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Dores Costa - Governação e NAtureza Humana

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Ler história | N.º 69 | 2016 | pp. 7-30
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O ESTIGMA DA «NATUREZA HUMANA»
COMO FUNDAMENTO PARA OS MODOS DE GOVERNAÇÃO
Fernando Dores Costa 
| Instituto de História Contemporânea (IHC-FCSH-UNL)
A publicação periódica de perdões gerais de desertores em editais 
impressos destinados a ter a mais ampla fama, feita sobretudo em tempos 
críticos, como os anos finais do século XVIII, foi o ponto de partida para 
a investigação sobre as dificuldades socialmente inscritas que as autoridades 
régias sempre encontravam para a formação e manutenção de uma força 
armada de meados do século XVII ao início do século XIX. Este domínio, 
que se poderia considerar porventura marginal, revelou-se um ponto de 
observação privilegiado para a análise dos limites práticos do exercício do 
poder e levou-me à enunciação de que a ação régia era guiada pelos preceitos 
do que nomeei «poder pseudopastoral», assim designado pelo contraste com 
os métodos de aplicação da lei, considerada esta (na sua letra) como uma 
regra genérica, aplicável aos prevaricadores das regras escritas sem conside-
ração pela sua particularidade. Na sua execução, o direito encontrar-se-ia 
muito próximo da casuística e, através do caminho da interpretação, seria 
usado pelos juízes de forma semelhante.
A autoridade do rei era, por definição consagrada, benévola, o que 
foi repetidamente afirmado na doutrina. O rei era um «pai» que sempre 
receberia os seus «filhos pródigos», os que reconheciam a desobediência 
e dela se arrependiam. Mas, em reserva, permanecia um «pai» que pode-
ria castigar, de forma exemplar e espetacular, os delitos considerados de 
extrema gravidade.
Através da benevolência própria do perdão, os reis reproduziam a atitude 
que era devida aos homens-no-mundo, de acordo com a orientação da dou-
trina dominante na Igreja cristã. Aos homens não poderia ser exigido mais 
do que aquilo que a sua «natureza» permitia. Sendo seres fracos, incapazes 
de um comportamento virtuoso e constante, não poderiam ser punidos 
a partir de um critério de «rigor» (o termo é da época) e invariavelmente 
aplicado, sem consideração pelas circunstâncias, aos que transgrediam por 
causa dessa sua fraqueza natural como aos que o faziam por malevolência. 
Esta oposição, entre a fraqueza e a malevolência, sendo central no discurso 
que classificamos como religioso, pode aparecer também no quadro estri-
tamente militar para diferenciar o modo de penalização dos atos de indis-
ciplina como, por excelência, eram os da referida deserção endémica. Mas 
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
tratava-se de uma oposição que, tendo sido inscrita na doutrinação religiosa 
como gramática da autoridade, estava fundada num critério que remetia 
para uma oposição entre a menoridade (e consequente irresponsabilidade) 
e a sombra de uma condução de si mesmo (que incluía a possibilidade de 
imaginar planos de uma ação contra a autoridade).
A «fragilidade» e o modo de governo na sua primeira forma: o modo
de governação «tomista»
O homem está fechado numa «natureza» que é o resultado de uma 
«queda», feita a partir de um estado inicial de pureza, por força de um 
«pecado original» de desobediência que se perpetua em cada geração 
de homens. Esta passagem de uma mácula original de pais para filhos 
gerou, naturalmente, numerosas polémicas. Contudo, apenas a defini- 
ção de uma persistência na transmissão poderia justificar uma «natureza 
humana».
Esta perspetiva atribuiria aos que dirigiam os homens uma margem 
quase ilimitada de mando sobre os comuns. Governar os homens tem como 
condição prévia a aceitação dessa natureza e, enquanto são reprimidos os 
seus efeitos mais violentos, deixá-la correr no seu curso. Não se pode exigir 
deles que escapassem a um fechamento desse tipo. Impor os padrões da 
«virtude» aos homens (entendendo-se por virtude a renúncia aos impul-
sos das paixões humanas em benefício do chamado «bem comum») seria 
uma tentativa de «violentação» dessa natureza, o que, além de constituir 
um labor sem sucesso, afrontaria a vontade divina. Querer modificar o 
humano na sua natureza evidenciava impiedade e arrogância. Seria este o 
caso dos «filósofos» que procuravam leis onde apenas reinava a vontade 
divina, frequentemente imaginados nas suas intenções pelos que os não 
tinham lido, mas que os que os condenavam afirmavam odiar por lhes 
atribuírem o desencadeamento da desordem anárquica onde deveria haver 
apenas submissão.
Por isso mesmo, a desigualdade social era, além de natural, indispen-
sável. Apenas uma força social que tivesse meios e fosse percebida como 
estando acima dos comuns seria capaz de aplacar as erupções violentas 
desses homens ordinários nos seus momentos de fúria e de os manter em 
obediência. Embora na tradição cristã, pela postulação de que nenhum 
homem poderia escapar à condição de pecador, nunca se tenha chegado 
ao ponto de encontrar um corpo doutrinal que definisse a coexistência de 
duas naturezas humanas, a ligação dos poderosos às imagens de virtude e 
à superioridade de mando fez-se através tanto da condição de membro do 
estado eclesiástico como através do uso legítimo da força e da proteção. Em 
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suma, o poder, na sua nudez1, encontrou aqui uma justificação. As diferenças 
sociais eram legitimadas de modo sobrenatural e isso não constituía uma 
novidade. Escrevera Varrão, autor romano, sobre os seus deuses, que era «útil 
às cidades que os homens superiores se considerem filhos dos deuses, mesmo 
que isto seja falso, para que, deste modo, o espírito humano […] atue com 
mais energia»2. Note-se a consideração sobre a irrelevância da «verdade» de 
uma tal filiação e a preocupação exclusiva nos seus efeitos disciplinares. Nas 
palavras de Troeltsch: «Aqueles elementos que do ponto de vista cristão-
-estoico da Igreja Primitiva apareciam como sendo puramente a punição 
do pecado e a corrupção do mundo, do ponto de vista empírico-evolutivo 
e histórico-evolutivo do Aristotelismo apareciam como diferenças fundadas 
na Natureza, baseadas em diferenças de talento e características psicofísicas 
que dividiam a humanidade em povos que conduziam e povos escravos, 
que dividiam os chamamentos em nobres e concordantes com a razão e 
outros meramente servis, sem razão e ignóbeis».3 Além da persistentemente 
utilizada metáfora do sangue, uma diversidade natural no interior de cada 
sociedade cristã, alguns esboços houve de diferenciação «rácica» entre as 
classes superiores e inferiores, como é o caso de Boulanvilliers4. 
Não se contrariava, antes se reforçava, a representação que os homens 
faziam uns dos outros, no dia-a-dia, como membros de variadas «espécies» 
da «natureza», tal como escrevia no seu estilo, diverso do dos tratadistas, 
o autor da Arte de Furtar: «É certo que os animais de diferentes não se 
amansam: cães com gatos, águias com perdizes […] Um fidalgo cuida que 
se distingue de um escudeiro mais que um leão de um bugio e um escu-
deiro presume que se diferencia de um mecânico, mais de um touro de um 
cabrito […] quando há união de amor entre tais sujeitos, não é porque a 
natureza os incline a isso, é a conveniência do interess»5.
Esta era uma imagem do «mundo». 
A ação propriamente «educativa» do clero – se por educativo se con-
siderarem os efeitos de conformação massiva – era escassa ou mesmo nula. 
1 Uma descrição desta nudez pode ser encontrada por exemplo em A Cidade de Deus de Santo Agostinho, vol. I. 
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, pp. 245-246: onde, as primeiras características de uma longa lista 
indicavam «– que cada um aumente cada vez mais as suas riquezas; – que estas cubram as prodigalidades diárias 
com que o poderoso conserva submisso o débil; – que os pobres, procurando encher a barriga, estejam dispostos 
a agradar aos ricos; – que sob a sua proteção desfrutem de uma pacífica ociosidade; – que os ricos abusem dos 
pobres, aumentando assim a sua clientela para serviçodo próprio fausto […].»
2 Agostinho, ob.cit., I, p. 291. 
3 Ernest Troeltsch, The Social Teaching of the Christian Churches. Louisville, Westminster John Knox Press, 1992 
[1912], vol. I, p. 297.
4 Henri de Boulainvilliers, Essai sur la noblesse de France. Amsterdão, 1732, pp. 42-43.
5 António Vieira, Arte de Furtar. Lisboa, J.M.C. Seabra e T.Q. Antunes, 1855, capítulo LVIII, p. 233.
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como fundamento para os modos de governação
Fundava-se quase exclusivamente no medo da morte, da imagem dos castigos 
eternos que caíam sobre os pecados considerados graves e que eram extremas 
transgressões, mas não modelava os comportamentos comuns e habituais. 
Aliás, as tentativas de educação de um modo mais profundo e generalizado, 
além de inúteis e até perigosas, remeter-nos-iam para a referida arrogância 
reformadora acima assinalada e para a afronta da vontade divina.
Tal como a nobreza, o clero parasitava o estado mundano, dele beneficiava 
e dele se reproduzia, vivia do uso político da morte como medo primordial, 
e, através do perdão, da benevolência perante a fraqueza própria da «natureza 
humana». As igrejas eram tradicionalmente o local de refúgio dos homens 
perseguidos pelas justiças régia e locais. As casas eclesiásticas seriam os mais 
frequentes locais de acoutamento dos homens que fugiam aos recrutadores 
militares. Essa era uma longínqua tradição, como referia Afonso, o Sábio, 
sobre a igreja como «casa de amparamiento»: «Franqueamiento há la eglesia 
et su cementerio en otras cosas […] ca todo home que fuyere á ellas por mal 
que hobiese fecho […] deve ser amparado, et nol deben ende sacar por fuerza, 
nin matarle, nin darle pena ninguna en el cuerpo»6. Na verdade, este tipo de 
proteção peculiar é assinalável no âmbito da escravatura da Roma Antiga, 
com os fugitivos que vão para os templos para pedirem a mercê dos deuses7.
O poder de absolvição detido pelos membros do clero alargou-se de tal 
modo que foi necessário fazer a listagem dos casos reservados, face aos quais 
os confessores não a podiam conceder: o espaço do «pecado-crime» englo-
bando 15 casos8. No mesmo sentido, as constituições sinodais do bispado 
da Guarda de 1621 definiam duas formas de emenda dos pecados: uma era 
chamada fraterna e caritativa e a outra paliativa e judicial. Definia-se que 
todos os eclesiásticos estavam obrigados ao uso da primeira, na expectativa 
da emenda do pecador9.
Mas há uma confusão primordial e propositada entre maldade e desobe-
diência. Maldade seria o afrontamento de regras proclamadas como «univer-
sais», e desobediência seria o não reconhecimento das ordens dos poderosos. 
Esta confusão pressupõe a captura das «regras» pelos poderosos, ou seja, a 
transpersonalização da sua autoridade. Essa confusão encontra-se no mito 
primordial cristão: o pecado original. Neste, apenas se pode encontrar um 
ato de desobediência ao poder criador e paternal. A confusão é sistemática 
(«constitucional» da própria ordem) porque desloca o eixo da classificação 
6 Las Siete Partidas del rey Alfonso el Sabio, Tomo I – Partida Primeira. Madrid, 1807, pp. 369-375.
7 Marcus Sidonius Falx, How to Manage your Slaves, Jerry Toner (ed.). Londres, Profile, 2014, p. 112.
8 Paolo Prodi, Uma História da Justiça. Lisboa, Editorial Estampa, 2002, p. 303.
9 José Pedro Paiva, Baluartes da Fé e da Disciplina. Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, p. 282.
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da maldade de uma avaliação «objetiva» (uma moral que se poderia avaliar 
pelos seus efeitos, independentemente do estatuto do agente avaliador) 
para o cumprimento do quadro de comportamentos enunciado pelos que 
interpretavam a palavra revelada. Esta maldade (que é desobediência) é o 
que fundamenta a autoridade, a sua legitimidade. Essa maldade não tem 
sequer de ser verificada, tem de ser postulada, como escreveu Fichte com 
suspeita candura, no seu encontro com Maquiavel no início do século XIX, 
na vertigem da época napoleónica. 
Note-se que, para Agostinho de Hipona, mesmo o poder do homem, 
«ávido de domínio», [que] «supera as bestas, quer pela crueldade quer 
pela luxúria […], não é dado senão pela providência de Deus Supremo 
quando julga que as empresas humanas são dignas de tais senhores». Cita 
Provérbios VIII, 15: «Por mim reinam os reis, dominam a Terra os tiranos» 
acrescentando: «Não se julgue que tiranos foram reis perversos e déspotas, 
mas homens poderosos, conforme o antigo significado. Daí o que diz Vir-
gílio: Será para mim um penhor de paz ter apertado a mão direita do tirano. 
E noutra passagem se diz claramente de Deus: Por causa da perversidade 
do povo é que ele faz reinar o homem hipócrita», citando Job, xxxiv, 30]10. 
Em suma, este tipo extremo de governação violenta não se encontra fora 
da esfera de ação da divindade (castigadora) e seria a perversidade do povo 
que justificava o uso do governo do hipócrita. 
O modo de governo fundado sobre esta representação da natureza 
humana usa a violência exemplar e espetacular e, ao mesmo tempo, a bene-
volência. A primeira marca a presença de uma autoridade terrena que detém 
um poder tão amplo que pode fazer recair a aniquilação da própria vida dos 
seus subordinados. A segunda é o modo de lidar, próxima e diariamente, 
com os homens e as manifestações que pertencem ao domínio do que se 
classifica como fraqueza moral. Os homens, como já dito, encontram-se 
globalmente fechados numa natureza e divididos naturalmente entre man-
dantes e comuns. Esta divisão não era entendida como uma obra humana, 
mas como uma obra de um ente sobre-humano. Governar era respeitar 
essa «natureza» (a fraqueza e a divisão social) e manter os homens dentro 
dela – porque a ela estavam condenados. O reino de Deus não era deste 
mundo. O mundo constitui apenas um período de transição.
Contudo, periodicamente, autores e movimentos «populares» reivindi-
cavam a «realização terrena» de uma justiça que também eles deduziam dos 
textos «revelados». A autoridade estabelecida vê-se ameaçada e reprime-os 
10 Agostinho, ob.cit., I, pp. 530-531.
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
violentamente. Há neles uma denúncia do mundanismo das Igrejas institucio-
nais. Há, pois, uma reserva cultural de tipo utópico que corria paralelamente 
à consagração da condenação do «homem-no-mundo». Outras correntes, 
retomando ritos e hábitos mais rigorosos sobre a pobreza e o serviço aos 
crentes, mas integrando-se (ou deixando-se integrar) na ordem eclesiástica 
e apresentando-se por isso menos ameaçadoras, deram origem a correntes 
renovadoras do culto. Os que encabeçavam os movimentos do referido 
primeiro tipo eram condenados por apenas iludirem os homens, dizendo-
-lhes o que queriam ouvir, com o propósito de derrubarem os dirigentes 
estabelecidos e tomarem os seus lugares. Ludibriavam os crentes sobre a 
possibilidade de um outro tipo de vida terrena, fundada numa fraternidade 
cristã, o que, recorde-se, era classificado como um afrontamento da divindade, 
já que esta «condição humana no mundo» não era um espaço determinado 
pela ausência dos efeitos da vontade de Deus, mas um resultado peculiar 
dessa sua vontade. O cristianismo tornado instituição era uma legitimação 
do poder social fáctico – como o são outras religiões noutros contextos – 
sobretudo nas suas versões que o fazem mais evidente, como são o caso da 
tomista ou do protestantismo luterano ou calvinista. 
Governar através do inevitável pecado
No primeiro artigo da questão 91 da Suma Teológica de Tomás de 
Aquino, o autor pergunta se há apenas uma lei divina11. A resposta é signi-
ficativa pois remete-nos para a experiência bem «terrena» do pater familias, 
do homem que encabeça os patrimónios da classe dos proprietários politi-
camente dominante. Tal como o «pai» de uma casa dá diferentes ordens a 
crianças e a adultos, também o único rei Deus, no seu próprio reino, deu 
uma lei aos seres humanosainda imperfeitos e, aos outros, uma lei mais 
perfeita para aqueles levados pela primeira lei a uma maior capacidade para 
as coisas divinas. Apenas Cristo poderia salvar os seres humanos [Remetia 
para Atos 4:12]. Por isso mesmo, uma lei conduzindo todos os homens 
para a salvação apenas poderia ser dada depois da sua vinda. Mas uma lei 
contendo os rudimentos de uma direitura salvífica precisava de ser dada 
antecipadamente para o receber em boa ordem.
O tempo da vida terrena é apenas um tempo de transição, entre a paixão 
e o regresso de Cristo. O modo de governo dos homens apenas pode ser 
o modo próprio desse tempo. A lei tem, pois, objetivos limitados, sendo 
composta por rudimentos e apenas preparando os homens para se mante-
11 O texto integral da Suma Teológica tem edições eletrónicas em inglês e em espanhol. Em livro, uma seleção: Thomas 
Aquinas, On Law, Morality ans Politics, W. Baumgarth e R. Regan, eds. Indianápolis, Cambridge, Hackett, 2002. 
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rem em ordem até esse regresso. Este retorno obtém deste modo um papel 
não apenas retórico, a dimensão escatológica de um discurso conservador, 
mas uma função direta, pois justifica as limitações do governo moral no 
tempo do mundo.
Sobre a obediência, Tomás de Aquino retoma Gregório: quando nos 
submetemos humildemente ao comando de outro, conquistamos o nosso 
ser interior12. 
Entenda-se: a afirmação de uma preeminência do que se chama como 
«vontade» própria ou de uma resistência às ordens não era o caminho. 
Pelo contrário, este é o domínio sobre «automatismos» que são próprios 
das paixões, em suma, uma capacidade de governo de si que conduzia ao 
acatamento das diretivas. Este é o fundamento que atravessa de modo per-
manente vários séculos até à era contemporânea: o elogio do acatamento de 
ordens, nomeadamente no campo militar, apresentado como uma vitória de 
si próprio e o contrário de uma desqualificação: a capacidade de triunfo do 
«eu» sobre as «paixões» e o reconhecimento na figura do chefe.
O elogio da subordinação vai ainda mais longe. Devemos obedecer a 
Deus em todas as coisas, pergunta? Responde Tomás: Deus, não atuando 
contra a natureza, ordena, contudo, coisas contrárias ao curso natural das 
«coisas da natureza»13. Ainda assim, Deus, não podendo ordenar nada con-
trário à virtude, já que a virtude e a retidão do homem consistem em estar 
em conformidade com a vontade de Deus e obedecer às suas ordens, ainda 
que estas ordens sejam contrárias à maneira usual da virtude. O exemplo 
usado por Tomás (e depois frequentemente retomado por outros autores) 
é a ordem de Deus para que Abraão sacrificasse o filho. Deste modo, ao 
contrário de ser um corpo de preceitos estabelecidos, os da virtude, sendo 
esta virtude definida pela obediência às ordens divinas, podem tornar-se 
«virtuosas» ordens que ostensivamente repugnam aos referidos preceitos, 
cuja delimitação é desconhecida. Em conclusão, todas e quaisquer ações 
poderiam ser virtuosas porque a obediência é de facto a única virtude, 
confirmando o que de início se assinalou.
O pecado, consequentemente, não tem sempre a mesma gravidade: o 
pecado mortal consiste no desvio do fim último que é Deus. A ação é o 
resultado da razão deliberativa, à qual pertence ordenar as coisas para o seu 
fim. Pode por isso acontecer que as inclinações da alma a um ato contrário 
ao fim último não sejam pecado mortal, mas unicamente porque a razão 
deliberante não pôde intervir, o que acontece com os movimentos súbitos 
[Tomás, ST, Q. 77, 8].
12 The Books of the Morals of St. Gregory, vol. III, livro XXV. 
13 Aquinas, On law, pp. 180-182. 
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
Chagas e os pecados
A gravidade dos pecados é socialmente diferenciada. Entre os pecadores 
também há diferenças na qualidade das culpas, escreve António das Cha-
gas14. Assim como um é maior na qualidade da nobreza, também é maior 
na malícia dos seus pecados porque de mais alto se faz a respetiva queda 
e também pelas suas consequências. Isto na medida em que os pecados da 
gente comum pouco se veem, pouco avultam e por isso menos escandalizam.
Porém, os dos grandes veem-se de longe, porque são grandes, e por-
tanto são mais nocivos aos pequenos que ordinariamente querem imitar 
os grandes. Contudo, o mesmo autor assinalava que nos grandes e sober-
bos não fazia fruto de ordinário a palavra divina. «Havia (usando os seus 
termos) de se humilhar as majestades, de se abater as altezas, postar-se as 
soberanias das altas serras e levantarem-se outeiros ao profundo dos vales 
para ficarem terras capazes de celestial cultura porque de outra maneira 
seria muito dificultoso o benefício da cultura»15. Para remediar os grandes 
e nobres eram necessários grandes clamores16. Os pecados dos pequenos 
eram insignificantes e que os que contavam eram apenas os dos grandes. 
Mas estes desprezavam a palavra dos clérigos já que, no seu orgulho, se 
consideravam acima de tais ensinamentos.
Chagas apresentava um panorama em que era muito restrita a ampli-
tude social da ação do clero – os de baixo pouco contavam e os de cima 
desprezavam-nos. O orgulho era o padrão social destes de cima. Escapavam 
aos métodos dos clérigos e avaliavam os seus sermões pelo seu valor teatral.
Tomás da Veiga retomou nos seus Sermões esta distinção crucial e 
socialmente organizadora entre os pecados resultantes da ignorância e da 
fraqueza, por um lado, e da malícia, por outro. Estes últimos, explicava, 
«são pecados estudados, são pecados enfim que Deus mais abomina e que 
mais o provocam e encontram a sua divina misericórdia […] [e por isso 
mandou] um tão grande dilúvio […] sobre a terra, provocado da depurada 
malícia dos homens; porque assim como a ignorância ou a fraqueza dimi-
nuem as culpas, assim a malícia as agrava» [72v.]. Estes últimos pecados, 
os estudados, eram, podemos concluir, os únicos efetivamente importantes.
O pecado é uma criação de autoridade, não existe como tal se não for 
nomeado: não tinham pecado [antes de Cristo ter vindo e de o pecado ser 
como tal nomeado], mas agora [que o foi] não têm desculpa no seu peca-
do17. Não é, pois, avaliado objetivamente, provindo o seu caráter dos seus 
14 António das Chagas, Escola de Penitência e Flagelo de Viciosos Costumes. Lisboa, 1687, § 216. 
15 Idem, pp. 130-131. 
16 Idem, § 217, p. 304.
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efeitos perniciosos, mas de uma raiz puramente subjetiva, decorrente da 
sua classificação pela fonte de poder. Essa nomeação contrariava de modo 
arbitrário o «orgulho humano» que costumava alegar que teria cumprido 
determinado preceito se conhecesse que isso era uma sua obrigação.
O homem não é um sujeito; a sua salvação depende sempre da graça.18 
Pergunta Tomás: o homem pode sem a graça e pelas forças da natureza 
cumprir com os preceitos da lei? No estado de inocência, o homem pode-
ria cumprir com esses preceitos, mas não o pode no estado de natureza 
corrompida. Agostinho [em De heroes, viii] afirmara que o que era próprio 
da heresia dos Pelagianos consistia em crer que o homem podia, sem o 
auxílio da graça, cumprir com todos os preceitos das leis. No confronto 
entre Agostinho e Pelágio encontram-se prematuramente as duas versões do 
cristianismo como fundamento da autoridade. A autoridade é prisioneira 
do pecado, ou seja, do mal. A autoridade governa a natureza humana, o 
homem tal como é após a queda. Governar essa natureza humana era exer-
cer uma superioridade social com uma legitimidade sobre-humana como 
sobrepersonalização.
Retomando as perguntas de Tomás: o homem poderia merecer a vida 
eterna sem a graça? Como a vida eterna é para o homem um fim último que 
ultrapassa as forças da sua natureza, é evidente que o homem não pode sem 
o socorro da graça divina e apenas pelos seus recursos naturais merecer esse 
fim último. O homem poderia sair do estado de pecado sem o socorro da 
graça? A razão natural não sendoum princípio suficiente de saúde espiritual 
e como tem necessidade para isso da graça que o pecado lhe retira não pode 
por si mesmo e sem o socorro da graça sair do estado de pecado, ou seja, 
recuperar o que o pecado o fez perder. O homem sem a graça pode não 
pecar? O homem no estado de inocência e possuindo então uma natureza 
perfeitamente sã podia, com o socorro de Deus, evitar todos os pecados 
mortais e veniais, tanto em geral como em particular, mas no estado de 
natureza corrupta, o homem pode evitar todos os pecados mortais; pode 
evitar ainda cada pecado venial, mas sem poder evitá-los todos, supondo 
sempre que a sua natureza foi restaurada pela graça infusa, porque sem isso 
não pode sequer evitar todos os pecados mortais, sobretudo durante um 
tempo considerável19. 
Por isso mesmo, deveria ser vincado o tempo curto – que é o tempo 
da dependência da mercê divina: confessar essa dependência desse modo 
17 Agostinho, Traités choisis... sur la grace de Dieu, le libre arbitre. Paris, 1762, p. 753, seguindo João, 15, 22: «Se 
eu não viera, nem lhes houvera falado, não teriam pecado, mas agora não têm desculpa do seu pecado», na 
tradução de João Ferreira de Almeida.
18 São Tomás, Suma Teológica [em seguida ST], II-I, Q. 109.
19 Gouzagne Truc, La pensée de Saint Thomas d’Aquin. Paris, Payot, 1924, pp. 282-283.
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
seria de muito agrado de Deus. Diz este autor que cada um que reza limi-
tadamente hoje no «Padre-nosso», «deixando aberto o campo da divina 
providência que se esmera a sustentar-nos cada dia, cuidando de cada um de 
nós como se houvesse no espaço do criado [da criação] outra coisa a atender 
e cuidar»20. O tempo de referência é propositadamente de curta duração. 
Trata-se de uma relação frágil, retomada a cada dia. Cantero afirma que 
isto avisa os indivíduos para apartarem a alma dos cuidados e ânsias com 
que procuravam as futuras necessidades (cuja imaginação perturbaria a paz 
de alma), envolvendo-se nessa solicitude com uma tácita desconfiança na 
divina bondade e providência. Significativamente, nesta variante da repre-
sentação da autoridade, a preocupação com o futuro, em vez de justificar 
uma inscrição num tempo mais longo, deveria ser liminarmente afastada e 
deixada à ação sobrenatural de um cuidado diário.
Em conclusão, o objetivo não é explicitamente o de cristianizar as 
populações, ou seja, fazê-las comportar-se de acordo com as normas que a 
doutrina enuncia como virtuosas, tarefa não apenas impossível mas mesmo 
ímpia, porque desafia a divindade, mas o de as manter na melhor ordem – 
necessária e desejavelmente imperfeita –, a pretexto de uma supostamente 
esperada mas imprevisível «chegada do senhor», ou seja, manter a ordem 
das coisas sociais e políticas, tal como se apresentam e onde se reproduzem 
as classes dirigentes.
Um melhoramento da condição humana nem sequer se coloca. Uma 
educação como formação de si não tem sentido21.
Pode inclusivamente legitimar a guerra, a manifestação suprema do 
governo do «mundo», como se evidencia em Tomás22. O tema da guerra 
é exemplar do modo peculiar de produção de legitimidade neste autor. 
Começa por citar Mateus, do qual se conclui que toda a guerra é ilícita: 
todo o que empenhar a espada morrerá. A esta se juntam as afirmações, 
por um lado, de não resistência ao mal, e, por outro, de que aquilo que 
contraria a paz constitui pecado.
Mas, ainda por outro lado, recorre a Agostinho, autor de onde extrai o 
«realismo moral». De um trecho citado em «De puero Centurionis» sobre 
se contentarem os combatentes com a paga, conclui que não se proibiu 
que guerreassem. Agostinho usara este trecho depois de afirmar que se 
a doutrina cristã culpasse todas as guerras, teriam de ser abandonadas 
as armas. Encontrara naquele fragmento a justificação para o que queria 
20 José Ortiz Cantero, Directorio catequistico, tomo 1.º. Madrid, 1766, § 484, p. 208.
21 «L’educazione como autoformazione non ha nenun senso per la teologia cristiana, la quale sente per la Rivelazione 
de possedere l’idea dell’uomo perfetto, come modello unico e incomparabile che gli uomini debbono far proprio. 
[…]» Giuseppe Saitta, Il Caratere della Filosofia Tomistica. Florença, 1934, p. 134.
22 Tomás, ST, II-II, 40. 
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anular – realisticamente – na moral cristã. Depois disto, Tomás retomava 
aquilo que se tornou o padrão da guerra justa, em primeiro lugar, a auto-
ridade do príncipe que a mandava fazer, pelo cuidado que lhe fora dado 
de defesa da cidade ou do reino contra os inimigos internos e externos, e 
a sua proveniência na resposta a injúrias sofridas.
Mais a massa de combatentes é retirada de cena e da esfera do jul-
gamento moral. Significativamente, os subordinados são colocados fora 
do âmbito do castigo. A partir de Agostinho: «quem empunha a espada 
sem autoridade […] fá-lo para derramar sangue», esclarecendo que aquele 
que, sendo pessoa privada, a autoridade do príncipe ou de juiz, faz uso da 
espada, não a empunha ele mesmo, serve-se da que outro lhe confiou e por 
isso não ocorre em castigo. Por demais evidente, a sociedade apresenta-se a 
dois níveis: um nível superior e um outro, o dos que são instrumentos de 
decisões de outros e que não são pessoas morais.
A definição do direito é também assaz clara23. O direito ou o justo 
determinam-se em função do estatuto do indivíduo em presença. Este pode 
apresentar-se de duas maneiras. Uma, absolutamente distinta, como no caso 
dos homens em que o primeiro não se encontra subordinado ao segundo, 
estando ambos sob um único príncipe. Entre estes está o justo em absoluto 
[Aristóteles, Ética a Nicodemo, 1134a26]. Na segunda forma, o indivíduo 
é chamado «outro» não em absoluto, mas (usando os termos do próprio 
Tomás) como «algo seu que existe». Desta maneira, nas coisas humanas, o 
filho é algo do pai, já que é parte dele [id., id., 1161b18] e sendo servo é 
algo do senhor porque é um instrumento seu, tal como afirmou Aristóteles 
[Aristóteles, Política, 1253b32/1254a14]. Estes outros –podemos concluir – 
não são «outros» na verdade, são amalgamados e feitos massa, são reificados 
como instrumentos.
Mas esta condição de «menoridade» podia ser socialmente alargada. 
Assim, a propósito da ação missionária, Palomo refere como o «rústico» era 
visto como um «menor» e, enquanto tal, entendia-se que devia ser instruído 
[…] nos rudimentos da fé»24. Para mais, o tema da obediência era «central 
no discurso missionário»25. 
Perdão: caridade e amizade
O perdão régio (e os perdões dados por outros, membros dos poderes 
judiciais e militares, que o imitam e se lhe agregam) emana daquele que, 
23 Tomás, ST, II-II, Q.57, 4.
24 Palomo, ob.cit., 2003, p. 106.
25 Idem, p. 286.
18
Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
no modo de governo «conservador», fundamenta o que se designa como 
caridade. A caridade é amizade, pergunta Tomás26. Nem todo o amor tem 
razão de amizade, mas filia-se na benevolência. Esta não é, contudo, suficiente 
para a amizade, já que requer a reciprocidade [Aristóteles, Ética, 1155b31]. 
Seria evidente que a caridade era amizade do homem com Deus. A carida-
de constitui a reprodução da desigualdade social por via subtil, entre um 
dador que age com a referida benevolência, mas mantendo o indivíduo na 
sua condição. A ênfase de Tomás na diferença entre a caridade e a amizade, 
sobretudo no sentido próprio desta (que é apenas um dos que lhes deu 
Aristóteles) esclarece bem o carácter da primeira.
A caridade é um ato que marca a ausência de amizade e cava a desi-
gualdade. Aparentemente, reconhece o objeto da sua ação, mas na verdade 
condena-o à condição que lhe atribui. Não é um movimento de comunicação, 
mas o oposto. Contribui para a subsistência do beneficiário tal como está e 
sem que pereça. Desaparecendo, passaria a ser inútil sob todos os aspetos. 
Nãofoi por acaso que os primeiros autores socialistas de 1848 puseram em 
primeiro lugar a sua distância da caridade27.
A religião não é uma escultora sistemática dos comportamentos morais 
da vida quotidiana. A mediação entre os indivíduos e a divindade não 
é, tal como referiu David Hume, esta esfera moral estrita, tema de uma 
«elite», mas a esfera de um conjunto de rituais que são entendidos como 
interferindo no âmbito de um sistema de trocas que é próprio da magia. 
Sobre os homens recai constantemente a ameaça da desgraça e por razões 
que são incompreensíveis. Mesmo os aspetos morais complementares que se 
conseguiriam eventualmente inibir – caso, porventura, de práticas sexuais 
transgressivas ou do homicídio –, sê-lo-iam por meio da associação a um 
desequilíbrio extremo no referido sistema de trocas que tornavam certas 
as penas infernais. A religião apenas é um fundamento de disciplina social 
através da punição exemplar28 e não como uma distribuição generalizada 
de efeitos disciplinares numa população.
Isto explica o papel crucial da imortalidade da alma como centro da 
autoridade política justificada religiosamente. Sem as penas que são infligidas 
às almas após a vida terrena, desvanecesse a capacidade de atemorização. A 
sociedade não poderia prescindir dos benefícios que decorriam da crença 
compartilhada na imortalidade da alma. Este seria o núcleo conceptual que 
26 Tomás, ST, II-II, Q.23. 
27 Maria Manuela Tavares Ribeiro, Portugal e a Revolução de 1848. Minerva Coimbra, 1990, p. 280.
28 Também, por via lateral, das penas do tribunal da Inquisição enquanto espetáculo da capacidade de as infligir e 
confirmação ostensiva da autoridade fulminante, através da excomunhão e das demais penas.
Ler história | N.º 69 | 2016 | pp. 7-30
19
unia Moro a Pompanazzi29. Seria principalmente o conjunto de homens que 
necessitavam da ameaça dos castigos extraterrenos que obrigavam a que 
nenhuma dúvida se pudesse introduzir no debate sobre a imortalidade. Ainda 
que houvesse um grupo que apresentasse a debilidade dos argumentos a seu 
favor, a hierarquia social restringiria a sua circulação [idem]. Governar era 
criar almas, mas na condição de serem almas imortais, sempre apavoradas 
com as penas de que a morte não as libertaria.
A religião podia ser vista como o único instrumento político capaz 
de manter os laços entre os homens30 mas não através da referida escultu-
ra moral. A chave da chamada «teologia política» é o uso da superstição 
para despersonalizar e dessocializar a política. Políbio afirmava que a mais 
considerável das instituições que demonstravam a excelência do governo 
de Roma era talvez o ensinamento do povo no respeito dos deuses. Aquilo 
que outros viam como desgraça – dizia o próprio Políbio –, constituiria 
aquilo que sustinha a própria república: a superstição, acompanhada pelos 
seus terrores e influenciando as ações dos cidadãos e da administração do 
Estado num grau quase inexcedível. A afirmação poderia parecer espantosa 
– alegava o próprio autor – mas este achava evidente que tal artificio tivesse 
sido adotado para uso das multidões. Sendo possível que um Estado fosse 
composto apenas de homens sábios, não haveria necessidade de tal invenção. 
Mas na medida em que os povos eram universalmente inconstantes, ocupa-
dos por desejos irregulares, precipitando-se nas suas paixões e propensos à 
violência, não havia uma outra forma de conseguir refreá-los sem que fosse 
através do pavor de coisas invisíveis e cortejo de ficção aterrorizadora31. A 
desigualdade entre os humanos era a justificação.
Contudo, os efeitos do modo de governação «conservadora» ou «tomista» 
(tal como cómoda mas fundamentadamente se pode classificar) sobre a disci-
plina de uma população seriam crescentemente vistos como muito limitados.
II
«Qui soutient la bonté originelle des hommes veut les tromper»
Helvétius
Os homens, disse-se e repetiu-se, estariam nesses séculos sujeitos a um 
regime rígido de governo moral e em muitos se manifestaria a vontade de 
29 Miguel M. Saralegui Benito, «La inmortalidad del alma: historia de un argumento político», Ideas y Valores, 63, 
2014, p. 155.
30 «La Religione è il solo fermissimo fondamento, su cui possamo sicuramente alzarsi e riposare le moli più grandi e le 
più alte degli umani affari, ed è il solo indissolubili legame onde possono gli Uomini unirsi tra di loro in amichevole 
società» [Alonso Sanchez de Luna, Lo Spirito della Guerra. Milão, 1760, p. 95].
31 Two extracts from the sixth book of the General History of Polybus, Hampton (trad.). Londres, 1764, p. 35.
20
Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
se quererem libertar. Na prática, essa rigidez não existia e a autoridade não 
se exercia por meio de uma efetiva, porque modeladora, governação moral. 
Dir-se-ia que, pelo contrário, se fazia pela renúncia a essa efetividade e pelo 
compromisso com o que designavam como «mundo».
O que se lhe opôs – as novas técnicas de disciplina social – foi distorcido 
por esta visão que foi feita a partir da leitura acrítica dos doutrinadores: 
o que haveria de novo era o aumento, não a diminuição, da eficácia na 
modelação dos comportamentos. Mas não a partir de uma proclamação, 
vazia, feita do púlpito... O «humanismo» opôs-se, de formas mais ou menos 
claras, à visão do «homem-caído-no-mundo», fazendo-o participar numa 
dupla natureza, mundana mas também «divina». O seu estado não seria 
o de um fechamento como o acima assinalado. Mas esta era uma posição 
estritamente elitista. O homem é o «Homem», o «artista», aquele que 
«copia-Deus-como-recriador-de-natureza»32.
A generalização dessa condição aos homens como espécie em si mesma 
era incompreensível e inaceitável. A «arte política» que se pode filiar no 
«humanismo» exalta a «razão» do homem enquanto homem guiado pela virtù. 
Não se trata de nenhum modo de proclamar uma racionalidade universal.
O «homem mítico», de onde parte Groethuysen, sendo já o resultado 
de uma elevação da condição, cinde-se e isso já poderia ver-se claramente 
em Maquiavel, afirma. «O homem torna-se um objecto para o homem. 
Como nos devemos entender com o homem? Como podemos conduzi-
-lo, governá-lo? Tal é a questão que agora se coloca. O homem de Estado 
desempenha aqui o papel de homem que conscientemente faz uso da sua 
vontade. Perante os outros homens, tornados objetos, ele é, de algum 
modo, o sujeito. Agir sobre o dado objetivo: homem, tal a tarefa essencial 
do homem de Estado. Não se trata de apreender o homem, tal como toma 
consciência de si na vida, mas como aparece àquele que sabe entender-se 
com ele e é capaz de o dominar»33.
Claro que esta cisão entre o homem-sujeito e o homem-objetualizado 
não foi «inventada» por Maquiavel; ele escreve sobre o que há muito tempo 
se faz (e nem sequer se revela, a não ser a pessoas de muita confiança e em 
voz baixa) e torna-se por isso uma referência constante de todos os autores 
que escrevem sobre a política depois dele. A «arte» já existia, mas ninguém 
tinha escrito sobre ela desta forma. Essa objetualização não se confessa. 
Expressa-se no desprezo social banal. A ambiguidade da referência ao homem 
32 Ernst Kantorowicz, «The sovereignty of the artist: a note on legal maxims and Renaissance theories of art», em 
Essays in honor of Erwin Panofsky. Nova Iorque, New York University Press, 1961. 
33 B. Groethuysen, Antropologia Filosófica. Lisboa. Presença, 1988 [1953], p. 175.
Ler história | N.º 69 | 2016 | pp. 7-30
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sem uma explícita marca social, sendo obviamente a exclusiva do «homem 
da elite», permite que cinicamente se possa reproduzir a ambiguidade.
Maquiavel foi proibido pelo papado, mas isso apenas terá contribuído 
para reforçar o seu prestígio. D. Vicente Nogueira dá-nos um exemplo 
dessa circulação que apesar de tudo se mantinha. Diz em carta de 1646 que 
obtivera uma autorização e pudera lê-lo durante 28 anos, mas, entretanto, 8 
anos antes dessa carta fora-lhe retirada. Os venezianos,como assinalava, para 
contornarem as proibições papais, haviam publicado a obra de Maquiavel 
com um outro nome de autor e sem as partes em que se criticava o papel 
do Estado papal em Itália. As preocupações do papado eram políticas e 
não morais34.
Paralelamente, surgiram os que sustentavam a defesa da «verdadeira 
razão de Estado» cristã. Haveria pois duas razões de Estado, a efetiva, que 
todos leem, e a «verdadeira», que se publica e que se destina a ocultar a 
primeira. A obra de Alvia de Castro opõe-se à ideia de que a razão conduza 
o Estado em função dos interesses do príncipe. Também que se possa con-
siderar como uma arte ou uma ciência. Estas estavam fundadas nas coisas 
que não variavam e se regiam por leis, o oposto dos assuntos humanos, 
sempre variáveis e imprevisíveis. O exemplo do que nos diz Nogueira ilustra 
o cinismo presente nesta demarcação da «verdadeira razão» e que o próprio 
Alvia de Castro confirma quando assinala a necessidade da dissimulação, 
ainda que limitada para não pecar. A defesa da imagem da benevolência dos 
reis e da função de «justiça» enquanto distribuição a cada um do que é seu 
esconde as suas iniciativas de tipo maquiavélico. Não se pode reconhecer 
que se exerce o poder em função de interesses particulares, pessoais ou de 
grupos que aprisionaram os que decidem35.
A cisão do homem em homem-sujeito e homem-objeto não excluía a 
referência à «natureza humana». Pelo contrário, não apenas permaneceria 
constante, mas reforçava-se na representação da «elite».
Os filósofos do século XVIII – um conjunto de autores cuja coerência 
entre si foi imaginada pelos seus adversários contrarrevolucionários como 
uma simplificação que permitia a sua diabolização, mas que foi depois para-
doxalmente confirmada pelos que vieram em sua defesa36 – não acreditam 
mais na bondade ou na racionalidade dos homens do que os doutrinadores 
cristãos de raiz tomista ou equiparada. Acreditam na possibilidade de os 
governar através de um modo regular, explorando racionalmente os seus 
34 Cartas de D. Vicente Nogueira, A. J. Lopes da Silva, ed. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1925, p. 6. 
35 Alvia de Castro, Verdadera Razon de Estado. Lisboa, Pedro Craesbeeck, 1616. 
36 Darrin M. McMahon, Enemies of the Enlightenment. The French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity. 
Oxford,Oxford University Press, 2001. 
22
Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
interesses próprios. Bonald, escritor contrarrevolucionário, opunha deste 
modo a «filosofia», que teria demonstrado a sua falência como fictícia ins-
piradora da convulsão social francesa, à «religião»: a filosofia quer conter 
a paixão pelo interesse, ou seja, regular o homem pelo homem interior e 
pela procura de um equilíbrio impossível entre o interesse e a paixão; pelo 
contrário, a religião tomava fora do homem e no próprio Deus o meio de 
conter o homem. A filosofia constituía a religião do homem, querendo 
constituir o seu governo político pelo equilíbrio das paixões interiores, 
do amor-próprio e das inclinações; pelo contrário, a natureza constituía a 
religião, constituindo o governo pelo poder e a força gerais37. Note-se que 
Bonald não atribuía aos filósofos a contestação de uma natureza humana 
marcada pelas paixões e pelos interesses, estando, pois, longe de uma defesa 
de uma bondade natural ou de uma capacidade de governo por meio da 
razão. A oposição é mais subtil: a filosofia, afirma, supõe a paixão calma e 
a razão esclarecida; a religião pressupõe a razão limitada e a paixão violenta. 
Louis de Bonald escreveu a sua teoria do poder logo após o seu exílio e a 
caricatura da filosofia ainda não teria tomado a forma que depois se viria a 
consagrar e a propagar insistentemente. Aliás, a caricatura convinha a todos 
e os vários partidos alimentaram-na.
A natureza humana permanece no século XVIII o horizonte inultra-
passável, mesmo em sistemas que assumem o carácter convencional e estri-
tamente humano do governo dos homens, caso de Hume. Nele subsiste a 
centralidade da «imperfeição [que] é inerente à natureza humana…» [Hume, 
pp. 635-636]. David Hume tem a particularidade de assinalar a condição 
dos comuns e a sua ausência do sistema de governação.
Em suma, não é a natureza humana que opõe as perspetivas. A «racio-
nalidade» dos «filósofos» estará apenas na capacidade do homem-sujeito de 
pensar e aplicar um bom governo das paixões dos homens-objeto. Tomo 
como exemplo a Politique Naturelle de Holbach. Aí se proclama a possibi-
lidade de uma «ciência do governo» que, nada tendo de sobrenatural ou de 
misterioso, remonta à natureza do homem e permite deduzir um «Sistema 
Político», um encadeamento de princípios tão seguros como os de outros 
conhecimentos humanos38.
Constatamos assim que a natureza permanece como fundamento, mas 
esta natureza opõe-se ao «sobrenatural» e ao «misterioso», sendo uma fonte 
de clareza. A frase de Helvétius que escolhi para epígrafe da segunda parte 
deste texto é a frase mais vezes proferida no campo contrarrevolucionário de 
várias épocas e que está inscrita num texto de um incontestável membro da 
37 M. de Bonald, Oeuvres, vol. II, Théorie du pouvoir et réligieux. Paris, 1854 [1796], p. 301. 
38 Holbach, Politique Naturelle ou Discours sur les vrais principes du gouvernement. 1773, I, p. v.
Ler história | N.º 69 | 2016 | pp. 7-30
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tendência «demoníaca» dos «filósofos», evidenciando deste modo o ponto 
em que a polémica se fez com um adversário que se moldou às necessidades 
da argumentação de que se dispunha.
Mas o horizonte de Kant não é diferente: «Passions actually belong to 
human beings alone; they can be satisfied only by them. These passions are 
ambition, lust of power, and avarice»39.
O desejo de dominação para afirmação de si mesmo caracterizaria 
essencialmente o homem. O homem é um animal de um senhor40. Se dele 
necessita é porque no estado de natureza está submetido à mais violenta 
das paixões, a da liberdade. Trata-se de uma liberdade de tipo anárquico 
que teve de ser submetida à disciplina. Contraditoriamente, o homem 
em guerra com o semelhante aspira a viver em paz com ele. Kant insiste 
nessa duplicidade – entrar em sociedade e também não entrar. O homem 
é habitado por uma sociabilidade insociável41. 
Não há, pois, uma acessibilidade dos homens à condição subjetiva – 
ou seja, ao governo de si mesmos –, o que há é uma alteração respeitante 
à possibilidade de os educar de modo a que se comportem «racionalmen-
te», ou seja, de forma previsível e ordeira – porque acham que o modo 
de governo que se lhes apresentou é o que melhor os defenderia. Numa 
leitura «extrema» mas fundamentada de Kant, poder-se-ia considerar que, 
sendo o comportamento do governo «racional» – ou seja, «desinteressado» 
do usufruto pessoal, abusivo, das funções –, toda a oposição às ordens seria 
ilegítima e liminarmente punível.
Espantosa é a extensão que obteve a divulgação da assinalada oposição 
entre o pessimismo «clássico» e um suposto otimismo antropológico que 
seria o centro das posições dos «filósofos» do século XVIII. A mistificação 
do papel histórico das «Luzes» prende-se com a ideia de que os «filósofos» 
se opunham a um regime anterior, alicerçado sobre um moralismo, se este 
for entendido do modo como se propõe caracterizá-lo por exemplo Alan 
Keene: «The rigid attachmnet to, investment in, and overconfidence in rules 
as means of handlind or solving social and political problems.» Na sua «strong 
form» corresponderia ao «type of discourse that speaks, acts, and calls others 
to act, from a presumed, or desired, position of moral and political purity and 
unquestionable correcteness»42.
39 Kant, Anthropology from a pragmatic point of view. Illinois, Southern Illinois UP, 1996, p. 177.
40 Kant, Idée d’une histoire universelle au point de vue cosmopolitique, 1784.
41 Michèle Crampe-Casnabet, «Le concept de discipline: Hobbes et Kant», Foisneau e Thouard [ed.] Kant et Hobbes.De 
la violence à la politique. Paris, Vrin, 2005; Ian Harris, «La communauté chez Hobbes et Kant», idem. pp. 143-162.
42 Alan Keenan, Democracy in Question: Democratic Openness in a Time of Political Closure. Stanford Stanford 
University Press, 2003, pp. 176-177. 
24
Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
Mas, em vez da unicidade de um moralismo, somos confrontados com 
a duplicidade.
As críticas dos Jansenistas aos Jesuítas ilustram de que modo o catolicismo 
romano podia ser não um moralismo, mas pelo contrário uma adaptação 
extrema ao governo-dos-homens-no-mundo, através da «casuística»43.
Do mesmo modo, Montesquieu fez a mais célebre referência ao fosso 
que subsistia no seu tempo entre a educação nas qualidades «virtuosas» 
que deveriam alegadamente guiar os humanos e a educação «do mundo», 
dada pelos pais. Estes ensinavam aos seus filhos que as regras que gover-
navam os homens eram diferentes das que a religião proclamava serem as 
desejáveis. O moralismo apenas servia para ocultar a vida-no-mundo. À 
luz da interpretação das definições feitas pelos próprios autores clássicos, 
o moralismo não era aquilo que o citado Keenan propõe como definição, 
mas um exercício cínico (como atrás se demonstrou), pelo que as «Luzes» 
apenas vinham «libertar» os humanos do mando dos que faziam uso deste 
tipo de jogo das aparências. No mundo católico (ou pelo menos neste) 
o epíteto de moralista era correntemente usado para designar o cínico 
que apregoava virtudes para esconder os seus vícios. Movimentos de tipo 
propriamente moralista nunca seriam predominantes. Os moralistas – ou 
os que eram acusados de o serem – eram criticados por negligenciarem a 
fragilidade humana e por se servirem de uma «pureza» - termo que Keene 
usa na sua proposta – para ocuparem um lugar inquestionável.
O termo pseudopastoral para designar o modo tomista de governação 
parece adequado já que o propósito pastoral enunciado – a condução das 
almas nos caminhos da salvação – serve de justificação para a inserção de um 
corpo social cujo efetivo propósito é a sua reprodução através do governo 
dos homens-no-mundo. A posição pastoral sustenta práticas pseudopastorais. 
Por isso, a cristianização das populações permaneceu sempre superficial. 
Fichte assinalou uma subordinação puramente formal anterior à que se 
contrapunha uma subordinação efetiva que imaginava que se começava a 
delinear no seu tempo. Esta envolvia a certa altura a possibilidade de um 
Estado-sem-constrangimento, mas desembocou no elogio de Maquiavel.
Sobre esta autoridade se levanta a acusação de menorização dos súbditos 
e de rigidez moralista (tomando «moralismo» como adoção literal dos textos 
revelados). A menorização parece inerente à posição pastoral, mas em vez de 
rigidez, temos a contemporização com os costumes, o clero como julgador 
estimaria o mérito ou demérito mas segundo os preconceitos e os hábitos e 
43 Serge Boaniri (ed.), La Casuistique classique: genèse, formes, devenir. Saint-Etienne, Publications de l’Université 
de Saint-Etienne, 2009.
Ler história | N.º 69 | 2016 | pp. 7-30
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não de acordo com um código de educação moral dos indivíduos. Podemos 
ter a imagem de menoridade – que tem fundamento – mas a prática paternal 
do julgador é de aceitação das fraquezas dos filhos, fraquezas que lhe são 
indispensáveis. Isto, embora, seja central o uso do medo – da morte e das 
penas infernais, pois sem elas a propensão à subordinação desvanece-se.
A condenação do poder pseudopastoral
Espinosa, condenando a compaixão, a humildade e o arrependimento, 
ou seja, o fundamento do que propus designar como poder pseudopasto-
ral, reconhece esse modo de governação dos homens: «A compaixão […] 
é uma tristeza; e por conseguinte […] é por si mesma, má»44. No «Escólio 
II» da proposição 44 da parte II, Espinosa define esperança, segurança e 
contentamento, medo, desespero e remorso. A esperança é uma alegria ins-
tável nascida de uma imagem de coisa futura ou passada de cujo resultado 
duvidamos; a segurança é sem dúvida; o contentamento é a alegria nascida 
da imagem de coisa passada de cujo resultado duvidamos. A tristeza é o 
oposto do contentamento; o medo é a tristeza instável nascida de uma 
coisa duvidosa; o desespero de uma coisa sem dúvida. [Idem, 248-249] Na 
proposição anterior alega que a alegria não é diretamente má, mas sim boa; 
a tristeza, pelo contrário, é diretamente má.
Condena a compaixão: «Aquele que é facilmente tocado pela afeção 
da compaixão e se comove com a miséria ou as lágrimas de outrem, faz 
muitas vezes uma coisa de que depois vem a arrepender-se […] porque 
somos facilmente enganados por lágrimas fingidas» [Idem, 406]. Também 
a humildade: «A humildade é uma tristeza que nasce do facto de o homem 
contemplar a sua impotência». Todo o teatro social do fingimento e do 
picaresco vê-se deste modo ser afastado.
John Burn [1793, pp. 307-308], escrevendo sobre a casuística, define-
-a como uma arte sem ciência que de diversas formas conseguiu substituir 
os princípios de conduta pelo lugar dos que ditam a lei moral. Em geral, 
estava configurada pelos costumes, mas, na história do homem, poder-se-ia 
observar a sua influência sobre todos os ramos da moral. Tomara a forma 
regular como arte entre os eclesiásticos escolásticos, entre os homens de leis 
e entre os metafísicos abstratos. Quando se observava a casuística nas suas 
operações na lei moral, constatava-se que simplesmente substituía o lugar 
das obrigações e dos princípios morais pelas estimações de mérito e demérito 
criadas a partir de preconceitos e de hábitos. Quando se observava no âmbito 
da lei das nações, trocava as aplicações da justiça, dos direitos e defesa das 
44 Espinosa, Ética, Joaquim de Carvalho, ed. Lisboa, Relógio de Água, 1992, p. 406.
26
Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
nações pelas formas e visões interessadas. Quando se observa as operações 
na política, a segurança e a independência que exigem a conservação dos 
direitos e o estabelecimento das nações são substituídas pelos sistemas dos 
homens de Estado, artificiosos e corrompidos.
Mandeville, autor da célebre fábula das abelhas, publicou um segundo 
volume de textos45 que inclui um Essai sur les écoles de charité. Neste ensaio 
defende um sistema de extremo rigor penal. Fá-lo em oposição a uma des-
crição do estado em que vivem os que designa como bandidos: movendo-se, 
podem esconder-se durante anos se evitarem o flagrante; quando apanhados, 
as provas dos delitos não apresentam clareza; os jurados e juízes são tomados 
pela compaixão; os que os perseguiam esmorecem; os que são naturalmente 
bons retraem-se se está em causa a pena de morte. Estas seriam as causas 
que faziam com que milhares de celerados escapassem à punição e a isso 
se deveria o grande número de delinquentes que arriscavam a vida na 
esperança de, sendo presos, terem a felicidade de escaparem. Mas se estes 
homens estivessem plenamente persuadidos de que seriam enforcados se 
soubessem que tinham cometido uma ação que merecia a corda, até o mais 
desesperado se iria retrair. É raro que o «canalha» seja estúpido ou igno-
rante. São, em geral, pessoas engenhosas que cometem crimes ousados e 
aproveitam o mínimo defeito dos testemunhos ou de outras provas. Melhor 
é que quinhentos culpados escapem a uma punição do que fazer sofrer um 
inocente: essa era uma verdade para a vida futura46, mas «era muito falsa 
[sic] no que respeita à felicidade temporal da sociedade» [p. 56]. Mandeville 
propõe, deste modo, um sistema de penalidade militar, de estado de exceção, 
como regra. Sem ele, as «escapatórias» são usadas de modo a distanciarem 
o pavor, que julga paralisante, da pena de morte dos delituosos. Apenas 
a pena imediata é eficaz. As leis sendo claras e severas, um afrouxamento 
na aplicação das execuções, a «doçura» dos júris, a frequência dos perdões, 
«causam realmente malesmais cruéis a um Estado que os usos da tortura 
e dos mais rudes tormentos que se podem inventar» [p. 58].
Não é a opressão clerical e o propósito de libertar dela os homens, 
mas a supressão da ineficácia disciplinar do governo pseudopastoral e o 
objetivo de tornar os homens mais produtivos e mais previsíveis o que 
move os «filósofos» na procura da «ciência da moral». Claro que estes – e 
os seus sucessores – não o poderiam reconhecer e enfatizavam os propósitos 
nominalmente libertadores. Não se pode, em suma, opor o sistema antigo 
45 La Fable des Abeilles, tomo II. Cito a partir da edição em francês feita em Londres em 1740 a partir da 6.ª edição 
em inglês.
46 O autor refere-se à vida celeste, após a morte terrena. 
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que reprimia as paixões e o novo sistema que as usava. Ambos os sistemas 
as usam – e desse modo a representação de uma natureza humana – embora 
de formas diferentes.
Os métodos de governo passavam pelo bom e produtivo uso da «natu-
reza». O amor de si, princípio do mundo moral, teria as suas regras, como 
a gravitação, princípio do mundo físico, tem as suas leis Procuravam-se, 
pois, leis equivalentes às da natureza no mundo moral. Em Robespierre 
encontrar-se-á o eco deste governo moral que seria equivalente ao condi-
cionamento reflexo.
III
«The chief advantage [do socialismo] […] would [be to] relieve us
from that sordid necessity of living for other»
Oscar Wilde, The soul of men under Socialism 
A desigualdade seria o horizonte inultrapassável do humano. Tanto no 
modo de governação «tomista» como no modo de governação «utilitarista» 
e «educativo». O único lugar de (aparente) «igualdade» são os projetos 
utópicos – que na tradição cristã tem sempre o prestígio dos «primeiros 
cristãos» - mas são um modo de governação por «massificação», ou seja, 
uniformização e rotina.
O liberalismo (onde o houve) foi uma proposta de refundação da 
desigualdade social. Não se encontra mais próximo da chamada democracia 
do que a correntemente designada «sociedade de ordens». A desigualdade 
funda-se no mérito e na riqueza e não na desigualdade legal ou no estatuto 
herdado. A novidade residiria na nova encenação da relação entre os indi-
víduos e a sua herança. Esta poderia ser ostensiva ou transmitida de forma 
subtil. A velha nobreza governava pelo fausto que para os comuns era a 
chave da sua natureza diversa, a nova dirigiria os comuns enquanto seres 
poderosos que haviam obtido a sua posição por si mesmos.
A impossibilidade legalmente consagrada da agregação dos indivíduos 
em corpos intermédios constitui a manifestação mais evidente da atomização 
como propósito consciente de modulação social47.
Este modo de governo, assente nos homens que se destacavam e criavam 
zonas sociais de subordinação, não vingou e a pressão da urbanização levou 
à passagem da perceção da democracia como a ameaça de um regime da 
47 Sobre o papel do calvinismo: Fernando Dores Costa, As raízes culturais da desigualdade disciplinar – a persis-
tência da referência ao «calvinismo». (Notas para um ensaio), apresentado ao XXXVº Encontro da APHES, 2015, 
consultável em Academia.edu.
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
plebe nas ruas para a mesma democracia como o uso ordeiro da massifica-
ção, no âmbito do «liberalismo real», contra as elites políticas democráticas 
e socialistas. No início do século receava-se o sufrágio «universal», no final 
podia ser um instrumento «conservador».
A continuidade entre as inspirações liberal e democrática é falsa 
(embora insistentemente feita) mas tem uma «verdade paradoxal»: sendo 
a reposta ao fracasso da matriz liberal, corresponde ao uso das clientelas a 
uma escala que permite a encenação da democracia. A democracia tomada 
como sufrágio universal masculino e depois também feminino centra-se 
no período anterior e imediatamente posterior à Grande Guerra, período 
de dramática mobilização dos comuns. À luz do panorama em meados da 
década de 1930, surge como um expediente da arte política ligado a essa 
mobilização.
O termo democracia provém de uma longínqua tradição e tinha ainda 
há duzentos anos uma conotação universalmente negativa – que perdurou 
em correntes nascidas no século XIX e quase hegemónicas na primeira 
metade do século XX.
Democracia faria parte de uma tríade clássica de regimes de matriz 
aristotélica. Na verdade, os regimes são seis, juntando-se aos três iniciais, 
virtuosos, as suas formas perversas: a tirania, a oligarquia e a oclocracia. Qual 
é o critério de classificação? O critério clássico é o do número de agentes 
que têm participação nas decisões: um único na monarquia, um grupo de 
homens socialmente destacados na aristocracia ou um grande número de 
homens livres na democracia.
Mas todos os regimes são, na prática, mistos. A classificação destaca a 
força predominante do sistema, mas todas as autoridades procuram o efeito 
de retorno dos restantes grupos. Manter satisfeita a plebe é o retorno das 
técnicas de «pão e circo» das formas monárquica, aristocrática ou mista. 
Essa satisfação não deixa de fazer parte do sistema, reproduzindo a plebe 
enquanto tal.
A democracia é apresentada em geral de forma simplificada através 
dos mecanismos de legitimidade constitucional: a separação de poderes, as 
liberdades fundamentais, o sufrágio universal. Mas a democracia deve ser 
vista praticamente como um regime misto.
Não se trata de uma outra forma de apresentação da separação de 
poderes, mas da consideração da articulação de três fontes de autoridade: 
a autoridade «monárquica», o poder militarista e policial, secretista, na 
continuidade da razão de Estado clássica; a autoridade «aristocrática», o 
poder dos detentores dos novos senhorios, as «empresas», e senhores da 
pena de morte social, o despedimento, a ameaça de aniquilação; a auto-
ridade «democrática», por fim, através do sufrágio periódico que legitima 
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uma escolha de que é de facto muito limitada. A política é o espetáculo 
e a escolha recai sobre os atores principais. Criar a ilusão da participação 
nas decisões é a mais eficaz das técnicas da arte política. Paradoxalmente, 
alimenta a indiferença «voluntária».
A desigualdade como horizonte inultrapassável fundamenta-se tanto no 
modo de governo «tomista» como na sua crítica «filosófica» na constatação 
da mais pura evidência. «Como imaginar uma outra situação?» A maior 
parte das populações vive em estado de subsistência ou próximo. O seu 
horizonte de vida é muito limitado. Esta condição não é sequer um objeto 
de reflexão, pois é percebida como óbvia. Viver subordinado a alguém ou 
governar os seus subordinados ocupa a atenção de quase todos e é a «vida».
Neste horizonte está a relação dos homens com a Natureza enquanto 
fonte dos meios de reprodução, uma relação elementar e precária, predo-
minando o estado de necessidade.
O capitalismo – ou seja, o capitalismo como modo de produção e não 
apenas como jogo financeiro – modifica este panorama pelos seus efeitos 
na capacidade produtiva global. Apesar da desigualdade à escala mundial 
e dentro de cada região, grande parte da população pôde ser libertada da 
agricultura de subsistência e da produção de excedentes para as rendas das 
classes dominantes.
Claro que grande parte da capacidade produtiva libertadora do estado 
de necessidade permanece potencial pois os mediadores sociais impedem a 
sua acumulação e distribuição. O critério de desenvolvimento deve ser o do 
tempo de trabalho socialmente necessário para a reprodução social global 
e, consequentemente, o tempo livre libertado.
Este papel revolucionário atribuído ao capitalismo poderia ser visto 
com suspeita de inspiração religiosa, já que seria apenas uma variante da 
visão de como as paixões egoístas e eticamente condenáveis – a ganância – 
poderiam ter um papel socialmente positivo. A divindade agiria na história 
humana não através da virtude,mas usando as paixões, o que se encontra 
também presente na doutrina dos «grandes homens»48. Mas a capacidade 
produtiva acumulada contraria objetivamente a suspeita de uma funda-
mentação teleológica.
A «empresa» ou o atrás referido moderno senhorio pode ter um papel 
positivo enquanto suporte da introdução da inovação produtiva, mas não 
pode por natureza gerir a socialização dos benefícios sociais dessa inovação, 
pois o seu critério é aumentar o tempo de trabalho de um número cada vez 
menor de trabalhadores. Também a «nacionalização», ou seja, a estatização, 
não garante essa socialização. 
48 Hegel, La Raison dans l’Histoire, Papionoannou, ed. Paris, 2006. 
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Fernando Dores Costa | O estigma da «natureza humana»
como fundamento para os modos de governação
Uma coisa parece certa: o capitalismo-matricial, o financeiro, revolu-
cionário quando entra no processo produtivo, destrói, como previam os 
clássicos, os efeitos dessa entrada. Este capitalismo pode reproduzir-se em 
circuito fechado, sem entrar na esfera produtiva e sem inovação na capa-
cidade produtiva, como fazia nos séculos mais longínquos. Pelo paradoxal 
desinvestimento, muita da capacidade produtiva acumulada é inevitavel-
mente destruída.

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