cedera, em poucas semanas, o que lhe negara durante meses. Por que razão, pensando em todas as coisas, não con- seguira ela apressar o casamento de Estácio? Estácio conti- nuava a duvidar, a recuar, a adiar; pedia tempo para refletir. Ia agora menos ao Rio Comprido; os dias, quase todos, eram passados no remanso da família. Mas Helena insistiu tanto que ele prometeu fazer o solene pedido no primeiro dia do ano. Estácio não havia esquecido a carta lida pela irmã; en- tretanto, por mais que a observasse e estudasse, nada des- cobria que lhe fizesse supor afeição escondida. Nenhum dos Helena.indd 64 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 65 homens que iam ali, — e eram poucos, — parecia receber de Helena mais do que a cortesia comum. D. Úrsula, a quem ele deu a incumbência de interrogar a irmã acerca das palavras que esta lhe havia dito na manhã do primeiro passeio, não obteve resposta mais decisiva. A promessa de ir pedir Eugênia, fez Estácio na segunda semana de dezembro, em uma noite sem visitas, que eram as melhores noites para ele. No dia seguinte de manhã, erguendo- -se tarde, soube que Helena havia saído a cavalo. — Sozinha? — Com o Vicente. Vicente era o escravo que, como sabemos, se afeiçoara, primeiro que todos, a Helena; Estácio designara-o para servi-la. A notícia do passeio não lhe agradou. O tempo andava com o passo do costume, mas à ansiedade do jovem mostrava-se mais longo... Estácio chegava à janela, ia até ao portão da chácara, com ar de aparente indiferença, que a todos enganava, a começar por ele próprio. Numa das vezes em que voltou à casa, achou levantada D. Úrsula; falou-lhe; D. Úrsula sorriu com tranquilidade. — Que tem isso? Disse ela. Já saiu a passeio com o Vicente e não aconteceu nada. — Mas não é bonito, insistiu Estácio. Não está livre de um ato de desatenção. — Qual! Toda a vizinhança a conhece. Demais, Vicente já não é tão criança. Tranquilize-se, que ela não demora. Que horas são? — Oito. — Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que já ouço um barulho... Os dois estavam na sala de jantar; passaram à varanda, e viram efetivamente entrar no quintal Helena e o pajem. Helena deu um salto e entregou a rédea de Moema ao pajem que acabava de descer do cavalo. Depois subiu a escada da varanda. Ao colocar o pé no primeiro degrau, deu com os olhos no irmão e na tia. Fez-lhes um cumprimento com a mão, e subiu para junto deles. — Já de pé! Exclamou abraçando D. Úrsula. — Já, para reclamar com você, disse esta sorrindo. Que Helena.indd 65 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 66 ideia foi essa de bater a linda plumagem? É a segunda vez que você se lembra de sair sem o urso do seu irmão. — Não quis incomodar o urso, replicou ela voltando-se para Estácio. Tinha imensa vontade de dar um passeio, e Moema também. Apenas hora e meia. Aquele dia foi o de maior tristeza para a moça. Estácio passou quase todo o tempo no gabinete; nas poucas ocasiões em que se encontraram, ele só falou por monossílabos, às vezes por gestos. De tarde, acabado o jantar, Estácio desceu à chácara. Já não era só o passeio de Helena que o mortificava; ao passeio juntava-se a carta. Teria razão a tia em suas primeiras repugnân- cias? Como se ele fizesse essa pergunta a si mesmo, ouviu atrás de si um passo apressado e o balançar de um vestido. — Está de mal comigo? Perguntou Helena com doçura. Ao ouvir-lhe a voz, juntou-se a cólera do mancebo. Voltou- -se; Helena estava diante dele, com os olhos submissos e puros. Estácio refletiu um instante. — Mal? Disse ele. — Parece que sim. Não fala, não se importa comigo, anda carrancudo... Seria por que eu sai de manhã? — Confesso que não gostei muito. — Pois não sairei mais. — Não; pode sair. Mas está certa de que não corre nenhum perigo indo só com o pajem? — Estou. — E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim? — Não sei se poderei obedecer. Nem sempre você poderá me acompanhar; além disso, indo com o pajem, é como se fosse só; e meu espírito gosta, às vezes, de trotar livremente na solidão. — Naturalmente a pensar de coisas amorosas... acrescen- tou Estácio cravando os olhos interrogadores na irmã. Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dois se- guiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estácio sentou-se; Helena ficou de pé diante dele. Olharam um para o outro sem proferir palavra; mas o lábio de Estácio tremera duas ou três vezes como pensando no que ia dizer. Por fim o moço venceu-se. Helena.indd 66 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Machado de Assis 67 — Helena, disse ele, você ama. A moça estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, como assustada, e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente: — Muito! Muito! Muito! Estácio empalideceu. A moça recuou um passo, e, trêmula, pôs o dedo na boca, como a impor-lhe silêncio. A vergonha aver- melhava no rosto; Helena voltou as costas ao irmão e afastou-se rapidamente. Ao mesmo tempo, a sineta do portão era balançada com força, e uma voz atroava a chácara: — Licença para o amigo que vem do outro mundo! Capítulo X Estácio dirigiu-se ao portão. Abriu-o; um moço que ali estava entrou precipitadamente. Era Mendonça. Os dois jovens lançaram- -se nos braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquela alegria, e não foi difícil adivinhar quem era o recém-chegado. A alegria cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os dois rapazes se julgaram suficientemente abraçados, tomaram o caminho da casa. Helena, que estava um pouco adiante deles, foi apresentada a Mendonça. Ao ouvir que era irmã de Estácio, Mendonça ficou espantado. Cumprimentou cerimoniosamente a moça, e os dois seguiram até à casa, onde pouco depois entrou Helena. Mendonça era da mesma estatura que Estácio, um pouco mais cheio, ombros largos, fisionomia risonha e franca, natureza agitada e expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era. A mão larga e forte calçava uma fina luva cor de palha, e sobre o cabelo, penteado a capricho, havia um chapéu de produção recente. Estácio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer compreender o respeito e a afeição que ela de todos me- recia. Helena adivinhou esse trabalho preparatório do irmão, logo que entrou na sala. Helena.indd 67 10/02/20 11:35 Clássicos da Literatura Brasileira Helena 68 Mendonça divertiu a família uma parte da noite, contan- do os melhores episódios da viagem. Era narrador agradável, fluente e criativo, dotado de grande memória e certa força de observação. Espírito brincalhão, achava facilmente o lado en- graçado das coisas e mais se satisfazia em dizer os incidentes de um jantar de hotel ou de uma noite de teatro que em descrever as belezas da Suíça ou os destroços de Roma. A visita durou pouco mais de hora. Estácio quis acompa- nhá-lo até à cidade; ele não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a chácara, falaram do passado, e um pouco do futuro, a trechos soltos, como o lugar e a ocasião lhes permi- tiam. Mendonça, vendo que Estácio não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o fez. — Você me falou em uma de tuas cartas sobre uma certa Eugênia. — A filha do Camargo. — Justo. Negócio certo? — Quase terminado. — Terminado... na igreja, suponho? — Tal qual. — Quando? — Brevemente. — Marido, enfim! Era só o que faltava. Nasceu com o des- tino conjugal, como eu com o destino viajante, e não sei qual de nós terá razão. — Talvez ambos. — Creio que sim. Tudo depende do gosto de cada um. O casamento é a pior ou a melhor coisa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não pergunto se é um anjo... — É um anjo. — Como