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1999 THIESEN_Arqueologia da área central de Porto Alegre

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forma de expressão (seja na língua falada ou num artefato) permite que ela 
possa ser aceita por qualquer membro da cultura que a produziu. Utilizo a expressão “gramática espacial” no 
sentido de conjunto de regras que formam a lógica que permite uma determinada ordenação dos elementos 
que compõem o sistema espacial de uma sociedade. 
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diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização”. Conforme este 
antropólogo, isto permite ordenar espaços, separar contextos, estabelecer atitudes. No 
entanto, e mais além, o espaço entendido como esferas de sentido, constitui “a própria 
realidade [...] [que] permite normalizar e moralizar o comportamento por meio de 
perspectivas próprias” (Idem 51-2). Assim, o que precisamos descobrir são essas esferas de 
significação social e a ordenação lógica entre elas, observando que modificações podem ter 
ocorrido no transcurso do século XIX. 
 
As perguntas que decorrem deste amplo problema são inúmeras: como se 
estruturava o espaço urbano no centro de Porto Alegre? Onde estão e como se configuram 
as praças, as ruas, os mercados, os espaços institucionais de poder? E como se 
configuravam as casas? Como se dá a passagem do espaço privado (casa) para o espaço 
público (rua), ou seja, onde estão e como são as portas, as janelas e os jardins? Como estão 
ordenados e articulados esses espaços? A que grupos sociais eles estão ligados e como? 
Que modificações ocorreram quanto à configuração, ordenação e articulação desses 
espaços no transcurso de um processo histórico? 
 
Para tentar responder algumas destas questões, sugiro que os diferentes grupos 
sociais que constroem suas diferentes realidades e diferentes normas espaciais, buscam 
“fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de ser no mundo, a 
significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (Chartier, 1991 :183) e é através de 
“formas institucionalizadas e objetivadas” que é possível marcar “de modo visível e 
perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe” (idem). 
 
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Surge, daí, o conceito de representações coletivas, conforme proposto por Chartier 
(1991), como uma ferramenta capaz de dar conta de uma problemática que inclui a 
compreensão dos espaços centrais de Porto Alegre, sua ordenação e articulação e, portanto, 
das próprias divisões e hierarquizações da organização social. As representações coletivas 
são sistemas de referência que incorporam a cosmologia
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 e o sistema classificatório de 
uma sociedade e que orientam as práticas, as ações concretas, onde elas estão imbricadas e 
onde elas se nutrem. Elas são, segundo Chartier, “as matrizes de práticas construtoras do 
próprio mundo social” (ibidem). Se isto é correto, e eu penso que é, então as representações 
coletivas estão na base da construção dos espaços cuja gramática encontra sua expressão 
nas práticas sociais. Colocado desta forma, representações e práticas sociais são 
inseparáveis: não são nem contraditórias e nem uma é mais verdadeira que a outra. São 
como as duas faces de uma mesma moeda, pistas diferentes, mas complementares para se 
chegar a compreender os espaços sociais. 
 
Assim, recuperar e compreender os espaços do centro da Porto Alegre oitocentista é 
um processo de reconstituição a partir de fragmentos. E que fragmentos são estes? São as 
representações coletivas, inscritas nos discursos, na arquitetura, nos traçados das ruas, nos 
espaços vazios. São, também, os diferentes grupos sociais que se ligam a essas 
representações, e são, ainda, as práticas vividas por esses grupos que possuem, também, sua 
matriz nas representações coletivas. 
 
 
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 O termo cosmologia quer significar “uma teoria ou filosofia das origens e estrutura geral do universo, 
seus componentes, elementos e leis, especialmente aquelas relacionadas a algumas variáveis como espaço, 
tempo e causalidade. A forma como o cosmos é estruturado, afeta a religião e a ideologia” (Flannery e 
Marcus, 1993:267). 
 
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A dificuldade de fazer esta reconstituição a partir destes fragmentos situa-se no fato 
de que, por um lado, as representações não são obtidas de forma direta, ou seja, as 
representações não afloram espontaneamente dos discursos. E, por outro lado, está a 
questão de que os aspectos não-materiais da cultura não são necessariamente 
correlacionados aos aspectos materiais desta cultura. A chave para resolver este problema 
está em buscar no discurso e na prática, em instituições e em condutas, vestígios diferentes, 
mas complementares, como se fossem duas faces de uma mesma moeda, levando em conta 
um recorte social onde elas estão inseridas. 
 
O problema seguinte diz respeito ao estabelecimento deste recorte social. Serão 
grupos econômicos, classes sociais, grupos étnicos? É Chartier (1991:180), novamente, 
quem fornece o caminho: 
 
“É preciso, creio, recusar esta dependência que refere as 
diferenças de hábitos culturais a oposições sociais dadas a priori, 
tanto à escala de contrastes macroscópicos (entre as elites e o povo, 
entre os dominantes e os dominados), quanto à escala das 
diferenciações menores (por exemplo entre grupos sociais 
hierarquizados pelos níveis de fortuna ou atividades profissionais). 
De fato, as clivagens sociais não estão forçosamente organizadas 
segundo uma grade única do recorte social, que supostamente 
comandaria tanto a presença desigual dos objetos, como as 
diferenças nas condutas”. 
 
A proposta de Chartier é de inverter a questão e traçar a área de circulação de 
objetos, formas, códigos ou normas culturais, buscando o recorte mais apropriado que 
considere que as diferenciações sociais não são meramente de classe econômica, mas que 
podem ser também de gênero, religiosas, profissionais, territoriais, etc. (Idem:180-1). 
 
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Mas para chegar a isto, precisamos, antes de mais nada, delinear o contexto 
histórico onde as coisas acontecem. O contexto histórico permite identificar, avaliar e 
interpretar mais facilmente os vestígios arqueológicos, ainda que os mesmos vestígios 
possam levar, em contrapartida, a reavaliar e redesenhar o contexto histórico. O passo 
seguinte é o de realizar um amplo levantamento das estruturas físicas, do universo material 
urbano, que aqui é o objeto principal e que, em última análise, serve de suporte às 
representações e local onde se dão as práticas sociais urbanas 
 
A pesquisa arqueológica da cidade e, sobretudo, da própria cidade, reveste-se de 
peculiaridades que merecem que se teçam algumas considerações, que são importantes 
para esclarecer questões relativas à especificidade deste tipo de pesquisa, situando-a no 
âmbito da ciência Arqueológica como um todo. 
 
Uma das características mais marcantes do fazer arqueológico é o trabalho de 
campo. Munidos de um instrumental aparentemente bizarro - pelo menos para cientistas 
mais acostumados a ambientes assépticos - o arqueólogo costuma deixar sua casa e seu 
cotidiano para coletar seus dados em campo. Ele busca, em geral, culturas diferentes da sua, 
distantes principalmente em tempo e, na maioria dos casos, em espaço. Esse deslocamento 
geográfico, associado à busca de elementos distantes temporalmente, parece ser 
responsável pela imagem por demais conhecida do arqueólogo envolvido nas mais diversas 
aventuras, cujos estereótipos tem sido motivo de riso e prazer, mesmo entre nós. 
Percorrem-se lugares exóticos, enfrentam-se intempéries, atravessam-se oceanos e desertos 
(a bem da verdade, na maioria das vezes, são apenas alguns banhados). Essa imagem 
romântica tem servido, por um lado, de atrativo a muitos que se iniciam nesta ciência e, por 
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outro, de elemento que inspira aversão àqueles mais ligados às bibliotecas, aos arquivos, 
aos ambientes isentos de barro, água, muito sol e vários tipos de insetos. 
 
Talvez por necessidade de demarcar fronteiras e estabelecer
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