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Laura de Mello e Souza Professora de História Moderna da Universidade de São Paulo A Feitiçaria na Europa Moderna - 2 - - 3 - Laura de Mello e Souza Professora de História Moderna da Universidade de São Paulo A Feitiçaria na Europa Moderna 2019 - 4 - FICHA BIBLIOGRÁFICA Dados Internacionais de Publicação S719f SOUZA, Laura de Mello e. A Feitiçaria na Europa Moderna / Laura de Mello e Souza. – São Paulo: Ática, 2019. 80 p. ISBN 85 08 01867 3 Inlcui bibliografia 1. Feitiçaria – Europa. 2. Feitiçaria – História. 3. Souza, Laura de Mello e. I. Título. II. Série. CDD 133.4094 Imagem da capa: O Sabá, Francisco Goya (1797-1798) Copyright © 2019 Todos os direitos reservados - 5 - ÍNDICE 1. O Palco ............................................................................ 9 Rupturas e permanências ............................................... 9 Entre Deus e o Diabo ..................................................... 12 2. A Personagem ............................................................. 15 Da Feiticeira à bruxa ...................................................... 15 3. A Personagem – Práticas ......................................... 19 O estereótipo da bruxa ................................................. 19 Bruxas do campo e da cidade ...................................... 21 Dinastias de bruxas........................................................ 23 Infanticídio e zoomorfismo .......................................... 23 Especificidade moderna ................................................ 26 Nasce o sabbat ................................................................ 27 Pessessões nos conventos: crise do satanismo? .... 30 4. A Personagem – perseguições ................................ 33 Bruxaria e heresia .......................................................... 33 A Igreja contra o grito de guerra do Inferno .......... 35 O instrumental da perseguição ................................... 37 As matanças ..................................................................... 38 Intimidações, confissões, torturas............................. 40 O despontar do ceticismo ............................................. 43 Encruzilhada de discursos ............................................ 44 5. As teorias ..................................................................... 49 Demonólogos, racionalistas e historiadores............ 49 A vertente romântica ..................................................... 50 A vertente racionalista .................................................. 56 A vertente antropológica .............................................. 62 Ação desencantadora da Reforma ............................. 63 Aculturação do mundo rural ........................................ 64 6. Elementos para uma conclusão .............................. 67 O olhar antropológico .................................................... 67 Os níveis culturais .......................................................... 68 Uma esperança ................................................................ 69 7. Cronologia da repressão à bruxaria na Europa .. 71 8. Vocabulário Crítico .................................................... 72 9. Bibliografia Comentada ............................................ 77 A Feitiçaria na Europa Moderna - 9 - 1. O Palco Rupturas e permanências É hábito situar, na Época Moderna, os traços definidores do homem de hoje. Foi então que seus antepassados descobriram o todo de que faziam parte, erigindo-se na parcela mais importante da Criação. A América se desvendou aos olhos europeus, completando o rol das partes do mundo por eles conhecidas. Copérnico, Kepler e Galileu demonstraram que a Terra girava em torno do Sol e integrava o seu sistema. Do bojo da desagregação do feudalismo, o capitalismo foi aos poucos, mas irreversivelmente, se consolidando, e ainda hoje pauta grande parte das relações sociais e econômicas do mundo. O tempo matematizado e posto a serviço do homem, os espaços domados no mapa dos navegantes, no furor europeu em rebatizar terras desconhecidas, na cúpula de Santa Maria das Flores, nas belas perspectivas perfeitamente geométricas dos pintores renascentistas correspondiam, entretanto, a uma das faces desse período. Em 1637, Descartes acreditava que o bom-senso era “a coisa do mundo melhor partilhada”, “naturalmente igual em todos os homens”: a Razão tudo podia; sua batalha parecia definitivamente ganha. Mas um homem como Pascal logo a seguir se confessaria atemorizado ante o silêncio eterno dos espaços infinitos, insondáveis e inacessíveis ao entendimento, e práticas cotidianas se encarregam de demonstrar como era às vezes irrisório o espaço ocupado pelo bom-sendo entre os homens. A Feitiçaria na Europa Moderna - 10 - O brilhante século XVI viu o surgimento do Antigo Sistema Colonial, das Reformas religiosas, de Estados Modernos já francamente consolidados, de uma produção artística e intelectual impressionante. Mas viu também o estabelecimento das Inquisições Ibéricas (a espanhola, na verdade, datando do final do século anterior: 1478), o horror das guerras de religião, o incremento da história inacreditável que foi a caça às bruxas. Na verdade, Ciência e Razão eram apenas uma face de realidade bem mais complexa. Enquanto as elites redescobriam Aristóteles ou discutiam Platão na Academia florentina, de Lourenço de Médicis, a quase totalidade da população europeia continuava analfabeta. Praticamente alheia à matematização do tempo, tinha seu trabalho regido ainda pelos galos e pelos sinos (exceto nos centros têxteis mais importantes da Itália e da Flandres), a vida cotidiana pautada por ritmos sazonais. A grande crise do século XIV trouxera consigo a fome, a peste, legiões de marginalizados que a economia feudal não mais conseguia abrigar e que vagavam pelas estradas europeias, sem rumo e sem dono – os masterless men, de que fala o historiador inglês Christopher Hill. Trouxera também um sentimento generalizado de medo, de pânico ante um fim iminente e muito próprio aos períodos de crise. Uma das tentativas de resposta ao medo e ao sentimento de instabilidade foi a exacerbação da religiosidade popular. Para Delumeau, um dos historiadores contemporâneos a tratar desse período, medo, sentimento de culpa, angústia coletiva constituíram um caldo de cultura privilegiado para que vicejassem novas propostas religiosas. Assim, tanto a Reforma Católica quanto a Protestante corresponderiam A Feitiçaria na Europa Moderna - 11 - ao mesmo anseio de repensar a religiosidade e tentar diminuir as distâncias que separavam a religião vivida pelas massas daquela pregada pelos teólogos e doutores da Igreja. Porque, então, os santos e os dogmas dos homens cultos diferiam profundamente daqueles que integravam a religiosidade das massas. Esta era impregnada de magismo e de elementos folclóricos, os santos sendo muitas vezes vistos como forças negativas próximas às divindades maldosas do paganismo; podiam se vingar dos homens quando se julgassem desacatados: tanto enviavam doenças como as curavam. Frequentemente, a hóstia era associada a amuletos mágicos, e na hora da consagração os fiéis se acotovelavam sobre os bancos das igrejas a fim de verem o sagrado corpo de Deus e se impregnavam de seus fluidos benéficos. Afetivizava-se a religião, procurando torná-la mais próxima e ativa, buscando respostas para a vida cotidiana. “Deixe Deus fazer o que quiser”, dizia um provérbio francês, “pois é homem de idade”. Os sentidos eram então fundamentalmente diversos dos nossos. No início da Época Moderna, a audição tinha importância maior do que a visão, o que parece próprio de uma sociedade iletrada e muito dependente da transmissão oral de conhecimento. Os monstros povoavam a vida cotidiana dos europeus, e narrativas de viagens reais revelavam acontecimentos inverossímeis e descreviam seres fantásticos. Os relatos de nossos primeiros cronistas dão exemplo disso, assim como o diário e as cartas de Colombo, em que se evidencia a decepção por não encontrar, no Caribe, sereias tão belas A Feitiçaria na Europa Moderna - 12 - como as que povoavam seu universo imaginário. Para nós, o extraordinário é que as tenha encontrado e visto: via-se então o que, a priori, tinha-se concebido mental- mente ou, tão, via-se o que se ouvira dizer. Lucien Febvre, pai da história das sensibilidades e das mentalidades, mostrou que, no século XVI, nada parecia impossível aos homens, fadados a acreditarem: a descrença não fazia parte do universo mental do homem de então. Entre Deus e o Diabo Nesse horizonte de crenças, Deus e o Diabo eram onipresentes e se justificavam mutuamente. Se o monoteísmo cristão foi construído sobre a imagem positiva de Deus, como explicar a parcela de maldade que grassava pelo mundo? O Diabo era, assim, elemento complementar e indispensável à certeza da existência de Deus. “Não pode haver Deus sem o Diabo”, repetiam à exaustão os demonólogos e teólogos do final da Idade Média e início da Época Moderna. A crença no Príncipe das Trevas – O Diabo – era bem melhor partilhada do que o bom-senso cartesiano: reis e rainhas como Henrique IV e sua sogra, Catarina de Médicis, papas como Bonifácio VIII, burgueses revolucionários, como Cromwell, economistas e filósofos, como Jean Bodin, demonólogos, como Martín del Rio e Pierre de Lancre, camponeses, artesãos, marinheiros anônimos, enfim, os mais diversos segmentos da sociedade abraçavam-na. Martinho Lutero, o Reformador, tinha a convicção de que o Demônio se A Feitiçaria na Europa Moderna - 13 - deitava regularmente entre ele e sua mulher. O historiador inglês Hugh Trevor-Roper afirma que a crença em bruxas era indissociável da filosofia da época. Os sentimentos de então também eram outros. Por um lado, a vida dura, a maior sujeição às intempéries da natureza, a iminência de crises de fome, o desconhe- cimento de explicações científicas para a origem de doenças e epidemias diluíam as fronteiras entre o mundo natural e o sobrenatural. Por outro, trabalhavam no sentido de moldar uma sensibilidade específica que, aos nossos olhos, pode parecer empedernida. O sofrimento era, às vezes, vivido com maior afastamento: documentos da região do ducado de Luxemburgo tratam cruamente de multas infligidas a pais que se descuidaram e tiveram filhos devorados por porcos. Philippe Ariès, o grande historiador da criança, da família e da morte, chamou atenção para a existência de um sentimento acerca da infância muito diverso do que se tem hoje. Assim, no século XVII, uma vizinha consolava certa parturiente às voltas com dores atrozes e que já tinha cinco “pequenos canalhas”, dizendo: “Antes que te atinjam idade para te dar muito trabalho, terás perdido a metade deles, ou talvez todos”1. A intersecção entre essa outra sensibilidade e a grande incidência de infanticídio encontrou forma privilegiada de expressão no conto popular: o Pequeno Polegar e os irmãos, abandonados pelo pai, paupérrimo, tendo que prover a própria subsistência (o que acabam fazendo com muito sucesso, sob comando do esperto anãozinho); João e Maria, 1 L’enfant et l avie familìale sous l’Ancien Régime. Paris, Seuil, 1973. p. 29. A Feitiçaria na Europa Moderna - 14 - largados na floresta pelo pai, pobre lenhador incapaz de sustentá-los. Mas o sofrimento poderia ser também vivido como espetáculo, como sublimação de pulsões obscuras e irresolvidas. Na arte, Maneirismo e Barroco trouxeram para a tela impulsos sádicos, obsessão pela tortura, evocação do sofrimento físico, repressão sexual: os inúmeros São Sebastiões crivados de flechas, as santas enforcadas, queimadas, decapitadas, flageladas, como a Santa Ágata de Zurbarán, oferecendo os próprios seios mutilados numa bandeja. As figuras irreais e distorcidas de Pontormo, Beccaffumi, Bronzino, El Greco não evocam também membros destroncados por potros, rodas e polés? Na vida cotidiana, multidões acorreram aos Autos de Fé ibéricos, a execuções bárbaras de regicidas – como a de Demiens, analisada por Foucault em Vigiar e punir –, aos suplícios de bruxas nas praças públicas das cidades ou nas clareiras e descampados do meio rural. Os membros, os quartos, a cabeça dos infelizes eram muitas vezes espetados nas pontas de postes e fincados nas margens de estradas, como fizeram com Tiradentes, em Vila Rica. Assistindo a enforcamentos e queimas de seres vivos, essas pessoas não cogitaram, como Montaigne, de que esse era um preço demasiadamente alto para se atribuir a conjeturas. Como espectadores, compactuaram das perseguições e as legitimaram, numa complexa fruição do espetáculo visual, exacerbada e barroca ela também. A Feitiçaria na Europa Moderna - 15 - 2. A Personagem Da Feiticeira à bruxa As práticas mágicas remontam à aurora dos povos, e estão presentes em todas as culturas de que se tem conhecimento, integrando o universo da religião. Entretanto, cabe desde já estabelecer uma nuança: muitas dessas práticas mágicas têm caráter acentua- damente secreto, escuso, tenebroso. Na Grécia Antiga, Circe encantava os homens e os transformava em porcos – conforme narra Homero, na Odisseia –, enquanto a paixão frustrada por Jasão levava Medeia a fabricar filtros mágicos com os piores propósitos. Canídia, feiticeira descrita por Horácio, recorria a substâncias maléficas e asquerosas para confeccionar fluidos: figo selvagem colhido sobre sepulcros, sangue de sapo, ovos e plumas de estriga, ervas de Iolcos e da Ibéria, ossos arrancados da goela de um cão em jejum, fígado e moela de crianças. Na Grécia, em Roma, entre as populações bárbaras que vieram a constituir os países europeus, as práticas mágicas, quase sempre exercidas por mulheres, apresentavam estreita relação com os cultos lunares, com as divindades ligadas à fertilidade, à noite: Hécate, Diana – que vagava de noite com um séquito de feiticeiras –, Selene e outras entidades menos famosas, como Benzozia, Frau Hole, Dama Habonda (ou Domina Abundia), Noctiluca. O substrato dessas práticas mágicas era acentuadamente pagão, e a presença de animais, como o bode, remetia antes a ritos dionisíacos do que ao A Feitiçaria na Europa Moderna - 16 - satanismo propriamente dito. Foi na Baixa Idade Média, um pouco antes de os escritos de São Tomás de Aquino ganharem notoriedade, que a magia pagã se atrelou a prática demonológicas, surgindo o Príncipe das Trevas como divindade máxima a ser cultuada. A partir do século XIV, a feitiçaria clássica – maneira pela qual se designa essa nova forma de magia – ganhou configuração precisa, desenvolvendo-se com intensidade nos três séculos subsequentes para, afinal, declinar no Século das Luzes. A demonização de práticas mágicas milenares representa, assim, um corte importante e diferenciador. Muitas são as interpretações acerca da bruxaria e da feitiçaria, e serão objeto da terceira parte deste livro. Mas, apesar da multiplicidade de interpretações, haveria uma espécie de consenso segundo o qual Circe, Medeia e Canídia seriam feiticeiras fundamentalmente diferentes das bruxas anônimas que se queimaram aos montes na Época Moderna, espalhando pela Europa, na bela imagem do historiador Robert Muchembled, uma gigantesca cruz de fogo. No primeiro caso, não haveria pacto demoníaco, e a feiticeira se encarregaria individualmente de fabricar poções e filtros mágicos com vistas a solucionar problemas com os quais se achasse envolvida. No segundo caso, ocorreria pacto – sujeição ao Príncipe das Trevas – e conjuro de demônios, invocados como auxiliares nas atividades maléficas. Além disso, as práticas seriam coletivas e as bruxas, diferentemente das feiticeiras, integrariam uma espécie de seita demoníaca. Ultimamente, tornou-se hábito fazer distinção entre bruxa e feiticeira com base na explicação antropológica: a feiticeira invoca forças maléficas e trabalha com elas; a A Feitiçaria na Europa Moderna - 17 - bruxa, por sua vez, é a própria fonte do mal, que dela emana. A diferenciação entre bruxa e feiticeira não é, entretanto, desprovida de problemas. Há línguas, como o francês, que não distinguem uma da outra, não possuindo termos adequados para tal: ambas são designadas sorcière. Por outro lado, a documentação de língua portuguesa faz uma diferenciação formal, mas não se refere a bruxas e feiticeiras como essencialmente distintas entre si: antes surgem como sinônimos, e a referência a uma ou outra parece aleatória. Definir e descrever práticas de bruxas em separado das perseguições que contra elas se fizeram é tarefa difícil e, até certo ponto, contestável. Gustav Henningsen, historiador sueco da bruxaria basca, definiu o papel da bruxa como “um papel fictício, aplicado e vazio: a bruxa não pode voar ou prejudicar alguém com seu olhar (‘mau- olhado’); a bruxaria é por definição um crime impossível”2. Ora, se assim é, bruxas são definidas e têm existência a partir do momento em que são perseguidas. Foram os caçadores de bruxas que lhes desenharam o perfil aterrorizador, estereotipado nas denúncias e no corpo de processos laicos e eclesiásticos, nos manuais de inquisi- dores, nos tratados demonológicos. Alonso de Salazar y Frias, inquisidor espanhol que reexaminou detidamente os processos bascos de Zugaramurdi, no início do século XVII, dizia que falar de bruxas fazia com que proliferassem. Antes de discorrer sobre a existência e o saber atribuído a essas criaturas, tentarei separar, no 2 El abogado de las brujas; brujeria vasca e Inquisición española. Madrid, Alizanza, 1983. p. 345. A Feitiçaria na Europa Moderna - 18 - discurso sobre a bruxaria, as personagens das perse- guições que sofreram, procurando, dessa forma, melhor caracterizar umas e outras. Sem esquecer o dito de Rimbaud acerca da bruxa sempre às voltas com as brasas do seu caldeirão: que nunca nos contaria o que ela sabe e que nós ignoramos. A Feitiçaria na Europa Moderna - 19 - 3. A Personagem – Práticas O estereótipo da bruxa Até hoje, final do século XX, as crianças ocidentais têm medo de serem roubadas por bruxas velhas feiíssimas e alcançarem destino pior do que João e Maria, acabando de fato dentro de um caldeirão fervente. A bruxa que assombra a imaginação infantil é velha, enrugada, vesga, às vezes, desdentada ou com alguns cacos negros espalhados pela boca babosa, verruga peluda no queixo protuberante ou na ponta do enorme nariz adunco, cabelos grisalhos desgrenhados, mãos ossudas e crispadas como garras de animal, corcunda, silhueta arcada para a frente, ora cruzando os ares numa vassoura, ora o andar trôpego se amparando numa bengala nodosa, a roupa preta e sem forma definida, chapéu pontudo na cabeça, voz estridente e rouca, gargalhada aterrorizante. Voando a seu lado, uma coruja ou morcego; embolando-se nas suas pernas, um gato preto. Além das crianças de carne tenra, os mais assíduos frequentadores do seu caldeirão são as asas de morcego, cabeças de víboras, dentes de dragão, moelas e fígado de animais diversos, garras de aves de rapina, raízes venenosas, mandrágoras, favas suspeitas, sapos, rãs, um ou outro rato, bigodes de leão-marinho, ervas secas, pós variados. Quem na infância não brincou de colocar ingredientes no caldeirão da bruxa, acrescentando sempre uma sujeira ou porcaria nova – taturanas esmagadas, baratas fritas, croquetes de cabelo, rabos de lagartixas? A Feitiçaria na Europa Moderna - 20 - Essa figura estereotipada da bruxa já se encontrava definida no início da Época Moderna. Mulheres sozinhas, solteironas ou viúvas constituíam a maioria das acusadas nos processos que se desenrolaram na Europa de então. Se fossem feias e velhas, a suspeita ficava ainda mais forte. Essa tendência em desprezar e condenar mulheres decrépitas constitui, segundo Delumeau, a vertente negativa do apreço renascentista pelas carnes duras das belas ninfas e das Vênus nuas. Não são poucas as representações pictóricas do período que retratam velhas desdentadas, descabeladas, de seios caídos e coxas flácidas voando em direção ao sabat ou assessorando algum demônio nos suplícios infernais. Um anônimo português do século XVI, por exemplo, retratou um intrigante diabo negro com cocar de ameríndio presidindo torturas atrozes, entre elas uma exercida por diaba velha e nua, de feições tipicamente saloias, cauda pontiaguda e pés de dragão que, lança em punho, cutuca destemida uma jovem de bela carnadura. Na Flandres, entre o fim do século XVI e início do XVII, 9 acusadas, entre 32, tinham mais de 50 anos de idade. Nos processos de Lancashire que ocorreram na Inglaterra, em 1612, ocuparam papel de destaque duas feiticeiras velhas: Elizabeth Sowtherns e Anne Whittle. Na mesma época ocorreu, em Fuentarrabía, Espanha, de a anciã Maria Garro ser acusada de aliciar jovenzinhas para a seita demoníaca. Maria Garro tinha uma agravante profusamente explorada pelos tribunais espanhóis no julgamento de Logroño (1610): era francesa, forasteira, portanto. Muitas das feiticeiras luxemburguesas presas no decorrer dos séculos XVI e XVII eram ao contexto em que A Feitiçaria na Europa Moderna - 21 - se desenrolaram as acusações contra elas: por exemplo, Jehennon viera de Liège e foi presa em Saint-Mard e Poncette tinha a alcunha de Recém-Chegada. “Pobre, sem família, geralmente viúva, ela vive retirada e não participa das atividades comuns. Seu isolamento, o mistério de que a cercam, o poder que passam a lhe atribuir farão dela um ser temível. Os pais proibirão os filhos de se aproximarem de sua casa, de aceitar o pão ou a maçã que lhes oferecer”3. Como se vê, os cuidados com que os Sete Anões cercavam Branca de Neve, proibindo-a de falar com velhas ou dela aceitar frutas, se ancoravam em tradição corrente na Europa pré-industrial. Bruxas do campo e da cidade Velhas feias, entretanto, tiveram dias passados de glória como profissionais do amor encarnavam outro estereótipo de bruxa comum no Renascimento, segundo Caro Baroja, sobretudo na região mediterrânea, reiterando a ideia de que as bruxas não tem honra. O modelo dessas rufionas seria a Celestina, de Fernando Rojas, peça teatral escrita nos primeiros anos do século XVI; ela é uma velha prostituta que solicita mulheres para homens, uma alcahueta, como se diz em espanhol. Alia a atividade de cafetina às de perfumista e bruxa fabricante de filtros amorosos e unguentos especiais. A descrição que Rojas faz de seu gabinete de trabalho é célebre, citada com frequência. 3 DUPONT-BOUCHAT, Marie-Sylvie et al. Prophètes et sorciers dans les Pays-Bas – XVIe siècles. Paris, Hachette, 1978. Ver o artigo “La répression de la sorcellerie dans le duché de Luxembourg au XVIe et XVIIe siècles”, p. 57. A Feitiçaria na Europa Moderna - 22 - Evidentemente, dada a natureza de sua atividade, Celestina era uma feiticeira urbana, e poderia ser encontrada nos grandes centros mediterrâneos da Europa Moderna: Sevilha, Barcelona, Veneza, Roma, Gênova, Florença... Já no meio rural, nas aldeias e vilarejos do interior da Europa, dominavam as bruxas acima tratadas e ainda uma ou outra jovem bonita, como a gascã Françouneto, abordada por Le Roy Ladurie. Nessa porção da Europa que permanecia meio à margem das principais artérias de comércio e que tinha suas relações sociais pautadas ainda por modelos tradicionais, a vida era lenta, regulada pelos ritmos da natureza e pelas intempéries climáticas. Keith Thomas notou que, no universo predominantemente rural, as acusações de feitiçaria revelavam tensões internas das comunidades de aldeões ou camponeses, e denotavam o pânico de arcar com a pobreza de seres improdutivos. Françouneto, por exemplo, viu-se acusada de privar da força os homens jovens e aptos ao trabalho, acabando, muitas vezes, por matá-los; atacava ainda o ato de geração, impedindo-o de ocorrer; privava os vizinhos da riqueza material, destruindo cultivos, desencadeando geadas e granizo. Em consequência, acumulava riquezas, fazendo-as crescer. Ladurie formula uma bela explicação para essa faculdade de levar os vizinhos à ruína, enquanto os próprios cabedais são aumentados: representava mentalidade de ganhos e perdas mutuamente compensados, comum às sociedades tradicionais e análogas ao corolário mercantilista de um Colbert, para quem, “para aumentar o dinheiro e o número de navios que se acham à disposição do Reino de França, é necessário diminuir do equivalente A Feitiçaria na Europa Moderna - 23 - a quantidade de um e de outros em poder dos reinos vizinhos”4. Assim, quando alguém começava a prosperar inesperadamente, despertava de imediato suspeitas de bruxaria. Dinastias de bruxas Numa sociedade pautada pela hereditariedade, havia hereditariedade diabólica. A filha de uma bruxa tinha grandes probabilidades de também se tornar bruxa. Em 1620, no Alto Saona, a primeira acusação judicial que se fez a Anne Humbert foi a de ser filha de um bruxo, Pierre Humbert. As epidemias de bruxaria que dizimaram os vilarejos da Borgonha e do Franco-Condado tiveram na hereditariedade, segundo Mandrou, o princípio decisivo de sua renovação, de geração a geração. Em Zagaramurdi, no País Basco, a bruxaria vicejou dentro de determinadas famílias. Infanticídio e zoomorfismo A precariedade da vida na época, a miséria, a incidência de doenças provocavam grande mortalidade infantil. Tanto no meio rural quanto no urbano a bruxa funcionou como espécie de bode expiatório, como aliviador de tensões geradas por esta conjuntura cruel. Um bebê nascera são, roliço, corado e, repentinamente, abandonara o peito materno, recusando alimento, definhando? Uma bruxa o chupara, matando-o. Como 4 Apud LADURIE, Le Roy. La sorcière de Jasmin. Paris, Seuil, 1983. p. 30. A Feitiçaria na Europa Moderna - 24 - fazia com as colheitas, a bruxa tinha especial inclinação em destruir o fruto das uniões entre os homens. No sul da França, acreditava-se que enforcava ou sufocava recém- nascidos em seus berços. Marie Barast, também gascã, tinha mau-olhado e com ele matara – com um simples olhar – Jacquette Colombert, uma criança que entrara em convulsões e morrera depois de alguns meses. Seu sopro também era mortífero, como o de Marie de Sansarric, acusada de enfeitiçar dessa forma uma criancinha, que ficou impossibilitada de falar ou derramar lágrimas, morrendo em seguida. O corpo das crianças sangrava ante uma bruxa; a própria Françouneto, antes de enveredar pela seara demoníaca, chegara a sofrer esse tipo de feitiço: quando bebê, seus pais ouviam com frequência um barulho estranho no seu quarto e encontravam-na fora do berço, que apresentava nas bordas gotas de sangue coalhado. Velhas, feias, sozinhas, forasteiras ou jovens, bonitas e capazes de passar à prole a vocação diabólica, as bruxas costumavam ainda se metamorfosear em animais. Gatos e corujas eram bichos demoníacos por excelência; dependendo da região, a bruxa tomava de empréstimo a forma de outros animais, como borboletas negras ou cães, que, no meio camponês, frequentemente tinham significado negativo. O zoomorfismo visava disfarçar a identidade real da malfeitora e possibilitar-lhe maior liberdade nas ações perniciosas. A tradição folclórica e o conto popular abundam em casos de animais que roubavam galinhas, comiam ovos, faziam desordens, eventualmente atacavam pessoas e, uma vez feridos, acusavam a verdadeira natureza: um gato que macerara a A Feitiçaria na Europa Moderna - 25 - perna certa noite transformava-se, no dia seguinte, em velha capenga, com uma chaga delatora. A afeição das bruxas pelos bichos manifestava-se ainda no hábito de terem espíritos familiares zoomórficos. Os familiares foram comuns, sobretudo na bruxaria inglesa, e serviam de assistentes às suas mestras: gatos, ratos, cães, moscas ou insetos que se alimentavam muitas vezes do sangue das bruxas, ou nela mamavam como os sapos celebrizados pelo Auto de Fé de Logroño, no País Basco espanhol. Admitia-se que tivessem sido gerados de cópulas havidas entre bruxas e o Demo. Muitos tinham nomes: em 1583, em Saint Osyth, Inglaterra, Margerey Barnes foi acusada de ter em seu poder três demônios familiares – Pygine, parecido com um rato; Russoll, parecido com um gato cinza; Dunsott, semelhante a um cão pardo –, habilitados a encantarem pessoas e bichos, com sério prejuízo – diz um documento – para o povo governado pela rainha Elizabeth. Mattew Hopkins, como se verá adiante, foi um grande caçador de bruxas na Inglaterra cromwelliana, e teve especial inclinação para perseguir bruxas com demônios familiares: eram épocas difíceis para os amantes de animais domésticos, observou o historiador Parrinder. Nutrir afeição especial por um gato chamado Germany ou Vinegar Tom, possuir pássaros ou cachorros e tratá-los com carinho chegou a custar vidas. A Feitiçaria na Europa Moderna - 26 - Especificidade moderna Perfumistas e fabricantes de filtros do amor, como as Celestinas do Renascimento; conhecedoras dos poderes curativos de certas ervas e raízes, como muitas das feiticeiras da Europa rural; assassinas de crianças e detentoras de forças negativas que lesavam plantações e colheitas, como Françouneto, existiram desde a Antiguidade. A diferença moderna residia no fato de que essas práticas, antes consideradas malefícios, passaram a ser vistas como crime de bruxaria, realizado sob intervenção demoníaca e passível de ser punido com a forca ou a fogueira. Para realizá-lo, a feiticeira ou bruxa buscava forças num pacto que contraía com o Príncipe das Trevas, muitas vezes dando-lhe sangue ou com este assinando o escrito em que entregava a alma ao Demônio em troca de vantagens materiais e de prestígio. Norman Cohn, historiador inglês que escreveu um livro original sobre feitiçaria , observa que a magia medieval lidava frequentemente com o conjuro de demônios que eram invocados pelo mago e por ele sujeitados, devendo servi- lo. Os demônios familiares, de certa forma, atrelam-se a essa tradição medieval de conjuro. Com o pacto, entretanto, surge um comportamento novo: é o Demo que passa então a sujeitar, escravizando aquele que lhe entrega a alma. Assim, ao contrário do que pode parecer à primeira vista – de que o pacto é um contrato medieval de vassalagem –, o pacto é um elemento moderno, característico dos tempos que se iniciam. A Feitiçaria na Europa Moderna - 27 - Nasce o sabbat A ocorrência do sabbat é a grande mudança no que diz respeito à bruxaria. Segundo vários autores, é ela que serve para distinguir a bruxaria e feitiçaria. O primeiro registro de um sabbat é de 1330-40, num processo da Inquisição de Carcassonne e de Tolosa. Desde então, passaria a frequentar a imaginação aterrorizada de eclesiásticos e leigos, homens cultos e camponeses analfabetos, fundindo os mitos mais diversos da cultura ocidental. Apesar de sua descrição sofrer variações, o sabbat era uma grande assembleia demoníaca realizada numa clareira e frequentada por homens e mulheres das mais diversas condições sociais. Presidia-o o Demônio ou então um dos demônios auxiliares, que sempre se achavam presentes em número considerável. A forma demoníaca variava: ora humana, ora animal, como um grande bode negro. O mais comum, entretanto, é que congregasse elementos humanos e zoomorfos, somando-se num todo disparatado e desarmonioso, próprio daquele que era o Macaco de Deus. Homens como Del Rio e De Lancre apresentavam-no assim, meio homem, meio animal, referindo-se evasivamente à sua fisionomia: “rosto obscuro, moreno e sujo, o nariz disformemente esborrachado ou então enormemente aquilino, a boca aberta e profundamente fendida, os olhos fundos e muito brilhantes (...)”, diz Del Rio; o rosto “triste e crispado”, com “uma coroa de pequenos cornos” na fronte, na qual se destacavam três “muito grandes, semelhantes a cornos A Feitiçaria na Europa Moderna - 28 - de bode, um na parte da frente da cabeça, os outros dois na de trás”, sendo que do primeiro emanava uma luz “menos brilhante que a do sol, mas mais intensa que a da lua, e que clareava toda a assembleia”, relata De Lancre. No sabbat, dançava-se, tocava-se música, comiam- se pratos extravagantes, mas insípidos, preparados sem sal. Os alimentos eram às vezes sexualizados: as bruxas levavam à assembleia salsichas, pés de porco e cenouras, sugestivos pela forma fálica, impudica. Adorava-se o Diabo reverenciando-o com uma missa às avessas e com beijos em sua cauda e ânus. Depois, era a orgia total, sem distinção de sexos e com a participação dos demônios familiares em forma de animais. Ocorriam às vezes sacrifícios humanos ou caldeiradas de crianças, muito apreciadas. Ainda nos dizeres de De Lancre, “ao invés de pregar a virtude”, pregava-se “todo tipo de vício, de irreligião, de impiedade e de impostura”. Mais do que os sacrifícios humanos e do que a inversão da religião cristã, o sabbat celebrava a sexualidade desenfreada, a entrega total de homens e mulheres ao Diabo. No final do século XVI, segundo Jacques Solé, amadureceu simulta- neamente a tese mística das núpcias espirituais e o conceito de casamento diabólico. A sexualidade maldita representaria uma inversão do amor sagrado, mas, como ele, traduzindo-se em linguagem religiosa. O historiador inglês Hugh Trevor-Roper também fez observações nesse sentido: “Era assim que as virgens piedosas, que se votavam a Deus, se consideravam noivas de Cristo, e as A Feitiçaria na Europa Moderna - 29 - bruxas, menos piedosas, tendo-se ligado a Satã, se consideravam as suas concubinas”5. Para ir ao sabbat, as bruxas se esfregavam com unguentos especiais dados pelo Diabo ou confeccionados segundo receitas diabólicas, expressamente aviadas para esse fim. Saíam voando pelas janelas, em vassouras, e tinham a capacidade de simular uma sósia, que ficava dormindo na cama enquanto a assembleia se desenrolava, ludibriando maridos e progenitores. Em geral, bruxas mais velhas iniciavam as jovens, levando-as pela primeira vez à reunião e apresentando-as ao Diabo, grande apreciador de virgenzinhas. As bruxas diziam ser extremamente dolorosa a cópula que tinham com o Demônio: seu membro viril era disforme, escamoso, retorcido, ates- tavam elas. De Lancre descreveu-o como sendo composto parcialmente de metal. O sêmen ejaculado no ato carnal era gélido, e as mulheres saíam muitas vezes ensan- guentadas daquilo que estava bem longe de ser um doce colóquio. Manifestava-se, aqui, a vertente autoflageladora do erotismo no Antigo Regime, curiosamente análoga aos transes místicos da época, às setas incandescentes que trespassavam o peito de uma Santa Tereza d’Ávila. 5 A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII. V. “Bibliografia comentada”. A Feitiçaria na Europa Moderna - 30 - Pessessões nos conventos: crise do satanismo? Bodas místicas e casamento diabólico, flagelação sexual e êxtase místico eram duas faces de uma mesma moeda. Esta complementariedade se mostrou de forma acabada, exemplar, nos casos de possessão coletiva que sacudiram os conventos franceses na primeira metade do século XVII. O momento era conturbado: guerras religiosas fratricidas ensanguentavam o solo da França, sucediam-se os levantes populares contra a cobrança de impostos. Três desses episódios merecem destaque especial, dadas as dimensões que alcançaram. Robert Mandou, o historiador que melhor os estudou, chamou-o de “processos escandalosos” e os viu como “três fases sucessivas de um mesmo escândalo”, que envolveu freiras e diretores de consciência, ou seja, os seus confessores. O primeiro deles teve lugar em Aix-en-Provence, em 1611, e envolveu a ursulina Madeleine Demandols e o confessor Gaufridy, que acabou sendo queimado como bruxo. O segundo, ocorrido em Loudun, entre 1632 e 1634, foi o mais célebre, inspirando romances e filmes – Os Demônios da loucura, de Huxley, Madre Joana dos Anjos, Jerzy Kawalerowicz, Os demônios, de Ken Russell. Os principais protagonistas desse episódio foram a superiora de um pequeno convento de ursulinas, Joana dos Anjos, e o cônego do lugar, muito apreciado como pregador, Urbain Grandier. Por fim, o terceiro se desenrolou durante anos, entre 1633 e 1647, num convento de hospitalárias A Feitiçaria na Europa Moderna - 31 - normandas, em Louviers, e teve como atores Madeleine Bavent e dois eclesiásticos, Picard e Boulé. Este último e Grandier tiveram sorte igual à de Gaufridy; Picard já se achava morto por ocasião do processo, mas, mesmo assim, seu cadáver foi queimado. Além das freiras citadas, muitas outras disseram possuídas pelo Diabo e sofreram exorcismos públicos assistidos por multidões. Mandrou detectou, nesses três episódios, o que chamou de “elementos do escândalo”, comuns a todos: o meio urbano, as freiras originárias de famílias burguesas ou de pequena nobreza, a presença de um padre feiticeiro, os conventos à mercê dos demônios, a explosão de rivalidades entre diferente clérigos, a ocorrência de exorcismos públicos, que funcionavam como elementos reiteradores da fé e da religião católica, aparentando-se das fogueiras, dos enforcamentos, dos Autos de Fé e, como eles, expressando a exacerbada sensibilidade barroca. A Feitiçaria na Europa Moderna - 32 - A Feitiçaria na Europa Moderna - 33 - 4. A Personagem – perseguições Bruxaria e heresia No final do século XVII, as histórias de fadas – os contos de mamãe-ganso, como eram também conhecidas – deixaram de ser preservadas apenas pela tradição oral. Ganharam prestígio, procurando-se fixá-los em narrativas impressas e, com frequência, destinadas ao público adulto. Vestiram-se com forma literária, tornaram-se modelo para ficcionistas. Mademoiselle Lhéritier dizia que os melhores contos eram aqueles que imitavam mais fidedignamente “o estilo e a simplicidade das amas-de- leite”. Fixados em letra impressa, os contos de fadas da tradição popular falavam muitas vezes do embate entre o Bem e o Mal. Ao lado da fada madrinha, linda e diáfana, medindo forças com ela lá estava a bruxa horrorosa, capenga, corcunda, esgafunhada. Por mais vezes que tenha tirado o sono de crianças e adultos – naquele tempo, muito menos diferentes entre si do que hoje em dia, como viu Philippe Ariès –, a bruxa se mostrava inofensiva entre as páginas dos livros setecentistas. Curiosamente, o século que a aprisionou em volumes impressos foi o mesmo que abandonou o hábito de queimá-la e enforcá-la em praça pública. É preciso não esquecer que, antes de se asilar ali, engastada nas gravuras, tentando botar medo com caretas muitas vezes pouco convincentes, habitando apenas a tradição e o A Feitiçaria na Europa Moderna - 34 - imaginário popular, a bruxa tivera existência concreta e conhecera perseguições atrozes. A caça às bruxas foi um fenômeno moderno, e como já se disse acima, indissociável da figura da bruxa configurada a partir do século XIV. É possível tentar buscar suas origens na Alta Idade Média, em bulas papais e determinações de bispos que condenavam a utilização de amuletos, de bonecos de cera que, com fins perniciosos, enterravam-se sob as soleiras das portas, de simpatias para impedir a consumação de relações sexuais. Entretanto, destacar a continuidade não é esclarecedor: a construção da imagem da bruxa e a concomitante perseguição que contra ela se voltou têm perfil moderno, específico, e se inserem num corte profundo. As perse- guições medievais contra feiticeiras visavam extirpar os resquícios pagãos embutidos em suas práticas, e não associavam feitiçaria a heresia. O combate da Igreja ao malefício não se fazia de forma sangrenta, pois aquela não via a feiticeira como fonte do mal. Seus atos eram supersticiosos e, nesta qualidade, condenáveis, mas não sua pessoa. Na Baixa Idade Média, entretanto, a asso- ciação começou a ser feita: a feiticeira se tornou herética, ganhando as cores soturnas e simultâneas de crime e pecado, lesando a majestade humana e a Divina. As primeiras acusações contra bruxas verificadas nesse novo contexto denotam a interpenetração de concepções diversas: as mulheres temíveis que frequentavam sabbats nelas sacrificavam criancinhas, e as devoravam em rituais análogos aos que, na Antiguidade, se imputaram a cris- tãos heréticos, e desacatavam crucifixos como, dizia-se, faziam os judeus e os cátaros medievais. A Feitiçaria na Europa Moderna - 35 - A Igreja contra o grito de guerra do Inferno Em 1233, a bula Vox in rama disparou baterias contra aquilo que seria o primeiro ou um dos primeiros sabbats que se tem notícia. Mas foi no século XIV que se firmou a imagem moderna da bruxaria e se moldaram os procedimentos a serem adotados no seu combate. Em 1376, o Manual do inquisidor, de Nicolau Emérico, propor- cionava ao clero o instrumental teórico necessário à perseguição das discípulas de Satã. Desde então, desenvolveu-se intensamente na Europa uma tratadística que espelhava a guinada intransigente dada pela Igreja desde o século anterior e traduzia sua deliberação em não mais suportar “manifestações não-conformistas, mesmo quando portadoras de formas sacras anteriores ao seu advento”: a Igreja rechaçava portanto as concepções que precediam as suas próprias em antiguidade, perdendo-se em eras anteriores a Cristo6. Nesses tratados, discutiam- se as possibilidades objetivas ou ilusórias do pacto demoníaco, retomando-se a tese tomista da realidade dos fatos mágicos e, mais atrás ainda, a crença agostiniana nos fatos ligados à magia. São Tomás constitui um marco demonizador no seio do pensamento cristão: “A fé católica firma que os demônios existem, que são capazes de causar dano e que impedem o ato carnal”, afirmava, ajuntando que as práticas mágicas não eram simples 6 Cf. CARDINI, Franco. Magia, stregoneria, superstizioni nell’Occidente medievale. Firenze, La Nuova Italia, 1979. p. 63. A Feitiçaria na Europa Moderna - 36 - fantasmagorias, ao contrário do que diziam os dotados de pouca fé7. Retomando São Tomás, demonizavam-se portanto as práticas mágicas, os malefícios com que a Idade Média convivera sem maiores traumas e que autores como João de Salisbury consideraram fruto de imaginação fértil. Mas foi no século XV que se assistiu à consagração da teoria que endossava a realidade dos fatos mágicos. Em 1484, a bula Summus desiderantis affectibus, de Inocêncio VIII, lançava o grito de guerra às bruxas, sendo seguida dois anos depois pelo primeiro dos grandes tratados de bruxaria modernos: o Malleus maleficarum ou O Martelo das bruxas, dos dominicanos Sprenger e Kramer. A primeira parte do Malleus afirma que se deve acreditar na ação das “maléficas” e na sua colaboração com o Demo, o único a poder realizar malefícios. Sustenta que existem demônios íncubos e súcubos hierarquizados, possíveis genitores de indivíduos bruxos. Arrola as atribuições das “maléficas”: impedir a procriação e o ato carnal, transformar pessoas em animais, danificar colheitas e plantações. A segunda parte do Malleus é mais narrativa, discorrendo sobre os limites dos poderes das bruxas e sobre o modo de as combater e aniquilar. Os autores acreditam que essas criaturas constituem uma seita, e descrevem suas cerimônias de investidura. Conforme observação de Caro Baroja, certas narrativas contidas no Malleus cheiram a estereótipo, a conto popular. A terceira parte trata do procedimento, e era a 7 Apud CARO BAROJA, Julio. Les sorcières et leur monde. Paris, Gallimard, 1972. p. 97. A Feitiçaria na Europa Moderna - 37 - que mais de perto interessava aos autores, inquisidores dominicanos investidos pelo Papa da tarefa de extirpar a heresia. Para se abrir um processo, bastava a acusação de uma pessoa ou a denúncia sem provas. Entretanto, o mais comum era que o processo fosse aberto por um juiz, a partir dos rumores públicos. Em certos casos, eram suficientes apenas os testemunhos de crianças ou de inimigos do acusado. O julgamento deveria ser simples, rápido e sem apelação. O juiz tinha poderes plenos, podendo autorizar ou negar a defesa ao acusado, escolher-lhe o defensor ou colocar as condições de defesa. Parecia antes um promotor do que um juiz, e recorria à tortura quando achasse necessário. O instrumental da perseguição Tanto o Manual do inquisidor como o Malleus maleficarum tiveram grande influência sobre os procedimentos adotados no final do século XV e na primeira metade do século XVI pelas Inquisições ibéricas, que em Portugal e na Espanha encetaram a perseguição a hereges – mouros, judeus, conversos, bruxos, magos, adivinhos. Apesar de se ter originado em meio eclesiástico, esse tipo de procedimento ganhou também a Justiça Civil, sendo adotado pela maioria dos tribunais laicos que julgaram crimes de feitiçaria na Europa. Diz Bartolomé Bennassar que no Ocidente, até o fim do século XVIII, “todo procedimento é de natureza inquisitorial, com a única exceção da Inglaterra após a A Feitiçaria na Europa Moderna - 38 - Grande Revolução”8. Havia interpenetração nas atribuições, os limites das dos tribunais civis confundindo- se muitas vezes com os dos eclesiásticos e inquisitoriais, estes dois últimos sendo diversos um do outro. Mas a tendência geral foi de que, em solo ibérico, em Roma e no norte da Itália os crimes de bruxaria se julgassem pelas respectivas Inquisições, enquanto as bruxas inglesas e francesas se viam às voltas com tribunais civis. Por toda parte, entretanto, o pacto demoníaco foi o “tema fundamental em torno do qual poderia ser construída a imagem teológico-jurídica de uma feitiçaria de fato herética”9. Por toda parte via-se heresia na invocação ao Demônio com súplicas, ou seja, com sujeição; afinal, sujeitar-se, só a Deus. As matanças Lançado o grito de guerra da Igreja, seguiram-se as atrocidades. Henninsen estima que 20.000 pessoas foram queimadas na Europa Moderna, as diferentes regiões conhecendo surtos de intensidade variável em momentos diversos. A perseguição incidiu basicamente sobre as mulheres. Em 1585, duas aldeias alemãs teriam ficado com um único habitante do sexo feminino cada10. Em termos gerais, o auge de repressão se situaria entre 1560 e 1630; a última execução registrada na Europa ocorreu em 1781, às vésperas da Revolução Francesa. No século 8 La pégagogie de la peur. In: –, org. L’Inquisition espagnole – XVe-XIXe siècles. Paris, Hachette, 1979. p. 76. 9 CARDINI, Franco. Op. cit., p. 76. 10 TREVOR-ROPER, Hugh. Op. cit. p. 116. A Feitiçaria na Europa Moderna - 39 - XVI, verificaram-se perseguições maciças nos Alpes italianos, na Bélgica, no sudoeste alemão. O flagelo não poupou nem mesmo Portugal, onde entretanto foi muito mais tênue do que no resto da Europa: em 1559, queimaram-se 5 bruxas em Lisboa. Mas, a acreditar nas fontes, foi na Lorena e no Languedoc – na França, portanto – que a caça às bruxas atingiu então o paroxismo: naquela região houve cerca de 3.000 execuções entre 1576 e 1606, enquanto, nesta última, 400 apenas no ano de 1577. No século XVI, ocorreu mudança na geografia da caça às bruxas: entre 1616 e 1619, 300 mortes na Catalunha; trinta anos depois verificava-se o ápice da repressão na Inglaterra, durante o período Cromwell e sob o comando de Mattew Hopkins, perseguidor lendário e feroz. Mais para o fim do século, ocorreram os surtos escandinavos: 70 execuções na Suécia (1660-1670) e 152 na Finlândia (1665-1684). Na primeira metade do século XVIII, ocorreu um surto extemporâneo na Polônia. Isso sem falar nos inúmeros processados e condenados que não morreram na fogueira ou na forca, mas que, independente disto, tiveram suas vidas destroçadas pelos processos sofridos, como se verá logo adiante. Para Munchembled11, o vigor variável da repressão justifica que se dividam os países atingidos em dois blocos: a Alemanha, a Suíça, a região jurássica, os Países Baixos espanhóis (aproximadamente, a Bélgica atual), a França e a Inglaterra “viram de fato se desenrolar uma 11 Satan ou les hommes? La chasse aux sorcières et ses causes. In: DUPONT- BOUCHAT, Marie-Sylvie et al. Op. cit., p. 17. A Feitiçaria na Europa Moderna - 40 - desenfreada caça às bruxas, o prêmio neste sentido cabendo aos sanguinários juízes de Lorena e sobretudo do sudoeste alemão”. Por sua vez, as regiões nórdicas, orientais e mediterrâneas tiveram perseguições menos severas: na Itália, apenas a Inquisição veneziana mostrou certa crueldade, e na Espanha destacou-se mais a perseguição movida contra o País Basco. Intimidações, confissões, torturas Independente do número de bruxas executadas, alguns processos se tornaram célebres: o de Logroño, na Espanha (1610), o de Lancashire, na Inglaterra (1612), os já aludidos julgamentos de Aix-en-Provence, Loudun e Louviers, na França. Neles, atuaram alguns dos mais famosos demonólogos da Época Moderna, que, no caso, eram também magistrados: entre 1576 e 1591, na Lorena, Nicolau Rémy condenou cerca de 900 pessoas à morte; no final do século XVI, Henrique Boguet aterrorizou, com seus julgamentos, a população do Franco-Condado; a partir de 1609, Pierre de Lancre, enviado por Henrique IV, perseguiu com sanha os suspeitos de bruxaria do Labourd. A experiência fecundou seus principais trabalhos: Demonolatreiae libri tres, de Rémy (1595), Discours des sorcièrs, de Boguet (1602), Tableau de l’inconstance des mauvais anges, de De Lancre (1612). Para Baroja, eles compõem “a trindade dos juízes franceses, que se distinguiram tanto pela violência como pela cultura”12. De De Lancre, foi dito que era 12 Op. cit., p. 137. A Feitiçaria na Europa Moderna - 41 - “magistrado barroco, galante e alegre que mandava pessoas à fogueira como quem vai ao baile”13. Junta- mente com Boguet, De Lancre vulgarizou o hábito de lançar mão do depoimento de velhos e crianças sob tortura. A confissão era imprescindível por constituir a chave do sistema penal do Antigo Regime. Assim, recorria-se à tortura para extorqui-la, o procedimento jurídico assentando-se na arbitrariedade e na intimidação. A Época Moderna torturou muito mais do que a Idade Média, por tanto tempo denominada Idade das Trevas. No caso da bruxaria, havia que confessar o pacto demoníaco. A tortura física não era o único meio para produzir confissões; havia os longos períodos de isolamento nos cárceres. Na Alemanha, o bispo-príncipe João Jorge II Fuchs von Dornheim ficou célebre pelas atrocidades que cometeu, tornando-se conhecido como Hexenbischof, ou “bispo das bruxas”. Conta Trevor-Roper: uma das suas vítimas foi o chanceler do bispo, o Dr. Haan, queimado como bruxo por ter demonstrado uma clemência suspeita como juiz. Submetido à tortura, confessou ter visto cinco burgomestres de Bamberg no sabbat, e também estes foram queimados. Um deles, Johannes Julius, submetido a torturas atrozes, confessou ter renunciado a Deus e se consagrado ao Demônio e visto vinte e sete colegas no sabbat. Mais tarde, porém, de volta à prisão, conseguiu enviar às escondidas uma carta à filha Verônica, contando o seu julgamento. “E agora, minha querida filha”, concluía, “aqui tens todos os meus atos e confissões, pelos quais devo morrer. É tudo falsidade e invenção; assim, Deus me ajude (...). Nunca param de torturar enquanto não se diz alguma 13 SOLÉ, Jacques. L’Amour en Occident à l’Époque Moderne. Paris, Albin Michel, 1976. p. 138. A Feitiçaria na Europa Moderna - 42 - coisa (...). Se Deus não enviar um meio de revelar a verdade, toda a nossa espécie será queimada”14. A tortura podia inutilizar uma vida. Em 1678, a viúva Isabel Wilverdange, de 65 anos, e seu filho João Francisco permaneceram três meses na prisão e foram barbaramente torturados. Nada tendo confessado, as autoridades consentiram que, se quisessem, poderiam deixar a prisão. Mas Isalbel, “muito maltratada” pelos instrumentos da tortura, achava-se incapaz de ficar de pé e caminhar. A sobrinha, Madalena Pidard, foi buscá-la na prisão e, compadecida, carregou-a nas costas até sua casa. Deitou-a na cama, onde ficou imóvel, o corpo todo ferido, os membros deslocados, sem poder se mover, nem andar, nem sair da cama, e se acha desolada e aflita em virtude de sua longa prisão e frialdade que sofreu, os pés estão enregelados e quase totalmente apodrecidos, as unhas lhe caem dos dedos das mãos e dos pés. Ela tem inchaços extraordinários sob os braços, não podendo suspender até a cabeça. E não se encontra aflita apenas com as dores em todos os membros do seu corpo, mas também se encontra despojada de todos os seus pequenos bens móveis e imóveis, que os da assim chamada Justiça venderam para custear o que dizem ter sido seus gastos (...)15. Assim como a execução, a tortura integrava a pedagogia do medo, que assombrou a Época Moderna. Em 1578, reeditando e atualizando o Manual que Emérico escrevera dois séculos antes, Francisco Peña dizia: “É preciso lembrar que a primeira finalidade do processo e da 14 Op. cit., p. 121. 15 Petição dirigida ao Conselho de Luxemburgo a 25 de janeiro de 1678, da parte de uma viúva de Houffalize, Isabel Wilverdange. Apud DUPONT-BOUCHAT, Marie-Sylvie et al. Op. cit., p. 109-10. Grifo meu. A Feitiçaria na Europa Moderna - 43 - condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem público e aterrorizar o povo (...). Nenhuma dúvida há de que instruir e aterrorizar o povo com a proclamação das sentenças, a imposição dos sambenitos seja uma boa ação”16. Inerte, imóvel, macerada, destruída, Isabel Wilverdange era um espetáculo aterro- rizador, necessária como exemplo vivo e, por isso mesmo, passível de ser libertada, de sair da prisão, se assim o quisesse. O despontar do ceticismo Como já foi dito, Alonso de Salazar y Frías acreditava que falar de bruxas fazia com que proliferassem. No século XVIII, foi-se mais além: vários ilustrados estabeleceram a relação entre a caça às bruxas e a proliferação das acusadas. Na Espanha, B. J. Feijoo somou as duas posições: Houve certa época, nas regiões onde grassava este flagelo, uma extrema credulidade entre os que coletavam informações, muita imbecilidade entre os delatores e testemunhas e muita vaidade entre os próprios acusados. Na sua maioria, delatores e testemunhas eram camponeses propensos – com por toda parte – a atribuir à feitiçaria mil fatos devidos unicamente à natureza ou à arte. A extrema violência dos processos e a frequência dos suplícios viravam a cabeça a muitos daqueles pobres diabos, que, uma vez acusados, acreditavam piamente que eram bruxos, passando a reconhecer como verdadeiras as culpas que lhes eram amputadas, apesar de completamente falsas. Eis o efeito natural do terror extremo que desequilibra os espíritos frágeis. Alguns dos juízes eram quase tão crédulos quanto os delatores e suas vítimas. E se os juízes de hoje 16 Apud BENNASSAR, Bartolomé. Op. cit., p. 108. A Feitiçaria na Europa Moderna - 44 - em dia se lhe assemelhassem, bruxos ou bruxas seriam tão numerosos quanto no passado17. Apesar de perceber que os aparelhos de poder reproduzem a violência e o comportamento que visam reprimir, as críticas setecentistas traziam ranço profundamente preconceituoso em relação às crenças e atitudes populares. A crença em crimes de bruxaria cedeu lugar ao ceticismo, que passou a ridicularizá-la. Acreditar em bruxas tornou-se algo risível, próprio de pessoas ignorantes, incultas, desprovidas de discernimento e de razão. Esta, por sua vez, tornava-se instrumento de poder. Os philosophes da República das Letras não veriam nas bruxas os seres aterrorizadores de antes. Achavam- nas grotescas, e as desprezavam: afinal, como diz o historiador Lynn Thorndike, as bruxas não tinham biblioteca, eram tributárias da cultura popular e basicamente oral. Foi assim que o século XVIII deixou de temer as bruxas. Encruzilhada de discursos As teorizações de teólogos e juristas foram decisivas no combate movido às bruxas e, como se viu, em muitos casos dependeram dele. Uma leitura apressada talvez concluísse que as teorias determinaram as perseguições. Isto pode ser verdadeiro para algumas regiões, e o é certamente para muitos casos de repressão no meio urbano. Mas está longe de constituir regra. Nos campos e 17 Cartas Eruditas y curiosas..., apud CARO BAROJA, Julio. Op. cit., p. 238. Grifo meu. A Feitiçaria na Europa Moderna - 45 - nas pequenas aldeias francesas, comunidades camponesas e aldeãs realizaram perseguições duríssimas contra aquelas que viam como feiticeiras – verdadeiros pogroms que, para Ladurie, foram muito comuns no Antigo Regime, persistindo mesmo após a racionalização do aparelho judiciário. Também na Inglaterra a perseguição teve base comunitária, popular; alguns autores chegam a sugerir que independeu da repressão oficial, traçando caminho próprio. Mulheres acusadas de feitiçaria eram linchadas pela população; buscava-se, desta forma, combater o caráter tradicional do malefício e não a adoração ao Diabo, abordada pelos demonólogos. Para Keith Thomas, seria peculiaridade inglesa o fato de se perseguir a feitiçaria com base antes no seu caráter antissocial do que no herético. O caso inglês apresenta interesse por dar maior transparência à grande encruzilhada de discursos que é a bruxaria. Malefício e adoração ao Diabo são práticas diversas que acabam por se identificar na repressão e através dela. Poder-se-ia dizer que o malefício tem caráter mais popular, a adoração ao Demo correspondendo à formulação erudita. Entretanto, isso seria desprezar o processo de coagulação encetado pela bruxaria ao longo de sua existência. Durante duzentos anos – aproxima- damente entre 1500 e 1700 – o mito do sabbat penetrou o meio rural e demonizou o malefício; mas não era o próprio sabbat uma superstição de práticas e crenças milenares, uma colagem de elementos de cultura erudita e popular? Sem querer avançar sobre as teorizações – objeto do próximo tópico deste trabalho –, caberia citar A Feitiçaria na Europa Moderna - 46 - textualmente três autores que, voluntária, ou involuntariamente ajudam a ler a bruxaria como superposição de discursos e de práticas que, por determi- nadas circunstâncias, passaram a ser alvo de intensa repressão na Época Moderna. O primeiro deles é Marie- Sylvie Dupont-Bouchat, para quem a caça às bruxas é vista como “vasto empreendimento de expropriação dirigido contra a cultura e as tradições populares. O poder central, ou urbano, se impõe contra os poderes locais; a cultura erudita, contra a popular”18. O segundo é Trevor- Roper, que ao comentar a ocorrência de inúmeros tratados demonológicos, observa: “facilmente se constata que as baterias da erudição estavam prontas a abafar a voz fraca e isolada da dissensão”19. O terceiro é Voltaire, que remete ao início deste tópico e, por enquanto, fecha nossa discussão: É uma pena enorme que hoje não haja mais possessos, mágicos, astrólogos, gênios. Não se pode imaginar a importância que tinham todos esses mistérios há cem anos. Toda a nobreza vivia então em seus castelos. As noites de inverno são longas: morrer-se-ia de tédio sem essas nobres distrações. Não existia castelo a que não acorresse, em dias marcados, uma fada, como Melusina no castelo de Lusignan. O monteiro-mor, homem magro e escuro, caçava com uma matilha de cães negros na floresta de Fontainebleau. O Diabo torcia o pescoço do marechal de Fabert. Cada aldeia tinha seu bruxo ou sua bruxa; cada príncipe tinha seu astrólogo; todas as damas queriam ouvir sua sorte; os possessos corriam pelos campos; todo mundo tinha visto o Diabo ou esperava vê-lo; tudo isso era motivo de conversas inesgotáveis, que tiravam o fôlego das pessoas. Hoje, joga-se insipidamente o baralho, e é uma pena que sejamos descrentes20. 18 Op. cit., p. 92. 19 Op. cit., p. 117. 20 Dictionnaire philosophique, apud CARO BAROJA, Julio. Op. cit., p. 237. A Feitiçaria na Europa Moderna - 47 - O ceticismo ilustrado ante as superstições populares não se manteve, entretanto, alheio a elas. Voraz, incorporou-as nas páginas coloridas das histórias da carochinha, deslocando-as do contexto original, oral, alterando-lhes o sentido e infantilizando-as. Talvez essa tenha sido a forma encontrada pelo inconsciente coletivo para colocar uma pedra sobre um dos episódios mais terríveis da história do homem na Terra. Hoje, só crianças acreditam em bruxas, espreitando da janela o vulto escuro que cavalga a vassoura pelos ares afora. “As crianças constituem a mais conservadora das sociedades humanas”, constatou Philippe Ariès, acrescentando logo depois: “A infância é o reservatório dos usos abandonados pelos adultos”21. 21 Op. cit., p. 63 e 67. A Feitiçaria na Europa Moderna - 48 - A Feitiçaria na Europa Moderna - 49 - 5. As teorias Demonólogos, racionalistas e historiadores Para os demonólogos dos séculos XVI e XVII, as causas da bruxaria se deviam à ação do Diabo sobre a Terra; auxiliavam-no discípulos humanos, e juntos visavam atingir o plano divino de organização do Universo. Esses asseclas demoníacos eram os bruxos, aficcionados de um culto secreto, o sabbat. Os demônios, os bruxos e suas práticas constituíam uma Contra-Igreja, que devia ser destruída para a maior glória de Deus. No século XVIII, com o surgimento do racionalismo, essa explicação deixou de ser unanimemente aceita, e a bruxaria passou a ser identificada, com frequência, à superstição e à ignorância. Mas não desapareceram de todo os que acreditavam em bruxas e no seu potencial virulento. Ceticismo e credulidade encontram-se na raiz de dois enfoques possíveis quanto à abordagem do fenômeno da bruxaria, ambos surgidos no século XIX: o romântico e o racionalista. O florescimento da antropologia e o contato com as práticas mágicas de povos ditos primitivos permitiram, em nossos dias, que um terceiro enfoque, o antropológico, se somasse aos dois anteriores. Seria exaustivo arrolar os autores que, nos dois últimos séculos, de uma forma ou de outra se engastaram nessas tendências. Por outro lado, qualquer classificação é, não raro, arbitrária e sempre simplificadora, perdendo- A Feitiçaria na Europa Moderna - 50 - se a riqueza e complexidade de certas interpretações. Mas classificar é perdoável quando o objetivo é didático. A vertente romântica A bruxaria é concreta A grande síntese romântica da bruxaria foi feita por Michelet, em 1862. Entretanto, cabe inserir o grande historiador francês na linhagem dos que, antes dele, acreditaram na realidade dos fatos mágicos e da sociedade das bruxas: a historiografia alemã, introdutora, no século XIX, da tese da bruxaria como revivescência pagã. Há nuanças dentro dessa perspectiva. Em 1828, Ernst Jarcke via a bruxaria como religião natural comum aos germânicos pagãos dos tempos antigos. Franz Joseph Mone (1839) introduziu variação ao tema: afirmava que a bruxaria era culto derivado de cultos anteriores ao Cristianismo, mas não via sua origem na religião germânica e, sim, em prática subterrânea e esotérica exercida pelos estratos mais baixos da população, nos quais, por caminhos vários, teria penetrado o culto a Hécate e a Dionísio. Norman Cohn faz um apanhado geral desse momento da historiografia sobre bruxas: Nenhuma dessas teorias é convincente (...) nem Jarcke nem Mone têm condições de demonstrar que o culto aos deuses antigos – germânicos ou gregos – tenha sido realmente praticado por grupos clandestinos e organizados na Idade Média. Também não conseguem explicar por que razão esses grupos, após terem passado A Feitiçaria na Europa Moderna - 51 - despercebidos durante quase um milênio, lograram despertar a atenção nos séculos XV, XVI, XVII22. Jarcke e Mone eram católicos fervorosos, tendo atuado junto aos jornais da época como porta-vozes de setores da Igreja. Suas teorias se inserem num contexto de violenta hostilidade à Revolução Francesa, quando se desencadeara, nos círculos conservadores, um misto de obsessão e pavor pelas sociedades secretas. Não se simpatizava, portanto, com as seitas de bruxos e bruxas. Servos X senhores Apresentando ponto de vista semelhante, Michelet inverteu, entretanto, a abordagem dos alemães: em A bruxa, vê a bruxaria como protesto justificável de servos medievais contra a ordem social que os sufocavam. Para ele, o Cristianismo golpeara os grandes deuses pagãos, mas não conseguira dar cabo dos menores, que povoavam o imaginário das populações rurais e conti- nuavam identificados às forças da Natureza – montes, bosques e nascentes –, abrigando-se ainda no universo doméstico e feminino dos lares. Michelet acreditava na ocorrência dos sabbats: neles, os servos se vingariam de uma ordem religiosa e social profundamente opressiva, caçoando do clero e dos nobres, renegando Jesus e celebrando missas negras em louvor a Lúcifer, identificando Baco a Pã. Sua sacerdotisa era a bruxa, filha da miséria e de um contexto desesperado, como foi o do feudalismo agonizante. 22 Los demonios familiares de Europa (trad.). Madrid, Alianza Editorial, 1983. A Feitiçaria na Europa Moderna - 52 - Para Michelet, a bruxa representava a tendência de reinserir na Natureza a prática cotidiana e de conhecimento do mundo, desestruturadas pelo triunfo do Cristianismo. A feiticeira era uma sacerdotisa das forças naturais: os corvos cortejavam-na, os lobos a saudavam com timidez, o urso a respeitava de longe; carregava em si as contradições e os antagonismos inerentes à própria Natureza. Como o Demônio, corporificava o saber empírico, popular, não estrangulado pela crença cristã, e contribuiu diretamente para o triunfo do espírito da Natureza e das Ciências Naturais no século XVIII. Paganismo e rituais de fertilidade A tese da sobrevivência dos cultos pagãos no seio da Cristandade recebeu impulso novo com a publicação, em 1890, de O ramo dourado, de J. Frazer. Desde então, firmou-se uma tendência voltada para a valorização dos rituais de fertilidade e abraçada por muitos adeptos, sobretudo na Inglaterra. Foi lá que a egiptóloga Margareth Murray desenvolveu estudos de grande repercussão: O culto da bruxaria na Europa Ocidental (1921) e O deus das bruxas (1931). A tese central desses trabalhos diz que, até o século XVII, a Europa conservou o antigo culto a Diana ou a Janus, divindade de cornos e dotada de duas faces, simbolizadoras do ciclo das estações e da vegetação; nessa qualidade, devia morrer e renascer. Tomás Beckett, na Inglaterra, Joana d’Arc e Gil de Rais, na França, constituíram representações nacionais dessa divindade. Suas mortes rituais foram necessárias à ressurreição do deus, representado no nível local por A Feitiçaria na Europa Moderna - 53 - personagem chifrudo que os juízes e demonólogos tomaram por Lúcifer. As assembleias rituais eram de dois tipos: os esbats semanais, em que se reuniam treze participantes, e os sabbats, de dimensões maiores. A ofensiva cristã sobre a Europa dos séculos XVI e XVII acabou desmantelando essa religião milenar. Apesar de fantasiosa e duramente contestada, sobretudo por estudiosos recentes, a tese romântica dos ritos de fertilidade conservou grande prestígio nos países anglo-saxões. Margareth Murray escreveu o verbete sobre bruxaria da Enciclopédia Britânica, reeditado sucessivas vezes até 1966. Num período de quase quarenta anos, muitos estudiosos apresentaram interpretações análogas à sua, aproximando-se algumas vezes daquelas que a influenciaram: a de Michelet, a dos historiadores alemães do fim do século XIX, a de Frazer. Houve interpretações fanaticamente católicas, como a de Montagne Summers, História da bruxaria e da demonologia (1926), adepto da ideia das sociedades secretas, da realidade do sabbat e inimigo ferrenho do Diabo, que, como os demonólogos, acreditava atuante entre os homens. Houve as assentadas em erudição sólida e em cuidadosa pesquisa folclórica, resgatando crenças populares europeias para reiterar a ideia do culto da fertilidade, como a de Arno Runeberg, Bruxaria, demônios e magia da fertilidade (1947). Houve ainda as interpretações que se voltaram contra Murray, mas continuaram polemizando com ela: foi o caso de A razior for a goat, de Rose, que rechaça a ideia dos cultos de fertilidade, mas insiste na existência da seita das bruxas, ressaltando-lhe o aspecto sexualizado e A Feitiçaria na Europa Moderna - 54 - entendendo-a como experiência extática tributária da religião dionisíaca da Grécia Antiga. Dois trabalhos mais recentes revigoraram aspectos das teses de Frazer, Murray e Michelet, modernizando-as: Bruxaria na Idade Média, de Jeffrey Russell (1972) e I Benandanti, de Carlo Guinzburg (1966). Neste, o historiador italiano revela a sobrevivência de fertilidade após mil anos de Cristianismo oficial. Com base em documentos da Inquisição do Friuli, no norte da Itália, num período entre 1575 e 1650, Guinzburg recria a história de homens e mulheres que tinham nascido envolvidos pela membrana amniótica, traziam-na suspensa ao pescoço como amuleto e, por ocasião das mudanças de estação, imaginavam sair noite adentro para combater os bruxos que lhes desejavam destruir as colheitas. Essas pessoas se autodenominavam benandanti, e acreditavam que a abundância das colheitas dependia dessas batalhas rituais. Após longos períodos de interrogatórios, a Inquisição conseguiu convencê-los de que eram bruxos e que frequentavam sabbats. Não chegaram a ser condenados, pois na Itália de 1650 já não se condenavam bruxos. Guinzburg procurou incluir os benandanti do Friuli num conjunto folclórico mais abrangente, aproximando esses ritos dos combates simbólicos entre inverno e verão, inverno e primavera. Seu trabalho abriu caminho para uma série de investigações que destacaram a persistência de ritos, crenças e condutas religiosas herdadas do paganismo e preservadas na vida cotidiana. Bruxaria na Idade Média, de Russell, apoia-se bastante na investigação de Guinzburg, mas filia-se, A Feitiçaria na Europa Moderna - 55 - sobretudo a Michelet. Muito bem fundamentado, procura demonstrar que a bruxaria constituía uma religião anticristã organizada em seita e originada a partir de uma heresia. A repressão, sobretudo inquisitorial, teria sido a grande responsável pela expansão da bruxaria. A hostilidade violenta da sociedade cristã possibilitou, assim, que ritos de fertilidade dotados de forte conotação erótica acabassem se metamorfoseando no temível sabbat. Mais recentemente, Pierre Chaunu e Emmanuel Le Roy Ladurie ensaiaram adesões um tanto tímidas à tese romântica da crença nas bruxas. Em artigo denominado “Acerca do fim dos bruxos no século XVII”, em que polemiza com Robert Mandrou, Chaunu vê o surto demonológico que se intensificou nos fins do século XVI como tradução de resistências camponesas acirradas ante o esforço missionário de cristianização do meio rural: “Quando a Igreja se torna desastradamente missionária nas franjas que tradicionalmente lhe opõem resistência, ela obriga a opções vergonhosas. A magia se torna bruxaria, os animistas tradicionais optam por Satã, contra Deus”23. Em Camponeses do Languedoc, Ladurie retoma a velha ideia romântica de que a bruxaria integrava a revolta camponesa; mas avança um pouco nesse sentido, definindo tal prática como forma de evasão da realidade assentada na inversão dos valores da camada dominante. Recentemente, ele se aproximou do enfoque antropológico, como se verá adiante. 23 Annales, E. S. C., 24(4): 903, jul-ago. 1969. Grifo meu. A Feitiçaria na Europa Moderna - 56 - A vertente racionalista A bruxaria é uma construção mental Murray, Chaunu, Ladurie e os demais autores acima examinados acreditam na existência concreta de práticas que, por motivos diversos, foram através dos tempos identificadas à bruxaria. A posição dos racionalistas é diametralmente oposta. Apresentando variações, ela se baseia na ideia de que a bruxaria foi uma elaboração mental – abstrata, portanto – dissolvida pelo racionalismo de fins do século XVII e do século XVIII. Essa análise racionalista se firmou também na Alemanha do século passado. Considerava a bruxaria como ilusão ou mito comum a épocas bárbaras. A vanguarda da civilização ocidental cultuava então a ideia de progresso, vendo nele o coveiro das perseguições a bruxas. Em 1843, Wilhelm Soldan propunha uma interpretação do fenômeno sob enfoque puramente intelectual; olhando para as épocas anteriores, conside- rava-as uma sucessão de superstições submersas pela evolução constante do progresso. Nos diversos países europeus, multiplicaram-se trabalhos que giravam em torno dessa tese, e seria enfadonho enumerá-los. Mandrou: um marco Cabe, porém, citar os adeptos mais recentes dessa tendência de inspiração positivista. No final da década de 60, Robert Mandrou publicou um estudo sobre a bruxaria A Feitiçaria na Europa Moderna - 57 - que imediatamente se tornaria clássico: Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1968). O autor se preocupa basicamente com a questão da crise, da ruptura verificada no século XVII no tocante à relação entre a bruxaria e o universo mental dos franceses. Antes dessa época, a bruxaria tinha traços basicamente rurais e populares, sendo perseguida com sanha e sem trégua pelos magistrados das províncias. A partir do século XVII tornou-se urbana e elitista, passando a provocar dúvidas e indecisões na magistratura, sobretudo na Corte de Paris. No meio rural, o pacto demoníaco era peça básica para configurar crimes de bruxaria. Já nos casos escandalosos do século XVII não havia pacto, mas possessão, e surgiam elementos novos: a rivalidade entre as ordens religiosas – dos exorcistas, dos confessores –, a clausura em que viviam as freiras, a presença de médicos chamados a opinar sobre as possessões. Estas se multiplicavam como se houvesse contágio entre os conventos, o que poderia fazer supor uma intensificação do satanismo. Entretanto, Mandrou mostra justamente o contrário: os casos escandalosos marcaram a crise do satanismo, preco- nizando o grande recuo de Satã: “estes processos rumorosos provocaram a tomada de consciência decisiva, a do meio judiciário mais esclarecido, informado e audacioso”24. Tomando contato com outros membros da intelligentsia francesa – sobretudo humanistas e homens de ciência –, os magistrados passaram a enxergar a bruxaria com novos olhos. Foi nessa época que se 24 Magistrats et sorciers en France au XVIIIe siècle. Paris, Plon, 1968. p. 196. A Feitiçaria na Europa Moderna - 58 - constituiu um universo regido pela Razão, em que a “onipresença sobrenatural” (de Deus ou do Diabo) nos acontecimentos foi substituída pela busca de uma explicação mais racional. O estabelecimento de nova jurisprudência para os crimes de feitiçaria integrou, assim, o lento esforço do século XVII “para ultrapassar o obstáculo metafísico à constituição de uma ciência e de um pensamento assentado na Razão”. O abandono das acusações de feitiçaria correspondeu à substituição de uma representação do mundo em que o Deus do Juízo Final e o Príncipe das Trevas vigiavam o cotidiano e nele interferiam. A recusa do obstáculo metafísico se traduziu por um recuo de Satã, que significou também o recuo do medo. Um estereótipo entre muitos Em A obsessão das bruxas na Europa dos séculos XVI e XVII, Hugh Trevor-Roper considera a caça às bruxas como produto do imaginário, um entre tantos estereótipos criados pela cultura ocidental. A conspiração judaica teria sido o estereótipo da sociedade alemã; o perigo vermelho, o da sociedade americana contemporânea: “Na Europa Continental, nos dois séculos que se seguiram à promulgação da Bula das Bruxas, foi a obsessão das bruxas. A mitologia do reino de Satã implantara-se tão firmemente em finais da Idade Média que, nos primeiros séculos da Europa Moderna (...) essa mitologia se tornou o modelo de cristalização dos medos indefinidos da sociedade”. Como vários outros autores – entre os quais o próprio Mandrou –, Trevor-Roper se vê às voltas com a A Feitiçaria na Europa Moderna - 59 - contradição representada pela coexistência da Luz (Renascimento) e das Trevas (a perseguição a bruxas e às heresias): “Nesses anos de aparente iluminação, as trevas estavam a ganhar terreno em pelo menos um quarto do céu”25. Também para ele, a Ilustração inviabilizou a caça às bruxas: acreditar nestas significava endossar um sistema de mundo que a nova filosofia solapara. Trevor-Roper atribui balizas cronológicas e geográ- ficas – estas, bastante contestáveis – à obsessão das bruxas, que teria alcançado o ponto máximo durante as Guerras de Religião, mostrando-se especialmente intensa nos países protestantes e nas terras altas, montanhosas, tradicionalmente refratárias ao feudalismo e afeitas a heresias, como a cátara. “O ar rarefeito da montanha alimenta as alucinações, e a intensidade dos fenômenos naturais – tempestades elétricas, avalanches, o degelo – facilmente leva os homens a acreditar numa atividade demoníaca”, afirma Trevor-Roper em explicação destituída de fundamento. Repúdio às sociedades secretas Em Os demônios familiares da Europa (1975), Norman Cohn também endossa a tese de que sabbats
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