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A feitiçaria na Europa moderna Livro por Laura de Mello e Souza

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Laura de Mello e Souza 
Professora de História Moderna da Universidade de 
São Paulo 
 
 
 
A Feitiçaria na 
Europa Moderna 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Laura de Mello e Souza 
Professora de História Moderna da Universidade de 
São Paulo 
 
 
 
A Feitiçaria na 
Europa Moderna 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2019 
 
- 4 - 
FICHA BIBLIOGRÁFICA 
Dados Internacionais de Publicação 
 
S719f SOUZA, Laura de Mello e. 
 A Feitiçaria na Europa Moderna / Laura de 
Mello e Souza. – São Paulo: Ática, 2019. 
 
 80 p. 
 
 ISBN 85 08 01867 3 
 
 Inlcui bibliografia 
 
1. Feitiçaria – Europa. 2. Feitiçaria – História. 3. Souza, 
Laura de Mello e. I. Título. II. Série. 
 
CDD 133.4094 
 
Imagem da capa: O Sabá, Francisco Goya (1797-1798) 
 
Copyright © 2019 
Todos os direitos reservados 
 
 
 
 
 
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ÍNDICE
1. O Palco ............................................................................ 9 
Rupturas e permanências ............................................... 9 
Entre Deus e o Diabo ..................................................... 12 
2. A Personagem ............................................................. 15 
Da Feiticeira à bruxa ...................................................... 15 
3. A Personagem – Práticas ......................................... 19 
O estereótipo da bruxa ................................................. 19 
Bruxas do campo e da cidade ...................................... 21 
Dinastias de bruxas........................................................ 23 
Infanticídio e zoomorfismo .......................................... 23 
Especificidade moderna ................................................ 26 
Nasce o sabbat ................................................................ 27 
Pessessões nos conventos: crise do satanismo? .... 30 
4. A Personagem – perseguições ................................ 33 
Bruxaria e heresia .......................................................... 33 
 
 
A Igreja contra o grito de guerra do Inferno .......... 35 
O instrumental da perseguição ................................... 37 
As matanças ..................................................................... 38 
Intimidações, confissões, torturas............................. 40 
O despontar do ceticismo ............................................. 43 
Encruzilhada de discursos ............................................ 44 
5. As teorias ..................................................................... 49 
Demonólogos, racionalistas e historiadores............ 49 
A vertente romântica ..................................................... 50 
A vertente racionalista .................................................. 56 
A vertente antropológica .............................................. 62 
Ação desencantadora da Reforma ............................. 63 
Aculturação do mundo rural ........................................ 64 
6. Elementos para uma conclusão .............................. 67 
O olhar antropológico .................................................... 67 
Os níveis culturais .......................................................... 68 
 
 
Uma esperança ................................................................ 69 
7. Cronologia da repressão à bruxaria na Europa .. 71 
8. Vocabulário Crítico .................................................... 72 
9. Bibliografia Comentada ............................................ 77 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
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1. O Palco 
 
Rupturas e permanências 
 
É hábito situar, na Época Moderna, os traços 
definidores do homem de hoje. Foi então que seus 
antepassados descobriram o todo de que faziam parte, 
erigindo-se na parcela mais importante da Criação. A 
América se desvendou aos olhos europeus, completando o 
rol das partes do mundo por eles conhecidas. Copérnico, 
Kepler e Galileu demonstraram que a Terra girava em 
torno do Sol e integrava o seu sistema. Do bojo da 
desagregação do feudalismo, o capitalismo foi aos poucos, 
mas irreversivelmente, se consolidando, e ainda hoje 
pauta grande parte das relações sociais e econômicas do 
mundo. O tempo matematizado e posto a serviço do 
homem, os espaços domados no mapa dos navegantes, 
no furor europeu em rebatizar terras desconhecidas, na 
cúpula de Santa Maria das Flores, nas belas perspectivas 
perfeitamente geométricas dos pintores renascentistas 
correspondiam, entretanto, a uma das faces desse 
período. Em 1637, Descartes acreditava que o bom-senso 
era “a coisa do mundo melhor partilhada”, “naturalmente 
igual em todos os homens”: a Razão tudo podia; sua 
batalha parecia definitivamente ganha. Mas um homem 
como Pascal logo a seguir se confessaria atemorizado 
ante o silêncio eterno dos espaços infinitos, insondáveis e 
inacessíveis ao entendimento, e práticas cotidianas se 
encarregam de demonstrar como era às vezes irrisório o 
espaço ocupado pelo bom-sendo entre os homens. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
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O brilhante século XVI viu o surgimento do Antigo 
Sistema Colonial, das Reformas religiosas, de Estados 
Modernos já francamente consolidados, de uma produção 
artística e intelectual impressionante. Mas viu também o 
estabelecimento das Inquisições Ibéricas (a espanhola, na 
verdade, datando do final do século anterior: 1478), o 
horror das guerras de religião, o incremento da história 
inacreditável que foi a caça às bruxas. 
Na verdade, Ciência e Razão eram apenas uma face 
de realidade bem mais complexa. Enquanto as elites 
redescobriam Aristóteles ou discutiam Platão na Academia 
florentina, de Lourenço de Médicis, a quase totalidade da 
população europeia continuava analfabeta. Praticamente 
alheia à matematização do tempo, tinha seu trabalho 
regido ainda pelos galos e pelos sinos (exceto nos centros 
têxteis mais importantes da Itália e da Flandres), a vida 
cotidiana pautada por ritmos sazonais. A grande crise do 
século XIV trouxera consigo a fome, a peste, legiões de 
marginalizados que a economia feudal não mais conseguia 
abrigar e que vagavam pelas estradas europeias, sem 
rumo e sem dono – os masterless men, de que fala o 
historiador inglês Christopher Hill. Trouxera também um 
sentimento generalizado de medo, de pânico ante um fim 
iminente e muito próprio aos períodos de crise. Uma das 
tentativas de resposta ao medo e ao sentimento de 
instabilidade foi a exacerbação da religiosidade popular. 
Para Delumeau, um dos historiadores contemporâneos a 
tratar desse período, medo, sentimento de culpa, angústia 
coletiva constituíram um caldo de cultura privilegiado para 
que vicejassem novas propostas religiosas. Assim, tanto a 
Reforma Católica quanto a Protestante corresponderiam 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 11 - 
ao mesmo anseio de repensar a religiosidade e tentar 
diminuir as distâncias que separavam a religião vivida 
pelas massas daquela pregada pelos teólogos e doutores 
da Igreja. 
Porque, então, os santos e os dogmas dos homens 
cultos diferiam profundamente daqueles que integravam a 
religiosidade das massas. Esta era impregnada de 
magismo e de elementos folclóricos, os santos sendo 
muitas vezes vistos como forças negativas próximas às 
divindades maldosas do paganismo; podiam se vingar dos 
homens quando se julgassem desacatados: tanto 
enviavam doenças como as curavam. Frequentemente, a 
hóstia era associada a amuletos mágicos, e na hora da 
consagração os fiéis se acotovelavam sobre os bancos das 
igrejas a fim de verem o sagrado corpo de Deus e se 
impregnavam de seus fluidos benéficos. Afetivizava-se a 
religião, procurando torná-la mais próxima e ativa, 
buscando respostas para a vida cotidiana. “Deixe Deus 
fazer o que quiser”, dizia um provérbio francês, “pois é 
homem de idade”. 
Os sentidos
eram então fundamentalmente diversos 
dos nossos. No início da Época Moderna, a audição tinha 
importância maior do que a visão, o que parece próprio de 
uma sociedade iletrada e muito dependente da 
transmissão oral de conhecimento. Os monstros 
povoavam a vida cotidiana dos europeus, e narrativas de 
viagens reais revelavam acontecimentos inverossímeis e 
descreviam seres fantásticos. Os relatos de nossos 
primeiros cronistas dão exemplo disso, assim como o 
diário e as cartas de Colombo, em que se evidencia a 
decepção por não encontrar, no Caribe, sereias tão belas 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 12 - 
como as que povoavam seu universo imaginário. Para 
nós, o extraordinário é que as tenha encontrado e visto: 
via-se então o que, a priori, tinha-se concebido mental-
mente ou, tão, via-se o que se ouvira dizer. Lucien 
Febvre, pai da história das sensibilidades e das 
mentalidades, mostrou que, no século XVI, nada parecia 
impossível aos homens, fadados a acreditarem: a 
descrença não fazia parte do universo mental do homem 
de então. 
 
Entre Deus e o Diabo 
 
Nesse horizonte de crenças, Deus e o Diabo eram 
onipresentes e se justificavam mutuamente. Se o 
monoteísmo cristão foi construído sobre a imagem 
positiva de Deus, como explicar a parcela de maldade que 
grassava pelo mundo? O Diabo era, assim, elemento 
complementar e indispensável à certeza da existência de 
Deus. “Não pode haver Deus sem o Diabo”, repetiam à 
exaustão os demonólogos e teólogos do final da Idade 
Média e início da Época Moderna. A crença no Príncipe 
das Trevas – O Diabo – era bem melhor partilhada do que 
o bom-senso cartesiano: reis e rainhas como Henrique IV 
e sua sogra, Catarina de Médicis, papas como Bonifácio 
VIII, burgueses revolucionários, como Cromwell, 
economistas e filósofos, como Jean Bodin, demonólogos, 
como Martín del Rio e Pierre de Lancre, camponeses, 
artesãos, marinheiros anônimos, enfim, os mais diversos 
segmentos da sociedade abraçavam-na. Martinho Lutero, 
o Reformador, tinha a convicção de que o Demônio se 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 13 - 
deitava regularmente entre ele e sua mulher. O 
historiador inglês Hugh Trevor-Roper afirma que a crença 
em bruxas era indissociável da filosofia da época. 
Os sentimentos de então também eram outros. Por 
um lado, a vida dura, a maior sujeição às intempéries da 
natureza, a iminência de crises de fome, o desconhe-
cimento de explicações científicas para a origem de 
doenças e epidemias diluíam as fronteiras entre o mundo 
natural e o sobrenatural. Por outro, trabalhavam no 
sentido de moldar uma sensibilidade específica que, aos 
nossos olhos, pode parecer empedernida. O sofrimento 
era, às vezes, vivido com maior afastamento: documentos 
da região do ducado de Luxemburgo tratam cruamente de 
multas infligidas a pais que se descuidaram e tiveram 
filhos devorados por porcos. Philippe Ariès, o grande 
historiador da criança, da família e da morte, chamou 
atenção para a existência de um sentimento acerca da 
infância muito diverso do que se tem hoje. Assim, no 
século XVII, uma vizinha consolava certa parturiente às 
voltas com dores atrozes e que já tinha cinco “pequenos 
canalhas”, dizendo: “Antes que te atinjam idade para te 
dar muito trabalho, terás perdido a metade deles, ou 
talvez todos”1. A intersecção entre essa outra 
sensibilidade e a grande incidência de infanticídio 
encontrou forma privilegiada de expressão no conto 
popular: o Pequeno Polegar e os irmãos, abandonados 
pelo pai, paupérrimo, tendo que prover a própria 
subsistência (o que acabam fazendo com muito sucesso, 
sob comando do esperto anãozinho); João e Maria, 
 
1
 L’enfant et l avie familìale sous l’Ancien Régime. Paris, Seuil, 1973. p. 29. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 14 - 
largados na floresta pelo pai, pobre lenhador incapaz de 
sustentá-los. 
Mas o sofrimento poderia ser também vivido como 
espetáculo, como sublimação de pulsões obscuras e 
irresolvidas. Na arte, Maneirismo e Barroco trouxeram 
para a tela impulsos sádicos, obsessão pela tortura, 
evocação do sofrimento físico, repressão sexual: os 
inúmeros São Sebastiões crivados de flechas, as santas 
enforcadas, queimadas, decapitadas, flageladas, como a 
Santa Ágata de Zurbarán, oferecendo os próprios seios 
mutilados numa bandeja. As figuras irreais e distorcidas 
de Pontormo, Beccaffumi, Bronzino, El Greco não evocam 
também membros destroncados por potros, rodas e 
polés? Na vida cotidiana, multidões acorreram aos Autos 
de Fé ibéricos, a execuções bárbaras de regicidas – como 
a de Demiens, analisada por Foucault em Vigiar e punir –, 
aos suplícios de bruxas nas praças públicas das cidades ou 
nas clareiras e descampados do meio rural. Os membros, 
os quartos, a cabeça dos infelizes eram muitas vezes 
espetados nas pontas de postes e fincados nas margens 
de estradas, como fizeram com Tiradentes, em Vila Rica. 
Assistindo a enforcamentos e queimas de seres vivos, 
essas pessoas não cogitaram, como Montaigne, de que 
esse era um preço demasiadamente alto para se atribuir a 
conjeturas. Como espectadores, compactuaram das 
perseguições e as legitimaram, numa complexa fruição do 
espetáculo visual, exacerbada e barroca ela também. 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 15 - 
2. A Personagem 
 
Da Feiticeira à bruxa 
 
As práticas mágicas remontam à aurora dos povos, e 
estão presentes em todas as culturas de que se tem 
conhecimento, integrando o universo da religião. 
Entretanto, cabe desde já estabelecer uma nuança: 
muitas dessas práticas mágicas têm caráter acentua-
damente secreto, escuso, tenebroso. Na Grécia Antiga, 
Circe encantava os homens e os transformava em porcos 
– conforme narra Homero, na Odisseia –, enquanto a 
paixão frustrada por Jasão levava Medeia a fabricar filtros 
mágicos com os piores propósitos. Canídia, feiticeira 
descrita por Horácio, recorria a substâncias maléficas e 
asquerosas para confeccionar fluidos: figo selvagem 
colhido sobre sepulcros, sangue de sapo, ovos e plumas 
de estriga, ervas de Iolcos e da Ibéria, ossos arrancados 
da goela de um cão em jejum, fígado e moela de crianças. 
Na Grécia, em Roma, entre as populações bárbaras que 
vieram a constituir os países europeus, as práticas 
mágicas, quase sempre exercidas por mulheres, 
apresentavam estreita relação com os cultos lunares, com 
as divindades ligadas à fertilidade, à noite: Hécate, Diana 
– que vagava de noite com um séquito de feiticeiras –, 
Selene e outras entidades menos famosas, como 
Benzozia, Frau Hole, Dama Habonda (ou Domina 
Abundia), Noctiluca. O substrato dessas práticas mágicas 
era acentuadamente pagão, e a presença de animais, 
como o bode, remetia antes a ritos dionisíacos do que ao 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 16 - 
satanismo propriamente dito. Foi na Baixa Idade Média, 
um pouco antes de os escritos de São Tomás de Aquino 
ganharem notoriedade, que a magia pagã se atrelou a 
prática demonológicas, surgindo o Príncipe das Trevas 
como divindade máxima a ser cultuada. A partir do século 
XIV, a feitiçaria clássica – maneira pela qual se designa 
essa nova forma de magia – ganhou configuração precisa, 
desenvolvendo-se com intensidade nos três séculos 
subsequentes para, afinal, declinar no Século das Luzes. 
A demonização de práticas mágicas milenares 
representa, assim, um corte importante e diferenciador. 
Muitas são as interpretações acerca da bruxaria e da 
feitiçaria, e serão objeto da terceira parte deste livro. Mas, 
apesar da multiplicidade de interpretações, haveria uma 
espécie de consenso segundo o qual Circe, Medeia e 
Canídia seriam feiticeiras fundamentalmente diferentes 
das bruxas anônimas que se queimaram aos montes na 
Época Moderna, espalhando pela Europa, na bela imagem 
do historiador Robert Muchembled, uma gigantesca cruz 
de fogo. No primeiro caso, não haveria pacto demoníaco, 
e a feiticeira se encarregaria
individualmente de fabricar 
poções e filtros mágicos com vistas a solucionar 
problemas com os quais se achasse envolvida. No 
segundo caso, ocorreria pacto – sujeição ao Príncipe das 
Trevas – e conjuro de demônios, invocados como 
auxiliares nas atividades maléficas. Além disso, as práticas 
seriam coletivas e as bruxas, diferentemente das 
feiticeiras, integrariam uma espécie de seita demoníaca. 
Ultimamente, tornou-se hábito fazer distinção entre bruxa 
e feiticeira com base na explicação antropológica: a 
feiticeira invoca forças maléficas e trabalha com elas; a 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 17 - 
bruxa, por sua vez, é a própria fonte do mal, que dela 
emana. A diferenciação entre bruxa e feiticeira não é, 
entretanto, desprovida de problemas. Há línguas, como o 
francês, que não distinguem uma da outra, não possuindo 
termos adequados para tal: ambas são designadas 
sorcière. Por outro lado, a documentação de língua 
portuguesa faz uma diferenciação formal, mas não se 
refere a bruxas e feiticeiras como essencialmente distintas 
entre si: antes surgem como sinônimos, e a referência a 
uma ou outra parece aleatória. 
Definir e descrever práticas de bruxas em separado 
das perseguições que contra elas se fizeram é tarefa difícil 
e, até certo ponto, contestável. Gustav Henningsen, 
historiador sueco da bruxaria basca, definiu o papel da 
bruxa como “um papel fictício, aplicado e vazio: a bruxa 
não pode voar ou prejudicar alguém com seu olhar (‘mau-
olhado’); a bruxaria é por definição um crime impossível”2. 
Ora, se assim é, bruxas são definidas e têm existência a 
partir do momento em que são perseguidas. Foram os 
caçadores de bruxas que lhes desenharam o perfil 
aterrorizador, estereotipado nas denúncias e no corpo de 
processos laicos e eclesiásticos, nos manuais de inquisi-
dores, nos tratados demonológicos. Alonso de Salazar y 
Frias, inquisidor espanhol que reexaminou detidamente os 
processos bascos de Zugaramurdi, no início do século 
XVII, dizia que falar de bruxas fazia com que 
proliferassem. Antes de discorrer sobre a existência e o 
saber atribuído a essas criaturas, tentarei separar, no 
 
2
 El abogado de las brujas; brujeria vasca e Inquisición española. Madrid, Alizanza, 
1983. p. 345. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 18 - 
discurso sobre a bruxaria, as personagens das perse-
guições que sofreram, procurando, dessa forma, melhor 
caracterizar umas e outras. Sem esquecer o dito de 
Rimbaud acerca da bruxa sempre às voltas com as brasas 
do seu caldeirão: que nunca nos contaria o que ela sabe e 
que nós ignoramos. 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
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3. A Personagem – Práticas 
 
O estereótipo da bruxa 
 
Até hoje, final do século XX, as crianças ocidentais 
têm medo de serem roubadas por bruxas velhas feiíssimas 
e alcançarem destino pior do que João e Maria, acabando 
de fato dentro de um caldeirão fervente. A bruxa que 
assombra a imaginação infantil é velha, enrugada, vesga, 
às vezes, desdentada ou com alguns cacos negros 
espalhados pela boca babosa, verruga peluda no queixo 
protuberante ou na ponta do enorme nariz adunco, 
cabelos grisalhos desgrenhados, mãos ossudas e 
crispadas como garras de animal, corcunda, silhueta 
arcada para a frente, ora cruzando os ares numa 
vassoura, ora o andar trôpego se amparando numa 
bengala nodosa, a roupa preta e sem forma definida, 
chapéu pontudo na cabeça, voz estridente e rouca, 
gargalhada aterrorizante. Voando a seu lado, uma coruja 
ou morcego; embolando-se nas suas pernas, um gato 
preto. Além das crianças de carne tenra, os mais assíduos 
frequentadores do seu caldeirão são as asas de morcego, 
cabeças de víboras, dentes de dragão, moelas e fígado de 
animais diversos, garras de aves de rapina, raízes 
venenosas, mandrágoras, favas suspeitas, sapos, rãs, um 
ou outro rato, bigodes de leão-marinho, ervas secas, pós 
variados. Quem na infância não brincou de colocar 
ingredientes no caldeirão da bruxa, acrescentando sempre 
uma sujeira ou porcaria nova – taturanas esmagadas, 
baratas fritas, croquetes de cabelo, rabos de lagartixas? 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 20 - 
Essa figura estereotipada da bruxa já se encontrava 
definida no início da Época Moderna. Mulheres sozinhas, 
solteironas ou viúvas constituíam a maioria das acusadas 
nos processos que se desenrolaram na Europa de então. 
Se fossem feias e velhas, a suspeita ficava ainda mais 
forte. Essa tendência em desprezar e condenar mulheres 
decrépitas constitui, segundo Delumeau, a vertente 
negativa do apreço renascentista pelas carnes duras das 
belas ninfas e das Vênus nuas. Não são poucas as 
representações pictóricas do período que retratam velhas 
desdentadas, descabeladas, de seios caídos e coxas 
flácidas voando em direção ao sabat ou assessorando 
algum demônio nos suplícios infernais. Um anônimo 
português do século XVI, por exemplo, retratou um 
intrigante diabo negro com cocar de ameríndio presidindo 
torturas atrozes, entre elas uma exercida por diaba velha 
e nua, de feições tipicamente saloias, cauda pontiaguda e 
pés de dragão que, lança em punho, cutuca destemida 
uma jovem de bela carnadura. 
Na Flandres, entre o fim do século XVI e início do 
XVII, 9 acusadas, entre 32, tinham mais de 50 anos de 
idade. Nos processos de Lancashire que ocorreram na 
Inglaterra, em 1612, ocuparam papel de destaque duas 
feiticeiras velhas: Elizabeth Sowtherns e Anne Whittle. Na 
mesma época ocorreu, em Fuentarrabía, Espanha, de a 
anciã Maria Garro ser acusada de aliciar jovenzinhas para 
a seita demoníaca. Maria Garro tinha uma agravante 
profusamente explorada pelos tribunais espanhóis no 
julgamento de Logroño (1610): era francesa, forasteira, 
portanto. Muitas das feiticeiras luxemburguesas presas no 
decorrer dos séculos XVI e XVII eram ao contexto em que 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 21 - 
se desenrolaram as acusações contra elas: por exemplo, 
Jehennon viera de Liège e foi presa em Saint-Mard e 
Poncette tinha a alcunha de Recém-Chegada. “Pobre, sem 
família, geralmente viúva, ela vive retirada e não participa 
das atividades comuns. Seu isolamento, o mistério de que 
a cercam, o poder que passam a lhe atribuir farão dela 
um ser temível. Os pais proibirão os filhos de se 
aproximarem de sua casa, de aceitar o pão ou a maçã que 
lhes oferecer”3. Como se vê, os cuidados com que os Sete 
Anões cercavam Branca de Neve, proibindo-a de falar com 
velhas ou dela aceitar frutas, se ancoravam em tradição 
corrente na Europa pré-industrial. 
 
Bruxas do campo e da cidade 
 
Velhas feias, entretanto, tiveram dias passados de 
glória como profissionais do amor encarnavam outro 
estereótipo de bruxa comum no Renascimento, segundo 
Caro Baroja, sobretudo na região mediterrânea, 
reiterando a ideia de que as bruxas não tem honra. O 
modelo dessas rufionas seria a Celestina, de Fernando 
Rojas, peça teatral escrita nos primeiros anos do século 
XVI; ela é uma velha prostituta que solicita mulheres para 
homens, uma alcahueta, como se diz em espanhol. Alia a 
atividade de cafetina às de perfumista e bruxa fabricante 
de filtros amorosos e unguentos especiais. A descrição 
que Rojas faz de seu gabinete de trabalho é célebre, 
citada com frequência. 
 
3
 DUPONT-BOUCHAT, Marie-Sylvie et al. Prophètes et sorciers dans les Pays-Bas – 
XVIe siècles. Paris, Hachette, 1978. Ver o artigo “La répression de la sorcellerie dans le 
duché de Luxembourg au XVIe et XVIIe siècles”, p. 57. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 22 - 
Evidentemente, dada a natureza de sua atividade, 
Celestina era uma feiticeira urbana, e poderia ser 
encontrada nos grandes centros mediterrâneos da Europa 
Moderna: Sevilha, Barcelona, Veneza, Roma, Gênova, 
Florença... Já no meio rural, nas aldeias e vilarejos do 
interior da Europa, dominavam as bruxas acima tratadas e 
ainda
uma ou outra jovem bonita, como a gascã 
Françouneto, abordada por Le Roy Ladurie. Nessa porção 
da Europa que permanecia meio à margem das principais 
artérias de comércio e que tinha suas relações sociais 
pautadas ainda por modelos tradicionais, a vida era lenta, 
regulada pelos ritmos da natureza e pelas intempéries 
climáticas. Keith Thomas notou que, no universo 
predominantemente rural, as acusações de feitiçaria 
revelavam tensões internas das comunidades de aldeões 
ou camponeses, e denotavam o pânico de arcar com a 
pobreza de seres improdutivos. Françouneto, por 
exemplo, viu-se acusada de privar da força os homens 
jovens e aptos ao trabalho, acabando, muitas vezes, por 
matá-los; atacava ainda o ato de geração, impedindo-o de 
ocorrer; privava os vizinhos da riqueza material, 
destruindo cultivos, desencadeando geadas e granizo. Em 
consequência, acumulava riquezas, fazendo-as crescer. 
Ladurie formula uma bela explicação para essa faculdade 
de levar os vizinhos à ruína, enquanto os próprios 
cabedais são aumentados: representava mentalidade de 
ganhos e perdas mutuamente compensados, comum às 
sociedades tradicionais e análogas ao corolário 
mercantilista de um Colbert, para quem, “para aumentar o 
dinheiro e o número de navios que se acham à disposição 
do Reino de França, é necessário diminuir do equivalente 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 23 - 
a quantidade de um e de outros em poder dos reinos 
vizinhos”4. Assim, quando alguém começava a prosperar 
inesperadamente, despertava de imediato suspeitas de 
bruxaria. 
 
Dinastias de bruxas 
 
Numa sociedade pautada pela hereditariedade, havia 
hereditariedade diabólica. A filha de uma bruxa tinha 
grandes probabilidades de também se tornar bruxa. Em 
1620, no Alto Saona, a primeira acusação judicial que se 
fez a Anne Humbert foi a de ser filha de um bruxo, Pierre 
Humbert. As epidemias de bruxaria que dizimaram os 
vilarejos da Borgonha e do Franco-Condado tiveram na 
hereditariedade, segundo Mandrou, o princípio decisivo de 
sua renovação, de geração a geração. Em Zagaramurdi, 
no País Basco, a bruxaria vicejou dentro de determinadas 
famílias. 
 
Infanticídio e zoomorfismo 
 
A precariedade da vida na época, a miséria, a 
incidência de doenças provocavam grande mortalidade 
infantil. Tanto no meio rural quanto no urbano a bruxa 
funcionou como espécie de bode expiatório, como 
aliviador de tensões geradas por esta conjuntura cruel. 
Um bebê nascera são, roliço, corado e, repentinamente, 
abandonara o peito materno, recusando alimento, 
definhando? Uma bruxa o chupara, matando-o. Como 
 
4
 Apud LADURIE, Le Roy. La sorcière de Jasmin. Paris, Seuil, 1983. p. 30. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 24 - 
fazia com as colheitas, a bruxa tinha especial inclinação 
em destruir o fruto das uniões entre os homens. No sul da 
França, acreditava-se que enforcava ou sufocava recém-
nascidos em seus berços. Marie Barast, também gascã, 
tinha mau-olhado e com ele matara – com um simples 
olhar – Jacquette Colombert, uma criança que entrara em 
convulsões e morrera depois de alguns meses. Seu sopro 
também era mortífero, como o de Marie de Sansarric, 
acusada de enfeitiçar dessa forma uma criancinha, que 
ficou impossibilitada de falar ou derramar lágrimas, 
morrendo em seguida. O corpo das crianças sangrava 
ante uma bruxa; a própria Françouneto, antes de 
enveredar pela seara demoníaca, chegara a sofrer esse 
tipo de feitiço: quando bebê, seus pais ouviam com 
frequência um barulho estranho no seu quarto e 
encontravam-na fora do berço, que apresentava nas 
bordas gotas de sangue coalhado. 
Velhas, feias, sozinhas, forasteiras ou jovens, bonitas 
e capazes de passar à prole a vocação diabólica, as 
bruxas costumavam ainda se metamorfosear em animais. 
Gatos e corujas eram bichos demoníacos por excelência; 
dependendo da região, a bruxa tomava de empréstimo a 
forma de outros animais, como borboletas negras ou 
cães, que, no meio camponês, frequentemente tinham 
significado negativo. O zoomorfismo visava disfarçar a 
identidade real da malfeitora e possibilitar-lhe maior 
liberdade nas ações perniciosas. A tradição folclórica e o 
conto popular abundam em casos de animais que 
roubavam galinhas, comiam ovos, faziam desordens, 
eventualmente atacavam pessoas e, uma vez feridos, 
acusavam a verdadeira natureza: um gato que macerara a 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 25 - 
perna certa noite transformava-se, no dia seguinte, em 
velha capenga, com uma chaga delatora. 
A afeição das bruxas pelos bichos manifestava-se 
ainda no hábito de terem espíritos familiares zoomórficos. 
Os familiares foram comuns, sobretudo na bruxaria 
inglesa, e serviam de assistentes às suas mestras: gatos, 
ratos, cães, moscas ou insetos que se alimentavam muitas 
vezes do sangue das bruxas, ou nela mamavam como os 
sapos celebrizados pelo Auto de Fé de Logroño, no País 
Basco espanhol. Admitia-se que tivessem sido gerados de 
cópulas havidas entre bruxas e o Demo. Muitos tinham 
nomes: em 1583, em Saint Osyth, Inglaterra, Margerey 
Barnes foi acusada de ter em seu poder três demônios 
familiares – Pygine, parecido com um rato; Russoll, 
parecido com um gato cinza; Dunsott, semelhante a um 
cão pardo –, habilitados a encantarem pessoas e bichos, 
com sério prejuízo – diz um documento – para o povo 
governado pela rainha Elizabeth. Mattew Hopkins, como 
se verá adiante, foi um grande caçador de bruxas na 
Inglaterra cromwelliana, e teve especial inclinação para 
perseguir bruxas com demônios familiares: eram épocas 
difíceis para os amantes de animais domésticos, observou 
o historiador Parrinder. Nutrir afeição especial por um 
gato chamado Germany ou Vinegar Tom, possuir pássaros 
ou cachorros e tratá-los com carinho chegou a custar 
vidas. 
 
 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 26 - 
Especificidade moderna 
 
Perfumistas e fabricantes de filtros do amor, como as 
Celestinas do Renascimento; conhecedoras dos poderes 
curativos de certas ervas e raízes, como muitas das 
feiticeiras da Europa rural; assassinas de crianças e 
detentoras de forças negativas que lesavam plantações e 
colheitas, como Françouneto, existiram desde a 
Antiguidade. A diferença moderna residia no fato de que 
essas práticas, antes consideradas malefícios, passaram a 
ser vistas como crime de bruxaria, realizado sob 
intervenção demoníaca e passível de ser punido com a 
forca ou a fogueira. Para realizá-lo, a feiticeira ou bruxa 
buscava forças num pacto que contraía com o Príncipe 
das Trevas, muitas vezes dando-lhe sangue ou com este 
assinando o escrito em que entregava a alma ao Demônio 
em troca de vantagens materiais e de prestígio. Norman 
Cohn, historiador inglês que escreveu um livro original 
sobre feitiçaria , observa que a magia medieval lidava 
frequentemente com o conjuro de demônios que eram 
invocados pelo mago e por ele sujeitados, devendo servi-
lo. Os demônios familiares, de certa forma, atrelam-se a 
essa tradição medieval de conjuro. Com o pacto, 
entretanto, surge um comportamento novo: é o Demo 
que passa então a sujeitar, escravizando aquele que lhe 
entrega a alma. Assim, ao contrário do que pode parecer 
à primeira vista – de que o pacto é um contrato medieval 
de vassalagem –, o pacto é um elemento moderno, 
característico dos tempos que se iniciam. 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 27 - 
Nasce o sabbat 
 
A ocorrência do sabbat é a grande mudança no que 
diz respeito à bruxaria. Segundo vários autores, é ela que 
serve para distinguir a bruxaria e feitiçaria. O primeiro 
registro de um sabbat é de 1330-40, num processo da 
Inquisição de Carcassonne e de Tolosa. Desde então, 
passaria a frequentar a imaginação aterrorizada de 
eclesiásticos e leigos, homens cultos e camponeses 
analfabetos, fundindo os mitos mais diversos da cultura 
ocidental. 
Apesar de sua descrição sofrer variações, o sabbat 
era uma
grande assembleia demoníaca realizada numa 
clareira e frequentada por homens e mulheres das mais 
diversas condições sociais. Presidia-o o Demônio ou então 
um dos demônios auxiliares, que sempre se achavam 
presentes em número considerável. A forma demoníaca 
variava: ora humana, ora animal, como um grande bode 
negro. O mais comum, entretanto, é que congregasse 
elementos humanos e zoomorfos, somando-se num todo 
disparatado e desarmonioso, próprio daquele que era o 
Macaco de Deus. Homens como Del Rio e De Lancre 
apresentavam-no assim, meio homem, meio animal, 
referindo-se evasivamente à sua fisionomia: “rosto 
obscuro, moreno e sujo, o nariz disformemente 
esborrachado ou então enormemente aquilino, a boca 
aberta e profundamente fendida, os olhos fundos e muito 
brilhantes (...)”, diz Del Rio; o rosto “triste e crispado”, 
com “uma coroa de pequenos cornos” na fronte, na qual 
se destacavam três “muito grandes, semelhantes a cornos 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 28 - 
de bode, um na parte da frente da cabeça, os outros dois 
na de trás”, sendo que do primeiro emanava uma luz 
“menos brilhante que a do sol, mas mais intensa que a da 
lua, e que clareava toda a assembleia”, relata De Lancre. 
No sabbat, dançava-se, tocava-se música, comiam-
se pratos extravagantes, mas insípidos, preparados sem 
sal. Os alimentos eram às vezes sexualizados: as bruxas 
levavam à assembleia salsichas, pés de porco e cenouras, 
sugestivos pela forma fálica, impudica. Adorava-se o 
Diabo reverenciando-o com uma missa às avessas e com 
beijos em sua cauda e ânus. Depois, era a orgia total, 
sem distinção de sexos e com a participação dos 
demônios familiares em forma de animais. Ocorriam às 
vezes sacrifícios humanos ou caldeiradas de crianças, 
muito apreciadas. Ainda nos dizeres de De Lancre, “ao 
invés de pregar a virtude”, pregava-se “todo tipo de vício, 
de irreligião, de impiedade e de impostura”. Mais do que 
os sacrifícios humanos e do que a inversão da religião 
cristã, o sabbat celebrava a sexualidade desenfreada, a 
entrega total de homens e mulheres ao Diabo. No final do 
século XVI, segundo Jacques Solé, amadureceu simulta-
neamente a tese mística das núpcias espirituais e o 
conceito de casamento diabólico. A sexualidade maldita 
representaria uma inversão do amor sagrado, mas, como 
ele, traduzindo-se em linguagem religiosa. O historiador 
inglês Hugh Trevor-Roper também fez observações nesse 
sentido: “Era assim que as virgens piedosas, que se 
votavam a Deus, se consideravam noivas de Cristo, e as 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 29 - 
bruxas, menos piedosas, tendo-se ligado a Satã, se 
consideravam as suas concubinas”5. 
Para ir ao sabbat, as bruxas se esfregavam com 
unguentos especiais dados pelo Diabo ou confeccionados 
segundo receitas diabólicas, expressamente aviadas para 
esse fim. Saíam voando pelas janelas, em vassouras, e 
tinham a capacidade de simular uma sósia, que ficava 
dormindo na cama enquanto a assembleia se desenrolava, 
ludibriando maridos e progenitores. Em geral, bruxas mais 
velhas iniciavam as jovens, levando-as pela primeira vez à 
reunião e apresentando-as ao Diabo, grande apreciador 
de virgenzinhas. As bruxas diziam ser extremamente 
dolorosa a cópula que tinham com o Demônio: seu 
membro viril era disforme, escamoso, retorcido, ates-
tavam elas. De Lancre descreveu-o como sendo composto 
parcialmente de metal. O sêmen ejaculado no ato carnal 
era gélido, e as mulheres saíam muitas vezes ensan-
guentadas daquilo que estava bem longe de ser um doce 
colóquio. Manifestava-se, aqui, a vertente autoflageladora 
do erotismo no Antigo Regime, curiosamente análoga aos 
transes místicos da época, às setas incandescentes que 
trespassavam o peito de uma Santa Tereza d’Ávila. 
 
 
 
 
 
 
5
 A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII. V. “Bibliografia 
comentada”. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 30 - 
Pessessões nos conventos: crise do 
satanismo? 
 
Bodas místicas e casamento diabólico, flagelação 
sexual e êxtase místico eram duas faces de uma mesma 
moeda. Esta complementariedade se mostrou de forma 
acabada, exemplar, nos casos de possessão coletiva que 
sacudiram os conventos franceses na primeira metade do 
século XVII. O momento era conturbado: guerras 
religiosas fratricidas ensanguentavam o solo da França, 
sucediam-se os levantes populares contra a cobrança de 
impostos. 
Três desses episódios merecem destaque especial, 
dadas as dimensões que alcançaram. Robert Mandou, o 
historiador que melhor os estudou, chamou-o de 
“processos escandalosos” e os viu como “três fases 
sucessivas de um mesmo escândalo”, que envolveu freiras 
e diretores de consciência, ou seja, os seus confessores. O 
primeiro deles teve lugar em Aix-en-Provence, em 1611, e 
envolveu a ursulina Madeleine Demandols e o confessor 
Gaufridy, que acabou sendo queimado como bruxo. O 
segundo, ocorrido em Loudun, entre 1632 e 1634, foi o 
mais célebre, inspirando romances e filmes – Os 
Demônios da loucura, de Huxley, Madre Joana dos Anjos, 
Jerzy Kawalerowicz, Os demônios, de Ken Russell. Os 
principais protagonistas desse episódio foram a superiora 
de um pequeno convento de ursulinas, Joana dos Anjos, e 
o cônego do lugar, muito apreciado como pregador, 
Urbain Grandier. Por fim, o terceiro se desenrolou durante 
anos, entre 1633 e 1647, num convento de hospitalárias 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 31 - 
normandas, em Louviers, e teve como atores Madeleine 
Bavent e dois eclesiásticos, Picard e Boulé. Este último e 
Grandier tiveram sorte igual à de Gaufridy; Picard já se 
achava morto por ocasião do processo, mas, mesmo 
assim, seu cadáver foi queimado. Além das freiras citadas, 
muitas outras disseram possuídas pelo Diabo e sofreram 
exorcismos públicos assistidos por multidões. Mandrou 
detectou, nesses três episódios, o que chamou de 
“elementos do escândalo”, comuns a todos: o meio 
urbano, as freiras originárias de famílias burguesas ou de 
pequena nobreza, a presença de um padre feiticeiro, os 
conventos à mercê dos demônios, a explosão de 
rivalidades entre diferente clérigos, a ocorrência de 
exorcismos públicos, que funcionavam como elementos 
reiteradores da fé e da religião católica, aparentando-se 
das fogueiras, dos enforcamentos, dos Autos de Fé e, 
como eles, expressando a exacerbada sensibilidade 
barroca. 
 
 
 
 
 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 32 - 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 33 - 
4. A Personagem – perseguições 
 
Bruxaria e heresia 
 
No final do século XVII, as histórias de fadas – os 
contos de mamãe-ganso, como eram também conhecidas 
– deixaram de ser preservadas apenas pela tradição oral. 
Ganharam prestígio, procurando-se fixá-los em narrativas 
impressas e, com frequência, destinadas ao público 
adulto. Vestiram-se com forma literária, tornaram-se 
modelo para ficcionistas. Mademoiselle Lhéritier dizia que 
os melhores contos eram aqueles que imitavam mais 
fidedignamente “o estilo e a simplicidade das amas-de-
leite”. 
Fixados em letra impressa, os contos de fadas da 
tradição popular falavam muitas vezes do embate entre o 
Bem e o Mal. Ao lado da fada madrinha, linda e diáfana, 
medindo forças com ela lá estava a bruxa horrorosa, 
capenga, corcunda, esgafunhada. Por mais vezes que 
tenha tirado o sono de crianças e adultos – naquele 
tempo, muito menos diferentes entre si do que hoje em 
dia, como viu Philippe Ariès –, a bruxa se mostrava 
inofensiva entre as páginas dos livros setecentistas. 
Curiosamente, o século que a aprisionou em volumes 
impressos foi o mesmo que abandonou o hábito de 
queimá-la e enforcá-la em praça pública. É preciso não 
esquecer que, antes de se asilar ali, engastada nas 
gravuras, tentando botar medo com caretas muitas vezes 
pouco convincentes, habitando apenas a tradição e o
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 34 - 
imaginário popular, a bruxa tivera existência concreta e 
conhecera perseguições atrozes. 
A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, e como 
já se disse acima, indissociável da figura da bruxa 
configurada a partir do século XIV. É possível tentar 
buscar suas origens na Alta Idade Média, em bulas papais 
e determinações de bispos que condenavam a utilização 
de amuletos, de bonecos de cera que, com fins 
perniciosos, enterravam-se sob as soleiras das portas, de 
simpatias para impedir a consumação de relações sexuais. 
Entretanto, destacar a continuidade não é esclarecedor: a 
construção da imagem da bruxa e a concomitante 
perseguição que contra ela se voltou têm perfil moderno, 
específico, e se inserem num corte profundo. As perse-
guições medievais contra feiticeiras visavam extirpar os 
resquícios pagãos embutidos em suas práticas, e não 
associavam feitiçaria a heresia. O combate da Igreja ao 
malefício não se fazia de forma sangrenta, pois aquela 
não via a feiticeira como fonte do mal. Seus atos eram 
supersticiosos e, nesta qualidade, condenáveis, mas não 
sua pessoa. Na Baixa Idade Média, entretanto, a asso-
ciação começou a ser feita: a feiticeira se tornou herética, 
ganhando as cores soturnas e simultâneas de crime e 
pecado, lesando a majestade humana e a Divina. As 
primeiras acusações contra bruxas verificadas nesse novo 
contexto denotam a interpenetração de concepções 
diversas: as mulheres temíveis que frequentavam sabbats 
nelas sacrificavam criancinhas, e as devoravam em rituais 
análogos aos que, na Antiguidade, se imputaram a cris-
tãos heréticos, e desacatavam crucifixos como, dizia-se, 
faziam os judeus e os cátaros medievais. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 35 - 
A Igreja contra o grito de guerra do Inferno 
 
Em 1233, a bula Vox in rama disparou baterias 
contra aquilo que seria o primeiro ou um dos primeiros 
sabbats que se tem notícia. Mas foi no século XIV que se 
firmou a imagem moderna da bruxaria e se moldaram os 
procedimentos a serem adotados no seu combate. Em 
1376, o Manual do inquisidor, de Nicolau Emérico, propor-
cionava ao clero o instrumental teórico necessário à 
perseguição das discípulas de Satã. Desde então, 
desenvolveu-se intensamente na Europa uma tratadística 
que espelhava a guinada intransigente dada pela Igreja 
desde o século anterior e traduzia sua deliberação em não 
mais suportar “manifestações não-conformistas, mesmo 
quando portadoras de formas sacras anteriores ao seu 
advento”: a Igreja rechaçava portanto as concepções que 
precediam as suas próprias em antiguidade, perdendo-se 
em eras anteriores a Cristo6. Nesses tratados, discutiam-
se as possibilidades objetivas ou ilusórias do pacto 
demoníaco, retomando-se a tese tomista da realidade dos 
fatos mágicos e, mais atrás ainda, a crença agostiniana 
nos fatos ligados à magia. São Tomás constitui um marco 
demonizador no seio do pensamento cristão: “A fé católica 
firma que os demônios existem, que são capazes de 
causar dano e que impedem o ato carnal”, afirmava, 
ajuntando que as práticas mágicas não eram simples 
 
6
 Cf. CARDINI, Franco. Magia, stregoneria, superstizioni nell’Occidente medievale. 
Firenze, La Nuova Italia, 1979. p. 63. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 36 - 
fantasmagorias, ao contrário do que diziam os dotados de 
pouca fé7. 
Retomando São Tomás, demonizavam-se portanto 
as práticas mágicas, os malefícios com que a Idade Média 
convivera sem maiores traumas e que autores como João 
de Salisbury consideraram fruto de imaginação fértil. Mas 
foi no século XV que se assistiu à consagração da teoria 
que endossava a realidade dos fatos mágicos. Em 1484, a 
bula Summus desiderantis affectibus, de Inocêncio VIII, 
lançava o grito de guerra às bruxas, sendo seguida dois 
anos depois pelo primeiro dos grandes tratados de 
bruxaria modernos: o Malleus maleficarum ou O Martelo 
das bruxas, dos dominicanos Sprenger e Kramer. 
A primeira parte do Malleus afirma que se deve 
acreditar na ação das “maléficas” e na sua colaboração 
com o Demo, o único a poder realizar malefícios. Sustenta 
que existem demônios íncubos e súcubos hierarquizados, 
possíveis genitores de indivíduos bruxos. Arrola as 
atribuições das “maléficas”: impedir a procriação e o ato 
carnal, transformar pessoas em animais, danificar 
colheitas e plantações. A segunda parte do Malleus é mais 
narrativa, discorrendo sobre os limites dos poderes das 
bruxas e sobre o modo de as combater e aniquilar. Os 
autores acreditam que essas criaturas constituem uma 
seita, e descrevem suas cerimônias de investidura. 
Conforme observação de Caro Baroja, certas narrativas 
contidas no Malleus cheiram a estereótipo, a conto 
popular. A terceira parte trata do procedimento, e era a 
 
7
 Apud CARO BAROJA, Julio. Les sorcières et leur monde. Paris, Gallimard, 1972. p. 
97. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 37 - 
que mais de perto interessava aos autores, inquisidores 
dominicanos investidos pelo Papa da tarefa de extirpar a 
heresia. Para se abrir um processo, bastava a acusação de 
uma pessoa ou a denúncia sem provas. Entretanto, o mais 
comum era que o processo fosse aberto por um juiz, a 
partir dos rumores públicos. Em certos casos, eram 
suficientes apenas os testemunhos de crianças ou de 
inimigos do acusado. O julgamento deveria ser simples, 
rápido e sem apelação. O juiz tinha poderes plenos, 
podendo autorizar ou negar a defesa ao acusado, 
escolher-lhe o defensor ou colocar as condições de 
defesa. Parecia antes um promotor do que um juiz, e 
recorria à tortura quando achasse necessário. 
 
O instrumental da perseguição 
 
Tanto o Manual do inquisidor como o Malleus 
maleficarum tiveram grande influência sobre os 
procedimentos adotados no final do século XV e na 
primeira metade do século XVI pelas Inquisições ibéricas, 
que em Portugal e na Espanha encetaram a perseguição a 
hereges – mouros, judeus, conversos, bruxos, magos, 
adivinhos. Apesar de se ter originado em meio 
eclesiástico, esse tipo de procedimento ganhou também a 
Justiça Civil, sendo adotado pela maioria dos tribunais 
laicos que julgaram crimes de feitiçaria na Europa. Diz 
Bartolomé Bennassar que no Ocidente, até o fim do 
século XVIII, “todo procedimento é de natureza 
inquisitorial, com a única exceção da Inglaterra após a 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 38 - 
Grande Revolução”8. Havia interpenetração nas 
atribuições, os limites das dos tribunais civis confundindo-
se muitas vezes com os dos eclesiásticos e inquisitoriais, 
estes dois últimos sendo diversos um do outro. Mas a 
tendência geral foi de que, em solo ibérico, em Roma e no 
norte da Itália os crimes de bruxaria se julgassem pelas 
respectivas Inquisições, enquanto as bruxas inglesas e 
francesas se viam às voltas com tribunais civis. Por toda 
parte, entretanto, o pacto demoníaco foi o “tema 
fundamental em torno do qual poderia ser construída a 
imagem teológico-jurídica de uma feitiçaria de fato 
herética”9. Por toda parte via-se heresia na invocação ao 
Demônio com súplicas, ou seja, com sujeição; afinal, 
sujeitar-se, só a Deus. 
 
As matanças 
 
Lançado o grito de guerra da Igreja, seguiram-se as 
atrocidades. Henninsen estima que 20.000 pessoas foram 
queimadas na Europa Moderna, as diferentes regiões 
conhecendo surtos de intensidade variável em momentos 
diversos. A perseguição incidiu basicamente sobre as 
mulheres. Em 1585, duas aldeias alemãs teriam ficado 
com um único habitante do sexo feminino cada10. Em 
termos gerais, o auge de repressão se situaria entre 1560 
e 1630; a última execução registrada na Europa ocorreu 
em 1781, às vésperas da Revolução Francesa. No século 
 
8
 La pégagogie de la peur. In: –, org. L’Inquisition espagnole – XVe-XIXe siècles. Paris, 
Hachette, 1979.
p. 76. 
9
 CARDINI, Franco. Op. cit., p. 76. 
10
 TREVOR-ROPER, Hugh. Op. cit. p. 116. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 39 - 
XVI, verificaram-se perseguições maciças nos Alpes 
italianos, na Bélgica, no sudoeste alemão. O flagelo não 
poupou nem mesmo Portugal, onde entretanto foi muito 
mais tênue do que no resto da Europa: em 1559, 
queimaram-se 5 bruxas em Lisboa. Mas, a acreditar nas 
fontes, foi na Lorena e no Languedoc – na França, 
portanto – que a caça às bruxas atingiu então o 
paroxismo: naquela região houve cerca de 3.000 
execuções entre 1576 e 1606, enquanto, nesta última, 
400 apenas no ano de 1577. No século XVI, ocorreu 
mudança na geografia da caça às bruxas: entre 1616 e 
1619, 300 mortes na Catalunha; trinta anos depois 
verificava-se o ápice da repressão na Inglaterra, durante o 
período Cromwell e sob o comando de Mattew Hopkins, 
perseguidor lendário e feroz. Mais para o fim do século, 
ocorreram os surtos escandinavos: 70 execuções na 
Suécia (1660-1670) e 152 na Finlândia (1665-1684). Na 
primeira metade do século XVIII, ocorreu um surto 
extemporâneo na Polônia. Isso sem falar nos inúmeros 
processados e condenados que não morreram na fogueira 
ou na forca, mas que, independente disto, tiveram suas 
vidas destroçadas pelos processos sofridos, como se verá 
logo adiante. 
Para Munchembled11, o vigor variável da repressão 
justifica que se dividam os países atingidos em dois 
blocos: a Alemanha, a Suíça, a região jurássica, os Países 
Baixos espanhóis (aproximadamente, a Bélgica atual), a 
França e a Inglaterra “viram de fato se desenrolar uma 
 
11
 Satan ou les hommes? La chasse aux sorcières et ses causes. In: DUPONT-
BOUCHAT, Marie-Sylvie et al. Op. cit., p. 17. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 40 - 
desenfreada caça às bruxas, o prêmio neste sentido 
cabendo aos sanguinários juízes de Lorena e sobretudo do 
sudoeste alemão”. Por sua vez, as regiões nórdicas, 
orientais e mediterrâneas tiveram perseguições menos 
severas: na Itália, apenas a Inquisição veneziana mostrou 
certa crueldade, e na Espanha destacou-se mais a 
perseguição movida contra o País Basco. 
 
Intimidações, confissões, torturas 
 
Independente do número de bruxas executadas, 
alguns processos se tornaram célebres: o de Logroño, na 
Espanha (1610), o de Lancashire, na Inglaterra (1612), os 
já aludidos julgamentos de Aix-en-Provence, Loudun e 
Louviers, na França. Neles, atuaram alguns dos mais 
famosos demonólogos da Época Moderna, que, no caso, 
eram também magistrados: entre 1576 e 1591, na 
Lorena, Nicolau Rémy condenou cerca de 900 pessoas à 
morte; no final do século XVI, Henrique Boguet 
aterrorizou, com seus julgamentos, a população do 
Franco-Condado; a partir de 1609, Pierre de Lancre, 
enviado por Henrique IV, perseguiu com sanha os 
suspeitos de bruxaria do Labourd. A experiência fecundou 
seus principais trabalhos: Demonolatreiae libri tres, de 
Rémy (1595), Discours des sorcièrs, de Boguet (1602), 
Tableau de l’inconstance des mauvais anges, de De 
Lancre (1612). Para Baroja, eles compõem “a trindade dos 
juízes franceses, que se distinguiram tanto pela violência 
como pela cultura”12. De De Lancre, foi dito que era 
 
12
 Op. cit., p. 137. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 41 - 
“magistrado barroco, galante e alegre que mandava 
pessoas à fogueira como quem vai ao baile”13. Junta-
mente com Boguet, De Lancre vulgarizou o hábito de 
lançar mão do depoimento de velhos e crianças sob 
tortura. 
A confissão era imprescindível por constituir a chave 
do sistema penal do Antigo Regime. Assim, recorria-se à 
tortura para extorqui-la, o procedimento jurídico 
assentando-se na arbitrariedade e na intimidação. A 
Época Moderna torturou muito mais do que a Idade 
Média, por tanto tempo denominada Idade das Trevas. No 
caso da bruxaria, havia que confessar o pacto demoníaco. 
A tortura física não era o único meio para produzir 
confissões; havia os longos períodos de isolamento nos 
cárceres. Na Alemanha, o bispo-príncipe João Jorge II 
Fuchs von Dornheim ficou célebre pelas atrocidades que 
cometeu, tornando-se conhecido como Hexenbischof, ou 
“bispo das bruxas”. Conta Trevor-Roper: 
 
uma das suas vítimas foi o chanceler do bispo, o Dr. Haan, 
queimado como bruxo por ter demonstrado uma clemência 
suspeita como juiz. Submetido à tortura, confessou ter visto cinco 
burgomestres de Bamberg no sabbat, e também estes foram 
queimados. Um deles, Johannes Julius, submetido a torturas 
atrozes, confessou ter renunciado a Deus e se consagrado ao 
Demônio e visto vinte e sete colegas no sabbat. Mais tarde, porém, 
de volta à prisão, conseguiu enviar às escondidas uma carta à filha 
Verônica, contando o seu julgamento. “E agora, minha querida 
filha”, concluía, “aqui tens todos os meus atos e confissões, pelos 
quais devo morrer. É tudo falsidade e invenção; assim, Deus me 
ajude (...). Nunca param de torturar enquanto não se diz alguma 
 
13
 SOLÉ, Jacques. L’Amour en Occident à l’Époque Moderne. Paris, Albin Michel, 1976. 
p. 138. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 42 - 
coisa (...). Se Deus não enviar um meio de revelar a verdade, toda 
a nossa espécie será queimada”14. 
 
A tortura podia inutilizar uma vida. Em 1678, a viúva 
Isabel Wilverdange, de 65 anos, e seu filho João Francisco 
permaneceram três meses na prisão e foram 
barbaramente torturados. Nada tendo confessado, as 
autoridades consentiram que, se quisessem, poderiam 
deixar a prisão. Mas Isalbel, “muito maltratada” pelos 
instrumentos da tortura, achava-se incapaz de ficar de pé 
e caminhar. A sobrinha, Madalena Pidard, foi buscá-la na 
prisão e, compadecida, carregou-a nas costas até sua 
casa. Deitou-a na cama, onde ficou imóvel, o corpo todo 
ferido, os membros deslocados, 
 
sem poder se mover, nem andar, nem sair da cama, e se acha 
desolada e aflita em virtude de sua longa prisão e frialdade que 
sofreu, os pés estão enregelados e quase totalmente apodrecidos, as 
unhas lhe caem dos dedos das mãos e dos pés. Ela tem inchaços 
extraordinários sob os braços, não podendo suspender até a cabeça. 
E não se encontra aflita apenas com as dores em todos os membros 
do seu corpo, mas também se encontra despojada de todos os seus 
pequenos bens móveis e imóveis, que os da assim chamada Justiça 
venderam para custear o que dizem ter sido seus gastos (...)15. 
 
Assim como a execução, a tortura integrava a 
pedagogia do medo, que assombrou a Época Moderna. 
Em 1578, reeditando e atualizando o Manual que Emérico 
escrevera dois séculos antes, Francisco Peña dizia: “É 
preciso lembrar que a primeira finalidade do processo e da 
 
14
 Op. cit., p. 121. 
15
 Petição dirigida ao Conselho de Luxemburgo a 25 de janeiro de 1678, da parte de 
uma viúva de Houffalize, Isabel Wilverdange. Apud DUPONT-BOUCHAT, Marie-Sylvie 
et al. Op. cit., p. 109-10. Grifo meu. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 43 - 
condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas 
buscar o bem público e aterrorizar o povo (...). Nenhuma 
dúvida há de que instruir e aterrorizar o povo com a 
proclamação das sentenças, a imposição dos sambenitos 
seja uma boa ação”16. Inerte, imóvel, macerada, 
destruída, Isabel Wilverdange era um espetáculo aterro-
rizador, necessária como exemplo vivo e, por isso mesmo, 
passível de ser libertada, de sair da prisão, se assim o 
quisesse. 
 
O despontar do ceticismo 
 
Como já foi dito, Alonso de Salazar y Frías acreditava 
que falar de bruxas fazia com que proliferassem. No 
século XVIII, foi-se mais além: vários ilustrados 
estabeleceram a relação entre a caça às bruxas e a 
proliferação das acusadas. Na Espanha, B. J. Feijoo 
somou as duas posições: 
 
Houve certa época, nas regiões onde grassava este flagelo, uma 
extrema credulidade entre
os que coletavam informações, muita 
imbecilidade entre os delatores e testemunhas e muita vaidade entre 
os próprios acusados. Na sua maioria, delatores e testemunhas eram 
camponeses propensos – com por toda parte – a atribuir à feitiçaria 
mil fatos devidos unicamente à natureza ou à arte. A extrema 
violência dos processos e a frequência dos suplícios viravam a 
cabeça a muitos daqueles pobres diabos, que, uma vez acusados, 
acreditavam piamente que eram bruxos, passando a reconhecer 
como verdadeiras as culpas que lhes eram amputadas, apesar de 
completamente falsas. Eis o efeito natural do terror extremo que 
desequilibra os espíritos frágeis. Alguns dos juízes eram quase tão 
crédulos quanto os delatores e suas vítimas. E se os juízes de hoje 
 
16
 Apud BENNASSAR, Bartolomé. Op. cit., p. 108. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 44 - 
em dia se lhe assemelhassem, bruxos ou bruxas seriam tão 
numerosos quanto no passado17. 
 
Apesar de perceber que os aparelhos de poder 
reproduzem a violência e o comportamento que visam 
reprimir, as críticas setecentistas traziam ranço 
profundamente preconceituoso em relação às crenças e 
atitudes populares. A crença em crimes de bruxaria cedeu 
lugar ao ceticismo, que passou a ridicularizá-la. Acreditar 
em bruxas tornou-se algo risível, próprio de pessoas 
ignorantes, incultas, desprovidas de discernimento e de 
razão. Esta, por sua vez, tornava-se instrumento de 
poder. Os philosophes da República das Letras não veriam 
nas bruxas os seres aterrorizadores de antes. Achavam-
nas grotescas, e as desprezavam: afinal, como diz o 
historiador Lynn Thorndike, as bruxas não tinham 
biblioteca, eram tributárias da cultura popular e 
basicamente oral. Foi assim que o século XVIII deixou de 
temer as bruxas. 
 
Encruzilhada de discursos 
 
As teorizações de teólogos e juristas foram decisivas 
no combate movido às bruxas e, como se viu, em muitos 
casos dependeram dele. Uma leitura apressada talvez 
concluísse que as teorias determinaram as perseguições. 
Isto pode ser verdadeiro para algumas regiões, e o é 
certamente para muitos casos de repressão no meio 
urbano. Mas está longe de constituir regra. Nos campos e 
 
17
 Cartas Eruditas y curiosas..., apud CARO BAROJA, Julio. Op. cit., p. 238. Grifo meu. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 45 - 
nas pequenas aldeias francesas, comunidades 
camponesas e aldeãs realizaram perseguições duríssimas 
contra aquelas que viam como feiticeiras – verdadeiros 
pogroms que, para Ladurie, foram muito comuns no 
Antigo Regime, persistindo mesmo após a racionalização 
do aparelho judiciário. Também na Inglaterra a 
perseguição teve base comunitária, popular; alguns 
autores chegam a sugerir que independeu da repressão 
oficial, traçando caminho próprio. Mulheres acusadas de 
feitiçaria eram linchadas pela população; buscava-se, 
desta forma, combater o caráter tradicional do malefício e 
não a adoração ao Diabo, abordada pelos demonólogos. 
Para Keith Thomas, seria peculiaridade inglesa o fato de 
se perseguir a feitiçaria com base antes no seu caráter 
antissocial do que no herético. 
O caso inglês apresenta interesse por dar maior 
transparência à grande encruzilhada de discursos que é a 
bruxaria. Malefício e adoração ao Diabo são práticas 
diversas que acabam por se identificar na repressão e 
através dela. Poder-se-ia dizer que o malefício tem caráter 
mais popular, a adoração ao Demo correspondendo à 
formulação erudita. Entretanto, isso seria desprezar o 
processo de coagulação encetado pela bruxaria ao longo 
de sua existência. Durante duzentos anos – aproxima-
damente entre 1500 e 1700 – o mito do sabbat penetrou 
o meio rural e demonizou o malefício; mas não era o 
próprio sabbat uma superstição de práticas e crenças 
milenares, uma colagem de elementos de cultura erudita 
e popular? 
Sem querer avançar sobre as teorizações – objeto do 
próximo tópico deste trabalho –, caberia citar 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 46 - 
textualmente três autores que, voluntária, ou 
involuntariamente ajudam a ler a bruxaria como 
superposição de discursos e de práticas que, por determi-
nadas circunstâncias, passaram a ser alvo de intensa 
repressão na Época Moderna. O primeiro deles é Marie-
Sylvie Dupont-Bouchat, para quem a caça às bruxas é 
vista como “vasto empreendimento de expropriação 
dirigido contra a cultura e as tradições populares. O poder 
central, ou urbano, se impõe contra os poderes locais; a 
cultura erudita, contra a popular”18. O segundo é Trevor-
Roper, que ao comentar a ocorrência de inúmeros 
tratados demonológicos, observa: “facilmente se constata 
que as baterias da erudição estavam prontas a abafar a 
voz fraca e isolada da dissensão”19. O terceiro é Voltaire, 
que remete ao início deste tópico e, por enquanto, fecha 
nossa discussão: 
 
É uma pena enorme que hoje não haja mais possessos, mágicos, 
astrólogos, gênios. Não se pode imaginar a importância que tinham 
todos esses mistérios há cem anos. Toda a nobreza vivia então em 
seus castelos. As noites de inverno são longas: morrer-se-ia de tédio 
sem essas nobres distrações. Não existia castelo a que não 
acorresse, em dias marcados, uma fada, como Melusina no castelo 
de Lusignan. O monteiro-mor, homem magro e escuro, caçava com 
uma matilha de cães negros na floresta de Fontainebleau. O Diabo 
torcia o pescoço do marechal de Fabert. Cada aldeia tinha seu bruxo 
ou sua bruxa; cada príncipe tinha seu astrólogo; todas as damas 
queriam ouvir sua sorte; os possessos corriam pelos campos; todo 
mundo tinha visto o Diabo ou esperava vê-lo; tudo isso era motivo 
de conversas inesgotáveis, que tiravam o fôlego das pessoas. Hoje, 
joga-se insipidamente o baralho, e é uma pena que sejamos 
descrentes20. 
 
18
 Op. cit., p. 92. 
19
 Op. cit., p. 117. 
20
 Dictionnaire philosophique, apud CARO BAROJA, Julio. Op. cit., p. 237. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 47 - 
 
O ceticismo ilustrado ante as superstições populares 
não se manteve, entretanto, alheio a elas. Voraz, 
incorporou-as nas páginas coloridas das histórias da 
carochinha, deslocando-as do contexto original, oral, 
alterando-lhes o sentido e infantilizando-as. Talvez essa 
tenha sido a forma encontrada pelo inconsciente coletivo 
para colocar uma pedra sobre um dos episódios mais 
terríveis da história do homem na Terra. Hoje, só crianças 
acreditam em bruxas, espreitando da janela o vulto 
escuro que cavalga a vassoura pelos ares afora. “As 
crianças constituem a mais conservadora das sociedades 
humanas”, constatou Philippe Ariès, acrescentando logo 
depois: “A infância é o reservatório dos usos abandonados 
pelos adultos”21. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
21
 Op. cit., p. 63 e 67. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 48 - 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 49 - 
5. As teorias 
 
Demonólogos, racionalistas e historiadores 
 
Para os demonólogos dos séculos XVI e XVII, as 
causas da bruxaria se deviam à ação do Diabo sobre a 
Terra; auxiliavam-no discípulos humanos, e juntos 
visavam atingir o plano divino de organização do 
Universo. Esses asseclas demoníacos eram os bruxos, 
aficcionados de um culto secreto, o sabbat. Os demônios, 
os bruxos e suas práticas constituíam uma Contra-Igreja, 
que devia ser destruída para a maior glória de Deus. 
No século XVIII, com o surgimento do racionalismo, 
essa explicação deixou de ser unanimemente aceita, e a 
bruxaria passou a ser identificada, com frequência, à 
superstição e à ignorância. Mas não desapareceram de 
todo os que acreditavam em bruxas e no seu potencial 
virulento. 
Ceticismo e credulidade encontram-se na raiz de dois 
enfoques possíveis quanto à abordagem do fenômeno da 
bruxaria,
ambos surgidos no século XIX: o romântico e o 
racionalista. O florescimento da antropologia e o contato 
com as práticas mágicas de povos ditos primitivos 
permitiram, em nossos dias, que um terceiro enfoque, o 
antropológico, se somasse aos dois anteriores. 
Seria exaustivo arrolar os autores que, nos dois 
últimos séculos, de uma forma ou de outra se engastaram 
nessas tendências. Por outro lado, qualquer classificação 
é, não raro, arbitrária e sempre simplificadora, perdendo-
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 50 - 
se a riqueza e complexidade de certas interpretações. Mas 
classificar é perdoável quando o objetivo é didático. 
 
A vertente romântica 
 
A bruxaria é concreta 
 
A grande síntese romântica da bruxaria foi feita por 
Michelet, em 1862. Entretanto, cabe inserir o grande 
historiador francês na linhagem dos que, antes dele, 
acreditaram na realidade dos fatos mágicos e da 
sociedade das bruxas: a historiografia alemã, introdutora, 
no século XIX, da tese da bruxaria como revivescência 
pagã. 
Há nuanças dentro dessa perspectiva. Em 1828, 
Ernst Jarcke via a bruxaria como religião natural comum 
aos germânicos pagãos dos tempos antigos. Franz Joseph 
Mone (1839) introduziu variação ao tema: afirmava que a 
bruxaria era culto derivado de cultos anteriores ao 
Cristianismo, mas não via sua origem na religião 
germânica e, sim, em prática subterrânea e esotérica 
exercida pelos estratos mais baixos da população, nos 
quais, por caminhos vários, teria penetrado o culto a 
Hécate e a Dionísio. 
Norman Cohn faz um apanhado geral desse 
momento da historiografia sobre bruxas: 
 
Nenhuma dessas teorias é convincente (...) nem Jarcke nem Mone 
têm condições de demonstrar que o culto aos deuses antigos – 
germânicos ou gregos – tenha sido realmente praticado por grupos 
clandestinos e organizados na Idade Média. Também não 
conseguem explicar por que razão esses grupos, após terem passado 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 51 - 
despercebidos durante quase um milênio, lograram despertar a 
atenção nos séculos XV, XVI, XVII22. 
 
Jarcke e Mone eram católicos fervorosos, tendo 
atuado junto aos jornais da época como porta-vozes de 
setores da Igreja. Suas teorias se inserem num contexto 
de violenta hostilidade à Revolução Francesa, quando se 
desencadeara, nos círculos conservadores, um misto de 
obsessão e pavor pelas sociedades secretas. Não se 
simpatizava, portanto, com as seitas de bruxos e bruxas. 
 
Servos X senhores 
 
Apresentando ponto de vista semelhante, Michelet 
inverteu, entretanto, a abordagem dos alemães: em A 
bruxa, vê a bruxaria como protesto justificável de servos 
medievais contra a ordem social que os sufocavam. 
Para ele, o Cristianismo golpeara os grandes deuses 
pagãos, mas não conseguira dar cabo dos menores, que 
povoavam o imaginário das populações rurais e conti-
nuavam identificados às forças da Natureza – montes, 
bosques e nascentes –, abrigando-se ainda no universo 
doméstico e feminino dos lares. Michelet acreditava na 
ocorrência dos sabbats: neles, os servos se vingariam de 
uma ordem religiosa e social profundamente opressiva, 
caçoando do clero e dos nobres, renegando Jesus e 
celebrando missas negras em louvor a Lúcifer, 
identificando Baco a Pã. Sua sacerdotisa era a bruxa, filha 
da miséria e de um contexto desesperado, como foi o do 
feudalismo agonizante. 
 
22
 Los demonios familiares de Europa (trad.). Madrid, Alianza Editorial, 1983. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 52 - 
Para Michelet, a bruxa representava a tendência de 
reinserir na Natureza a prática cotidiana e de 
conhecimento do mundo, desestruturadas pelo triunfo do 
Cristianismo. A feiticeira era uma sacerdotisa das forças 
naturais: os corvos cortejavam-na, os lobos a saudavam 
com timidez, o urso a respeitava de longe; carregava em 
si as contradições e os antagonismos inerentes à própria 
Natureza. Como o Demônio, corporificava o saber 
empírico, popular, não estrangulado pela crença cristã, e 
contribuiu diretamente para o triunfo do espírito da 
Natureza e das Ciências Naturais no século XVIII. 
 
Paganismo e rituais de fertilidade 
 
A tese da sobrevivência dos cultos pagãos no seio da 
Cristandade recebeu impulso novo com a publicação, em 
1890, de O ramo dourado, de J. Frazer. Desde então, 
firmou-se uma tendência voltada para a valorização dos 
rituais de fertilidade e abraçada por muitos adeptos, 
sobretudo na Inglaterra. Foi lá que a egiptóloga 
Margareth Murray desenvolveu estudos de grande 
repercussão: O culto da bruxaria na Europa Ocidental 
(1921) e O deus das bruxas (1931). A tese central desses 
trabalhos diz que, até o século XVII, a Europa conservou 
o antigo culto a Diana ou a Janus, divindade de cornos e 
dotada de duas faces, simbolizadoras do ciclo das 
estações e da vegetação; nessa qualidade, devia morrer e 
renascer. Tomás Beckett, na Inglaterra, Joana d’Arc e Gil 
de Rais, na França, constituíram representações nacionais 
dessa divindade. Suas mortes rituais foram necessárias à 
ressurreição do deus, representado no nível local por 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 53 - 
personagem chifrudo que os juízes e demonólogos 
tomaram por Lúcifer. As assembleias rituais eram de dois 
tipos: os esbats semanais, em que se reuniam treze 
participantes, e os sabbats, de dimensões maiores. A 
ofensiva cristã sobre a Europa dos séculos XVI e XVII 
acabou desmantelando essa religião milenar. 
Apesar de fantasiosa e duramente contestada, 
sobretudo por estudiosos recentes, a tese romântica dos 
ritos de fertilidade conservou grande prestígio nos países 
anglo-saxões. Margareth Murray escreveu o verbete sobre 
bruxaria da Enciclopédia Britânica, reeditado sucessivas 
vezes até 1966. Num período de quase quarenta anos, 
muitos estudiosos apresentaram interpretações análogas à 
sua, aproximando-se algumas vezes daquelas que a 
influenciaram: a de Michelet, a dos historiadores alemães 
do fim do século XIX, a de Frazer. Houve interpretações 
fanaticamente católicas, como a de Montagne Summers, 
História da bruxaria e da demonologia (1926), adepto da 
ideia das sociedades secretas, da realidade do sabbat e 
inimigo ferrenho do Diabo, que, como os demonólogos, 
acreditava atuante entre os homens. Houve as assentadas 
em erudição sólida e em cuidadosa pesquisa folclórica, 
resgatando crenças populares europeias para reiterar a 
ideia do culto da fertilidade, como a de Arno Runeberg, 
Bruxaria, demônios e magia da fertilidade (1947). Houve 
ainda as interpretações que se voltaram contra Murray, 
mas continuaram polemizando com ela: foi o caso de A 
razior for a goat, de Rose, que rechaça a ideia dos cultos 
de fertilidade, mas insiste na existência da seita das 
bruxas, ressaltando-lhe o aspecto sexualizado e 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 54 - 
entendendo-a como experiência extática tributária da 
religião dionisíaca da Grécia Antiga. 
Dois trabalhos mais recentes revigoraram aspectos 
das teses de Frazer, Murray e Michelet, modernizando-as: 
Bruxaria na Idade Média, de Jeffrey Russell (1972) e I 
Benandanti, de Carlo Guinzburg (1966). Neste, o 
historiador italiano revela a sobrevivência de fertilidade 
após mil anos de Cristianismo oficial. Com base em 
documentos da Inquisição do Friuli, no norte da Itália, 
num período entre 1575 e 1650, Guinzburg recria a 
história de homens e mulheres que tinham nascido 
envolvidos pela membrana amniótica, traziam-na 
suspensa ao pescoço como amuleto e, por ocasião das 
mudanças de estação, imaginavam sair noite adentro para 
combater os bruxos que lhes desejavam destruir as 
colheitas. Essas pessoas se autodenominavam 
benandanti, e acreditavam que a abundância das colheitas 
dependia dessas batalhas rituais. Após longos períodos de 
interrogatórios, a Inquisição conseguiu convencê-los de 
que eram bruxos e que frequentavam sabbats. Não 
chegaram a ser condenados, pois na Itália
de 1650 já não 
se condenavam bruxos. Guinzburg procurou incluir os 
benandanti do Friuli num conjunto folclórico mais 
abrangente, aproximando esses ritos dos combates 
simbólicos entre inverno e verão, inverno e primavera. 
Seu trabalho abriu caminho para uma série de 
investigações que destacaram a persistência de ritos, 
crenças e condutas religiosas herdadas do paganismo e 
preservadas na vida cotidiana. 
Bruxaria na Idade Média, de Russell, apoia-se 
bastante na investigação de Guinzburg, mas filia-se, 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 55 - 
sobretudo a Michelet. Muito bem fundamentado, procura 
demonstrar que a bruxaria constituía uma religião 
anticristã organizada em seita e originada a partir de uma 
heresia. A repressão, sobretudo inquisitorial, teria sido a 
grande responsável pela expansão da bruxaria. A 
hostilidade violenta da sociedade cristã possibilitou, assim, 
que ritos de fertilidade dotados de forte conotação erótica 
acabassem se metamorfoseando no temível sabbat. 
Mais recentemente, Pierre Chaunu e Emmanuel Le 
Roy Ladurie ensaiaram adesões um tanto tímidas à tese 
romântica da crença nas bruxas. Em artigo denominado 
“Acerca do fim dos bruxos no século XVII”, em que 
polemiza com Robert Mandrou, Chaunu vê o surto 
demonológico que se intensificou nos fins do século XVI 
como tradução de resistências camponesas acirradas ante 
o esforço missionário de cristianização do meio rural: 
“Quando a Igreja se torna desastradamente missionária 
nas franjas que tradicionalmente lhe opõem resistência, 
ela obriga a opções vergonhosas. A magia se torna 
bruxaria, os animistas tradicionais optam por Satã, contra 
Deus”23. Em Camponeses do Languedoc, Ladurie retoma a 
velha ideia romântica de que a bruxaria integrava a 
revolta camponesa; mas avança um pouco nesse sentido, 
definindo tal prática como forma de evasão da realidade 
assentada na inversão dos valores da camada dominante. 
Recentemente, ele se aproximou do enfoque 
antropológico, como se verá adiante. 
 
 
23
 Annales, E. S. C., 24(4): 903, jul-ago. 1969. Grifo meu. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 56 - 
A vertente racionalista 
 
A bruxaria é uma construção mental 
 
Murray, Chaunu, Ladurie e os demais autores acima 
examinados acreditam na existência concreta de práticas 
que, por motivos diversos, foram através dos tempos 
identificadas à bruxaria. A posição dos racionalistas é 
diametralmente oposta. Apresentando variações, ela se 
baseia na ideia de que a bruxaria foi uma elaboração 
mental – abstrata, portanto – dissolvida pelo racionalismo 
de fins do século XVII e do século XVIII. 
Essa análise racionalista se firmou também na 
Alemanha do século passado. Considerava a bruxaria 
como ilusão ou mito comum a épocas bárbaras. A 
vanguarda da civilização ocidental cultuava então a ideia 
de progresso, vendo nele o coveiro das perseguições a 
bruxas. Em 1843, Wilhelm Soldan propunha uma 
interpretação do fenômeno sob enfoque puramente 
intelectual; olhando para as épocas anteriores, conside-
rava-as uma sucessão de superstições submersas pela 
evolução constante do progresso. Nos diversos países 
europeus, multiplicaram-se trabalhos que giravam em 
torno dessa tese, e seria enfadonho enumerá-los. 
 
Mandrou: um marco 
 
Cabe, porém, citar os adeptos mais recentes dessa 
tendência de inspiração positivista. No final da década de 
60, Robert Mandrou publicou um estudo sobre a bruxaria 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 57 - 
que imediatamente se tornaria clássico: Magistrados e 
feiticeiros na França do século XVII (1968). O autor se 
preocupa basicamente com a questão da crise, da ruptura 
verificada no século XVII no tocante à relação entre a 
bruxaria e o universo mental dos franceses. Antes dessa 
época, a bruxaria tinha traços basicamente rurais e 
populares, sendo perseguida com sanha e sem trégua 
pelos magistrados das províncias. A partir do século XVII 
tornou-se urbana e elitista, passando a provocar dúvidas e 
indecisões na magistratura, sobretudo na Corte de Paris. 
No meio rural, o pacto demoníaco era peça básica para 
configurar crimes de bruxaria. Já nos casos escandalosos 
do século XVII não havia pacto, mas possessão, e surgiam 
elementos novos: a rivalidade entre as ordens religiosas – 
dos exorcistas, dos confessores –, a clausura em que 
viviam as freiras, a presença de médicos chamados a 
opinar sobre as possessões. Estas se multiplicavam como 
se houvesse contágio entre os conventos, o que poderia 
fazer supor uma intensificação do satanismo. Entretanto, 
Mandrou mostra justamente o contrário: os casos 
escandalosos marcaram a crise do satanismo, preco-
nizando o grande recuo de Satã: “estes processos 
rumorosos provocaram a tomada de consciência decisiva, 
a do meio judiciário mais esclarecido, informado e 
audacioso”24. 
Tomando contato com outros membros da 
intelligentsia francesa – sobretudo humanistas e homens 
de ciência –, os magistrados passaram a enxergar a 
bruxaria com novos olhos. Foi nessa época que se 
 
24
 Magistrats et sorciers en France au XVIIIe siècle. Paris, Plon, 1968. p. 196. 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 58 - 
constituiu um universo regido pela Razão, em que a 
“onipresença sobrenatural” (de Deus ou do Diabo) nos 
acontecimentos foi substituída pela busca de uma 
explicação mais racional. O estabelecimento de nova 
jurisprudência para os crimes de feitiçaria integrou, assim, 
o lento esforço do século XVII “para ultrapassar o 
obstáculo metafísico à constituição de uma ciência e de 
um pensamento assentado na Razão”. O abandono das 
acusações de feitiçaria correspondeu à substituição de 
uma representação do mundo em que o Deus do Juízo 
Final e o Príncipe das Trevas vigiavam o cotidiano e nele 
interferiam. A recusa do obstáculo metafísico se traduziu 
por um recuo de Satã, que significou também o recuo do 
medo. 
 
Um estereótipo entre muitos 
 
Em A obsessão das bruxas na Europa dos séculos 
XVI e XVII, Hugh Trevor-Roper considera a caça às bruxas 
como produto do imaginário, um entre tantos estereótipos 
criados pela cultura ocidental. A conspiração judaica teria 
sido o estereótipo da sociedade alemã; o perigo vermelho, 
o da sociedade americana contemporânea: “Na Europa 
Continental, nos dois séculos que se seguiram à 
promulgação da Bula das Bruxas, foi a obsessão das 
bruxas. A mitologia do reino de Satã implantara-se tão 
firmemente em finais da Idade Média que, nos primeiros 
séculos da Europa Moderna (...) essa mitologia se tornou 
o modelo de cristalização dos medos indefinidos da 
sociedade”. Como vários outros autores – entre os quais o 
próprio Mandrou –, Trevor-Roper se vê às voltas com a 
A Feitiçaria na Europa Moderna 
 
 
- 59 - 
contradição representada pela coexistência da Luz 
(Renascimento) e das Trevas (a perseguição a bruxas e às 
heresias): “Nesses anos de aparente iluminação, as trevas 
estavam a ganhar terreno em pelo menos um quarto do 
céu”25. Também para ele, a Ilustração inviabilizou a caça 
às bruxas: acreditar nestas significava endossar um 
sistema de mundo que a nova filosofia solapara. 
Trevor-Roper atribui balizas cronológicas e geográ-
ficas – estas, bastante contestáveis – à obsessão das 
bruxas, que teria alcançado o ponto máximo durante as 
Guerras de Religião, mostrando-se especialmente intensa 
nos países protestantes e nas terras altas, montanhosas, 
tradicionalmente refratárias ao feudalismo e afeitas a 
heresias, como a cátara. “O ar rarefeito da montanha 
alimenta as alucinações, e a intensidade dos fenômenos 
naturais – tempestades elétricas, avalanches, o degelo – 
facilmente leva os homens a acreditar numa atividade 
demoníaca”, afirma Trevor-Roper em explicação destituída 
de fundamento. 
 
Repúdio às sociedades secretas 
 
Em Os demônios familiares da Europa (1975), 
Norman Cohn também endossa a tese de que sabbats

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