Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
DIREITOS HUMANOS Guérula Mello Viero Evolução histórica dos direitos humanos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Analisar a situação do homem no mundo. Descrever as etapas históricas na afirmação dos direitos humanos. Definir a posição dos direitos humanos no sistema normativo. Introdução O art. 5º da Constituição Federal estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Mas, para se chegar a essa positivação dos direitos fundamentais do homem no âmbito jurídico, foram necessárias diversas lutas. Em muitos momentos, o homem foi visto como objeto, com inerente valor de troca. Mas, aos poucos, os seus direitos fundamentais foram sendo positivados, garantindo-se a segurança jurídica do indivíduo e estabelecendo-se a preservação da dignidade humana como princípio básico do Direito. Neste capítulo, você vai estudar como se estabeleceu o conceito de homem perante o mundo, como os seus direitos naturais foram re- conhecidos e elevados a direitos fundamentais e qual é o papel dos direitos humanos frente à proteção da dignidade da pessoa humana no âmbito mundial. Situação do homem no mundo Os seres humanos são todos iguais e merecem o mesmo respeito, indepen- dentemente das suas crenças culturais e diferenças físicas e biológicas. Isso é o que postula a Constituição Federal de 1988, no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988, documento on-line). Mas como se chegou a esse entendimento? C01_Direitos_Humanos.indd 1 30/07/2018 08:15:59 A ideia de igualdade entre os homens aflorou durante o período axial da história (ocorrido entre os séculos VIII e II a.C.), a partir da instituição da lei escrita “como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indi- víduos que vivem numa sociedade organizada”, conforme explica Comparato (2010, p. 24). Os judeus tinham a lei em uma posição sagrada, pois equivalia à manifestação da divindade. No entanto, a lei escrita só se tornou fundamento preponderante na socie- dade em Atenas (Grécia), momento em que a força das leis proporcionou ao cidadão um sentimento de vitória, visto que se deixou de falar da soberania de um indivíduo ou classe social em detrimento dos demais. Reforçando essa ideia dos atenienses, Comparato (2010, p. 25) reproduz um trecho da peça As Suplicantes (versos 434–437), de Eurípedes, que demonstra a importância da lei escrita contra o arbítrio do governo da época: “[...] uma vez escritas as leis, o fraco e o rico gozam de um direito igual: o fraco pode responder ao insulto do forte, e o pequeno, caso esteja com a razão, vencer o grande”. Contudo, os gregos davam igual importância às leis não escritas, que ora poderiam representar os costumes relevantes ao mundo jurídico, ora as leis universais, relativas às crenças religiosas, as quais, por serem gerais e absolutas, não necessitavam de promulgação no território de uma só nação, conforme expõe Silva (2014). O caráter religioso dessas leis não escritas acabou sendo dizimado nas gerações posteriores. Isso fica visível na obra de Aristóteles, que passou a chamá-las de leis comuns, uma vez que tinham seu consenso universal reconhecido. Nesse contexto, conforme Comparato (2010), os romanos acabaram por adotar o conceito de leis comuns a todos os povos, baseadas nas leis não escritas, utilizando a expressão ius gentium (direito comum a todos os povos). Com o aspecto religioso dissipado, era necessário achar outra justificativa que fundamentasse as leis universais aplicáveis a todos os homens. Como leciona Comparato (2010), tanto para os sofistas quanto, mais tarde, para os estoicos, o fundamento para a vigência desse direito de igualdade se encontrava na natureza humana. No período de Péricles, um dos principais líderes demo- cráticos de Atenas, os direitos dos homens se fundamentavam na existência de uma igual natureza a todos, devido à contrariedade de Péricles à divisão da humanidade entre gregos e bárbaros. Segundo Silva (2014), os demais autores gregos da época entendiam que a igualdade essencial do homem surgia em oposição à existente disputa entre a individualidade própria de cada um e as funções que exerciam na vida social. O Sócrates de Platão, por exemplo, no seu diálogo com Alcibíades, procura traduzir a essência do homem como positivada na alma, não se misturando Evolução histórica dos direitos humanos2 C01_Direitos_Humanos.indd 2 30/07/2018 08:16:00 com o corpo, pois, para ele, esta daria origem à individualidade do ser hu- mano. Os estoicos acabaram por discutir e aprofundar, durante seis séculos, a personalidade do homem, originada da oposição entre o papel de cada indivíduo na vida social e a essência individual de cada um. Assim, o estoi- cismo centrou-se nas ideias de unidade moral do ser humano e na dignidade do homem, que possuía “[...] direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais”, como elabora Comparato (2010, p. 28). Em meio a debates religiosos sobre a elaboração do conceito de pessoa, uma das consequências foi o rompimento entre cristianismo e judaísmo. Até então, a tradição bíblica trazia Deus como modelo de pessoa a todos os homens, mas, o seu filho, Jesus, representava um modelo ético de pessoa. Tal rompimento ocasionou dois grandes debates iniciais: primeiro, os doutores da Igreja discutiram a identidade de Jesus Cristo por dois ângulos — sendo ele possuidor de uma natureza exclusiva- mente divina ou não tendo uma natureza consubstancial ao Pai, por ter sido efetivamente gerado por Ele; decidiram pela incidência de dupla natureza, divina e humana; segundo — no início do século VI, o filósofo Boécio rediscutiu o con- ceito de pessoa e acabou por estabelecer uma nova definição, estabele- cendo que a pessoa é a “[...] substância individual da natureza racional” (COMPARATO, 2010, p. 32), culminando na influência direta de todo o pensamento medieval. Nesse contexto da concepção medieval de pessoa, iniciou-se a elaboração do princípio da igualdade, que norteia a vida do ser humano, independentemente da existência de diferenças biológicas ou culturais. Conforme Silva (2014), “é essa igualdade de essência da pessoa que forma o núcleo do conceito universal de direitos humanos”. Ou seja, a igualdade representa os direitos resultantes da própria natureza humana, os direitos que são comuns a todos, “a todo homem enquanto homem”, como afirma Comparato (2010, p. 32). Assim, com base nessa nova fundamentação, escolásticos e canonistas medievais concluíram que não teriam vigência, muito menos força jurídica, as leis que fossem contrárias ao direito natural, momento inicial das bases da constitucionalidade. Graciano, considerado o pai do Direito Canônico, redigiu, entre 1140 e 1142, o Decretum Gratiani (Decreto de Graciano). No Distinctio 9, ele afirma: “[...] as normas positivas, tanto eclesiásticas quanto 3Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 3 30/07/2018 08:16:00 seculares, uma vez demonstradas a sua contrariedade com o direito natural, devem ser totalmente excluídas” (COMPARATO, 2010, p. 33). Após as duas discussões iniciais, que convergiram para o conceito de pessoa, surgiu um terceiro debate, dessa vez por meio da filosofia kantiana, a qual sustentava que só quem possui a faculdade de agir conforme leis e princípios é ser racional. Dessa forma, a dignidade da pessoa não diz respeito apenas ao fato de a pessoa ser tratada ou considerada, em si mesma, como um fim em si, em vez de um meio para a obtenção de um determinado resul- tado, diferentemente das coisas. “Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita”, conforme afirma Silva (2014, documento on-line). Essa definiçãoculmina no entendimento de que a dignidade do homem não pode ser precificada como as coisas, visto que a humanidade é espécie e, em sua individualidade, não pode ser trocada por outra coisa. Segundo Comparato (2010, p. 34), “[...] pela sua vontade racional, a pessoa, ao mesmo tempo que se submete às leis da razão prática, é a fonte dessas mesmas leis, de âmbito universal”. Essa oposição ética entre pessoas e coisas, defendida por Kant, cuja concep- ção defendia a dignidade humana como um fim em si, condenava práticas de desvalorização das pessoas à condição de coisas, como ocorria na escravidão. A escravidão, no entanto, acabou sendo abolida universalmente somente no século XX (COMPARATO, 2010, p. 35). Nesse mesmo século, a criação do universo concentracionário (pelos so- viéticos, o Gulag; pelos nazistas, o Lager) evidenciou a despersonalização do ser humano, que: [...] colocado nos campos de concentração esvaziado do seu próprio ser, da sua personalidade, com a substituição altamente simbólica do nome por um número [...] O prisioneiro já não se reconhecia como ser humano, dotado de razão e sentimentos: todas as energias concentravam-se na luta contra a fome, a dor e a exaustão. E nesse esforço puramente animal, tudo era permitido: o furto da comida dos outros prisioneiros, a delação, a prostituição [...] (COM- PARATO, 2010, p. 36) Evolução histórica dos direitos humanos4 C01_Direitos_Humanos.indd 4 30/07/2018 08:16:00 O termo universo concentracionário é composto por três aspectos centrais: repressão política, extermínio, por questões sobretudo raciais, e brutal exploração de trabalho forçado de prisioneiros, incluindo “extermínio pelo trabalho” (Vernichtung durch Arbeit). Desde 1949 sabe-se que o sistema concentracionário nazista, de exploração de trabalho forçado nos campos e guetos da Alemanha e da Europa ocupada, chegou a englobar 2.498 empresas, 20 mil “campos de trabalho civil” e “entre 10 a 12 milhões de pessoas, provenientes dos países ocupados, que foram sequestradas pela SS e pela Wehrmacht (Forças Armadas) para os campos”, para exercer trabalho forçado para a economia de guerra alemã, conforme expõe Cavalcante (2008, p. 8) . De maneira análoga, o desenvolvimento do sistema capitalista de produ- ção também transformou as pessoas em coisas, mas de forma mais discreta. Contrário ao capitalismo, Karl Marx denunciou que essa inversão de valores: [...] implicaria na reificação das pessoas; ou melhor, a inversão completa da relação pessoa-coisa. Enquanto o capital é, por assim dizer, personificado e elevado à dignidade de sujeito de direito, o trabalhador é aviltado à condição de mercadoria, de mero insumo no processo de produção (SILVA, 2014, documento on-line) Assim, com base na afirmação defendida por Kant de que as coisas possuem valor relativo, nascia a quarta etapa de elaboração do conceito de pessoa: “[...] a descoberta do mundo dos valores, com a consequente transformação dos fundamentos da ética”. Conforme Comparato (2010, p. 37), “[...] o homem é o único ser, no mundo, dotado de vontade, isto é, da capacidade de agir livremente, sem ser conduzido pela inelutabilidade do instinto”. Há de se destacar que, em uma sociedade organizada, deve-se considerar a hierarquia existente: há bens ou ações humanas que valem mais que outras, ou que possuem valores mais acentuados. Nesse sentido, os direitos humanos “[...] foram identificados como os valores mais importantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo, fatalmente, por um pro- cesso irreversível de desagregação”, conforme expõe Comparato (2010, p. 38). 5Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 5 30/07/2018 08:16:00 Dessa forma, chega-se na quinta e última etapa da elaboração do conceito de pessoa, que se iniciou no século XX, englobando a filosofia da vida e o pensamento existencialista. Nessa concepção, houve o reconhecimento de que a “[...] essência da personalidade humana não se confunde com a função ou papel que cada qual exerce na vida. A pessoa não é personagem” (COM- PARATO, 2010, p. 39). Assim, o ser humano tem sua personalidade moldada pelo seu passado. A sua essência é evolutiva: ao longo da vida, o indivíduo está em constante transformação, pois seu ser é incompleto e inacabado. A dignidade existe de forma singular em cada um, pois o ser humano é dotado de caráter único e insubstituível, com valor próprio. Toda essa elaboração teórica, desenvolvida ao longo dos séculos, foi condensada na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, a qual proclamou, “[...] em seu artigo VI, que todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa”, conforme explica Silva (2014, documento on-line). Toda essa construção do conceito de pessoa, que ocasionou a legitimação da sua dignidade ao longo dos séculos, culminou na conclusão da descoberta de que a pessoa é a fonte e a medida de todos os valores, segundo uma expressão utilizada pelo filósofo Martin Heidegger, isto é: [...] se o próprio homem [...] é o fundamento do universo ético, a História nos ensina que o reconhecimento dessa verdade só foi alcançado progressivamente, e que a sua tradução em termos jurídicos jamais será concluída, pois ela não é senão o reflexo do estado de ‘permanente inacabamento’ do ser humano (COMPARATO, 2010, p. 49) Como leciona Paupério (1962, p. 72) no artigo “Direitos e deveres naturais do homem”: [...] os direitos do homem são necessários à existência do próprio homem porque necessários à consecução do seu próprio fim. Esses direitos decorrem, como é óbvio, da própria natureza: são, portanto, direitos naturais. Tais direitos naturais são, dessa forma, direitos fundamentais inerentes à própria natureza. Evolução histórica dos direitos humanos6 C01_Direitos_Humanos.indd 6 30/07/2018 08:16:00 A afirmação dos direitos humanos O indivíduo percorreu um longo caminho, desde os primórdios até os dias atuais, para positivar os direitos considerados essenciais à pessoa. Como leciona Bobbio (1992, p. 5), os direitos do homem, “[...] por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Os direitos que hoje se encontram positivados nasceram das lutas contra o poder, contra a opressão, de forma gradual; isto é, esses direitos não foram conquistados de uma só vez, foram sendo adquiridos aos poucos, conforme nascia a necessidade de assegurar a cada pessoa e à sociedade uma existência digna, como afi rmam Siqueira e Piccirillo (2009). A consciência histórica dos direitos humanos despontou após um longo trabalho voltado à limitação do poder político. A primeira manifestação ocorreu entre os séculos XI e X a.C., quando se instituiu o reino unificado de Israel, tendo Rei Davi como responsável pela execução da lei divina, conforme explica Comparato (2010). Os direitos humanos também tiveram suas bases na Grécia Antiga, como vimos anteriormente, quando esta colocou a pessoa como centro das discussões, o que possibilitou refletir-se sobre a vida humana, como expõem Siqueira e Piccirillo (2009). Já em Roma, a limitação do poder político foi atingida por meio de um controle recíproco entre os órgãos políticos, não pela soberania popular. O cristianismo também teve sua parcela de responsabilidade para o reco- nhecimento dos direitos humanos. Como explica Miranda (2000, p. 17), “[...] todos os seres humanos, só por o serem e sem acepção de condições, são considerados pessoas dotadas de um eminente valor. [...] Criados à imagem e semelhança de Deus, todos têm uma liberdade irrenunciável que nenhuma sujeição política ou social pode destruir”. Por influência do cristianismo e do feudalismo,visto a dificuldade da prática comercial à época, a descentrali- zação política marcou a sociedade medieval, culminando na existência de diversos centros de poder. Nesse período, haviam três divisões, como explicam Siqueira e Piccirillo (2009): o clero, que respondia pela oração e pregação; a nobreza, que vigiava e protegia; o povo, que tinha a incumbência de trabalhar para sustentar a todos. 7Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 7 30/07/2018 08:16:00 Determinadas comunidades, sejam pertencentes ao clero, à nobreza ou ao povo, passaram a ter alguns direitos reconhecidos por meio de documentos escritos, a partir da segunda metade da Idade Média. O documento que merece destaque é a Magna Carta de 1215, escrita por João Sem-Terra, no século XII, na Inglaterra (Figura 1). Considerada o “[...] documento básico das liberdades inglesas, foi editada com o intuito de assegurar os privilégios dos barões e garantir os direitos individuais dos homens livres” (SILVA, 2013, documento on-line). Moraes (2000, p. 25) destaca que, entre outras garantias, a Magna Carta previa “[...] a liberdade da Igreja da Inglaterra, restrições tributárias, proporcionalidade entre delito e sanção; previsão do devido processo legal, livre acesso à justiça, liberdade de locomoção e livre entrada e saída do país”. Figura 1. Memorial erguido em Runnymede, no estado inglês de Surrey, em homenagem à Magna Carta de 1215. Fonte: Paul Daniels/Shutterstock.com. No século XIII, já no final da Idade Média, os escritos de São Tomás de Aquino exerceram fundamental importância no campo teórico, ao ressaltarem que o ser humano possui dignidade e igualdade, visto que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Ainda, reforçam que há quatro classes distintas de leis: a eterna, a natural, a divina e a humana. A humana, segundo São Tomás, é fruto Evolução histórica dos direitos humanos8 C01_Direitos_Humanos.indd 8 30/07/2018 08:16:01 da vontade do soberano, mas precisa estar acordada com a vontade de Deus. Dallari (1999, p. 54) reforça esses ideais, ao dizer que São Tomás de Aquino: [...] tomando a vontade de Deus como fundamento dos direitos humanos, con- denou as violências e discriminações, dizendo que o ser humano tem direitos naturais que devem ser sempre respeitados, chegando a afirmar o direito de rebelião dos que forem submetidos a condições indignas. Já na Idade Moderna — período da civilização ocidental que vai de 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, até a Revolução Francesa, em 1789 —, a descentralização política, o predomínio da Igreja Católica e o feudalismo vão deixando de existir, dando início à sociedade moderna, como explicam Siqueira e Piccirillo (2009). Esse cenário decorre de inúmeros fatores, como do desenvolvimento do comércio — que deu ori- gem à burguesia — e da aparição do Estado Moderno, com o poder político centralizado, em que todos do reino passam a ter os mesmos direitos, etc., conforme expõe Martinez (1999). O Estado Moderno surgiu aliado à burguesia, que tinha interesse em ter um poder único, absoluto, para desenvolver as suas atividades, com o objetivo de criar uma sociedade em que o indivíduo tivesse prevalência sobre o grupo. Nesse período, os principais escritos foram a Petição de Direito (Petition of Rights), de 1628, elaborada por Sir Edward Coke, na Inglaterra; a Lei do Habeas Corpus (Habeas Corpus Amendment Act), de 1679; a Declaração de Direitos (Bill of Rights), de 1689; a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776; a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776; e a Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, conforme expõe Silva (2013). O absolutismo valorizava as particularidades de cada indivíduo depois pensar na sociedade, privilegiava o privado ao público, centralizava a economia e beneficiava a burguesia, mas mantinha o domínio do Estado Absolutista nas mãos da nobreza feudal. Esse regime político-econômico da época acabou se transformando em uma maneira de exploração, o que ocasionou constantes revoltas dos burgueses contra os feudos, desencadeando a Revolução Francesa de 1789, na qual os movimentos sociais buscavam o fim do antigo regime. Conforme Silva (2013, documento on-line), “[...] com as revoluções bur- guesas instalou-se o Estado Liberal, que promoveu a distinção entre Estado e sociedade civil (público e privado) e fez nascer a primeira noção de Estado de Direito”. Esse período histórico ficou marcado pela conquista da liberdade “[...] consubstanciada nos direitos e garantias individuais (todo poder emana 9Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 9 30/07/2018 08:16:01 do povo e em seu nome será exercido)” (SILVA, 2013, documento on-line). A Revolução Francesa culminou na elaboração da primeira declaração contem- porânea de direitos humanos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a qual definiu que todos os indivíduos “[...] nascem e são livres e iguais em direitos”, como afirma Comparato (2010, p. 62). A Declaração de 1789 serviu de inspiração para as constituições que a sucederam, principalmente a DUDH, de 1948, promulgada pela Organização das Nações Unidas. Os direitos humanos possibilitaram a inserção dos direitos fundamentais no contexto internacional, fato que ensejou maior prevalência nos ordenamentos jurídicos internos. Como destacam Siqueira e Piccirillo (2009), a partir da aprovação da Declaração de 1948 na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, os direitos fundamentais passaram a ser vistos sob outra ótica, em que a necessidade e a isonomia estão lado a lado, buscando a limitação do poder estatal. Qual é a diferença entre direitos dos homens, direitos fundamentais e direitos humanos (MACHADO, 2015)? Os direitos dos homens são aqueles originários do jusnaturalismo (naturais, ine- rentes à pessoa), que não são positivados ou escritos, ou seja, não encontram legitimidade em constituições ou legislações. Essa classificação se encontra em desuso, visto que a quase totalidade dos direitos está prevista, implícita ou expli- citamente, nos textos normativos internos e internacionais. Os direitos fundamentais se relacionam à previsão constitucional dos direitos das pessoas que se encontram dentro de determinado Estado. Os direitos humanos configuram os direitos previstos nos tratados internacionais e costumes internacionais. Eles corporificam o Direito internacional dos direitos humanos, enriquecendo o escudo protetor interno dos Estados. Os direitos humanos no sistema normativo Todos os homens possuem direitos naturais, que são inerentes aos seres hu- manos. Esses direitos, em comunhão com diversas fontes, que vão desde as tradições das civilizações ao longo dos anos, passando pelos incontáveis pensamentos fi losófi cos-jurídicos, até as ideias do cristianismo, são os res- ponsáveis pelo surgimento dos direitos fundamentais. Esses fatores possuíam um ponto em comum, conforme Moraes (2011, p. 1): “[...] limitação e controle Evolução histórica dos direitos humanos10 C01_Direitos_Humanos.indd 10 30/07/2018 08:16:01 dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado moderno e contemporâneo”. Bobbio (1992) destaca que, no período em que os direitos dos homens eram vistos apenas como direitos naturais, a única maneira de se defenderem de uma violação do Estado era por meio do direito de resistência. No entanto, com o surgimento das Constituições, que reconheceram que alguns direitos mereciam proteção jurídica, esse direito de resistência se tornou um direito positivo, que permitia ação judicial contra o Estado. Durante a passagem da Idade Média para a Moderna, identificam-se os primeiros sinais de positivismo dos direitos dos homens. Em meio aos ideais burgueses, as concepções individuais e a instauraçãodo capitalismo liberal, a Magna Carta de 1215 surgia para limitar os poderes monárquicos e dar liberdade de ação aos burgueses. Esse governo, que seria antiabsolutista, permitiu a materialização da soberania popular. Contudo, essa também pode ser vista como a fase embrionária dos direitos humanos, segundo Comparato (2007), por nela ter despontado o valor da liberdade. Quando o autor se refere à liberdade, não é a geral, que beneficia a todos, sem condições sociais — esta só viria a ser declarada no final do século XVIII —, mas liberdades específicas, aquelas que favorecem os estamentos superiores da sociedade, nos quais o clero e a nobreza estão inseridos, permitindo algumas concessões em benefício do povo, que o autor chama de “terceiro Estado”. Essa fase mais liberal foi marcada por três momentos importantes da história, que representaram as aspirações democráticas: 1. a Revolução Inglesa; 2. a Independência das Treze Colônias Americanas, que culminou na elaboração da Constituição dos Estados Unidos; 3. a Revolução Francesa, que foi responsável pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela origem da Constituição da França. Note que a ideia de direitos fundamentais é anterior ao surgimento do constitucionalismo, uma vez que esse último apenas representou a necessidade de estabelecer por escrito um rol mínimo de direitos humanos. Como leciona Moraes (2011), o nascimento do constitucionalismo tem relação direta com as Constituições dos Estados Unidos da América, em 1787, e da França, em 1791. Ambos os textos apresentavam dois traços marcantes: “[...] organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio da previsão de direitos e garantias fundamentais” (MORAES, 2011, p. 1). 11Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 11 30/07/2018 08:16:01 O Direito Constitucional é um dos ramos do Direito Público e tem por objetivo a constituição política do Estado, visto que é “[...] fundamental à organização e ao funcionamento do Estado”, como afirma Moraes (2011, p. 1). Segundo Canotilho (1994, p. 151), a Constituição é o próprio produto legislativo do Direito Constitucional, uma vez que sua elaboração exerce dupla função: “[...] garantia do existente e programa ou linha de direção para o futuro”. Com o passar dos anos, os direitos civis começam a dar espaço para os direitos sociais. As Constituições passam a ser o centro do ordenamento ju- rídico, deixando de lado os Códigos Civis. Essa transformação do liberalismo clássico concretiza os interesses capitalistas, visto que ocorre durante a Grande Depressão, quando o intervencionismo estatal precisava ser institucionalizado para garantir soluções aos problemas econômicos e sociais, como expõem Menezes et al. (2008). Nesse sentido, os direitos fundamentais acabam por constituir previsões necessárias a todas as Constituições, uma vez que consagram o respeito à digni- dade humana, garantem a limitação do poder e visam ao pleno desenvolvimento da personalidade humana (MORAES, 2011). No entanto, segundo Comparato (2007), a plena afirmação dos novos direitos humanos, os quais englobavam exigências econômicas e sociais, ocorreu apenas no século XX, quando foram efetivadas as constituições mexicana, em 1917, e alemã (Weimar), em 1919. As Constituições passaram a priorizar a dignidade da pessoa humana nosseus textos, demonstrando uma preocupação mais humanitária em suas elaborações. Entretanto, a conscientização generalizada dos países sobre a necessidade de proteção ao indivíduo só veio após a Segunda Guerra Mundial, devido às barbáries ocorridas durante o nazismo, culminando na DUDH, em 1948. Ela teve papel fundamental, influenciando internacionalmente toda a esfera constitucional, consistindo no momento em que diversos países incorporaram em seu ordenamento jurídico um capítulo sobre os direitos e garantias individuais. Assim, surgiram diversas outras cartas internacionais na conquista dos direitos humanos fundamentais, como a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, a Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem, a Declaração Universal dos Direitos dos Povos, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, a Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo, entre outras, conforme expõe Freitas (2012). Cabe ressaltar que os direitos humanos foram sendo positivados conforme as mutações das ideologias sociais, ao longo de três gerações distintas de direito. Na primeira geração, o homem era visto como independente do Estado. Na segunda, os direitos sociais, culturais e econômicos ganham destaque, gerando uma maior preocupação com a igualdade material. A terceira traz os direitos Evolução histórica dos direitos humanos12 C01_Direitos_Humanos.indd 12 30/07/2018 08:16:01 de solidariedade, “[...] vinculados ao desenvolvimento, à paz internacional, ao meio ambiente saudável, à comunicação, que são os direitos difusos”, como afirma Freitas (2012, documento on-line). No âmbito brasileiro, a Constituição do Império do Brasil, de 1824, foi a primeira no mundo a positivar os direitos do homem; já a Constituição de 1891 trouxe direitos e garantias individuais. Porém, ambos se focaram nos direitos particulares do indivíduo, sem preocupação com os direitos sociais. Em 1934, a Constituição incorporou em seu texto direitos econômicos e sociais, inclusive inserindo os direitos trabalhistas. Tais direitos foram mantidos nas constituições seguintes, de 1937, 1946, 1967 e 1969. Mas a plena positivação dos direitos humanos fundamentais, sejam os individuais, coletivos ou difusos, só ocorreu na Constituição Federal de 1988. Conforme Moraes (2011), a Carta Magna de 1988 apresenta, no Título II, os direitos e as garantias fundamentais, os quais são divididos em cinco capítulos: “[...] direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos” (MORAES, 2011, p. 23). Os direitos individuais e coletivos são aqueles ligados diretamente à pessoa e à personalidade — por exemplo, vida, dignidade, honra, liberdade — e a maioria está disposta no art. 5º da Constituição Federal. Os direitos sociais correspondem às liberdades positivas, visando à melhoria das condições dos hipossuficientes, com o objetivo de atingir a igualdade social. Os direitos de nacionalidade representam o vínculo jurídico-político de um indivíduo com o Estado, possibilitando a ele compor o povo. Os direitos políticos se referem às regras de atuação da soberania popular. E, por fim, os direitos dos partidos políticos correspondem à regulamentação dada pela Carta Magna, os transformando em instrumentos necessários à preservação do Estado Democrático de Direito (MORAES, 2011). Constitucionalizar os direitos humanos fundamentais não significa apenas formalizar os princípios, mas realmente positivar os direitos, garantindo a qualquer indivíduo a exigência de tutela do Poder Judiciário, essencial para a concretização da democracia. A efetiva aplicação e o respeito aos direitos humanos fundamentais, previstos tanto na CF brasileira quanto no ordenamento jurídico em geral, se dá por meio da proteção judicial dispensada ao indivíduo via positivação de seus direitos. 13Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 13 30/07/2018 08:16:01 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituição.htm>. Acesso em: 15 jul. 2018. BOBBIO, N. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CANOTILHO, J. J. G. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 1994. CAVALCANTE, A. O trabalho forçado e a política de extermínio de ciganos durante o nazismo, 1938-1945. ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: PODER, VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO, 19. Associação Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH) - Univer- sidade de São Paulo (USP). Anais...São Paulo, 08 a 12 de set. de 2008. Disponível em: <http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/ Ania%20Cavalcante.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2018. COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. DALLARI, D. A. A Luta pelos Direitos Humanos. In: LOURENÇO, M. C. F. Direitos humanos em dissertações e teses da USP: 1934-1999. São Paulo: Universidade de São, 1999. FREITAS, S. M. Os direitos humanos e a evolução do ordenamento jurídico brasileiro. E-GOV — Portal do e-governo, inclusão digital e sociedade do conhecimento, 13 mar. 2012. UFSC — Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: <http://www. egov.ufsc.br/portal/conteudo/os-direitos-humanos-e-evolu%C3%A7%C3%A3o-do- -ordenamento-jur%C3%ADdico-brasileiro-0>. Acesso em: 15 jul. 2018. MACHADO, D. P. Direitos do homem, direitos fundamentais e direitos humanos. JusBrasil, 21 mar. 2015. Disponível em: <https://diegomachado2.jusbrasil.com.br/ar- tigos/175675645/direitos-do-homem-direitos-fundamentais-e-direitos-humanos>. Acesso em: 15 jul. 2018. MARTÍNEZ, G. P. B. Curso de Derechos Fundamentales: Teoría General. Universidad Carlos III de Mardid. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 1999. MENEZES, C. N.; et al. A trajetória dos direitos humanos e suas formas de concretização. Revista SEPA — Seminário estudantil de produção acadêmica, v. 12, 2008. Disponível em: <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/sepa/article/viewFile/300/248>. Acesso em: 15 jul. 2018. MIRANDA, J. Manual de Direito Constitucional: tomo IV. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. MORAES, A. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos artigos 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil — doutrina e jurisprudência. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000. (Coleção Temas Jurídicos, v. 3). Evolução histórica dos direitos humanos14 C01_Direitos_Humanos.indd 14 30/07/2018 08:16:01 MORAES, A. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011. PAUPÉRIO, A. M. Direitos e deveres naturais do homem. Revista de Direito Público e Ciência Política, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, maio/ago. 1962. SILVA, A. R. F. O homem dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3980, 25 maio 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/27962>. Acesso em: 15 jul. 2018. SILVA, L. G. A evolução dos Direitos Humanos. Conteúdo Jurídico, Brasília, 8 abr. 2013. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.42785&seo=1>. Acesso em: 15 jul. 2018. SIQUEIRA, D. P.; PICCIRILLO, M. B. Direitos fundamentais: a evolução histórica dos di- reitos humanos, um longo caminho. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 61, fev. 2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_ar- tigos_leitura&artigo_id=5414>. Acesso em: 15 jul. 2018. 15Evolução histórica dos direitos humanos C01_Direitos_Humanos.indd 15 30/07/2018 08:16:01
Compartilhar