Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Livro do Professor Filosofia Volume 7 © Editora Positivo Ltda., 2015 Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) (Maria Teresa A. Gonzati / CRB 9-1584 / Curitiba, PR, Brasil) Presidente: Ruben Formighieri Diretor-Geral: Emerson Walter dos Santos Diretor Editorial: Joseph Razouk Junior Gerente Editorial: Júlio Röcker Neto Gerente de Arte e Iconografia: Cláudio Espósito Godoy Autoria: Alexandre Martins; reformulação dos originais de Michele Czaikoski Silva Supervisão Editorial: Jeferson Freitas Edição de Conteúdo: Lysvania Villela Cordeiro (Coord.) e Michele Czaikoski Silva Edição de Texto: Kathia Gavinho Paris Revisão: Chisato Watanabe e Priscila Rando Bolcato Supervisão de Arte: Elvira Fogaça Cilka Edição de Arte: Cassiano Darela Projeto Gráfico: YAN Comunicação Ícones: ©Shutterstock/ericlefrancais, ©ShutterStock/Myvector, ©Shutterstock/Macrovector, ©Shutterstock/Goritza, ©ShutterStock/style-photography e ©Shutterstock/Chalermpol Imagens de abertura: ©Shutterstock/Arthimedes e ©Shutterstock/Stokkete Editoração: Rosana da Silva Cunha Ilustrações: DKO Estúdio Pesquisa Iconográfica: Janine Perucci (Supervisão) e Júnior Guilherme Madalosso Engenharia de Produto: Solange Szabelski Druszcz Produção Editora Positivo Ltda. Rua Major Heitor Guimarães, 174 – Seminário 80440-120 – Curitiba – PR Tel.: (0xx41) 3312-3500 Site: www.editorapositivo.com.br Impressão e acabamento Gráfica e Editora Posigraf Ltda. Rua Senador Accioly Filho, 431/500 – CIC 81310-000 – Curitiba – PR Tel.: (0xx41) 3212-5451 E-mail: posigraf@positivo.com.br 2018 Contato editora.spe@positivo.com.br Todos os direitos reservados à Editora Positivo Ltda. M386 Martins, Alexandre. Filosofia : ensino médio / Alexandre Martins ; reformulação dos originais de: Michele Czaikoski Silva ; DKO Estúdio. – Curitiba : Positivo, 2016. v. 7 : il. Sistema Positivo de Ensino ISBN 978-85-467-0392-0 (Livro do aluno) ISBN 978-85-467-0393-7 (Livro do professor) 1. Filosofia. 2. Ensino médio – Currículos. I. Silva, Michele Czaikoski. II. DKO Estúdio. III. Título. CDD 373.33 07 Sumário Filosofia Política: da Antiguidade ao Renascimento ............................................. 4 Pólis ideal ....................................................................................................... 7 Animal político ............................................................................................... 11 Cidade de Deus e Cidade dos Homens ............................................................. 16 Direito divino de governar .............................................................................. 20 Ética x política ................................................................................................ 23 Acesse o livro digital e conheça os objetos digitais e slides deste volume. Filosofia Política: da Antiguidade ao Renascimento Ponto de partida 07 1. Levando em conta a imensidade territorial e populacional do Brasil, seria possível viver aqui sem nenhum tipo de governo, autoridade ou poder organizado? 2. Grupos sociais menores podem conviver sem esses elementos? 3. O que você entende por política? 4. É possível viver em sociedade, sem política? 5. Que modelo de política seria ideal para promover uma sociedade justa? 1 De acordo com o Censo de 2015 do IBGE, o Brasil é o 5.° maior país do mundo, com um território de 8 515 767,049 km² e 205 971 359 habitantes. ©Shutterstock/michal812; ©Shutterstock/Blvdone 4 A Filosofia Política reflete sobre a vida humana em sociedade e as melhores formas de go- verno. Além disso, aborda questões como a justiça social e a garantia dos direitos humanos, que são fatores fundamentais para um bom convívio social. Nesta unidade, você conhecerá um pouco da obra de pensadores que investigaram temas relacionados à política, desde a Antiguidade até o Renascimento. a humana em sociedade e as melhores formas de go- mo a justiça social e a garantia dos direitos humanos, A palavra “política” pode ser utilizada com vários sentidos, aplicados a diversos contextos, mas, por definição, ela remete a ideias como poder e organização. Ela deriva do termo grego “pólis”, que em geral é traduzido como “cidade” (conjunto dos cidadãos e sua forma de organização social). No entanto, é importante percebermos que o modelo grego de cidade se parece mais com o que atualmente chamamos de Estado, ou seja, o conjunto dos po- deres políticos de uma nação. Por isso, a pólis grega costuma ser definida como Cidade-Estado. No âmbito da Filosofia Política, a palavra “política” tem os sentidos de governo e de ação coletiva de grupos so- ciais organizados, que estabelecem leis e obedecem a elas. Essa compreensão surgiu com base em ideias e práticas greco-romanas. Por exemplo, na Grécia, o governo de Sólon sobre Atenas foi o primeiro a descentralizar o poder, até então concentrado nas mãos dos aristocratas (famílias nobres), organizando os cidadãos para a chamada ta politika, isto é, a participação ativa na pólis. Esse processo deu origem à democracia (demos: muitos; kracia: poder), na qual os cidadãos participavam diretamente do poder, sem a necessidade de representantes. Esse modelo de democracia ficou conhecido como democracia direta. Em Roma, por sua vez, a política recebeu o nome de res publica, expressão que significa “coisa pública”. Nesse contexto, a civitas (similar romana da pólis) era entendida como o conjunto de instituições públicas e sua corres- pondente administração pelos cidadãos – excluindo, das decisões políticas, as mulheres, as pessoas escravizadas e os estrangeiros, assim como ocorria em Atenas. Porém, diferentemente do modelo político ateniense, em Roma a democracia era indireta, ou seja, havia eleição de representantes para o Senado, e eles governavam em nome da população – modelo mais próximo ao dos regimes democráticos da atualidade. Para ler e refletir Os modelos governamentais e de organização coletiva podem variar entre as sociedades, mas a política é conside- rada uma condição necessária para a vida social. Sendo assim, diversos pensadores refletiram, e ainda refletem, sobre essa necessidade, indagando qual o modelo político capaz de garantir o bem comum. Essa reflexão sobre as relações entre a política e a forma como vivemos também está presente na literatura e inspirou o conto A sereníssima República, de Machado de Assis. Nele, o narrador cria uma nova sociedade, bastante peculiar. Para isso, julgou ne- cessário fundar um sistema político, ou restaurar um antigo, já em desuso, em vez de utilizar algum sistema vigente, para evitar comparações e conflitos. Entre esses dois caminhos possíveis, escolheu restaurar o sistema político da República de Veneza, conhecida ainda como “A sereníssima”. A República de Veneza, ou República Se reníssima, existiu do século IX ao XVIII. Sua Justiça era consi- derada exemplar, pois todo acusado tinh a direito à defesa, o rigor dos julgamentos era o me smo para qualquer classe social e os governantes ta mbém se submetiam às leis, podendo ser executad os se não governassem com honestidade. 2 Encaminhamento metodológico. 5 A sereníssima República (Conferência do cônego Vargas) [...] Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe perguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, como vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articulado arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu. [...] Sim, senhores, descobri uma espécie araneídea que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apare- ceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, trans- versais,tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. [...] Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestes talares, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortale- ceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música. Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alvi- tre, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epíteto. [...] Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágio; a mim não. Ele exclui os desvarios da paixão, os desazos da inépcia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tra- tando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena. [...] A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roça- gante, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. [...] Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1947>. Acesso em: 21 jul. 2015. 3 Encaminhamento metodológico. 4 Encaminhamento metodológico. 5 Orientação didática. A sereníssima República (Conferência do cônego Vargas) [...] Senhores, vou assombrar-vos, como teria assombrado a Aristóteles, se lhe pererrrrggguntasse: Credes que se possa dar um regime social às aranhas? Aristóteles responderia negativamente, como vós todos, porque é impossível crer que jamais se chegasse a organizar socialmente esse articuladoaarrttiicucuullaadodo arisco, solitário, apenas disposto ao trabalho, e dificilmente ao amor. Pois bem, esse impossível fi-lo eu. [...] Sim, senhores, descobri uma espécie araneídea que dispõe do uso da fala; coligiccoolligiigigi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apare- ceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubrorrubroubbroro, com listras azuis, trans- versais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis. [...] Dentro de um mês tinha comigo vinte aranhas; no mês seguinte cinquenta e cinco; em março de 1877 contava quatrocentas e noventa. Duas forças serviram principalmente à empresa de as congregar: o emprego da língua delas, desde que pude discerni-la um pouco, e o sentimento de terror que lhes infundi. A minha estatura, as vestveestesveessteetees talarestataallaareerees, o uso do mesmo idioma, fizeram-lhes crer que era eu o deus das aranhas, e desde então adoraram-me. E vede o benefício desta ilusão. Como as acompanhasse com muita atenção e miudeza, lançando em um livro as observações que fazia, cuidaram que o livro era o registro dos seus pecados, e fortale- ceram-se ainda mais na prática das virtudes. A flauta também foi um grande auxiliar. Como sabeis, ou deveis saber, elas são doidas por música. Não bastava associá-las; era preciso, dar-lhes um governo idôneo. Hesitei na escolha; muitos dos atuais pareciam-me bons, alguns excelentes, mas todos tinham contra si o existirem. Explico-me. Uma forma vigente de governo ficava exposta a comparações que poderiam amesquinhá-la. Era-me preciso, ou achar uma forma nova, ou restaurar alguma outra abandonada. Naturalmente adotei o segundo alviaalvilvvii- trtrrtreere, e nada me pareceu mais acertado do que uma república, à maneira de Veneza, o mesmo molde, e até o mesmo epítetoeeppítíteteetooto. [...] Entre os diferentes modos eleitorais da antiga Veneza, figurava o do saco e bolas, iniciação dos filhos da nobreza no serviço do Estado. Metiam-se as bolas com os nomes dos candidatos no saco, e extraía-se anualmente um certo número, ficando os eleitos desde logo aptos para as carreiras públicas. Este sistema fará rir aos doutores do sufrágiosusuufrfrárággioágigiooio; a mim não. Ele exclui os desvariodde variosesvsvavaarrioioos da paixão, os desazos ddeessaazoozoos da inépciaiinénééppcciaia, o congresso da corrupção e da cobiça. Mas não foi só por isso que o aceitei; tra, - tando-se de um povo tão exímio na fiação de suas teias, o uso do saco eleitoral era de fácil adaptação, quase uma planta indígena. [...] A proposta foi aceita. Sereníssima República pareceu-lhes um título magnífico, roçaroroçaoççaa- ganteganteganantnteete, expansivo, próprio a engrandecer a obra popular. , [...] Com efeito, desde que compreenderam que no ato eleitoral estava a base da vida pública, trataram de o exercer com a maior atenção. ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquiisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1947>. Acesso em: 21 jul. 2015. 3 Encaminhamento metodológico. 4 Encaminhamento metodológico. 5 Orientação didática. articulado: espécime dotado de articulações. coligir: agrupar, reunir. rubro: cor vermelha de tonalidade bastante acentuada. vestes talares: roupas características dos sacerdotes, cuja origem remonta aos trajes dos religiosos da Roma Antiga. alvitre: conselho, recomendação, sugestão. epíteto: expressão acrescentada a um nome para qualificá-lo. sufrágio: votação. desvario: loucura, desregramento. desazo: falta de jeito, inaptidão. inépcia: falta absoluta de aptidão. roçagante: que passa levemente. D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. 6 Volume 7 1. O conto narra a criação de uma sociedade politicamente organizada, cujos membros eram aranhas. A organização política é uma exclusividade humana ou existe entre outras espécies de seres vivos? Explique e justifique seu ponto de vista. 2. No conto, o personagem criado por Machado de Assis optou pela retomada de um sistema político antigo para fundar uma sociedade fictícia. Exercite sua imaginação percorrendo o caminho contrário: imagine-se com a oportunidade de instituir e governar uma sociedade. Então, crie e descreva um sistema político para organizar a convivência de seus membros. 6 Orientações para as respostas. Pólis ideal Platão viveu em Atenas, no período clássico, mar- cado pela democracia. Pertencendo a uma família da aristocracia da cidade, estava destinado ao exercício da política. Cedo, porém, tendo como referência o episódio da execução de Sócrates, ele sedecepcio- nou com a democracia ateniense, julgando-a cor- rupta e injusta. Além disso, Platão denunciou o fato de que, nesse regime, havia grande espaço para a retórica, por meio da qual os cidadãos tentavam in- fluenciar uns aos outros nas decisões tomadas em praça pública, utilizando-se de discursos para defen- der opiniões nem sempre justas ou verdadeiras. Desse modo, a aparência e a persuasão contavam mais do que a verdade. Por isso, em oposição à retórica, esse filósofo defendia a dialética, um método de raciocí- nio e discurso que confrontava os conceitos apresentados num diálogo a fim de estabelecer significados rigorosos e verdadeiros. Ele via na dialética o fundamento necessário para a política ideal que descreveu no diálogo A República. Segundo Platão, o modelo ideal de pólis (a Politeia ou República) deveria oferecer lugares fixos aos cidadãos, de acordo com a natureza de cada um. Ele acreditava que essa natureza seria revelada pelos indivíduos no decorrer de um processo educativo, a paideia, que se dividiria em três etapas: DAVID, Jacques-Louis. A morte de Sócrates. 1787. 1 óleo sobre tela, color., 130 cm × 196 cm. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque. Para Platão, a morte de Sócrates, sob a acusação de corromper a juventude, foi a prova de que a democracia não era o sistema político mais correto e justo, porque abria a possibilidade de se agir a favor de interesses pessoais. 7 Orientação didática. Inicialmente, a palavra paideia (de paidos: criança) significava “criação de menino s”. Na obra de Platão, passou a definir u m modelo de educação capaz de preparar os cidadãos para viver na pólis ideal. Na primeira etapa, o aprendizado deveria acontecer em locais de trabalho, com uma perspectiva técnica, basea- da na repetição de atividades produtivas. Os indivíduos que não demonstrassem aptidão para progredir a outros estágios seriam incluídos na classe dos produtores. Na segunda etapa, o aprendizado teria como princípios a coragem e a moderação. Ela é conhecida como edu- cação musaica, sendo composta de ginástica, poesia e música, sem utilizar discursos falsos, como Platão julgava serem os poemas de Homero e as peças teatrais de sua época. Nessa etapa, o êxito na ginástica demonstraria potencial para viver com simplicidade, além de preparar os indivíduos para a guerra. Os que se destacassem nesse contexto, mas não demonstrassem interesse em se aprofundar nos estudos, passariam a compor a classe dos guardiões ou guerreiros. Na terceira etapa, os estudos incluiriam Matemática, Aritmética, Geometria e Astronomia. Os que se mostrassem mais aptos nessas ciências seriam encaminhados ao estudo da dialética, para desenvolver uma visão racional da realidade, guiada pela ideia do Bem. Quem se destacasse também nesse novo estudo formaria a classe dos magis- trados e os melhores entre eles poderiam se tornar governantes. Logo, o governante ideal platônico seria o filósofo. M et ro po lit an M us eu m o f A rt , N ov a Io rq ue , E st ad os U ni do s/ Fo tó gr af o de sc on he ci do N d N N m Filosofia 7 indolente: ocioso, preguiçoso. passional: que age movido pelas paixões. Um aspecto relevante do pensamento político de Platão é a comparação que ele estabeleceu entre o governo ideal da Politeia e o autogoverno, ou seja, aquele que os indivíduos deveriam exercer sobre si mesmos. Assim, as três classes sociais formadas nas diferentes etapas da educação corresponderiam às três partes da alma humana: Platão afirmava a necessidade do respeito à hierarquia, que julgava natural, entre as partes da alma: a racional – sábia, corajosa e moderada – deveria conduzir a irascível, e ambas deveriam controlar a apetitiva. Assim, os indiví- duos poderiam manter sob controle os desejos ligados à vida sensível e seus impulsos emotivos, subordinando-se inteiramente à razão. Da mesma forma, o filósofo defendia o respeito à hierarquia entre as classes sociais: os governantes deveriam orientar a atividade dos guardiões e ambos, a dos produtores. Disso dependeria o estabelecimento da política ideal, fundamentada no bem comum e na justiça, cuja meta seria alcançar o bem supremo. Sendo assim, Platão afirmava ainda que a Politeia deveria evitar a propriedade individual de riquezas, a poesia imitativa e outras artes que desper- tassem as paixões humanas. Além disso, deveria submeter os prazeres a rígidas normas, para que estes não corrom- pessem os indivíduos e as classes sociais, tornando-os indolentes e passionais. Por pensar dessa maneira, Platão entendia que o governo poderia ser monárquico (exercido por um rei) ou aris- tocrático (exercido por uma elite). Porém, somente os filósofos seriam capazes de governar, por serem os únicos dotados de disciplina moral e intelectual suficiente para administrar a pólis e a si próprios, pelo bom uso da razão. Isso porque, em seu entendimento, apenas os filósofos poderiam ir além das aparências e alcançar as essências, como as ideias de bem e justiça. Nessa perspectiva, a justiça era considerada a correta organização entre as partes da alma, para o indivíduo, e en- tre as classes sociais, para a cidade ideal. Isso abria a possibilidade do recurso à mentira, da parte do governante filóso- fo, pelo bem dos cidadãos, uma vez que ele representava o prisioneiro da alegoria (ou mito) da caverna que conheceu a verdade e, portanto, deveria educar os demais prisioneiros. Porém, tal como na alegoria, os vícios e as ilusões de seus companheiros certamente dificultariam sua tarefa, assim como os desejos e a impetuosidade não dominados dificul- tavam a busca da alma racional pela sabedoria. Portanto, a fim de ser justo e bom, esse governante singular deveria estar acima de qualquer lei escrita e fixa, agindo com discernimento e de acordo com as necessidades em cada caso. Alma racional (representada pelos governantes) – Capaz de conhecer a verdade e alcançar as essências no mundo inteligível. Alma irascível (representada pelos guerreiros) – Responsável pela defesa do indivíduo, que deveria manter a coragem, mas também moderar a agressividade. Alma apetitiva ou concupiscível (representada pelos produtores) – Sede dos desejos, capazes de promover a sobrevivência do corpo, mas que deveriam ser atendidos com moderação. Questione as diferenças que os alunos percebem entre o Estado ideal platônico e o atual Estado brasileiro, considerando: a hierarquia social, a propriedade individual de riquezas e a presença de formas de entretenimento capazes de despertar as paixões humanas. © Sh u tt er st oc k/ A n n a Ra ss ad n ik ov a 8 Volume 7 Para ler e refletir Você acredita que as pessoas já nascem com destinos e papéis sociais definidos ou têm escolha nesse sentido? Reflita sobre isso e registre as conclusões a que chegou. Leia, a seguir, um trecho da obra A República, de Platão. Trata-se de um diálogo entre os personagens Sócrates e Glauco. Nele, Sócrates propõe o uso de um mito para garantir que, no Estado ideal platônico, os indivíduos ocupassem apenas os cargos adequados à sua suposta natureza. Com o propósito de justificar a distinção entre as classes sociais na Politeia, Platão valeu-se de um mito. Segundo ele, um deus havia colocado ouro na alma dos filósofos, prata na alma dos guerreiros, bronze e ferro na alma dos agricultores e outros artesãos. – Então, no caso das mentiras necessárias de que falamos agora, que jeito teríamos de dizer uma mentira, única e genuína, com ela persuadindo principalmente os próprios chefes e, se não, o resto da cidade? – Que mentira? disse. – Não se trata de nada de novo, disse eu, mas de uma história fenícia que, já em tempos passados, ocorreu em muitos lugares, como nos dizem e fazem crer os poetas, mas não aconteceu em nossos dias nem nunca mais aconteceu nem sei se aconteceria... Mas persuadir-nos disso exigiria um longo processo de persuasão... – Estás com jeito, disse,de quem hesita em falar! – Acharás, disse, quando eu falar, que é muito natural que hesite. – Fala, disse, e não tenhas medo! – Falo sim... Embora não saiba que ousadia nem que palavras eu vou usar, falarei tentando, em primeiro lugar, convencer os próprios chefes e os soldados, em seguida, também o resto da cidade, de que aquilo com que os nutrimos e educamos, tudo isso, como se fossem sonhos, eles acreditavam que se dera com eles e a eles dizia respeito, mas, na verdade, tinham sido plasmados e nutridos sob a terra, eles próprios, as suas armas e o restante de seu equipamento; e, quando estavam completamente formados, mãe que era, a terra os trouxe à luz, e agora é preciso que deliberem sobre a terra que habitam e a defendam como se ela fosse sua mãe e nutriz, se alguém a atacar, e também que pensem nos outros cidadãos como irmãos seus, nascidos da terra. – Não admira, disse, que há pouco tenhas relutado em dizer essa mentira! – É bem natural, disse eu. Mas, mesmo assim, ouve o resto do mito. Todos vós que estais na cidade sois ir- mãos, como diremos ao fazer o relato, mas, ao plasmar-vos, o deus, no momento da geração, em todos os que eram capazes de comandar misturou ouro, e por isso são valiosos, e em todos os que eram auxiliares daqueles misturou prata, mas ferro e bronze nos agricultores e outros artesãos. Já que todos vós sois da mesma estirpe, no mais das vezes, geraríeis filhos muito semelhantes a vós mesmos, mas, às vezes, do ouro seria gerado um filho de prata, e, da prata, um de ouro, e assim com todas as combinações de um metal com outro. Aos chefes, como exigência primeira e maior, ordenou o deus que de nada mais fossem tão bons guardiões quanto de sua prole, nem nada guardassem com tanto rigor, procurando saber que mistura havia na alma deles e que, se um filho tivesse dentro de si um pouco de bronze ou de ferro, de forma alguma se compadecesse dele, mas que o relegasse, atribuindo-lhe o valor adequado à natureza, ao grupo dos artífices e agricultores. Mas, em compensação, se um deles tivesse em si um pouco de ouro ou prata, reco- nhecendo-lhe o valor, fizesse que uns ascendessem à função de guardião e outros à de auxiliares, porque havia um oráculo que previa que a cidade pereceria quando um guardião de fer- ro ou bronze estivesse em função. [...] PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 128-129. © Sh u tt er st oc k/ D m itr ijs M ih ej ev s 8 Orientações para a resposta. Filosofia 9 1. De acordo com Platão, quem reunia as condições necessárias para governar a pólis ideal e que condições eram essas? Para Platão, somente o filósofo teria condições de governar a pólis ideal, por suas virtudes e por conhecer as essências, inclusive a da justiça e a do bem. 2. Em sua opinião, que critérios devem ser utilizados para escolher um bom governante? Justifique sua resposta. Pessoal. Podem ser considerados valores como honestidade e justiça, além de habilidades administrativas ou de comunicação, entre outros critérios. A justificativa é parte importante da resposta. Podem-se aproveitar as reflexões que os alunos sistematizarem nesta questão para discutir se eles acreditam que esses critérios foram atendidos na escolha dos governantes da cidade, do estado ou mesmo do país em que vivem e, caso não tenham sido, questionar o(s) porquê(s). 3. Posicione-se criticamente em relação ao modelo de Estado idealizado por Platão. Cite os aspectos que você considera positivos e negativos, justificando essas opiniões. Pessoal. Os alunos devem elencar alguns aspectos que considerem positivos e negativos na proposta política de Platão, explicando o motivo dessas escolhas. A atividade deve envolver uma retomada do conteúdo da unidade, mas também pode abarcar a pesquisa de novos trechos da obra A República, possibilitando uma maior fundamentação das opiniões. Reflexão em ação ConexõesConexões 9 Orientações para as respostas. 1. Para manter a harmonia na cidade, Platão sugeria que o governante recorresse a um mito. Atualmente, o Estado utiliza “mitos” para manter a ordem social? Justifique sua resposta. 2. Leia a notícia e realize a atividade proposta a seguir. W3 Norte: também chamada de Avenid a Norte, é uma via secundária que se localiza na A sa Norte, bairro da região administrativa de Brasília , Distrito Federal. De lixeiro a médico: brasiliense vence pobreza e se forma em medicina [...] Das latas de lixo, o brasiliense Cícero Batista Pereira, 33 anos, recolhia as verduras e os livros. Com o que os outros descartavam, ele se alimentava e também cursou o ensino fundamental e desenvolveu o interesse pela ciência. Na adolescência, fez curso técnico em enfermagem e teve a certeza de que a área de saúde era o caminho dele. Para chegar até o di- ploma de medicina [...], Cícero cruzou a W3 Norte incontáveis vezes. A cada parada de ônibus, vasculhou as prateleiras do projeto Biblioteca Popular, do Açougue Cultural, em busca de títulos que o ajudassem na preparação para o vestibular. O hábito se manteve na graduação. 10 Volume 7 O ex-catador, nove irmãos e a mãe moravam na Nova QNL, o Chaparral, entre Taguatinga e Ceilândia. Eles percorriam os con- têineres de supermercados e verdurarias da cidade para abastecer a casa. No horário contrário ao das aulas, Cícero também vigiava carros em busca de trocados para colaborar com o sustento. “Se a gente não comia, não tinha como estudar”, lembra. [...] [Depois de muito batalhar e en- frentar toda sorte de problemas e dificuldades, sobretudo, por não aceitar seu destino,] Cícero se formou na Faculdades Integradas da União Edu- cacional do Planalto Central (Faciplac). Hoje, com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) e planos de se especializar em psiquiatria, Cícero ainda se surpreende com a trajetória dele. “O doutor Cícero ainda soa diferente, não caiu a ficha. Sinto muito orgulho de ter chegado até aqui e entendo que tenho a obrigação de ser um bom médico, em consi- deração a todos os que acreditaram em mim”, afirma, com um sorriso de agradecimento. Nova QNL, o Chaparral, entre Taguati nga e Ceilândia: uma parte do Setor L Nort e de Taguatinga, formada pelas quadras pare s de 14 a 30. Localiza-se na divisa de Tagua tinga com Ceilândia, no Distrito Federal. Platão acreditava que filósofos, guerreiros e artesãos eram diferentes entre si por natureza. Então, concebia uma sociedade com lugares sociais predeterminados e fixos. Tomando como referência o caso de Cícero, aponte seme- lhanças e diferenças entre o modelo platônico de sociedade e a realidade brasileira. “Sinto muito orgulho de ter chegado até aqui”. DE LIXEIRO a médico: brasiliense vence a pobreza e se forma em medicina. Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.diariodepernambuco. com.br/app/noticia/brasil/2014/06/09/interna_brasil,509006/de-lixeiro-a-medico-brasiliense-vence-pobreza-e-se-forma-em-medicina.shtml>. Acesso em: 21 jul. 2015. Animal político Aristóteles foi aluno de Platão em sua Academia, mas, apesar de existirem algumas semelhanças entre os pensamen- tos de ambos, construiu uma filosofia original e crítica em relação às teorias de seu mestre. Ele manteve, por exemplo, a ideia de que o bem comum e a justiça constituíam os fundamentos da política. Contudo, questionou alguns aspectos da teoria platônica, tais como: a falta de uma descrição mais clara sobre a forma de vida da classe produtora e a ausência de propriedade privada na Politeia – ainda que Aristóteles também defendesse a moderação das riquezas. Além disso, enquanto Platão comparava o Estado à alma do indivíduo, Aristóteles comparava-o a uma família, na qual o chefe exercia seu poder sobre as mulheres, as crianças e as pessoas escravizadas a seu serviço. Porém, o filósofo ressaltava que esta não era uma comparação totalmente precisa, pois havia uma diferença de espécie entre a autoridade política e a familiar. D .A P re ss /Bre n o Fo rt es /C B © Sh u tt er st oc k/ Br u es Jus tiça dis trib utiv a – d ivisã o do s be ns eco nôm icos , ist o é, dar a c ada um aqu ilo q ue l he f oss e dev ido, con form e su as dife ren tes nec ess idad es. Justiça participativa – organização do poder político, de modo que os cidadãos (os iguais) tivessem a oportunidade de participar igualmente do governo. No exercício da autoridade política, Aristóteles atribuía grande valor às leis escritas, propondo que o governante se submetesse a elas, por meio de uma constituição, ou seja, de uma organização prévia e hierárquica das autoridades presentes na pólis. Assim, a concepção aristotélica de Estado re- feria-se a um conjunto formado pelos cidadãos e pelos atos de governo, sendo ambos regidos por uma constituição capaz de promover a virtude e o bem comum, aspectos relacionados ao conceito de justiça. Este, por sua vez, o filósofo dividia em justiça participativa e justiça distributiva. Filosofia 11 Quanto às formas de governo, diferentemente de Platão, que não concordava com a democracia por considerá-la refém da retórica, Aristóteles aceitava o governo constitucional de muitos (poli ou demos). Para ele, em vez de esperar a virtude perfeita encarnada pelo governante filósofo, era preferível contar com a soma das virtudes parciais dos cidadãos, aos quais definia como “os iguais”. Afinal, segundo esse pensador, o exercício da cidadania estava ligado à busca do bem comum, que deveria estar sempre acima do individual, já que uma cidade poderia ser autossuficiente, mas os indivíduos isolados, não. Nesse aspecto, porém, vale lembrar que a concepção aristotélica de cidadania não contemplava todos os membros da cidade. Ela excluía mulheres, estrangeiros, pessoas escravizadas ou economicamente pobres, o que o filósofo procurava justificar afirmando haver diferenças naturais entre os seres humanos. Segundo ele, a igualdade entre os cidadãos se dava em razão de suas qualidades superiores, conforme você pode observar no texto a seguir. “A pretensão ao exercício de altas funções deve fundar-se necessariamen- te em superioridade nas qualidades essenciais à existência da cidade; logo, é razoável a pretensão dos homens bem nascidos, livres e ricos, a honrarias inerentes ao exercício de altas funções, pois deve haver homens livres e deve haver contribuintes para o tesouro público, já que não poderia haver uma ci- dade inteiramente constituída de homens pobres e escravos. Admitindo-se, então, que isto seja necessário, evidentemente há também necessidade de justiça e talento político, igualmente indispensáveis à administração de uma cidade, com a diferença de que riqueza e liberdade são indispensáveis à própria existência da cidade, enquanto a justiça e o talento político são in- dispensáveis à sua boa administração”. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário de Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. Capítulo VII, 1283a. Aristóteles não acreditava em uma forma de Estado perfeita em si mesma. Ele analisou minucio- samente as constituições de sua época e a proposta platônica para um governo ideal. Assim, avaliando as vantagens e as deficiências de cada uma, concluiu que poderia haver bons governos com o poder nas mãos de apenas uma pessoa, mas também de al- gumas pessoas ou de muitas. Afinal, seu valor seria determinado pela constituição utilizada, a qual, por sua vez, poderia e deveria se modificar no decorrer do tempo, caso isso se mostrasse necessário. Destaca-se, ainda, nas obras aristotélicas, a no- ção de política natural, ou seja, da política como parte da natureza (essência) humana, considerada, ao mesmo tempo, racional e sociável. Aristóteles chegou a definir o ser humano como um animal político (zoon politikon), naturalmente voltado à justiça, ao bem comum e à felicidade. Segundo ele, essa condição é que teria levado a humanidade a fundar o Estado. LAPLANTE, Charles. Aristóteles e seu pupilo, Alexandre. 1866. 1 gravura, color. Biblioteca Pública de Nova Iorque, Nova Iorque. Aristóteles concebia o ser humano como um animal político. Atuando como tutor, ele transmitiu seus ensinamentos a Alexandre, da Macedônia, também conhecido como Alexandre, o Grande, que se tornou o governante de um dos maiores impérios do mundo antigo. © Bi b lio te ca P ú b lic a d e N ov a Io rq u e, E st ad os U n id os /W ik im ed ia C om m on s D KO E st ú d io . 2 01 5. D ig ita l. 12 Volume 7 Para ler e refletir Para Aristóteles, a pólis correspondia a uma associação de homens livres, capaz de garantir-lhes a sobrevivência e a vida digna, ou seja, uma vida ética e feliz. Tais concepções aparecem, de forma explícita, no texto do filósofo, apresentado a seguir. A observação nos mostra que cada Estado é uma comunidade estabelecida com alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou comunidade política, que é a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o mais, objetiva o bem das maiores proporções e excelência possíveis. [...] Por conseguinte, é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político. E aquele que por natureza, e não por um mero acidente, não tem cidade, nem Estado, ou é muito mau ou muito bom, ou subumano ou super-humano – subumano como o guerreiro insano condenado, nas palavras de Homero, como “alguém sem família, sem lei, sem lar”; porque uma pessoa assim, por natureza amante da guerra, é um não colaborador, como uma peça isolada num jogo de damas. É evidente que o homem é um animal mais político do que as abelhas ou qualquer outro ser gregário. A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o único animal que tem o dom da palavra. E mesmo que a mera voz sirva para nada mais do que uma indicação de prazer ou de dor, e seja encontrada em outros animais (uma vez que a natureza deles inclui apenas a percepção de prazer e de dor, a relação entre elas e não mais que isso), o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e o injusto. Essa é uma característica do ser humano, o único a ter noção do bem e do mal, da justiça e da injustiça. E é a associação de seres que têm uma opinião comum acerca desses assuntos que faz uma família ou uma cidade. O Estado tem, por natureza, mais importância do que a família e o indivíduo, uma vez que o conjunto é necessariamente mais importante do que as partes. Separem-se do corpo os pés e as mãos e eles não serão mais nem pés nem mãos (a não ser nominalmente, o que seria o mesmo que falar em pés ou mãos esculpidos em pedra); destruídos, não terão mais o poder e as funções que os tornavam o que eram. Assim, embora usemos as mesmas palavras, não estamos falando das mesmas coisas. A prova de que o Estado é uma criação da natu- reza e tem prioridade sobre o indivíduo é que o indivíduo, quando isolado, não é autossuficiente; no entanto, ele o é como parte relacionada com o conjunto. Mas aquele que for incapaz de viver em sociedade, ou que não tiver necessidade disso por ser autossuficiente, será uma besta ou um deus, não uma parte do Estado. Um instinto social é implantado pela natureza em todos os homens, e aquele que primeiro fundou o Estado foi o maior dos benfeitores. Isso porque o homem, quando perfeito, é o melhor dos animais; porém, quando apartado da lei e da justiça, é o pior de todos; uma vez que a injustiça armada é a mais perigosa, e ele é natu- ralmente equipado com braços, pode usá-los com inteligência e bondade, mas também para os piores objetivos. É por isso que, se o ser humano não for excelente, será o mais perverso e selvagem dos animais, o mais repleto de luxúria e de gula. Mas a justiça é o vínculo dos homens, nos Estados;porque a administração da justiça, que é a determinação daquilo que é justo, é o princípio da ordem numa sociedade política. ARISTÓTELES. Política. In: ______. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 143, 146-147. (Os pensadores). Para Aristóteles, o dom da palavra, exclusivo da espécie humana, fazia do homem um animal essencialmente político, capaz de expressar opiniões sobre o bem e o mal, a justiça e a injustiça. © Sh u tt er st oc k/ G el p i J M Filosofia 13 Reflexão em ação Leia os textos e observe a caricatura. Texto 1 [...] estabelecemos que, por natureza, o homem é um animal político. Os homens têm um desejo natural pela vida em sociedade, até mesmo quando não sentem necessidade de procurar ajuda. Todavia, o interesse comum os mantém unidos, desde que o interesse de todos contribua para a vida virtuosa de cada um. [...] ARISTÓTELES. Política. In: ______. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 222. (Os pensadores). Texto 2 [...] Claro está, então, que as constituições que objetivam o bem comum estão certas, de acordo com a justiça absoluta, enquanto as que objeti- vam somente o bem dos governantes estão erra- das. São desvios, divergências do padrão correto. São como o governo do senhor sobre o escravo, quando o interesse do senhor é supremo. Mas o Estado é uma associação de homens livres. ARISTÓTELES. Política. In: ______. Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 223. (Os pensadores). 1. Com base nos textos e em seus conhecimentos sobre o pensamento de Aristóteles, posicione-se criticamente em relação às seguintes teses do filó- sofo: a) O homem é um animal político. Os alunos devem responder se concordam ou não com a tese de que a política é natural, ou seja, decorre diretamente da natureza racional, própria do ser humano. A resposta deve incluir uma justificativa para a opinião apresentada. b) O governante deve submeter-se a uma constituição. Para posicionar-se, os alunos precisam valer-se do significado de “constituição” para Aristóteles: organização prévia das leis e autoridades, às quais o governante também deveria se submeter. É importante justificar a opinião apresentada. 2. Com base no texto 1 e na obra A política: a grande porca, disserte sobre a política com base em duas ideias centrais: a) o fato de ser extremamente importante para a vida em sociedade; b) a eventual presença da corrupção, que prejudica todos. PINHEIRO, Rafael Bordalo. A política: a grande porca. Caricatura utilizada em uma capa da revista A paródia (1900), de França Amado, A Nova Geração: Coimbra, 1911, p. 3. © A rq ui vo N ac io na l d a M ad ei ra , F un ch al , P or tu ga l 10 Orientações para a resposta. 14 Volume 7 3. Leia a notícia e responda à questão a seguir. Aponte semelhanças e diferenças entre a situação relatada (o critério de distinção entre profissionais adotado por algu- mas empresas da atualidade) e a concepção aristotélica de distinção entre os cidadãos e os outros membros da pólis. A semelhança consiste na valorização de critérios independentes do mérito pessoal – a beleza, no caso das empresas da atualidade, e o ser “bem-nascido”, no caso do pensamento aristotélico. A diferença consiste na importância do talento político para Aristóteles, em contraposição à atitude das empresas que deixam de valorizar as habilidades dos profissionais relacionadas à função que vão exercer. [...] Ao organizar um evento sobre igualdade entre os sexos no trabalho, a advogada Deborah Rhode, pro- fessora da Universidade Stanford, sofreu pressão das amigas para comprar uma roupa nova para a ocasião: não poderia aparecer mal no telão. Deborah cedeu, não sem notar a ironia que ela mesma – que pesquisa a influência dos padrões de beleza no mundo do trabalho – não conseguia escapar das exigências da aparência. Em seu livro The beauty bias (numa tradução livre, O preconceito da beleza), recém-lançado nos Estados Unidos, Deborah analisa como a aparência prejudica carreiras e defende a aprovação de uma lei para impedir esse tipo de discriminação, que ela acredita ser tão intolerável quanto o preconceito de raça ou gênero. [...] Qual é o prejuízo causado pelo preconceito baseado na aparência? Deborah – Não existe um cálculo simples, porque, além do finan- ceiro, existe o custo psicológico para as pessoas estigmatizadas. Elas sofrem assédio, perdem empregos e promoções. Mas um número re- levante é o dinheiro gasto no mundo todo com produtos de beleza e emagrecimento – US$ 200 bilhões por ano. Os economistas também calculam que o prêmio – ou castigo, se preferirmos – por causa da aparência pode chegar a US$ 16 mil por ano para um trabalhador ame- ricano. A cultura da beleza viola o sistema de mérito porque ela acaba substituindo a habilidade. [...] SORG, Letícia. Deborah Rhode: “A cultura da beleza viola a do mérito”. Época, 20 ago. 2010. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/ Epoca/0,,EMI164573-15228,00-DEBORAH+RHODE+A+CULTURA+DA+BELEZA+VIOLA+A+DO+MERITO.html>. Acesso em: 18 mar. 2015. Deborah Rhode analisa o fato de que, em vez de habilidades, algumas empresas adotam a beleza como critério para contratar e promover seus profissionais. Mundo do trabalho A política tem a função de promover a organização social, garantindo a cidadania e o respeito aos direitos humanos. No entanto, essa é uma questão complexa que envolve também a participação de alguns profissionais. Entre eles, o assistente social, cuja atuação deve contribuir para que a função da política se realize de fato, a fim de promover o bem-estar físico, psicológico e social da população. Graduado em Serviço Social, esse profissional atua no amparo a pessoas que não têm total acesso à cidadania, ajudando-as a resolver problemas ligados a direitos fundamentais, como habitação, emprego, saúde e educação. © A ce rv o p es so al d e D eb or ah R h od e Filosofia 15 concupiscência: desejo intenso por bens ou prazeres materiais. Cidade de Deus e Cidade dos Homens De acordo com o que você já estudou, é possível perceber que, nos pensamentos dos gregos Platão e Aristóteles, Ética e Política se interligavam pelos mesmos fins: a justiça e o bem comum. Isso também ocorria entre antigos pensa- dores romanos, como Cícero e Sêneca, que tomavam como base para o bom governo o ideal platônico do governante filósofo, cuja conduta deveria servir de exemplo para a comunidade política. Eles afirmavam que o bom governante, ou seja, o príncipe virtuoso, deveria agir sempre de forma racional, sem a “violência do leão”, nem a “astúcia da raposa”, a fim de conquistar o amor e o respeito dos súditos. Portanto, esperavam-se do governante as seguintes características: Virtudes cardeais – sabedoria, justiça, coragem e temperança (moderação). Objetivos nobres – honra, glória e fama. Virtudes principescas – honradez (sempre manter seus princípios); magnanimidade (punir com justiça e cle- mência); liberalidade (pôr suas riquezas a serviço do povo). O cristianismo herdou de Roma a teoria do bom governo e alguns modelos de instituições políticas. Além disso, apropriou-se da concepção hebraica de poder teocrático. Assim, na Idade Média, o vínculo entre a autoridade política e a religiosa trouxe uma nova imagem de príncipe virtuoso que, além das virtu- des romanas, deveria apresentar as virtudes cristãs: fé, esperança e caridade. Nesse contexto de cristianização dos ideais políticos, Agostinho de Hipona, que viveu entre os séculos IV e V, apresentou uma nova concepção filosófica sobre a política e o bom governo, a qual teve grande influência sobre o pensamento medieval. Agostinho concebia a história da humanidade como o palco de uma luta acirrada entre o reino de Deus e o reino do mundo, marcado pelo mal. Essa longa batalha teria começado com a queda dos anjos maus, no início dos tem- pos, e duraria até o fim dos tempos, quando o juízo final destinaria os bons à vidaeterna, em comunhão com Deus, cabendo aos maus o castigo eterno pelos seus atos. No pensamento agostiniano, a virtude indivi- dual era entendida como a correta ordenação do amor, o que significava adequar a medida desse sentimento em relação ao valor de cada objeto digno dele. Nessa ordenação, o grau ínfimo do amor deveria destinar-se aos elementos mate- riais, necessários à sobrevivência. Acima deles, estariam os seres humanos, nossos semelhantes, merecedores de uma medida maior desse senti- mento. Finalmente, acima de tudo, estaria Deus, a quem os indivíduos deveriam se consagrar in- teiramente, amando-o com todo o seu ser. Sendo assim, Agostinho manteve os anti- gos laços entre a Ética e a Política, concebendo o amor como fundamento da comunidade so- cial perfeita, o Estado ou Cidade de Deus, em oposição à concupiscência da comunidade ter- rena, o Estado ou Cidade dos Homens. Teocracia (theos: Deus; kracia: poder): sistema político em que o governo aponta a von tade de Deus como fundamento para se estabele cer. MAÎTRE François. A Cidade de Deus rodeada por demônios. [ca. 1474-1480]. Iluminura do livro de Santo Agostinho, A Cidade de Deus – Livro de Horas, I-X, Paris. Biblioteca Nacional da França, Paris. Para Agostinho, o mundo era o palco de uma constante batalha entre o bem e o mal, o que fazia da política uma atividade essencialmente ética, devendo ser exercida de acordo com a vontade divina, para que o bem triunfasse. © Bi b lio te ca N ac io n al d a Fr an ça , P ar is /W ik im ed ia C om m on s V O V m 16 Volume 7 Para ler e refletir Agostinho caracterizava essas duas “cidades” de acordo com o posicionamento espiritual, a finalidade e a forma de uso dos bens temporais em cada uma delas, como você pode observar a seguir. Cidade de Deus: Jerusalém (significa visão da paz) • Representada pela Igreja. • Associação de pessoas voltadas aos fins divinos, tendo em vista o amor e a glória de Deus, até chegar ao desprezo de si. • Seus membros desejavam a paz eterna, celestial. Por isso, deveriam utilizar os bens terrenos com tempe- rança, como peregrinos em direção ao melhor dos destinos. Cidade dos Homens: Babilônia (significa confusão) • Representada pelos reinados terrenos. • Associação de pessoas voltadas aos fins terrenos, ao amor a si, desprezando Deus. • Seus membros desejavam a paz terrena para usufruírem dos bens desse mundo, aos quais seriam apegados, valorizando-os ao máximo. Agostinho afirmava ainda que essas duas cidades, tão distintas espiritualmente, se confundiam no plano material em razão da íntima convivência entre seus membros. Portanto, as sociedades terrenas seriam formadas pelos cidadãos de ambas. Mas, ainda que eles se reunissem em torno dos mesmos bens terrenos, seus objetivos seriam opostos. Leia o texto a seguir, no qual Agostinho revela as características do Estado terreno e do Estado divino. Ele foi extraído de uma de suas obras, A Cidade de Deus. Mas a família dos homens que não vivem da fé busca a paz terrena nos bens e comodidades desta vida. Por sua vez, a família dos homens que vivem da fé espera nos bens futuros e eternos, segundo a promessa. Usam dos bens terrenos e temporais como viajantes. Não os prendem nem desviam do caminho que leva a Deus, mas os sustentam a fim de que suportem com mais facilidade e não aumentem o fardo do corpo corruptível, que oprime a alma. O uso dos bens necessários a esta vida mortal é, portanto, comum a ambas as classes de homens e a ambas as casas, mas no uso cada qual tem fim próprio e modo de pensar muito diverso do outro. Assim, a cidade terrena, que não vive da fé, apetece também a paz, porém, firma a concórdia entre os cida- dãos que mandam e os que obedecem, para haver, quanto aos interesses da vida mortal, certo concerto das vontades humanas. Mas a cidade celeste, ou melhor, a parte que peregrina neste vale e vive da fé, usa dessa paz por necessidade, até passar a mortalidade, que precisa de tal paz. Por isso, enquanto está como viajante cativa na cidade terrena, onde recebeu a promessa de sua redenção e como penhor dela o dom espiritual, não duvida em obedecer às leis regulamentadoras das coisas necessárias e do mantenimento da vida mortal. Como a mortalidade lhes é comum, entre ambas as cidades há concórdia com relação a tais coisas. Acontece, porém, que a cidade terrena teve certos sábios condenados pela doutrina de Deus, sábios que, por conjeturas ou por artifícios dos demônios, disseram que deviam amistar muitos deuses com as coisas humanas. Encomendaram- -lhes à tutela diversos seres, a este o corpo, àquele a alma e, no mesmo corpo, a um a cabeça, a outro a cerviz; amistar: conciliar, congraçar, harmonizar. cerviz: parte posterior do pescoço, nuca. Filosofia 17 Reflexão em ação dissentir: discordar, divergir. viajora: que viaja, viajante. supeditar: fornecer, ministrar, administrar. quanto às demais partes, a cada um deles a sua. De igual modo na alma. A este encomendaram o espírito, àquele a ciência, a um a cólera, a outro a concupiscência e, quanto às coisas necessárias à vida, a um o gado, a outro o trigo, a outro o vinho, a outro o azeite, a outro as selvas, a outro o dinheiro, a outro a navegação, a outro as guerras e as vitórias, a outro os matrimônios, a outro os partos e a fecundidade, a outro os seres. A ci- dade celeste, ao contrário, conhece um só Deus, único, a quem se deve o culto e a servidão, em grego chamada latreia, e pensa com piedade fiel não ser devido senão a Deus. Tais diferenças deram motivo a que essa cidade e a cidade terrena não possam ter em comum as leis religiosas. Por causa delas a cidade celeste se vê na precisão de dissentir da cidade terrestre, ser carga para os que tinham opinião contrária e suportar-lhes a cólera, o ódio e as violentas perseguições, a menos que algumas vezes refreie a animosidade dos inimigos com a multidão de fiéis e sempre com o auxílio de Deus. Enquanto peregrina, a cidade celeste vai chamando cidadãos por todas as nações e formando de todas as línguas, verdadeira cidade viajora. Não se preocupa com a diversidade de leis, de costumes nem de institutos, que destroem ou mantêm a paz terrena. Nada lhes suprime nem destrói, antes os conserva e aceita; esse conjunto, embora diverso nas diferentes nações, encaminha-se a um só e mesmo fim, a paz terrena, se não impede que a religião ensine deva ser adorado o Deus único, verdadeiro e sumo. Em sua viagem a cidade celeste usa também da paz terrena e das coisas necessariamente relacionadas com a condição atual dos homens. Protege e deseja o acordo de vontades entre os homens, quanto possível, deixando a salvo a piedade e a religião, e supedita a paz terrena à paz celeste, verdadeira paz, única digna de ser e de dizer-se paz da criatura racional, a saber, a ordenadíssima e concordíssima união para gozar de Deus e, ao mesmo tempo, em Deus. Em chegando a essa meta, a vida já não será mortal, mas plenamente vital. E o corpo já não será animal, que, enquanto se corrompe, oprime a alma, mas espiritual, sem necessidade alguma, plenamente submetido à alma. Possui essa paz aqui pela fé, de que vive justamente, quando à consecução da verdadeira paz refere todas as boas obras que faz para com Deus e com o próximo, porque a vida da cidade é vida social. 1. Posicione-se criticamente em relação à tese de Agostinho, segundo a qual a história da humanidade seria o palco da luta entre os vícios e as virtudes, representados pelos cidadãos terrenos e os celestes, respectivamente. 2. Leia os versos a seguir, de uma canção sobre um mundo melhor. 11 Orientações para as respostas e encaminhamento metodológico. Canta uma canção bonita falando da vida em ré maior Canta uma canção daquelas de filosofia e mundo bem melhor [...] MONTENEGRO, Oswaldo; MACHADO, Ulisses. Intuição. Intérprete: Oswaldo Montenegro. In: Oswaldo Montenegro. Rio de Janeiro: Transamérica, 1980. 1disco (30 min): 331/3 rpm, microssulco, estéreo. Faixa 7. a) Considerando o pensamento de Agostinho e o sonho humano de um mundo melhor, associado à Filosofia nos ver- sos de Oswaldo Montenegro, discuta com os colegas a seguinte questão: É possível constituir um Estado terreno cujos fundamentos sejam o amor, a virtude e a busca de uma paz desinteressada? Por quê? b) Em forma de texto argumentativo, registre as conclusões a que você chegou sobre a questão discutida no item anterior. AGOSTINHO. A Cidade de Deus. São Paulo: Edameris, 1964. v. III (Biblioteca de Cultura Cristã). p. 176-177. (Livro 19, cap. 17). 18 Volume 7 ConexõesConexões Observe estas obras de arte. Para o escultor paquistanês Khalil Chishtee, as sacolas plásticas podem se transformar em uma bela metá- fora para a vida. Isso porque, segundo o artista, tanto elas quanto as pessoas precisam de reciclagem. Inspirado nessa ideia, Chishtee utiliza o material para criar esculturas em tamanho real de pessoas e animais. Nas obras, o artista aborda os dramas da vida cotidiana e explora a capacidade de superação do ser huma- no. Suas esculturas tentam levantar o questionamento sobre a necessidade de reciclarmos nossas identidades e ideias para a resolução dos problemas que aparecem pelo caminho. ARTISTA utiliza sacolas plásticas para criar esculturas sobre os dramas humanos. Pequenas Empresas & Grandes Negócios. Disponível em: <http:// revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI292820-17180,00-ARTISTA+UTILIZA+SACOLAS+PLASTICAS+PARA+CRIAR+ESCULTURAS+S OBRE+OS+DRAMAS+HUM.html>. Acesso em: 11 maio 2015. CHISHTEE, Khalil. A insustentável leveza do ser II. 2010. Sacolas de lixo brancas, 167,64 cm × 71,12 cm × 40,64 cm. Coleção particular, Nova Déli. CHISHTEE, Khalil. Escada. 2010. Sacolas de lixo brancas, 238,76 cm × 35,56 cm × 30,48 cm. Coleção particular, Nova Déli. As obras de Chishtee alertam as pessoas sobre a necessidade de “reciclarem suas identidades” para superar limitações. Considerando esse princípio, reflita e discuta sobre as questões a seguir. Registre as conclusões a que chegar e justifique-as. a) No nível individual, em quais aspectos uma pessoa pode “se reciclar” para se superar e resolver seus problemas? Pessoal. Podem-se contemplar diferentes aspectos das identidades individuais, tais como: as formas de uma pessoa encarar a si mesma, aos outros, ao mundo; as atitudes de um indivíduo na convivência social e em relação ao ambiente; seus hábitos e vícios; etc. b) No âmbito da política, quais os aspectos mais importantes a serem “reciclados” nos governantes e nos governados de nossa sociedade? A obra de Chishtee baseia-se na analogia entre a reciclagem de elementos usuais do cotidiano e a de identidades individuais. É possível estabelecer uma nova analogia, com base em uma reflexão sobre a política atual, considerando os elementos que precisam de “reciclagem” em nossa formação cidadã. Nesse sentido, é válido pensar sobre a participação política, o exercício efetivo da cidadania, o cumprimento das leis e o combate à corrupção, entre outros. © Kh al il C h is h te e/ C ol eç ão p ar tic u la r © Kh al il C h is h te e/ C ol eç ão p ar tic u la r Filosofia 19 Direito divino de governar Durante a Idade Média, o governante (conhecido como príncipe ou rei) era considerado um representante de Deus. Portanto, esperava-se que ele zelasse pelo bem-estar de seus súditos na vida terrena, mas também pela sal- vação espiritual e eterna destes. Acreditava-se que o próprio Deus lhe concedia o direito divino de governar, o qual seria transmitido heredita- riamente. Sendo assim, o príncipe era considerado inviolável. Os tiranos ou déspotas, por sua vez, eram vistos como castigos de Deus para punir os pecados humanos, devendo, portanto, ser obedecidos. Nas sociedades europeias medievais, a hierarquia social deveria ser rigidamente respeitada, sendo a comunidade política comparada a um corpo, conhecido como o corpo místico-político do rei. Ele representava as funções de cada classe social, da seguinte maneira: Essa hierarquia era considerada natural e estabelecida por Deus: assim como, na natureza, havia submissão dos seres inferiores aos superiores, os membros da comunidade deviam obediência às autoridades legítimas, a fim de que a salvação eterna fosse garantida. O príncipe, por sua vez, teria de responder perante Deus por ter promovido, ou não, com base em seu exemplo e em suas virtudes, a salvação de seus súditos. Porém, no século XIII, o filósofo e teólogo Tomás de Aquino reconheceu como natural e legítimo o direito de resistir aos governantes despóticos e de levá-los a abdicar do trono, por meios legais. Afinal, a tirania implicava desrespeito aos direitos dos súditos e às leis que o príncipe deveria seguir para o bem de todos. Sob a influência das obras de Aristóteles, Tomás de Aquino defendia ainda a participação dos cidadãos para o êxito do governo e previa a necessidade de que o próprio governo se conformasse à virtude. Ele entendia esta como inclinação e hábito de agir conforme a razão, ressaltando a importância das virtudes cardeais, as quais deveriam regular a vida interna das pessoas, guiando suas intenções, enquanto as leis regulavam-lhes a vida externa, conduzindo suas ações. Segundo o filósofo, uma “lei” que não se conformasse à razão não passaria de iniquidade. Já as verdadeiras leis, estabelecidas de acordo com a razão, conduziriam os seres humanos à sua finalidade comum, a beatitude, além de proporcionar o bem da coletividade. Tomás de Aquino também destacava uma hierarquia entre as leis, como você pode observar a seguir. A cabeça representava o direito divino de governar, que pertencia ao rei. O peito representava as leis, guardadas por magistrados e conselheiros. Os membros superiores representavam a defesa, a cargo do exército dos nobres. Os membros inferiores representavam o sustento, garantido pelos trabalhadores, camponeses e artesãos. © Sh u tt er st oc k/ Se rg ey S u kh or u ko v 20 Volume 7 • Lei divina – a principal, já que todas as demais deveriam partir dela. Guiaria o ser humano à salvação. • Lei natural – voltada à conservação da vida, à geração e à educação dos filhos, ao desejo da verdade – ligada a inclinações comuns, regidas pelos princípios da moralidade; por exemplo, fazer o bem e evitar o mal. • Leis humanas – estabelecidas pelos seres humanos com base na lei natural e dirigida à utilidade comum. De- veriam emanar da própria comunidade ou de seu representante legítimo. No pensamento tomista, as punições e as recompensas eram consideradas naturais. Afinal, na natureza, o afas- tamento da ordem regular necessária, constituída pelos instintos, acarretaria o mal e a destruição de qualquer cria- tura não racional. No caso do ser humano, como criatura livre para optar pela observância ou pela transgressão da reta ordem, haveria recompensas ou castigos, de acordo com suas ações. Por isso, Tomás afirmava que o Estado não deveria se subordinar necessariamente à Igreja, por terem ambos diferentes origens: o Estado seria uma instituição natural, voltada para o bem comum, e a Igreja, uma instituição sobrenatural. Contudo, caberia ao Estado espelhar-se na Igreja para aperfeiçoar-se. Sendo assim, a tirania, considerada como degeneração do melhor regime de governo – a monarquia de um go- vernante justo –, não deveria ser aceita incondicionalmente. O ideal seria evitar que ela se instalasse, observando as características do indivíduo indicado para o trono e ordenando o poder de modo que não se criassem oportunidades para um governo despótico. Mas, uma vez que o despotismo se instalasse, por usurpação ou degeneração do governo, seria o caso de avaliar sua gravidade. Quando a tirania fosse moderada, seria melhor suportá-la, para proteger-se dos perigos de fazer-lhe oposição. Porém, nos casos de grande abuso do poder, caberia à autoridade públicaque designou o governante levá-lo a abdicar. Sendo assim, o povo apenas poderia fazê-lo diretamente nos locais em que ele próprio elegesse seu governante, o que não era comum. Além disso, nos casos em que não houvesse solução humana, restaria apenas recorrer a Deus, para que ele pusesse fim a essa condição infeliz. Como se pode observar, o pensamento tomista, que procurou conciliar razão e fé, Filosofia e Teologia, no campo da política caracteriza-se também pela busca de harmonização entre o poder temporal e o espiritual, apesar do reco- nhecimento de distinções entre ambos. Para ler e refletir No texto a seguir, Tomás de Aquino apresenta sua concepção sobre a obediência às leis e autoridades. A vontade divina é a regra primeira a que estão sujeitas todas as vontades racionais, da qual uma destas se aproxima mais que outra, segundo a ordem instituída por Deus. Por onde, a vontade de quem manda pode ser como que segunda regra à vontade de quem obedece. [...] A fé do cristão é o princípio e a causa da justiça, segundo as palavras do Apóstolo: “A justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus Cristo”. Por isso, a fé de Jesus Cristo, longe de destruir a ordem da justiça, a confir- ma. Ora, a ordem da justiça exige que os inferiores obedeçam aos superiores, pois, do contrário, a sociedade humana não poderia subsistir. Por onde, a fé de Cristo não dispensa os Cristãos de obedecerem ao poder secular. [...] Estamos obrigados a obedecer ao poder secular na medida em que a ordem da justiça o exige. Portanto, aos que o detêm injustamente ou usurpado, ou mandam o que é injusto, não estamos, como súditos, obrigados a lhes obedecer; a não ser talvez por acidente, para evitar escândalo ou perigo. [...] poder secular: poder laico, ou seja, independente do poder da Igreja. usurpar: alcançar sem direito, adquirir por fraude. Filosofia 21 potestade: aquele que manda, que tem autoridade. denegar: ato de negar, não conceder. Pecado mortal é o que contraria a caridade, fundamento da vida espiritual. Ora, a caridade é a que nos faz amar a Deus e ao próximo, mas a caridade para com Deus exige que lhe observemos os mandamentos, como dissemos. Logo, ser desobediente aos mandamentos divinos é pecado mortal, por ser contra o amor divino. Ora, nos preceitos divinos está incluído também o de obediência aos superiores. Por onde, também, a deso- bediência pela qual desobedecemos aos preceitos dos superiores é pecado mortal, por ser contrária ao amor divino, segundo aquilo do apóstolo: “Aquele que resiste à potestade resiste à ordenação de Deus”. E além disso, contraria o amor devido ao próximo, enquanto lhe denega a obediência a que tem direito, na qualidade de superior. [...] Nem toda desobediência constitui igualmente pecado. Pois, uma pode ser mais grave que outra, de dois modos. – Primeiro, relativamente a quem manda. Pois, embora todos devamos cuidar de obedecer aos nossos superiores, contudo, devemos obedecer antes a uma autoridade superior que a uma inferior; e a prova está em que devemos desobedecer à ordem do inferior quando contrária à do superior. Por onde e consequentemente, quanto maior for a autoridade do superior que nos manda, tanto mais grave será desobedecer-lhe. E assim, é mais grave desobedecer a Deus que ao homem. – Segundo, relativamente ao que é mandado. Pois quem manda não quer que se lhe cumpram todas as ordens igualmente; pois, quer mais o fim e o que lhe está mais próximo. Por onde, a desobediência será tanto mais grave quanto mais estiver na intenção de quem manda a ordem preterida. E quanto aos preceitos de Deus, é claro que quanto mais importante for a matéria sobre que eles versam, tanto mais grave será a desobediência. Porque, a vontade de Deus, tendo essencialmente por obje- to o bem, quanto melhor for um ato tanto mais Deus quer que ele seja praticado. Por onde, quem desobedecer ao mandamento de amar a Deus peca mais gravemente que quem desobedecer ao de amar ao próximo. Mas, a vontade do homem nem sempre busca de preferência o melhor. Por isso, quando estamos obrigados apenas por uma ordem humana, a maior gravidade do pecado não está em preterirmos um maior bem, mas, aquilo que está mais na intenção de quem manda. Reflexão em ação 1. Tomás de Aquino foi pioneiro entre os pensadores cristãos ao propor o princípio do direito de resistência ao poder tirânico. Tendo em vista o que você estudou sobre as concepções políticas tomistas, produza um texto relacionando esse princípio aos versos a seguir, da canção Pra não dizer que não falei das flores, com- posta por Geraldo Vandré durante o período da Dita- dura Militar no Brasil. 12 Sugestões de respostas. [...] Vem, vamos embora, que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Há soldados armados, amados ou não Quase todos perdidos de armas na mão Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição De morrer pela pátria e viver sem razão [...] VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Intérprete: Geraldo Vandré. In: Geraldo Vandré. São Paulo: Discos RGE-Fermata, p1979. 1 LP. 2. Pesquise os mecanismos previstos na Constituição brasileira para afastar um mau governante de seu mandato e registre-os. 3. Em que ocasiões você considera que o direito à deso- bediência política deveria ser assegurado? Justifique sua resposta. AQUINO, Tomás de. Suma teológica. 2. ed. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. p. 2.836, 2.845-48. v. 11. 22 Volume 7 Ética x política Durante o Renascimento, aproximadamente do século XIV ao XVII, embora a população europeia em geral ainda se mantivesse bastante ligada à concepção medieval da religião cristã, intelectuais humanistas defenderam uma nova mentalidade, que teve impacto sobre a concepção de política. Para isso, retomaram o estudo de obras da Antiguidade Clássica, em vez de recorrer a obras posteriores a elas que as interpretavam segundo a perspectiva cristã. Nesse con- texto, surgiram críticas ao modelo político medieval, em que o papa e o imperador eram os elementos centralizadores do poder, o que contribuiria para a futura criação de Estados monárquicos unificados, organizados como instituições laicas e autônomas. No início desse processo, ainda que diversos pensadores políticos recusassem a concepção de que os governantes eram predestinados por Deus, a ideia de que os governos deviam se adequar às leis divinas ainda preponderava: o príncipe virtuo- so e justo continuava representando um ideal a ser buscado. Sendo assim, os laços entre a ética e a política permaneciam sólidos na visão dos representantes da nova mentalidade, muitos dos quais escreveram obras de aconselhamento para os príncipes, nas quais discorriam sobre a postura que eles deviam adotar em relação aos súditos e ao poder. Todavia, em 1513, a obra O príncipe, de Nicolau Maquiavel, abalou alguns desses pilares da tradição ocidental: a concepção de política entrelaçada à ética e o modelo do príncipe virtuoso, responsável pelo bom governo. Como outras publicações renascentis- tas, ela aconselhava o príncipe sobre a melhor conduta para governar, mas inovando muito nos conselhos. Com base nos estudos da História e de sua experiência como diplomata – em uma Itália dividida, sob disputas e inva- sões –, Maquiavel propôs-se a falar da política real e não da ideal. De acordo com essa intenção, ele negava que a origem dos Estados efetivos estivesse na vontade divina ou em uma natureza humana voltada à justiça e ao bem comum. Dizia, ao contrário, que os Estados nasciam da oposição entre os grandes, que desejavam dominar, e o povo, que desejava não ser dominado. Afirmava, ainda, que, mesmo diante dessa oposição, a unidade social poderia ser estabelecida por meio de um poder maior que administrasse o conflito sem, no entanto, eliminá-lo. Nesse contexto, toda ação do príncipe tenderia a contrariarum dos lados da disputa, o que exigiria o uso da força e um novo tipo de virtude, propriamente política, a virtù. Maquiavel caracterizava a virtù como a capacidade de bem aproveitar a fortuna (sorte), ou seja, de perceber e utilizar, ou mesmo de criar, a ocasião favorável à realização dos verdadeiros fins políticos: a conquista e a manutenção do poder. Esse pensador não via contradição entre a virtude política e a fraude ou a mentira. Afinal, segundo ele, a história mostrava que os príncipes realizadores dos maiores feitos foram aqueles que usaram a palavra com ligeireza, sabendo enganar e triunfar sobre os que se pautavam pela honestidade. Além disso, Maquiavel não se ateve ao princípio do direito divino de governar. Segun- do ele, qualquer tipo de governo que estivesse a serviço do povo seria legítimo, ao contrário daqueles em que os grandes conseguissem esmagar o povo com um poder maior que o do governante. Sendo assim, ele aceitava a formação de novos principados, por meio da conquista de quem soubesse fazer bom uso da virtù e da fortuna, as quais também seriam ne- cessárias para saber mantê-los. A RODA da fortuna. Século XII. Iluminura da obra: LANDSBERG, Herrade de. Hortus deliciarum. Biblioteca Nacional da França, Paris. A roda da deusa Fortuna é uma representação clássica para as mudanças da sorte humana. A imagem mostra seu movimento, no qual o indivíduo se eleva e cai novamente. No lado esquerdo da roda, perto da Fortuna, que a move, encontram-se dois personagens em ascensão, que representam o estágio: “eu devo reinar”. O que aparece no alto da roda, com a coroa que simboliza o reinado, representa o estágio seguinte: “eu reino”. O próximo personagem, iniciando a queda, representa o estágio: “eu reinei”, sendo sucedido pelos que, sem a coroa, na parte inferior (à direita e ao centro), representam o estágio: “eu não tenho reino”. Sua queda simboliza a condição daqueles que perderam completamente os favores da Fortuna. laico: não eclesiástico, não pertencente à Igreja. © Bi b lio te ca N ac io n al d a Fr an ça , P ar is /W ik im ed ia C om m on s Filosofia 23 Para ler e refletir No pensamento de Maquiavel, o príncipe não precisava ser amado para manter o governo: precisava ser temido, mas sempre evitando ser odiado. Afinal, ele governaria entre conflitos, exercendo poder sobre pessoas reais, cuja natureza não se mostrava boa e virtuosa como descrevia a tradição. Nesse contexto, as virtudes pessoais e cristãs poderiam enfraquecer o príncipe e, portanto, a ordem social. Por esse motivo, o governante deveria aprender a não ser bom, quando isso fosse necessário, mas deveria aprender tam- bém a simular virtudes não políticas (as virtudes éticas) e a dissimular seus atos detestá- veis, evitando assim o ódio popular. Somente dessa maneira, agindo com a “força do leão” e a “astúcia da raposa”, ele realmente protegeria o poder da influência de interesses dos grandes (os poderosos locais) e dos estrangeiros. De acordo com Maquiavel, o governo representava a ordem social e o bem político do povo. Isso tornava o governo um fim supremo, justificando o uso de todos os meios que se fizessem necessários para mantê-lo. Esse princípio ficou conhecido pela frase “os fins justificam os meios” e resultou no uso do termo “maquiavélico” para descrever atitudes dissimuladas e antiéticas. O texto a seguir revela o contraste entre as concepções políticas de Maquiavel e a tradição que o antecedeu. Os conselhos apresentados ao governante podem esclarecer por que a obra O príncipe causou tanto escândalo entre os contemporâneos do autor. Resta analisar agora como um príncipe deve comportar-se com seus súditos e com seus amigos. Como muita gente já escreveu a respeito, duvido que não me considerem presunção tal exame, ainda mais porque, ao tratar desse tema, não me afastarei demasiado dos princípios que outros estabeleceram. Como, porém, minha intenção não é escrever sobre assuntos de que todos os interessados tirem proveito, julguei adequado procurar a verdade pelo resultado das coisas, mais do que por aquilo que delas se possa imaginar. E mui- tos imaginaram repúblicas e principados nunca vistos ou reconhecidos como reais. Tamanha diferença se encontra entre o modo como se vive e o modo como se deveria viver que aqueles que se ocuparem do que deveria ser feito, em vez do que na realidade se faz, aprendem antes a própria derrota do que sua preserva- ção; e, quando um homem deseja professar a bondade, natural é que vá à ruína, entre tantos maus. Assim, é preciso que, para se conservar, um príncipe aprenda a ser mau, e que se sirva ou não disso de acordo com a necessidade. Assim, pondo de lado as coisas que se ignoram em relação aos príncipes, e falando sobre as que são reais, digo que todos os homens, em particular os príncipes, por se encontrarem mais no alto, ganham no- tabilidade pelas qualidades que lhes proporcionam reprovação ou louvor. Ou seja, alguns são tidos como liberais, outros como miseráveis [...]; alguns são tidos como pródigos, outros como rapaces, alguns como cruéis, outros piedosos; perjuros ou leais; efeminados e covardes ou truculentos e corajosos; humanitários ou arrogantes; lascivos ou castos; estúpidos ou astutos; enérgicos ou fracos; sérios ou levianos; religiosos pródigo: aquele que esbanja suas propriedades. rapace: que rouba, que é ávido por lucro. perjuro: que jura com falsidade. lascivo: aquele que se inclina e se entrega aos prazeres. BUSTO de Maquiavel. Palazzo Vecchio, Florença. A obra de Maquiavel “desatou o nó” que unia a política (pública) e a ética (individual) na mentalidade dos pensadores que o antecederam. © Pa la zz o Ve cc h io , F lo re n ça , I tá lia /W ik im ed ia C om m on s o, o governante prender tam- atos detestá- força do leão” nteresses bem uso o © Pa la zz o Ve cc h io , F lo re n ça , I tá lia /W ik im ed ia C om m o 24 Volume 7 pérfido: desleal, em que há traição. írrita: sem efeito, sem validade, nula. Neste novo trecho de O príncipe, Maquiavel fala sobre a importância da simulação e da dissimulação para o êxito do governante. Nesse contexto, cita o leão e a raposa como metáforas para a força e a astúcia, características que o governante deveria apresentar para manter-se temido, sem ser odiado pelo povo. Segundo Maquiavel, o príncipe deveria agir como o leão e a raposa, sendo importante simular virtudes não políticas e dissimular seus atos detestáveis. Afinal, para garantir um bom governo, ele deveria ser temido, mas não odiado pelos súditos. “VOTE EM MIM” ou incrédulos, e assim por diante. E sei que qualquer um reconhecerá ser digno de louvor o fato de um príncipe possuir, entre todas as qualidades mencionadas, as consideradas boas; mas a condição humana é tal que não permite a posse total de todas elas, nem mesmo a sua prática consistente; é mister que seja o príncipe prudente a ponto de evitar os defeitos que lhe poderiam tirar o governo e praticar as qualidades que lhe garantam a posse, se possível; se não puder, com menor preocupação, deixe que as coisas sigam seu curso natural. E não se importe ele sujeitar-se à fama de ter certos defeitos, sem os quais lhe seria difícil salvar o governo, porque, levando em conta tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se praticadas, conduzi-lo-iam à ruína, e outras que podem se assemelhar a vícios e que, observadas, trazem bem-estar e segurança ao governante. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. In: ______. Maquiavel. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 99-100. (Os pensadores). cap. XV. Deveis saber, assim, que dois modos há de combater: um pelas leis; outro, pela força. O primeiro é na- tural do homem; o segundo, dos animais. Todavia, como em muitas ocasiões o primeiro não é suficiente, mister se faz recorrer ao segundo. O príncipe, contudo, deve saber empregar adequadamente o animal e o homem. [...]
Compartilhar