os objectos à nossa inteligência, ou, das imagens que estes, objectos proC..'uzem, a inte� lig.ência infere a existência de uma ordem de fenó menos e de factos; colocados acima da esfera dos sen tidos. A vista me adverte imediatamente da exis tência de um edifício que aparece diante de mim. O pedaço de uma coluna, alguns restos de mosaico, uma inscrição me fazem saber que no lugar onde descubro estes obj ectos se elevava outrora um temp1o romano. Em ambos os casos devo ·aos sentidos o conhecimento adquirido : imediatamente no primeiro, de modo mediato no segundo. Sem o auxílio dos sentidos o homem nem ao me nos chegaria a conhecer a existência dos entes ima teriais. Na verdade, a inteligência merguÍhad·a num eterno adormecimento não poderia ad·quirir este con nhecimento, a menos que Deus viesse em seu auxílio por meios sobrenaturais, meios de que não temos de ocupar-nos aqui. À distinção que acabamos de expor em nada obs tam os sistemas que possam adoptar-se sobre a origem das idéias. Quer elas sejam inatas ou adquiridas, quer provenham directamente dos sentidos, ou somente des pertadas por estes, é evidente que nada poderíamos, que nada saberíamos sem que previamente esses po derosos auxiliares da inteligência tenham sido O CRITtRIO 43 postos em acção. Deixemos os ideólogos imaginarem o que quiserem sobre as operações intelectuais de um homem privado de todos os seus órgãos ; como verificar o erro ou a verdade de seus sistemas ? O infeliz não poderia comunicar nem pela palavra, nem mesmo por sinais. De mais não se trata aqui de um ente excepcional, mas do homem, do homem dotado de órgãos, e a experiência nos ensina que, nestas condições, o homem conhece, e que conhece o que sente e por meio de que o sente. II ERROS A QUE ESTAMOS SUJEITOS POR OCASIÃO DOS SENTIDOS. MEIOS DE OS REMEDIAR. EXEMPLOS Se o conhecimento imediato que os sentidos nos dão da existência de uma coisa é algumas vezes afec tado de erro, é porque não sabemos servir-nos destes admiráveis instrumentos. Quando os objectos mate riais obrarem sobre nossos órgãos, excitando impres sões em nossa alma, procuremos descobrir de onde vem esta impressão, e até que ponto ela corresponde à existência do objecto que parece produzi-la. Eis a regra. Alguns exemplos melhor a farão compre ender. 44 O CRITÉRIO Vislumbro ao longe uma coisa que se move, e digo : Acolá está um homem. Aproximando-me po rém do obj ecto, vej o que tomei por um homem um arbusto agitado pelo vento. Enganou-me o sentido . da vista ? não, porque a impressão que me trans mitira. não era outra qu€ a de um corpo em movi mento, e se eu tivesse dado à impressão suficiente atenção teria reconhecido que não me apresentava um homem. Havia transformado minha impressão. O erro pertence portanto à insuficiência da. atenção e não ao sentido da vista. Pelo facto de achar certa semelhança entre um objecto confuso em movimento e um homem visto ao longe, passei da semelhança para o homem e con cluí de uma coisa para outra, €squecendo que a aparência e a realidade são duas coisas inteiramente distintas. Tendes algumas razões para cr€r que se deve dar uma batalha a certa distância do lugar em que vos achais, e por isso parece-vos ouvir o troar do canhão € credes abertas as hostilidades. Todavia não há nada disso . Quem deveis acusar de vosso erro ? o ouvido ? De nenhum modo. Acusai a vós mesmos. Havia um ruído,com efeito ; mas era o que, numa floresta próxima, produziam as macha dadas de um lenhador ; era o ruído de uma porta que se fechava ou qualquer outro que de algum modo semelhava o troar do canhão ao longe. Estáveis Ó CRITÉRIO 45 por ventura bem seguros de que a causa da ilusão não estava junta de vós? Tínheis o ouvido suficiente mente exercitado para discernir a verd·ade, atenta a distância em que se deviam dar as descargas de arti lheria, a posição do lugar, a direcção do vento? Não foi o sentido da audição que vos enganou, foi a levian dade, a precipitação. A sensaç.ão era o que devia ser : vós é que lhe fizestes dizer o que realmente não dizia. Suponhamos que se apresenta a alguém um man jar delicioso ; prova-o e afirma ser mau, detest�vel ; o seu paladar estragado assim lho faz sentir. Onde está a causa do erro? não no órgão do gosto qut> apenas foi ocasião, senão na importância que lhe deu, devendo ter em vista que só quando o paladar está bem disposto é que pode indicar as qualidades do alimento. III É MISTER, EM CERTOS CASOS, EMPREGAR MAIS DE UM SENTIDO A FIM DE COMPARAR SEU TESTEMUNHO Observemos que para chegar a conhecer por meio dos sentidos a existência de um objecto qual quer, é preciso algumas vezes empregar mais de um sentido, e que sempre é mister estar premunido con- 46 O CRITtRIO tra a ilusão. Discenir até que ponto a existência de um objecto corresponde à sensação recebida, é evidentemente a obra da comparação, fruto da expe nencia. Um cego a quem se faz a operação da ca taracta não precisa as distâncias, e só depois de ter adquirido a conveniente prática da vista é que pode j ulgar das formas e das proporções. Tal prática nós a adquirimos desde a infância, sem dar por isso. e eis por que cr€mos que basta abrir os olhos para conhecermos os objectos tais quais eles são. Uma bem simples experiência, e que podemos renovar muitas vezes, nos convencerá do contrário. Um adulto e um menino vêem, através de um vidro de óptica, algumas pinturas representando uma paisagem, animais ferozes, uma batalha, et�. Ambos recebem a mesma impressão, porém nem a I batalha, nem os animais ferozes amedrontam o adul- to, que bem sabe que não tem a realidade diante dos olhos. Não é sem esforço que conserva a ilusão, e por vezes pr€cisa de suprir por meio da imaginação as imperfeições do instrumento ou dos quadros; para melhor saborear o espectáculo. Pelo contrário, o menino que não compara, que ! · . I atende só á sensação isolada, e que nela se absorve, · agita-se e chora à vista dos soldados que se degolam, e dos animais ferozes de que tem medo. O CRITÉRIO ·17 IV OS SÃOS DO CORPO E DOENTES DO ESPíRITO Costumam os que tratam do .bom uso dos sen tidos adv·ertir que é mister cuidar em que alguma jndisposição nos afecte os órgãos, de modo que assim nos transmitam sensações enganosas. Ê sem dúvida conselho prudente ; porém não dá a utilidade que se crê. Os enfermos raramente se dedicam a estu dos sérios, e ·assim os seus erros são de mínima im portância ; além de que a doença de um órgão logo adverte que se não deve confiar em seu testemunho. Mas, sobretudo, precisam de advertência e de regras os que, sendo sãos do corpo, o não são da inteligência; que põem ao serviço de uma idéia que os preocupa todos os sentidos ao mesmo tempo, e os forçam a perceber ( quem sabe ? de boa fé talvez ) tudo que venha em auxílio do sistema que adoptam. Que não d escobrirá nos corpos celestes o astrónomo, que se arma com telescópio, não para escrutar serenamente as profundezas dos céus, mas para neles achar a todo o custo -as provas que apoiem alguma asserção aventurada ? Disse eu intencionalmente que semelhantes erros podiam ser de boa fé. Efectivamente, muitas vezes 48 O CRinRlO o homem se engana a si, antes de enganar os outros. Dominado por sua opinião favorita, atormentado pe lo desej o de ·achar provas que dela estabeleçam a verdade, e{>tuda os o bjectos, não para cornpreende1:, rnas para ter razii,Q., __ Deste modo, descobre tudo o que busca ; o mais das vezes, os sentidos lhe dizem outra coisa ou não dizem nada ; não importa : as mais leves aparências bastam para sua preocupação. "É isto ! " exclama ele com transporte. E sufoca com cuiC.'ado as dúvidas que se levantam em seu espírito. Imputa -as à falta de fé em seu incontrastável saber e se · impõe a obrigação de estar satisfeito, fechando os olhos à luz afim de enganar os outros, sem se ver na necessidade de mentir. Basta ter estudado o coração do homem para reconhecer a verdade destas observações : · debate mos em nós certas questões com deplorável parcia lidade. Se temos falta de convicção, trabalhamos para a formar em nosso espírito. O labor é penoso a princípio, a tarefa é difícil, porém logo o hábito vem fortalecer os fracos, se o orgulho intervém a não permitir retrocesso ; e o ·que começou lutando contra si mesmo com um engano que se lhe não ocultava de todo, acaba por ser realmente enganado e se abisma em sua ilusão com obstinação invencível. O CRITÉRIO 49 v SENSAÇõES REAIS, MAS SEM OBJECTO EXTERNO Nem sempre os nossos erros provêm das exa gerações dos j uízos, ou das transformações que fa zem experimentar à sensação : há outra espécie deles. Sob impulso de uma idéia fixa a imaginação solici tando incessantemente o mesmo órgão, acaba por dominar, por alterar a acção vital, e por criar sen sações reais, que não têm outra causa que a mesma imaginação. Chega-se a sentir o que não existe. Para compreender este fenómeno, lembremo-nos que a sensação não se verifica no órgão, mas sim no cérebro, posto que a força do hábito nos leve a re ferir a impressão à parte afectada do organismo. Perderemos a vista se se der lesão grave no nervo óptico, e todavia o olho fica são. Toda a sensibili.:. dade se extingue no membro que deixa de estar em comunicação com o cérebro. Infere-se destes fenô menos que o cérebro é o centro das sensações e que, se a impressão que um órgão exterior costumava aí produzir é excitada, após um acto interno, a sensação dá-se independentemente da impressão exterior. Suponhamos que um órgão recebe de um corpo qualquer uma impressão e a comunica ao cérebro por meio do nervo A, produzindo neste nervo a vi- 50 O CRIT�R!O braç.ão B. Se por qualquer outra causa, puramente interior e moral, se produzir no mesmo nervo A a mesma vibração B, experimentar-emos necessària mente o que experimentaríamos se o órgão fosse materialmente afectado. A razão e a observação acham-se acordes neste ponto. A alma adquire conhecimento dos objectos exteriores por meio dos sentidos, mediatamente, ou imediatamente por meio do cérebro ; por tanto, logo que este recebe tal ou tal impressão, a alma não pode deixar de a referir ao ó1·gão do qual ordinària mente procede, e ao objecto que a costuma produzir. · Se ela advertir que o corpo está doente, saberá tomar as devidas precauções contra o erro ; mas não d-ei xará de receber a sensação, pelo facto de desconfiar de seu testemunho. Quando Pascal via ante si um abismo aberto, embora a razão lhe . dissesse . que es tava no império da ilusão, experimentava a sensação que se experimenta à beira de um abismo ; seu& esforços não logravam subj ugar a ilusão. O fenó meno nada tem de estranho para os que têm algu mas noções sobr-e estas matérias. VI OS MANíACOS E OS CISMATICOS A exaltação é uma espécie de loucura intermi tente e parcial. Uma imaginação exaltada pode cair O CRITÉRIO 51 nos mesmos erros que um cérebro doente. As ma nias são um fenômeno deste gênero ; contínuas ou momentâneas, extravagantes ou sérias, diferem tan to em suas espécies como em sua intensidade. O \,cavaleiro da Mancha via formidáveis exércitos em : simples rebanhos de ovelhas ; e gigantes desmesura' dos nos moinhos de vento. Levado por sua imagina- ção, por sua fantasia, pela mania que o domina, talsábio, tal astrónomo, tal naturalista verá em seu telescópio, em suas retortas, em seu microscópio, os mais bizarros e estranhos fenômenos. Os grandes pensadores, os homens absorvidos em si mesmos estão mais arriscados a cair em ma nias científicas ou ilusões sublimes. A triste huma nidade sempre arrasta após si a sua herança de fraqueza. O próprio gênio está a ela suj eito. Uma mulher nervosa ouve, no murmúrio das brisas, lamentosos gritos, vê espectros num raio da lua brin cando através das clareiras, os gritos estridentes das aves noturnas são para ela vocações de demônios . . · \ Infelizmente, nem só as mulheres são dotadas dessas : 'imaginações ardentes que tomam por realidades -as extravagâncias de suas fantasias. CAPíTULO VI Conhecimentos adquiridos mediatamente pelos sentidos I TRANSIÇÃO DO CONHECIDO PARA O DESCONHECIDO, DO QUE É PERCEBIDO PELOS SENTIDOS PARA O QUE ELES NÃO PERCEBEM Aos sentidos devemos o conhecimento imediato de grande número de objectos ; mas maior é ainda o daqueles que os sentidos não atingem, porque es tes são incorpóreos ou fora de seu alcance. O edi fício levantado sobre a base estreita dos conheci mentos adquiridos por meio dos sentidos é tão gi gantesco, que o espírito hesita assombrado à sua vista, e só lhe resta crer em sua solidez. Onde os sentidos não podem chegar, supre o entendimento passando do conhecido ao desconhe- 54 O CRITtRIO cido, dos obj ectos sensíveis aos que o não são . A lava derramada por sobre o solo nos revela a exis tência de um vulcão que não vimos ; as conchas e outros mariscos, achados no alto das montanhas, fazem crer a existência de um transbordo de águas e nos indicam uma catástrofe de que estamos longe de ser testemunhas. Certos trabalhos subterrâneos mostram que em tempos anteriores se exploravam minas nos lugares que visitamos. Asruínas de uma cidade antiga assjnalam habitações de homens há muito desaparecidos da cena do mundo. Deste modo os sentidos nos apresentam objectos, e, por meio des tes obj ectos, o entendimento nos leva ao conhecimento de outros diferentes. Mas é mister ter em vista, que esta transição do conhecido para o desconhecido supõe uma idéia p,rê via, mais ou menos geral, do obj ecto desconhecido, e que ao mesmo tempo conheçamos tal ou qual de pendência entre os dois. Assim nos exemplos da dos, se é certo que não conheoemos . precisamente nem o vulcão, nem os minérios, nem os habitantes da cidade em ruínas, ao menos conhecemos de uma maneira geral estes obj ectos e as suas relações com os objectos que os sentidos nos apresentam. Da con templação do admirável maquinismo do universo, o homem não poderia elevar-se ao conhecimento do Criador, se não possuísse as idéias de efeito e de causa, de ordem e inteligência. Diga-se de passa- O CRITÉRIO 55 gem : só esta observação destrói o sistema dos qut: não querem ver no entendimento senão sensaçõeE transformadas. li COEXISTl!:NCIA E SUCESSÃO Não estamos autorizados a inferir a existência simultânea de dois fenómenos senão de sua mútua dependência. E portanto preciso conhecer esta dependênci'a ; toda a dificuldade está aí. Se pu déssemos penetrar nas profundezas onde se oculta a natureza das coisas, bastar-nos-ia fixar-nos sobre um objecto para conhecer logo todas as proprieda des, todas as relações que ligam estes objectos aos outros. Infelizmente não é assim. Tanto na ordem física como na moral, as idéias que possuímos so bre os princípios constitutivos dos seres são poucas e incompletas : segredos preciosos cuidadosamente velados pela mão do Criador. Assim a natureza oculta nas profundezas de seu seio os seus tesouros mais raros e mais preciosos. Esta carência de luzes relativamente à essên cia das coisas nos leva muitas vezes a concluir a dependência de fenómenos do simples facto de sua existência ou sucessão. Inferimos que uma coisa depende de outra só porque existem simultânea- 56 O CRlTÊRIO mente, ou porque uma se produz em seguida à outra. Daí freqüentes erros. E quem é que possui espírito assás seguro e esclarecido para conhecer sempr-e em que caso ou em que circunstância a coexistência e sucessão são ou não sinais de dependência ? Estabeleçamos em primeiro lugar como in contestável que nem a existência simultânea de dois entes ou factos, nem sua sucessão imediata, consi deradas em si mesmas, provam suficientemente, nes tes entes ou factos, relação de dependência. As plantas venenosas e empestadas entrelaçam algumas vezes as suas flores com as flores de plantas medicinais e aromáticas ; um réptil carregado de ve neno arrasta-se às vezes ao lado da borboleta com asas de ouro ; o assassino que foge à justiça humana oculta -se nas matas onde caça o honest0 caçador ; uma brisa · fagueira passa e rar€faz o ar, e logo muge o furacão, trazendo em suas negras asas tremenda tempestade. E ' portanto temerário julgar das relações que dois fenómenos têm entre si p elo simples facto de que algumas vezes os vimos unidos ou suced€ndo com curtos intervalos. Não será a tal sofisma que �e vemos imputar as predições sempre renovadas e sempre desmentidas sobre as variações atmosféricas ; as conj ecturas aventuradas sobre fontes, metais pre ciosos, etc. ? Algumas vezes tem acontecido que as nuvens depois de' terem afectado tal ou tal posição se dissolvem em chuva ; a tal ou tal direcção dos ventos 0 CRITtRIO 57 ou nevoeiros sobrevenha tempestade, e há logo quem se apresse a concluir que havia relação entre os dois fenómenos ; toma-se um como indicação do outro, e esquece-se que a coexistência, aqui, podia S·er intei ramente indiferente ou casual. III DUAS REGRAS SôBRE A COEXISTJ!:NCIA E A SUCESSÃO A importância da matéria exige que estabele çamos algumas regras. 1. a Quando a experiência prolongada nos mos tra dois fenómenos cuj a existência é simultânea, de modo que a aparição ou ausência de um arrasta constantemente a aparição ou ausência do outro, podemos legltimamente afirmar que tais f€nómenos têm entre si certa ligação, e partindo da existência de um inferir a existência do outro. 2.a S,e dois fenómenos se sucedem invariàvel mente, de sorte que o primeiro seja sempre seguido do segundo, tendo a existência deste sempre assina lado a existência daquele, concluamos sem medo de errar que eles estão ligados entre si por certa de pendência. 58 O CRITtRIO Seria difícil talvez demonstrar filosOficamente estas proposições ; porém os que tentarem pô-l'as em dúvida devem observar que o bom senso, razão su perior da humanidade, as toma por regras ; que a ciência, em grande número de casos, se inclina dian te delas, e que, na maior parte de suas investigações, o nosso entendimento não tem outro guia. Está universalmente reconhecido que certo ta manho, forma, cor, etc., são para os frutos sinais de niaturidade. Como é que o camponês que os co lhe sabe esta relação ? Como é que da forma, da cor e outras apar.ências que percebe por meio dos sentidos, infere uma qualidade que não experimen ta, o sabor ? Se lhe pedirdes que vos explique a teoria deste encadeamento de idéias, não saberá responder ; mas esforçai-vos por lhe provar que ele se engana e ele rirá da vossa filosofia ; inabalável em sua crença, pela simples razão " de que ele tem visto sempre a coisa assim. " Sabe-se que certo grau de frio congela os lí qüidos, que certo grau de calor os reduz ao estado primitivo. A razão destes fenómenos é geralmente igno rada, e todavia ninguém põe em dúvida a relação que existe entre a col).gelação e · o frio, entre a li qüefação e o calor. Talvez se poderiam suscitar algumas- dificuldades sobre as causas que os físi cos assinam a esses factos, porém vulgarmente não O CiUTtRIÓ 59 &e atende ao parecer dos sábios para formar opi nião. Os dois factos existem, sempre reunidos ; con soante se diz, portanto estão ligados por alguma relação. Será fácilfazer inúmeras aplicações desta re gra ; porém as que precedem bastarão para que qual quer as encontre de per si. Somente direi que a maior parte dos nossos actos se baseiam sobre o prin cipio seguinte : a existência simultânea de dois fe nómenos, observad·a durante tempo considerável, nos autoriza a concluir que, produzindo-se um, o outro se dew�rá produzir também. Se esta regra não fos se tida eomo certa, o comum dos homens não poderia obrar, e os mesmos filosófos se achariam mais em baraçados do que talvez cuidem. Pouco mais lon ge iriam do que o vulgo. A segund·a regra tem grande analogia com a primeira ; repousa sobre os mesmos principias e aplica-se à mesma ordem de factos. A constante experiência nos ensina que as aves saem dos ovos. Ninguém até hoje explicou satisfatOriamente como do líqüido encerrado na casca se forma aquele pe queno ser tão admiràvelmente organizado. Se a ciênda conseguisse dar explicação completa do fe nómeno, tal explicação não seria para uso do povo ; e todavia, nem o comum da gente, nem os sábios he sitam em crer que existe relação de dependência entre o aludido líqüido e a ave ; não se duvida que 60 O CRIT�RlO essa maravilha animada teve origem em uma subs tância informe contida na casca do ovo. Poucos homens compreendem, ou para melhor dizer, todos ignoramos de que modo a terra vegetal concorre para a .germinação das sementes, para o desenvolvimento das plantas, e qual é a causa que apropria certas qualidades de terrenos, ·antes que outros, a produções determinadas ; mas isso é cons tantem�mte observado ; temos dados bastantes para crer que uma coisa depende da outra ; para, pela presença da segunda, podermos inferir seguramente a existência da primeira . IV CAUSALIDADE, OBSERVAÇOES. UMA REGRA DE DIALÉCTICA Importa no entanto distinguir entre a suces são uma só vez observada e a que o é muitas vezes. No primeiro caso, a sucessão não implica causali dade, nem relação de espécie alguma ; no segundo, se não supõe S·empre dependência de causa e efeito, in dica pelo menos uma causa comum� Se o fluxo e o refluxo das águas do mar, tão sõmente algumas ve zes, coincidisse com tal ou tal posição da lua, não se poderia legitimamente concluir existência da re- b CRITtRIÓ 61 lação entre os dois f.enómenos ; porém sendo cons tante a coincidência, com razão se conclui desta persistência que, se um destes dois factos não tem o outro por causa, ambos têm, pelo menos, uma causa idêntica, e que andam ligados em sua origem. Como quer que seja, com razão os dialécticos taxam de sofisma o raciocínio seguinte : Post hoc, ergo pro<pter hoc. " Depois disto, logo por causa disto mesmo " : porque, em primeiro lugar, não se trata da sucessão produzindo-se duma maneira constante ; e, em segundo lugar, bem pode esta sucessão indicar dependência duma causa comum, mas não que dos dois fenómenos um seja a causa do outro. Em nossos juízos sobre os fenómenos da natu reza, procedemos exactamente como nas cousas da vida, modificando a aplicação da regra segundo a importância do obj ecto. Em certos casos con tentamo-nos com uma ou poucas experiências ; em outros, queremos numerosas e repetidas ; aliás so mos sempre conduzidos pelo mesmo princípio : dois factos que se sucedem invariàvelmente têm entre si certa dependência ; a existência dum revela a exis tência do outro. A simultaneidade supõe um laço, uma relação entre os factos, ou. uma relação de dois factos com um terceiro. 62 O CRITÉRIO v RAZÃO DE UM ACTO QUE NOS PARECE PURAMENTE INSTINTIVO A inclinação natural que nos leva a inferir da coexistência ou sucessão de dois factos uma relação entre esses factos, inclinação que nos parece uma cega inspiração do instinto, é na realidade a aplica ção inteligente, ainda que despercebida, dum prin� cípio primitivo gravado no fundo de nossa alma. Podemos considerar como acidental a coincidência que se dá algumas vezes, e portanto não lhe ligar idéia alguma de relação ; mas, quando a coincidên� cia se repete e se renova incessantemente, " há aqui encàdeamento, diz,emos nós sem hesitar, há mistério. O poder do acaso não vai tão longe ! " Desse modo, estudando a fundo as faculdades do homem, reconhecemos em tudo a mão poderosa da Providência que se comprazeu em enriquecer nosso entendimento com os dons mais preciosos e diversos. CAPíTULO VII A lógica de acordo com a caridade I SABEDORIA DA LEI QUE PROíBE OS JUíZOS TEMERÁRIOS A lei cristã, que proíbe os J Uizos temerários, nã.o é somente caridade, é também uma lei de pru dência e boa lógica. Nadá mais temerário do que j ulgar, por simples aparências, duma acção qual quer, e principalmente da intenção que a produziu. No curso ordinário das coisas os menores su cessos são tão complicados, os homens acham-se co locados em situações tão diversas, obram por moti vos tão diferentes, querem as coisas sob pontos de vista tão opostos, que, muitíssimas vezes, nos bas taria mudar de lugar para passar da cólera à 64 O CRIT�RIO indulgência, para compreender, para desculpar uma acção, um modo de pensar ou de obrar de que antes nos tínhamos admirado e escandalizado, e que es távamos resolvidos a condenar sem apelo. II EXAME DA MAXIMA: "JULGA MAL DAS COIS AS E NAO TE ENGANARAS" Crêm alguns dar uma regra de proceder muito sábia dizendo : Pensa mal e não te enganarás, e cor rigir d·este modo a moral do Evangelho. " E' preciso não ser demasiado ingênuo, dizem a cada passo ; é tolice fiar-se a gente em palavras. Os homens são maus. A amizade está nas acções e não em boas pa ]avras " : como se o Evangelho aconselhasse a impru dência e imbecilidade ; como se Cristo, recomendan do-nos que fôssemos simples como a pomba, nos não advertisse logo que fôssemos prudentes como a ser pente ; como se não ensinasse a não crer em todo o espírito, e que pelos frutos se conhecessem as árvo· res ; como se, nas primeiras páginas da Sagrada Escritura, a propósito da malícia humana, não lêssemos : "O espírito do homem inclina-se ao mal desde a sua adolescência ! " Esta máxima perniciosa, que arvoraria em meio de chegar à verdade a malignidade de nosso coração, O CRITÉRIO 65 é tão contrária à sã razão como à cariuade evangélica. Não nos ensina com efeito 'a experiência que ainda o maior mentiroso sempre diz mais verdades que mentiras ? que o mais depravado ente pr�tica mais acções boas que más ? Por natureza o homem ama a verdade e o bem ; só pelo império das paixões se desvia destes sentimentos. O mentiroso cede à sua inclinação, quando a mentira favorece seus interes ses ou serve sua vaidade. O ladrão rouba, o ho mem de má fé falta à sua palavra, o rixoso disputét, mas quando a ocasião solicíta ou a paixão arrasta Se tais homens cedessem constantemente a seus maus instintos, tornar-se-iam monstros ; seu vício degene raria em demência, e a sociedade, para bem da or .. dem e da moral, ver-se-ia forçada a expulsá-los de ... seu seio. Concluamos. Seria portanto contra a razão e a j ustiça acreditar no mal sem razões suficientes, e em nossos j uízos tomar nossa malícia como garan tia da verdade. Suponhamos que numa urna estão algumas es feras negras misturadas com outras brancas, cem vezes mais numerosas ; poder-se-á tirar, à primeira vez, uma esfera negra ? - Pode ser . . . Mas vós afirmais, e eis o erro ! 66 O CRITtRIO III ALGUMAS REGRAS PARA JULGAR DO PROCEDIMENTO DOS HOMENS Estas regras são j udiciosas precauções . Filhas da prudência, não alteram a simplicidade. Regra Primeira Não d�vemos fiar-nos da virtude do comum dos homens posta a prova muito dura. Resistir a tentações violentas é o triunfo das almas fortes, da virtude passada pelo cadinho das c<>ntrariedad.es, e poucos homens possuem seme lhante virtude. A experiência nos ensina que, nas situações extremas, quase sempre a fraqueza huma na sucumbe ; os livros sagrados confirmamesta experiência : " Quem ama o perigo, no perigo morrerá". Sabeis que um honrado comerciante se acha nas circunstâncias mais precárias quando todos o crêm em posição florescente. Sua reputação, o fu turo de seus filhos depende duma operação pouco delicada, mas muito lucrativa. Se a realiza, tudo fica reparado ; no caso contrário, descobre-se o se- O CRITÉRIO 67 gredo de sua postçao ; a ruína é inevitável. Q.ue fará ele ? . . . - Se a operação vos pode prej udicar, acautelai-vos a tempo. Afastai-vos dum edifício que, nas circunstâncias ordinárias, resistiria sem dúvi da, mas que poucas garantias terá de segurança, che gando o furacão. Duas pessoas jovens, de trato amável e bela fi gura, travaram relações íntimas e freqüentes ; são virtuosos, bem o sei ; quando não houvesse outros motivos bastaria a honra para os manter nos limi tes do dever, bem o sei também. Em todo o caso se a coisa vos interessa, tornai imediatamente as vossas medidas, senão calai-vos. Não julgueis te meràriamente, mas pedi a Deus por eles, que bem pode ser que as preces não sejam inúteis. Fazeis parte do govêrno de vosso país ; os tem pos correm maus, as circunstâncias críticas, um de vossos subordinados, incumbido dum cargo impor tante, está sendo sitiado noite e dia por um ini migo que dispõe de inesgotáveis meios de ataque . . . sonantes e de boa lei. Segundo se vos figura, o empregado é homem honrado e -ãemais está ligado à vossa causa por fortes e numerossos compromissos . Sobretudo, é entusiasta em certos princípios e os de fende com ardor. Não importa. Não percais este negócio de vista. Fazeis bem em crer que a honra e convicções do subordinado podem resistir a uma má quina de guerra do peso de cinqüenta mil peças de 68 O CRITÉRIO ouro ; porém o melhor será não o pôr à prova, prin cipalmente se as conseqüências forem irreparáveis. Vedes a autoridade em perigo ; querem impor a seu representante um acto, a que ele não pode subscrever sem se aviltar, sem faltar aos deveres mais sagrados, sem comprometer interesses da pri meira ordem. O magistrado é de um carácter natu ralmente recto ; em toda a sua carreira não há que exprobar-lhe nem uma só perfídia e sua rectidão é acompanhada de certa firmeza. Os antecedentes são os melhores ; em todo o caso, quando ouvirdes roncar a tempestade, quando virdes a sedição subir as escadas do pretório e o ousado demagogo bater à porta, levando em uma mão o auto para assinar e na outra o punhal ou trabuco, receai mais pela honra do que pela vida do magistrado ! E' prová vel que o· homem não morra ; a integridad€ não é o heroísmo. E' portanto permitido, e até muito prudente, em certos casos, não confiar muito na virtude dos homens, principalmente quando para praticar a virtude precisam de uma superiorid-ade da alma que a razão e a experiência nos apresentam muito rara mente. E' de notar ainda que para suspeitar mal não é preciso esperar ·que o apuro seja tal qual o acabamos de pintar. Para os maus, uma simples ocasião equivale a uma tentação violenta. Assim na aplicação, antes de formar juízo (é a única regra O CRITÉRIO 69 que se pode estabelecer) devemos considerar qual é a pessoa, graduando as probabilidades de resis tência ou de queda pela sua inclinação habitual de fazer mal, ou pela longa prática do bem. Estas considerações dão origem a novas regras. Regra segunda Inteligência, inclinações, carácter, moralidade, interesses, numa palavra, tudo o que pode influir sobre as determinações de um homem, eis o que nos é preciso conhecer para conjecturar com alguma probabilidade qual será o seu procedimento em dado caso. Ainda que dotado de livre arbítrio, o homem não deixa de estar submetido a uma multidão de influênci'as que poderosamente contribuem para de terminar suas decisões, e o esquecimento de uma destas influências pode levar os nossos j uízos a erro. Por exemplo, um homem está colocado numa posi ção que o expõe a trair seus deveres ; parece à pri meira vista que basta conhecer a moralidade desse homem e as dificuldades que à moralidade fazem con trapeso, para prognosticar mal sobre o seu êxito ; mas deixamos de ter em conta uma qualidade im portante sem a qual, em semelhantes casos, todas seriam comprometidas - firmeza de carácter. Que provém do esquecimento desta qualidade ? serem nos- 70 O CBlTtBlO sas esperanças algumas vezes enganadas com um homem de bem, e excedê-las um homem mau. Na luta que a virtude sustenta contra o mal, está longe de ser inútil que as paixões enérgicas combatam por ela. Uma alma ardente e fortemente temperada exalta-se e adquire no perigo novas forças. O orgulho vem em auxílio ao sentimento do dever. O homem que se compraz em arrostar os perigos e vencer as dificuldades sente-se mais resoluto, mais ousado com os aplausos da própria con�ciência. Para ele, ceder é fraqueza, recuar é covardia, e mos trar que tem medo, é cobrir-se de infâmia. O homem de intenção recta e coraç.ão puro, mas, pusilânime olhará as coisas de modo muito dife rente. A linha do dever está traçada, mas para a seguir é . preciso arrostar a morte, " deixar uma família ao abandono. O sacrifício, além de tudo, não remediará o mal, quem sabe ? talvez o aumente. É mister dar ·ao tempo o que o tempo exige ; demais, o dever não é alguma coisa abstracta e absoluta. As virtudes que a prudência não modera deixam de merecer o nome de virtudes. " Finalmente o homem honesto encontrou o que buscava, um parl'amentário entre . o bem e o mal. O medo com s·eu próprio traje não serviria para o caso ; tomou a máscara da prudência, a capitula ção não se fará esperar muito. O CRIT�Riú 71 O exemplo é palpável e nada tem de imaginá rio ; é preciso atender a todas as circunstâncias que dizem respeito ao indivíduo, antes de formar j uízo sobre ele. Desgraçadamente o conhecimento dos homens é um dos mais difíceis estudo&_ Aprender a j ulgar rectamente dos caracteres não é obra de um só dia. Regra terceira Devemos cuidadosamente despoj ar-nos de nos sas idéias e afeições particulares e guardar-nos de crer que os outros obrarão necessàriamente como nós obraríamos. T'odos temos experimentado que o homem se inclina a j ulgar dos outros, tomando-se por termo de comparação. Daí o seguinte provérbio : " Quem mal não faz, mal não pensa" ; e este outro : " O ladrão desconfia da própria sombra". Esta inclinação na tural constitui obstáculo quase invencível à impar cialidade de nossos j ujzos . Expõe o homem de bem a cair nas armadilhas do mau, e muitas vezes for nece armas à maledicência contra a inocência mais pura, contra as mais altas virtudes. A reflexão, aj udada por custosos desenganos, chega algumas vezes a curar este defeito, origem de inúmeros males para o indivíduo e para a so ciedade. 72 O CRIT�RiO Mas, como tem raízes tanto no entendimento como no coração do homem, é preciso sempre es tar alerta para que se não reproduza incessante mente. Na maior parte dos raciocínios, o homem pro cede por analogia. " Tem-se dado sempre um facto ; por tanto continuará a dar-se ; tal fenómeno segue -se comumente a tal causa, logo também hoje deve seguir-se. " Quando temos de formar um j uízo, cha mamos logo a comparação em nosso auxílio. · Se um exemplo isolado confirma nosso modo de pensar, temos mais segurança nele ; se a experiência nos fornece muitos, temos logo a causa como demons trada. Pois não é natural que, quando buscamos comparações, as empreguemos dos objectos que nos são mais �onhecidos e familiares ? Ora, como para formar j uízo ou conj ecturas sobre o proceder dos ou tros é nec.essário ter em conta os motivos que influ em sobre as determinações da vontade, instintiva mente atendemos ao que costumamos fazer em iguais circunstâncias, e atribuímos aos outros as nossas maneiras de ver e de apreciar os obj ectos. Esta explicação, tão simples . quanto verdadei ra,
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