forma de expressão (seja na língua falada ou num artefato) permite que ela possa ser aceita por qualquer membro da cultura que a produziu. Utilizo a expressão “gramática espacial” no sentido de conjunto de regras que formam a lógica que permite uma determinada ordenação dos elementos que compõem o sistema espacial de uma sociedade. 16 diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização”. Conforme este antropólogo, isto permite ordenar espaços, separar contextos, estabelecer atitudes. No entanto, e mais além, o espaço entendido como esferas de sentido, constitui “a própria realidade [...] [que] permite normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas próprias” (Idem 51-2). Assim, o que precisamos descobrir são essas esferas de significação social e a ordenação lógica entre elas, observando que modificações podem ter ocorrido no transcurso do século XIX. As perguntas que decorrem deste amplo problema são inúmeras: como se estruturava o espaço urbano no centro de Porto Alegre? Onde estão e como se configuram as praças, as ruas, os mercados, os espaços institucionais de poder? E como se configuravam as casas? Como se dá a passagem do espaço privado (casa) para o espaço público (rua), ou seja, onde estão e como são as portas, as janelas e os jardins? Como estão ordenados e articulados esses espaços? A que grupos sociais eles estão ligados e como? Que modificações ocorreram quanto à configuração, ordenação e articulação desses espaços no transcurso de um processo histórico? Para tentar responder algumas destas questões, sugiro que os diferentes grupos sociais que constroem suas diferentes realidades e diferentes normas espaciais, buscam “fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (Chartier, 1991 :183) e é através de “formas institucionalizadas e objetivadas” que é possível marcar “de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe” (idem). 17 Surge, daí, o conceito de representações coletivas, conforme proposto por Chartier (1991), como uma ferramenta capaz de dar conta de uma problemática que inclui a compreensão dos espaços centrais de Porto Alegre, sua ordenação e articulação e, portanto, das próprias divisões e hierarquizações da organização social. As representações coletivas são sistemas de referência que incorporam a cosmologia 129 e o sistema classificatório de uma sociedade e que orientam as práticas, as ações concretas, onde elas estão imbricadas e onde elas se nutrem. Elas são, segundo Chartier, “as matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social” (ibidem). Se isto é correto, e eu penso que é, então as representações coletivas estão na base da construção dos espaços cuja gramática encontra sua expressão nas práticas sociais. Colocado desta forma, representações e práticas sociais são inseparáveis: não são nem contraditórias e nem uma é mais verdadeira que a outra. São como as duas faces de uma mesma moeda, pistas diferentes, mas complementares para se chegar a compreender os espaços sociais. Assim, recuperar e compreender os espaços do centro da Porto Alegre oitocentista é um processo de reconstituição a partir de fragmentos. E que fragmentos são estes? São as representações coletivas, inscritas nos discursos, na arquitetura, nos traçados das ruas, nos espaços vazios. São, também, os diferentes grupos sociais que se ligam a essas representações, e são, ainda, as práticas vividas por esses grupos que possuem, também, sua matriz nas representações coletivas. 129 O termo cosmologia quer significar “uma teoria ou filosofia das origens e estrutura geral do universo, seus componentes, elementos e leis, especialmente aquelas relacionadas a algumas variáveis como espaço, tempo e causalidade. A forma como o cosmos é estruturado, afeta a religião e a ideologia” (Flannery e Marcus, 1993:267). 18 A dificuldade de fazer esta reconstituição a partir destes fragmentos situa-se no fato de que, por um lado, as representações não são obtidas de forma direta, ou seja, as representações não afloram espontaneamente dos discursos. E, por outro lado, está a questão de que os aspectos não-materiais da cultura não são necessariamente correlacionados aos aspectos materiais desta cultura. A chave para resolver este problema está em buscar no discurso e na prática, em instituições e em condutas, vestígios diferentes, mas complementares, como se fossem duas faces de uma mesma moeda, levando em conta um recorte social onde elas estão inseridas. O problema seguinte diz respeito ao estabelecimento deste recorte social. Serão grupos econômicos, classes sociais, grupos étnicos? É Chartier (1991:180), novamente, quem fornece o caminho: “É preciso, creio, recusar esta dependência que refere as diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori, tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo, entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das diferenciações menores (por exemplo entre grupos sociais hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais). De fato, as clivagens sociais não estão forçosamente organizadas segundo uma grade única do recorte social, que supostamente comandaria tanto a presença desigual dos objetos, como as diferenças nas condutas”. A proposta de Chartier é de inverter a questão e traçar a área de circulação de objetos, formas, códigos ou normas culturais, buscando o recorte mais apropriado que considere que as diferenciações sociais não são meramente de classe econômica, mas que podem ser também de gênero, religiosas, profissionais, territoriais, etc. (Idem:180-1). 19 Mas para chegar a isto, precisamos, antes de mais nada, delinear o contexto histórico onde as coisas acontecem. O contexto histórico permite identificar, avaliar e interpretar mais facilmente os vestígios arqueológicos, ainda que os mesmos vestígios possam levar, em contrapartida, a reavaliar e redesenhar o contexto histórico. O passo seguinte é o de realizar um amplo levantamento das estruturas físicas, do universo material urbano, que aqui é o objeto principal e que, em última análise, serve de suporte às representações e local onde se dão as práticas sociais urbanas A pesquisa arqueológica da cidade e, sobretudo, da própria cidade, reveste-se de peculiaridades que merecem que se teçam algumas considerações, que são importantes para esclarecer questões relativas à especificidade deste tipo de pesquisa, situando-a no âmbito da ciência Arqueológica como um todo. Uma das características mais marcantes do fazer arqueológico é o trabalho de campo. Munidos de um instrumental aparentemente bizarro - pelo menos para cientistas mais acostumados a ambientes assépticos - o arqueólogo costuma deixar sua casa e seu cotidiano para coletar seus dados em campo. Ele busca, em geral, culturas diferentes da sua, distantes principalmente em tempo e, na maioria dos casos, em espaço. Esse deslocamento geográfico, associado à busca de elementos distantes temporalmente, parece ser responsável pela imagem por demais conhecida do arqueólogo envolvido nas mais diversas aventuras, cujos estereótipos tem sido motivo de riso e prazer, mesmo entre nós. Percorrem-se lugares exóticos, enfrentam-se intempéries, atravessam-se oceanos e desertos (a bem da verdade, na maioria das vezes, são apenas alguns banhados). Essa imagem romântica tem servido, por um lado, de atrativo a muitos que se iniciam nesta ciência e, por 20 outro, de elemento que inspira aversão àqueles mais ligados às bibliotecas, aos arquivos, aos ambientes isentos de barro, água, muito sol e vários tipos de insetos. Talvez por necessidade de demarcar fronteiras e estabelecer